Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
346/09.2TBCBR.C1.
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO COSTA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
ACTIVIDADE PERIGOSA
CONSTRUÇÃO CIVIL
Data do Acordão: 01/18/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.342, 483, 487, 493 Nº2 CC
Sumário: 1. - Se a actividade da construção civil não é em si mesma uma actividade perigosa, muitos dos meios utilizados nessa actividade revestem inegavelmente um elevado grau de perigosidade, sendo abrangidos pela presunção de culpa, nos termos nº 2 do art.493 do CC.

2. - É enquadrável nessa situação a realização de uma empreitada para cuja execução é mister proceder à implantação de estacas-prancha nas proximidades de uma conduta de gás.

3. - Ficando demonstrado que as adjudicatárias de uma empreitada, cujos trabalhos se realizavam perto de um gasoduto e de cabodutos, solicitaram à respectiva concessionária as plantas da infra-estrutura de tais condutas, as quais não estavam em conformidade com a realidade, e que os funcionários dessa concessionária acompanharam a execução dos trabalhos, procedendo à marcação no terreno do local por onde passariam tais condutas, nenhuma responsabilidade pode ser assacada às empresas que procediam, no âmbito da empreitada, à implantação de estacas-prancha de que vieram a resultar danos nos cabodutos e no revestimento de aço do gasoduto.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO

L (…), S.A., intentou a presente acção com processo ordinário contra:

- Consórcio Construtora (…), S. A.; e

- Coimbra (…)S.A., pedindo a condenação destas a reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação dos cabodutos e da tubagem em aço, bem como a pagarem à Autora a quantia indemnizatória dos danos patrimoniais e não patrimoniais, a liquidar em execução de sentença.

Alegou, para tanto, em resumo, que, na sequência da realização de trabalhos que o consórcio externo constituído pelas RR. (…) levava a efeito para a Ré (…), em execução das 1ª e 2ª fases do Parque Verde do Mondego, em Coimbra, ao proceder à instalação de estacas, danificou dois cabodutos (um deles com fibra óptica no interior) e o revestimento da tubagem de aço da conduta de gás, bens pertença da Autora, situação e prejuízos cuja reparação não foi efectuada; era ao referido consórcio a quem competia efectuar a sondagem com vista à exacta localização das condutas em causa, sendo que a Autora apenas teve intervenção no processo de marcação do traçado da tubagem em espírito de colaboração, não tendo os técnicos da Autora afectados para o acompanhamento dos trabalhos competências ao nível do comportamento do subsolo, dos equipamentos e técnicas de trabalho que estavam a ser utilizadas, não podendo evitar, em qualquer caso, as movimentações de materiais e terras (ou areias) no subsolo que deram origem aos danos causados.

Contestou a Ré (…), aduzindo que todo o acontecido parece resultar da ausência por parte da Autora de um registo actualizado do cadastro das suas infra-estruturas, já que as mesmas se encontram em espaço público, sobre o qual apenas tem constituído um direito de servidão, sendo que, perante as informações prestadas pelo Consórcio, a responsabilidade pela danificação dos cabodutos não pode ser assacada às Rés; acrescenta que não tem conhecimento da maior parte dos factos alegados pela Autora, pelo que os impugna; termina pedindo a improcedência da acção.

Contestou também a Ré (…), alegando, também em resumo, que todos os trabalhos de colocação de estacas foram realizadas em cumprimento das indicações dadas pelos técnicos da Autora, presentes na obra, em cumprimento das boas regras de arte aplicáveis ao caso, nenhuma responsabilidade podendo ser assacada à A... e à B...; além disso, competindo à C... o fornecimento das peças do projecto, a responsabilidade pelos prejuízos deverá ser assacada a esta Ré, enquanto dona de obra, uma vez que as peças do projecto por si apresentadas não continham todos os elementos necessários para uma exacta e pormenorizada definição da obra a executar; acresce que em momento algum a Autora alegou que foi a colocação da estaca ou a má execução dos trabalhos a ter causado os danos nos cabodutos e na tubagem de aço, pelo que, inexistindo nexo de causalidade entre a actividade exercida pelo consórcio e os danos alegados, inexiste responsabilidade da (…) e, de todo o modo, o consórcio actuou tomando toadas as providências que se lhe exigiam, pedindo as plantas de localização das infra-estruturas, executando os trabalhos tendo em atenção o perímetro de segurança imposto pela Autora e de acordo com a legis artis; termina pedindo a improcedência da acção e a intervenção principal da Companhia de Seguros (…), S.A., para quem fora transferida a responsabilidade por danos causados a (…), S.A., devido a esta ter executado, juntamente com a contestante, os trabalhos em causa.

