Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
179/11.6T2AND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: LETRA DE CÂMBIO
ACÇÃO CAMBIÁRIA
RELAÇÃO SUBJACENTE
PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 11/12/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA - ANADIA - JUÍZO DE GRANDE INSTÂNCIA CÍVEL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 70º DA LULL
Sumário: A prescrição estabelecida no art. 70º da LULL apenas se reporta à acção/obrigação cambiária, não obstando a que o portador do título possa exigir, com fundamento na relação subjacente ou fundamental, a satisfação dos direitos que lhe assistam por força desta relação.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A..., S.A., com sede na (...), Mealhada, intentou a presente acção contra B..., com domicílio na (...) Tamengos, pedindo que este seja condenado a pagar-lhe a quantia de 32.458,41€ (trinta e dois mil, quatrocentos e cinquenta e oito euros e quarenta e um cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos no valor de 12.708,04€ (doze mil, setecentos e oito euros e quatro cêntimos) e juros vincendos à taxa legal comercial até efectivo e integral pagamento.

Alega, para fundamentar a sua pretensão, que, no exercício da sua actividade comercial e a pedido do Réu, realizou a empreitada de construção de um edifício multifamiliar, no lugar de Aguim, concelho da Anadia, tendo fornecido mão-de-obra, bens, produtos, serviços e tendo emitido as respectivas facturas que o Réu aceitou e pagou parcialmente através de letras de câmbio; tais letras foram objecto de sucessivas reformas que acarretaram à Autora despesas bancárias e despesas com imposto de selo; tais despesas e encargos são da responsabilidade do Réu por só o mesmo lhes dar fundamento e por resultar tal facto da lei e do estabelecido entre as partes; para cobrança de tais despesas e encargos a Autora emitiu as notas de débito que identifica, no valor total de 40.386,02€; tendo sido paga parcialmente a nota de débito n.º 95, o débito do Réu a favor da Autora perfaz o montante de 32.458,41€, a que acrescem os juros de mora.

O Réu contestou e deduziu reconvenção, aceitando que a Autora realizou a referida empreitada e aceitando que algumas das facturas foram pagas, efectivamente, através de letras de câmbio. Alega, porém, que desconhece se tais letras originaram despesas para a Autora, sendo que esse assunto nunca foi abordado entre as partes e nunca recebeu as notas de débito a que alude a Autora; nunca convencionaram que fosse o Réu a suportar essas despesas e tal responsabilidade não decorre da lei e sustenta que, ainda que assim não fosse, sempre o direito da Autora teria prescrito, ao abrigo do disposto no art. 70º da LULL, porquanto as letras e alegadas despesas tiveram o seu vencimento há mais de três anos.

Alegando ainda que a Autora já havia intentado contra o Réu uma outra acção com igual pedido – onde o Réu foi absolvido da instância – sustenta que a Autora deverá pagar-lhe o valor referente à nota de custas de parte, devidamente elaborada nos termos do artigo 25.º do Regulamento das Custas Judiciais, no valor de 1.071,00€, enviada à A. e ao processo após o trânsito em julgado da referida acção, mais alegando que a propositura da presente acção irá implicar despesas, encargos e incómodos, que correspondem a prejuízos no valor de 3.930,00€.

Assim, e alegando ainda que a Autora deduz pretensão cujo falta de fundamento não pode ignorar, conclui pedindo a improcedência da acção, a procedência do pedido reconvencional e a condenação da Autora, como litigante de má fé, ao pagamento de montante não inferior aos honorários da Advogada do R., conforme nota de honorários que será atempadamente apresentada a final, e ainda em multa e indemnização a favor do mesmo, cada em valor não inferior a 2.000€.

A Autora replicou, reafirmando a sua posição inicial, aceitando dever ao Réu a quantia de 1.071,00€ - que deve ser compensada com o débito do Réu –, invocando a ineptidão do pedido reconvencional e pedindo a condenação do Réu, como litigante de má fé, conforme nota de honorários a apresentar a final, e bem assim em multa em montante não inferior a €4.000,00, e indemnização a favor da A., em montante não inferior ao valor da P.I..

Admitida a reconvenção, foi proferido despacho saneador onde se julgou improcedente a excepção de ineptidão do pedido reconvencional e onde se relegou para final a apreciação da excepção de prescrição.

Foi efectuada a selecção da matéria de facto assente e base instrutória.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou o Réu a pagar à Autora a quantia de €31.387,41 (trinta e um mil, trezentos e oitenta e sete euros e quarenta e um cêntimos), acrescida de juros de mora, contados desde a citação, calculados à taxa legal de juros comerciais, sucessivamente em vigor, até efectivo e integral pagamento.