Admitidas as intervenções da (…) e da Companhia de Seguros D...(…) S.A, a primeira declarou que fazia sua a contestação apresentada pela Ré (…) (fls. 159).

Por sua vez, a seguradora apresentou contestação, arguindo as excepções da sua ilegitimidade e de ineptidão da petição inicial; e impugnou a factualidade constante da petição inicial.

Na réplica, a Autora defendeu a improcedência das arguidas excepções.

Proferiu-se o despacho saneador, no qual se julgaram improcedentes as arguidas excepções de ilegitimidade e de ineptidão da petição inicial, absolvendo-se da instância o consórcio Réu, enquanto tal, por carecer de personalidade judiciária; consignaram-se os factos tidos como assentes e organizou-se a base instrutória, sem reclamações.

Entretanto, na sequência da dissolução da sociedade (…) o Município de Coimbra, enquanto sucessor dos direitos e obrigações daquela sociedade, veio habilitar-se no lugar da mesma, habilitação que foi admitida por sentença transitada em julgado, passando o Município de Coimbra a figurar como Réu, em substituição e ocupando a posição da (…)

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, finda a qual se respondeu à matéria da base instrutória, sem reparo de qualquer das partes.

Finalmente, verteu-se nos autos sentença que, julgando a acção totalmente improcedente, absolveu as Rés do pedido.

Inconformada com o assim decidido, interpôs a Autora recurso para este Tribunal, o qual foi admitido como de apelação e efeito meramente devolutivo.

Alegou, oportunamente, a apelante, a qual finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:

(…)

7ª - Verificaram-se todos os pressupostos da Responsabilidade civil extracontratual, existindo nexo de imputação dos factos danosos às lesantes;

8ª - As Rés não lograram provar que preveniram e empregaram todas as providências exigidas pelas circunstâncias, pelo que - contrariamente ao decidido - o acidente sub judice é da responsabilidade das Rés, que acabaram por lhe dar causa;

9ª - A sentença recorrida fez errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 483º n° 1 e 493° n° 2, ambos do Código Civil;

10ª - No entender da ora Recorrente, a norma do nº 2 do artigo 493° do Código Civil deveria ter sido interpretada e aplicada no sentido de que, ao causarem danos no exercício de uma Actividade Perigosa, as Rés empreiteiras estão obrigadas a repará-los, sendo que para se excluir a responsabilidade não basta demonstrar que há culpa da lesada por envolvimento em hipotéticas acções, sendo essencial demonstrar que as executoras da obra preveniram a sua segurança e empregaram todos os meios adequados;

11ª - O Meritíssimo Juiz "a quo" deveria ter decidido pela procedência da acção, sendo as Rés condenadas no pedido”.

A alegação da apelante vem acompanhada de um Parecer do Laboratório Nacional de Engenharia Civil, subscrito pela Investigadora Coordenadora (…), no qual são apresentadas as seguintes conclusões:

- “A Memória Descritiva e Justificativa do projecto deveria incluir o processo constitutivo, os dados geotécnicos do local, o dimensionamento da cortina de estacas prancha e as verificações de segurança da cortina e de todas as estruturas e infra-estruturas potencialmente afectadas durante o faseamento construtivo da obra, o que não foi encontrado.

- O Plano de Segurança e Saúde da obra em apreciação é de carácter muito genérico, não referindo explicitamente os cuidados associados à utilização de estacas pranchas, aos processos de escavação e às possíveis interferências com as estruturas envolvidas. Terá, assim, na fase de construção, havido falta de percepção do risco envolvido na zona de implantação da conduta de gás e consequentemente não foram adaptadas de medidas especiais capazes de garantir a segurança, o controlo da qualidade de execução da cortina de estacas pranchas e a observação do comportamento do maciço e das condutas interferidas pela construção.

- Na fase de construção, para permitir a instalação do “box culvert”, foi adoptada uma solução de cortina de estacas pranchas, de menor comprimento junto da zona de implantação da conduta de gás, de modo a garantir uma distância de segurança, nas condições de execução do local, seria difícil de assegurar.

- A solução de estacas prancha deveria ser complementada com um tratamento de solo ou, em alternativa, poderia ter sido adoptada uma outra solução que minimizasse os efeitos sobre a conduta.

- Tratando-se de uma obra com alguma complexidade e de risco não desprezável, a fase de projecto e de construção deveriam ter sido exercidas e acompanhadas por técnicos com qualificação e experiência comprovada na área de Geotecnia”.

 

Não foram apresentadas contra-alegações.


...............


ÂMBITO DO RECURSO

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, nos termos do disposto nos artºs 684º, n.º 3, e 685º-A, n.º 1, do C. de Proc. Civil, na versão introduzida pelo Dec. Lei nº 303/2007, de 24/8.

De acordo com as apresentadas conclusões, as questões a decidir por este Tribunal são as de saber:

- Se deve ser alterada a decisão da matéria de facto; e

- Se as apeladas são civilmente responsáveis pelos danos sofridos pela apelante.

Foram colhidos os vistos legais.

Cumpre decidir.


...............

OS FACTOS

Na sentença recorrida, foram dados com provados os seguintes factos:

1º - Em 11 de Setembro de 2006 foi celebrado entre (…),, o acordo constante de fls. 74 a 91, cujo teor aqui se dá por reproduzido e que designaram "contrato para a empreitada de execução da 1.ª e 2.ª fases do Parque Verde do Mondego, na Zona de Intervenção do Programa Polis em Coimbra", sujeito ao caderno de encargos de fls. 102 a 155;

2º - Entre a chamada (…), S.A. e o Consórcio (…), S.A., foi celebrado o contrato de seguro, com a apólice n.º ..., sujeito às cláusulas constantes de fls. 95 a 101, que aqui se dão por integralmente reproduzidas;

3º - A autora é uma sociedade anónima, sendo concessionária do Serviço Público de distribuição de gás natural na região Centro e, como tal, proprietária, em regime de concessão, das infra-estruturas, com a atribuição de as operar, desenvolver e manter;

4º - No âmbito da execução do acordo referido em 1º, o Consórcio (…) solicitou o cadastro das infra-estruturas da (…) existentes na zona em causa;

5º - Em 21/09/2006 a (…)gás procedeu ao envio das plantas juntas a fls. 13 e 14, com a localização das infra-estruturas que interferiam com esses trabalhos;

6º - (...) plantas essas que foram carimbadas com a indicação de que "as cotas referidas são meramente indicativas, sendo da responsabilidade da empresa que vai executar os trabalhos proceder à detecção da tubagem através de sondagem manual";

7º - A tubagem encontrava-se sinalizada com postes de sinalização amarelos nos pontos referidos no desenho em anexo;

8º - Na zona de interferência (margem esquerda do rio Mondego) essa tubagem está instalada a uma profundidade aproximada de 8 metros;

9º - Em 4 de Maio realizou-se uma reunião no local da obra entre os representantes do Consórcio e a (…) na qual ficou acordado que o Consórcio devia respeitar na realização dos trabalhos, nas proximidades da tubagem, as distâncias planimétricas e altimétricas de, pelo menos, 2 metros e bem assim que os trabalhos dentro da zona de segurança seriam acompanhados por representante da (…);

10º - Esta posição da A. visou garantir que os equipamentos e materiais utilizados pelo consórcio não se pudessem aproximar da infra-estrutura de gás a uma distância não inferior a pelo menos dois metros;

11º - Em data não apurada dois técnicos da (…) deslocaram-se ao local da obra onde procederam a marcações, com auxílio de equipamento adequado, de forma a sinalizar o traçado da tubagem na zona;

12º - A A., com vista a que o Consórcio não tivesse que efectuar a sondagem manual, procedeu às marcações do traçado da tubagem;

13º - A marcação referida em 11º demonstrou que a instalação da tubagem da (…)não coincidia com a implantação da tubagem na cartografia - como se veio a constatar através da marcação da infra-estrutura com recurso ao equipamento de “radio detection” - pelo que a A. teve de reforçar a marcação da tubagem no local, com a colocação de estacas de madeira para além dos postaletes que já existiam;