Inconformado com essa decisão, o Réu veio interpor o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

1.º O Tribunal a quo, salvo erro e o devido respeito cometeu uma errada interpretação e aplicação das normas processuais.

2.º Mal andou o tribunal a quo ao declarar que condenava o Réu ao pagamento da quantia peticionada pela A. referente a despesas bancárias com letras vencidas há mais de 3 anos.

3.º O conjunto da prova produzida nomeadamente os Depoimentos das Testemunhas da Apelada, impõem, contrariamente ao decidido, a improcedência da Acção.

4.º Estes Depoimentos que deverão ser devidamente valorados, e que não o foram, têm o efeito de permitir concluir afirmativamente e com rigorosa segurança que não foi acordado pelas partes que seria o Réu a assumir as despesas com as letras e respectivas reformas.

5.º - Estes Depoimentos têm o efeito de permitir concluir afirmativamente e com segurança pela falta de estipulação do responsável pelo pagamento de tais despesas.

6.º - Na senda Acordão do Tribunal da Relação do Porto, Processo 299061/09.4YIPRT.P1 - 5ª Sec de 14.02.2011 – “ O aceitante de uma letra só é responsável pelas despesas do respectivo desconto bancário se tiver assumido a obrigação desse pagamento”, o que no caso concreto não se provou.

7.º - Pelo que, não serão tais despesas da responsabilidade do Réu.

8.º - Na senda da doutrina maioritária as despesas referidas no n.º 3 do artigo 48º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças não incluem as despesas bancárias debitadas na conta do sacador, que são as efectivamente as que a A. veio peticionar nos autos, e portanto não têm nunca que ser exigidas do Réu.

9.º - “A doutrina é unânime em entender, como refere Abel Delgado (In Lei Uniforme sobre Letras e Livranças Anotada, 3ª edição, fls. 246), que as outras despesas são apenas as estritamente necessárias para a efectivação do direito. As despesas com o desconto das letras podem ser consideradas estritamente necessárias para o portador da letra fazer valer o seu direito. Parece-nos que não uma vez que o efeito essencial do desconto das letras num banco é a possibilidade do seu portador receber o valor das letras antes do seu vencimento. O mesmo se poderá dizer de eventuais despesas relativas à reforma de letras: o portador prefere arriscar a reforma mas esta não é estritamente necessária para o recebimento do valor da letra.” Vide Acordão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo 8483/2006 - 8 de 18.01.2007.

10.º - Mal andou a MMA JUIZ a QUO, ao entender que tal crédito de despesas bancárias, não se relaciona com a relação cartular, a acção cambial (…) mas antes um crédito novo,

11.º - Até porque “ Face à noção jurídica de reforma da letra de câmbio, afigura-se-nos que nos movemos sempre e tão-somente no plano cambiário, não se podendo afirmar que a substituição, com amortização parcial do seu valor, de uma letra anterior por uma outra nova, com os mesmos intervenientes, constitua um qualquer negócio jurídico autónomo, causal e subjacente a tal emissão, que possa fundar, coexistir com a relação cambiária (…)” vide acórdão da Relação de Lisboa, Processo 4897/2007-6 de 08.11.2007.

12.º Mesmo assim, e ainda que se entendesse o Réu como responsável pelas alegadas despesas, o que por mera cautela de raciocínio se coloca, sempre as mesmas estariam prescritas, nos termos do artigo 70.º da Lei Uni forme de Letras e Livranças, “ Todas as acções contra o aceitante relativas a letras prescrevem em três anos a contar do seu vencimento” – vide Acordão do Tribunal da Relação de Coimbra, Processo 1471/2006, de 13.06.2006.

13.º - Ainda mais tratando-se de um crédito relacionado com as letras de câmbio e não um crédito novo.

14.º Se as acções relativas a letras prescrevem em três anos, o mesmo terá que se dizer relativamente às despesas que têm origem na reforma das mesmas, só têm razão de ser pela emissão das letras, portanto, por analogia, sempre terá que ser aplicado o mesmo regime quanto à prescrição.

15.º Todas as letras referidas bem como todas as alegadas despesas dos autos, na data de entrada da acção, já tinham tido o seu vencimento há bem mais de três anos, logo já se encontravam prescritas.

Termos em que, deverá ser revogada a douta sentença recorrida e substituída por outra que julgue improcedente por não provada a acção, mantendo apenas a procedência do pedido reconvencional.