14º - Em diversos dias do mês de Agosto de 2007 (até ao dia 22, inclusive) funcionários da A. estiveram no local onde o consórcio levava a cabo os trabalhos (designadamente a colocação de estacas-prancha) para efeitos de dar orientações no sentido de que os mesmos não interferissem com a infra-estrutura de gás e bem assim por razões de segurança;

15º - A esses funcionários não era possível verificar a ocorrência de eventual deslizamento das estacas-prancha depois de aplicadas;

16º - Em 22 de Agosto de 2007, cerca das 23h00, a ONI contactou a (…), informando que estavam com problemas de comunicação na fibra óptica de Coimbra desde as 16h30 e que ainda não tinham localizado a avaria;

17º - Em 23 de Agosto de 2007, o piquete de emergência da ONI, após vários testes, verificou que a fibra óptica tinha sido cortada no local onde decorriam os trabalhos do Consórcio;

18º - Na realização dos trabalhos o consórcio danificou dois cabodutos adjacentes à conduta de gás - um deles com fibra óptica no interior - e bem assim o revestimento da tubagem de aço da conduta de gás;

19º - A presença de técnicos da (…) não poderia evitar as movimentações de materiais e terras ou areias no subsolo;

20º - O Consórcio tentou efectuar a abertura da vala para aceder às infra-estruturas da A., instalando os meios de que dispunha para o efeito, designadamente bombas de água e escavadoras, sem o ter conseguido;

21º - As telas finais contendo as infra-estruturas de gás natural tinham diferenças de dezassete metros entre o representado nas plantas e a realidade;

22º - A execução das estacas prancha foi efectuada tendo por base, quer as marcações feitas no local pelos técnicos da (…), quer as indicações pelos mesmos transmitidas;

23º - Essa execução foi acompanhada por aqueles técnicos, até ao momento em que os mesmos decidiram que a sua presença ali era dispensável, nomeadamente aquando da continuação da cravação das «estacas, fora da»[1] zona de segurança;

24º - As pré-marcações foram respeitadas pelo Consórcio;

25º - A tubagem existente situava-se a cerca de 12,43 m. do local de implantação da estrutura a construir;

26º - Esta distância conferia ao Consórcio uma margem de segurança de trabalho que lhe permitia executar a implantação da nova estrutura sem necessidade de qualquer acompanhamento adicional por parte da A.;

27º - Em resultado da marcação dos técnicos da A. efectuada alguns dias antes da reunião de 4 de Maio de 2007, verificou-se que a tubagem e a estrutura a construir pelo consórcio se interceptavam, já que havia um erro nas plantas fornecidas pela A. de 17,84 m relativamente à localização daquela tubagem;

28º - Nem nas plantas enviadas pela A., nem nas marcações subsequentes por si realizadas, nem mesmo em qualquer reunião ou comunicação anterior ao dia 23 de Agosto de 2007 foi feita qualquer referência à existência dos dois cabodutos;

29º - Os trabalhos do consórcio foram realizados em cumprimento das indicações dadas pelos técnicos da A. presente em obra as definidas na reunião de 4 de Maio, concretamente, as distâncias de segurança;

30º - Nos dias 20 e 21 de Agosto de 2007 o consórcio procedeu à colocação de estacas-prancha dentro e fora do perímetro de segurança;

31º - O técnico da A. indicou ao encarregado do consórcio que, dado que as estacas a cravar se situavam fora do perímetro de segurança, não seria necessária a sua presença ou de qualquer colega seu;

32º - No dia 22 de Agosto de 2007 o consórcio cravou mais duas estacas fora do perímetro de segurança, de acordo com as indicações que lhe tinham sido transmitidas;

33º - Apesar dos esforços empregues não foi possível ao consórcio aceder ao gasoduto e aos cabodutos, não tendo conseguido aferir o local exacto de tais infra-estruturas, os danos e a sua causa;

34º - Na altura da marcação da vala, ainda foram efectuadas novas medições por parte da A. com vista à localização da infra-estrutura, que deu diferenças relativamente à marcação anteriormente efectuada.


...............

O DIREITO

1 – A decisão da matéria de facto

            (…)

Não procede, assim, a impugnação da matéria de facto feita pela apelante.

2 – Enquadramento jurídico dos factos provados

2.1 - Defende a apelante que a cravação de estacas-prancha, com o emprego de máquinas/grua, em terreno arenoso e adjacente a um rio, tudo a interferir com um gasoduto, constitui uma actividade perigosa, o que implica uma presunção legal de culpa, nos termos do artº 493º, nº 2, do C. Civil.

No fundo, esta questão não é controvertida, já que a sentença recorrida aceitou expressamente que a actividade desenvolvida pelo consócio formado pelas Rés (…) era perigosa. E as apeladas não questionaram esse entendimento.

Como se escreveu na sentença recorrida, “do apuro dos factos resulta que o Consórcio executava trabalhos, de entre o demais, de colocação de estacas prancha (ou seja, envolvendo perfurações e implantações de estacas no solo), que interferiam com uma tubagem de gás (gasoduto), pertença da A.

Tal actividade não pode, em concreto, deixar de ser considerada perigosa consabidos os elevadíssimos riscos decorrentes da ruptura de uma conduta de gás (inclusive explosão ou largada para a atmosfera ou para o próprio Rio Mondego ­ local onde os trabalhos decorriam -, de grandes quantidades de gás natural), gasoduto esse que, como se evidencia da documentação junta aos autos e é reconhecido pelas partes, não se tratava de um simples "ramal doméstico", antes abastecedor do núcleo urbano, e, por isso mesmo, colocado a uma profundidade aproximada de 8m. na zona de interferência (margem esquerda do rio Mondego).

Perigosidade que ressalta evidenciada quando se consulte um qualquer Manual das condições técnicas e de segurança a que devem obedecer o projecto, a construção, a exploração, e a manutenção das infra-estruturas de transporte de gás em alta pressão.

Perigosidade de que se apercebe necessariamente qualquer homem médio quando conhecedor das perfurações junto de uma conduta de gás que se sabe passar nas proximidades.

Perigosidade essa que, de resto, pela própria natureza da substância em causa, está na base do regime pelo risco consagrado no artº 509º do Código Civil (onde alguns vêm uma presunção de culpa) relativamente a quem tiver a direcção efectiva de instalação destinada à condução ou entrega de gás, utilizando-a no seu próprio interesse.

Do exposto decorre que é ao lesante a quem, na situação dos autos, incumbe demonstrar que empregou todas as circunstâncias exigidas pelas circunstâncias com o fim de as prevenir”.

Em matéria de responsabilidade civil extracontratual, como é o caso presente, sendo a culpa do lesante um elemento constitutivo do direito à indemnização, em princípio, é sobre o lesado, enquanto credor, que recai o ónus de fazer a prova dela, de acordo com a repartição legal do ónus probatório consagrado no artº 342º, n.º 1, do C. Civil.

O artº 487º, n.º 1, do mesmo diploma, afirma também esse princípio, mas ressalva os casos em que haja presunção de culpa.

De entre esses casos em que a lei estabelece uma presunção de culpa, está o do exercício de uma actividade perigosa. Dispõe a esse propósito o artº 493º, n.º 2, do C. Civil:

2. Quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.

Por força desta norma, os danos causados por actividades perigosas em si ou perigosas pelos meios que implicam são imputáveis ao seu autor, que se presume culpado por falta de cuidado (v. Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, Vol. 2º, 352).

Mas não deve confundir-se presunção legal de culpa com responsabilidade objectiva, pois não é desta que trata a norma em questão.

Na verdade, como adverte Antunes Varela (Das Obrigações em geral, vol. 1º, 9ª ed., 613, nota 2), o proprietário ou possuidor não responde pelos riscos ou pelo perigo especial proveniente do edifício ou dos meios utilizados, mas só por ter culposamente deixado de observar os cuidados de construção e de conservação exigíveis para prever e prevenir o dano (no mesmo sentido, v. o Ac. do S.T.J. de 28/4/77, B.M.J. n.º 266º, 161).

O carácter perigoso da actividade geradora dos danos pode resultar, como explicita o texto do aludido n.º 2, ou da própria natureza da actividade ou da natureza dos meios utilizados.

Aqui, estamos em presença de um caso de perigosidade do meio utilizado. Com efeito, se a actividade da construção civil não é em si mesma uma actividade perigosa (v. Ac. do S.T.J. de 19/1/77, B.M.J. n.º 263º, 250), muitos dos meios utilizados nessa actividade revestem inegavelmente um elevado grau de perigosidade, de modo a podermos enquadrá-los, sem rebuço, no normativo em análise.

A perigosidade dos meios utilizados, já que o citado n.º 2 do artº 493º não diz o que deve entender-se por uma actividade perigosa ou por perigosidade dos meios utilizados, é matéria a apreciar, em cada caso concreto e segundo as circunstâncias (v. Pires de Lima e Antunes Varela, C. Civil Anotado, vol. 1º, 4ª ed., 495).

Ora, no caso em apreço, em face do apontado circunstancialismo, dúvidas não temos, acompanhando a sentença recorrida, em configurar a concreta actividade desenvolvida pelas Rés como meio perigoso, para efeitos do apontado n.º 2 do artº 493º.

A jurisprudência dos nossos tribunais superiores tem-se pronunciado neste sentido em casos similares ao aqui em análise. Assim, a título meramente exemplificativo:

- O Ac. do S.T.J. de 12/12/95 (C.J., S.T.J., Ano 3º, 3º, 153) considerou ser um «caterpilar» um veículo cuja actividade de funcionamento é perigosa;

- O Ac. do S.T.J. de 27/5/97 (C.J., S.T.J., Ano 5º, 2º, 105) considerou que o artº 493º tem aplicação a árvores, mesmo pertencentes a um Município;

- O Ac. da R. de Coimbra de 9/2/93 (C.J., Ano 18º, 1º, 41) considerou que uma máquina rectro-escavadora em serviço na estrada onde procedia à tapagem de uma vala aberta, tem riscos próprios de máquina de trabalho;

- O Ac. do S.T.J. de 6/4/95 (B.M.J. n.º 446º, 217) considerou que a actividade desenvolvida na construção civil com o emprego de compressor com ponteiro de aço na demolição e perfuração de estruturas de cimento e ferro pode traduzir-se em «Actividade Perigosa», para efeitos do n.º 2 do artº 493º do C. Civil.

As Rés que formavam o consórcio que procedia à realização das obras em causa têm, pois, contra si a presunção legal de culpa estabelecida pelo preceito acima referido. Essa presunção traduz-se numa inversão do ónus da prova, de acordo com o estatuído no artº 344º, n.º 1, do C. Civil. Mas tal só ocorre, como frisou a sentença recorrida, quanto à conduta de gás e já não em relação aos cabodutos (utilizáveis para conduzir a fibra óptica), já que quanto a estes a actividade desenvolvida não apresenta qualquer perigosidade, nem a Autora deu conhecimento às Rés da sua existência (item 28º dos factos).

2.2 - Mas nem por isso, como bem decidiu a sentença recorrida, existe fundamento bastante para as Rés serem responsabilizadas pelos danos sofridos pela apelante.

De acordo com o nº 2 do artº 493º, o lesante só poderá exonerar-se da responsabilidade, provando que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.

A sentença recorrida considerou que as Rés que integram o consórcio, adjudicatárias da empreitada que estava a ser levada a cabo no local, tomaram todas as providências necessárias para prevenir o dano, pelo que concluiu pela improcedência da acção.

Como se discorreu na sentença, “tendo a colocação das estacas prancha sido assinalada tendo por base, quer as marcações efectuadas pela A. quer as indicações pelos mesmos transmitidas, e que os trabalhos do Consórcio foram realizados em cumprimento das indicações dadas pelos técnicos da A, não pode o evento danoso ser imputado a título de culpa ou de negligência, na justa medida em que foi a própria A a determinar os termos em que os trabalhos deviam ser efectuados de forma a não colocarem em causa a segurança do gasoduto.

Do que se tratou, contrariamente ao sustentado pela A, não foi uma mera atitude de mera boa fé e colaboração da sua parte, antes, independentemente de saber se estava obrigada a fazê-lo, a assunção e controlo acerca da interferência dos trabalhos na conduta, orientando e dando indicações ao Consórcio.

Neste quadro, tendo o Consórcio seguido as indicações de quem era, afinal, a proprietária (ainda que por concessão) da infra-estrutura, não pode ser-lhe assacada culpa na ocorrência da lesão da mesma.

Imputação que fica ainda mais afastada quando se atente que não ficou apurado ao certo quais os trabalhos que provocaram as danificações.

Do exposto decorre que, se quanto à danificação dos cabodutos, a culpa fica excluída, desde logo pelo desconhecimento do Consórcio quanto à sua existência no local (conhecimento que obviamente se impunha transmitir pela A por saber que estavam a ser executados trabalhos que interferiam com a mesma e foi chamada a fornecer o cadastro), quanto ao revestimento do gasoduto por ter sido feita prova de que quem realizou a actividade perigosa tomou todas as providências que no caso se lhe impunham com vista a evitar o ocorrido, seguindo as orientações dadas pela própria A.

Conclusões que arrastam a acção para a improcedência e prejudicam a apreciação de outras que se seguiriam se não fosse esse o epílogo - distribuição de responsabilidades entre o empreiteiro e a dona de obra/existência de responsabilidade da seguradora/conteúdo do ressarcimento”.

Concorda-se plenamente com este juízo expresso na sentença recorrida. Na verdade, à luz dos factos provados, fica excluída a culpa das Rés que faziam parte do consórcio que levava a cabo os trabalhos da empreitada no local, já que as mesmas tomaram todas as providências necessárias com vista a prevenir o resultado.

Aquelas empresas solicitaram à Autora as plantas com a localização das infra-estruturas da conduta de gás, a qual procedeu ao seu envio (item 5º).

Em 4 de Maio realizou-se uma reunião no local da obra entre os representantes do Consórcio e a (…) na qual ficou acordado que o Consórcio devia respeitar na realização dos trabalhos, nas proximidades da tubagem, as distâncias planimétricas e altimétricas de, pelo menos, 2 metros e bem assim que os trabalhos dentro da zona de segurança seriam acompanhados por representante da (…) (item 9º).

Esta posição da Autora visou garantir que os equipamentos e materiais utilizados pelo consórcio não se pudessem aproximar da infra-estrutura de gás a uma distância não inferior a pelo menos dois metros (item 10º).

Em data não apurada dois técnicos da (…) deslocaram-se ao local da obra onde procederam a marcações, com auxílio de equipamento adequado, de forma a sinalizar o traçado da tubagem na zona (item 11º).

A Autora, com vista a que o Consórcio não tivesse que efectuar a sondagem manual, procedeu às marcações do traçado da tubagem (item 12º).

A marcação referida em 11º demonstrou que a instalação da tubagem da (…) não coincidia com a implantação da tubagem na cartografia – como se veio a constatar através da marcação da infra-estrutura com recurso ao equipamento de “radio detection” – pelo que a Autora teve de reforçar a marcação da tubagem no local, com a colocação de estacas de madeira para além dos postaletes que já existiam (item 13º).

Em diversos dias do mês de Agosto de 2007 (até ao dia 22, inclusive) funcionários da A. estiveram no local onde o consórcio levava a cabo os trabalhos (designadamente a colocação de estacas-prancha) para efeitos de dar orientações no sentido de que os mesmos não interferissem com a infra-estrutura de gás e bem assim por razões de segurança (item 14º).

As telas finais contendo as infra-estruturas de gás natural tinham diferenças de dezassete metros entre o representado nas plantas e a realidade (item 21º).

A execução das estacas prancha foi efectuada tendo por base, quer as marcações feitas no local pelos técnicos da (…), quer as indicações pelos mesmos transmitidas (item 22º).

Essa execução foi acompanhada por aqueles técnicos, até ao momento em que os mesmos decidiram que a sua presença ali era dispensável, nomeadamente aquando da continuação da cravação das «estacas, fora da» zona de segurança (item 23º).

As pré-marcações foram respeitadas pelo Consórcio (item 24º).

Os trabalhos do consórcio foram realizados em cumprimento das indicações dadas pelos técnicos da Autora presente em obra as definidas na reunião de 4 de Maio, concretamente, as distâncias de segurança (item 29º).

Nos dias 20 e 21 de Agosto de 2007 o consórcio procedeu à colocação de estacas-prancha dentro e fora do perímetro de segurança (item 30º).

O técnico da Autora indicou ao encarregado do consórcio que, dado que as estacas a cravar se situavam fora do perímetro de segurança, não seria necessária a sua presença ou de qualquer colega seu (item 31º).

No dia 22 de Agosto de 2007 o consórcio cravou mais duas estacas fora do perímetro de segurança, de acordo com as indicações que lhe tinham sido transmitidas (item 32º).

Decorre desta factologia que os funcionários da Autora acompanharam o desenrolar dos trabalhos, sendo certo que a execução das estacas prancha foi efectuada tendo por base, quer as marcações feitas no local pelos seus técnicos, quer as indicações pelos mesmos transmitidas.

Não deixa de causar perplexidade que a Autora tenha plantas de uma conduta de gás e cabodutos de fibra óptica, de que é concessionária e que essas plantas não estejam de acordo com a realidade, isto é, que o gasoduto e cabodutos não estejam no exacto local em que as plantes referem. De duas uma: ou essas plantas foram elaboradas sem o devido cuidado ou, após a sua elaboração, os trabalhos executados no terreno não respeitaram as plantas pré-elaboradas.

Em qualquer dos casos, é censurável que a Autora, concessionária de serviços públicos essenciais, não disponha de plantas fidedignas sobre a exacta localização das suas infra-estruturas. No caso dos autos, isso não sucedida, como decorre da matéria de facto adquirida.

Não existindo concordância das plantas com a realidade, foram os próprios funcionários da Autora que acompanharam a realização dos trabalhos em causa, procedendo às necessárias sondagens e marcações no terreno, estabelecendo um perímetro de segurança. Mas também elas, pelos vistos, se mostraram falíveis.

Dentro deste circunstancialismo, querer imputar ao Consórcio formado pelas Rés adjudicatárias da obra a responsabilidade do acidente mais não é do que procurar alijar a sua própria responsabilidade na verificação dos danos.

Não vem provado que a danificação do gasoduto e dos cabodutos se tivesse ficado a dever a quaisquer movimentações de materiais e terras ou areias no subsolo e que algum estudo geotécnico levado a cabo fosse susceptível de evitar os danos. O que evitaria certamente o dano era a exacta localização e sinalização do gasoduto e dos cabodutos, de modo a que os trabalhos levados a cabo pelo consórcio referido não interferissem com tais infra-estruturas.

Nenhuma culpa cabe, pois, à luz dos factos provados, às Rés que integravam o consórcio adjudicatário da obra em causa, as quais tomaram as providências adequadas para a prossecução dos trabalhos que lhes cabia levar a cabo.

Improcedem, assim, as conclusões da alegação da apelante, pelo que a douta sentença recorrida terá de se manter.


.........


Sumário:

1 - Entre nós vigora o princípio da livre apreciação da prova e o juiz responde aos quesitos segundo a convicção que formar acerca de cada facto quesitado;

2 - A Relação só deve fazer uso dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto quando exista flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos da matéria de facto impugnada;

3 - Em matéria de responsabilidade civil extracontratual, sendo a culpa do lesante um elemento constitutivo do direito à indemnização, em princípio, é sobre o lesado, enquanto credor, que recai o ónus de fazer a prova dela, de acordo com a repartição legal do ónus probatório consagrado no artº 342º, n.º 1, do C. Civil;

4 - Por força do preceituado no artº 493º, nº 2, do mesmo código, os danos causados por actividades perigosas em si ou perigosas pelos meios que implicam são imputáveis ao seu autor, que se presume culpado por falta de cuidado;

5 - Se a actividade da construção civil não é em si mesma uma actividade perigosa muitos dos meios utilizados nessa actividade revestem inegavelmente um elevado grau de perigosidade, de modo a podermos enquadrá-los no nº 2 do citado artº 493º;

6 - É enquadrável nessa situação a realização de uma empreitada para cuja execução é mister proceder à implantação de estacas-prancha nas proximidades de uma conduta de gás;

7 - Ficando demonstrado que as adjudicatárias de uma empreitada, cujos trabalhos se realizavam perto de um gasoduto e de cabodutos, solicitaram à respectiva concessionária as plantas da infra-estrutura de tais condutas, as quais não estavam em conformidade com a realidade, e que os funcionários dessa concessionária acompanharam a execução dos trabalhos, procedendo à marcação no terreno do local por onde passariam tais condutas, nenhuma responsabilidade pode ser assacada às empresas que procediam, no âmbito da empreitada, à implantação de estacas-prancha de que vieram a resultar danos nos cabodutos e no revestimento de aço do gasoduto.


...............


DECISÃO

Nos termos expostos, decide-se julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.

Custas pela apelante.


Emídio Costa ( Relator )
Virgílio Mateus
Carvalho Martins


[1] Por evidente lapso, que ora se corrige, na sentença recorrida, escreveu-se «estacar, foro do».