A Autora apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

A. Andou bem o Tribunal A quo ao interpretar a Lei e ao decidir como decidiu, não se concedendo nem na alegada violação de Lei, nem em qualquer alegado erro de Julgamento, não se concedendo em nenhum dos argumentos constantes das alegações a que se responde, nem com o errado raciocínio subjacente às mesmas.

B. Da leitura das alegações e conclusões de recurso, não se percepciona qual o objecto do recurso, e apenas se presume que o recorrente pretendia recorrer da matéria de facto, pelo que incumbia ao recorrente dar cumprimento ao disposto no art.º 685º -B do C.P.C., o que não sucede de todo. Ao invés, olvidou-se completa e em absoluto o recorrente de dar cumprimento ao legalmente estatuído, pelo que desde já se requer a rejeição do recurso interposto por violação do disposto no art.º 685º B do C.P.C.

C. Ademais o recorrente baseia as alegações de recurso a que se responde numa alegada violação e aplicação de Lei pelo Tribunal A Quo, no que se não concede, sendo que defende que tal violação ocorre por alegadamente não se ter provado a convenção entre as partes de quem suportaria as despesas, no que igualmente não se concede nem aceita.

D. A matéria de direito alegada pelo recorrente cai assim desde logo por terra tendo em conta se a faz assentar no pressuposto de errado julgamento de facto, o que não ocorreu de todo, pois bem andou o Tribunal A quo quer no Julgamento da matéria de facto, quer no Julgamento e aplicação do Direito.

E. Sempre se dirá que, ainda que tivesse havido qualquer erro de julgamento da matéria de facto, no que se não concede em absoluto, o recorrente ao violar o ónus que a lei lhe impõe para o recurso de matéria de facto, impõe-se a não admissão e rejeição imediata do recurso quanto a tal matéria.

F. Em consequência do que, cai por terra toda a argumentação de direito apresentada pelo recorrente, baseada numa alteração da matéria de facto que não pode ocorrer por todo o exposto.

G. Reiterando-se toda a argumentação já vertida nos autos pela autora aqui recorrida, petição e réplica, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, por mera economia processual, e bem assim toda a sentença cujo teor se subscreve, devendo a mesma ser mantida e renovada com as devidas e legais consequências.

H. Salvo o devido respeito, nenhuma das considerações e argumentos vertidos pela Recorrente, nas alegações de recurso a que se reponde, nos quais não se concede ou consente, merecem a tutela nem as consequências peticionadas, devendo o recurso interposto e a que se responde ser julgado totalmente improcedente.

I. Esclareça-se que contrariamente ao que a recorrente pretende, resulta claramente provado as reformas de letras “6. acarretaram à Autora despesas bancárias e despesas com imposto de selo, que as partes convencionaram ser da responsabilidade do Réu”, quer documental, quer decorrente da prova testemunhal apresentada pela Autora.

J. Acresce que, sempre se dirá que a argumentação da recorrente, na qual não se concede nem consente é obscura, imperceptível e abstracta, limitando-se a dizer que não foi feita prova e não circunstanciando nem esclarecendo ou rebatendo os depoimentos que serviram de convicção ao Tribunal, e que serviram de fundamentação ao Tribunal A Quo para dar os factos como provados.

K. Andou bem o Tribunal A quo ao interpretar a Lei e ao decidir como decidiu, não se concedendo nem na alegada violação de Lei, nem em qualquer alegado erro de Julgamento, não se concedendo em nenhum dos argumentos constantes das alegações a que se responde, nem com o errado raciocínio subjacente às mesmas. As alegações apresentadas pelo recorrente não põem minimamente em causa a bem fundada e bem fundamentada sentença.

L. Entende a aqui Recorrida, com o respeito devido, e face à clareza e fundamentação da douta sentença a quo que a posição e interpretação do Recorrente não poderá nunca prevalecer. Entendendo a aqui Recorrida, que a douta sentença não poderia ter sido proferida de outra forma.

M. Neste sentido, prova-se à saciedade, que a Douta sentença aplicou a melhor Justiça e não padece de qualquer erro. Ao decidir como decidiu, com a correcta aplicação e interpretação da Lei, pelo que se subscreve integralmente a fundamentação da sentença proferida devendo a decisão proferida ser integralmente mantida.

N. Pelo que e em suma, não deve ser alterada a sentença ora posta em crise pelo Recorrente, devendo a mesma ser mantida e renovada, por não ter violado qualquer disposição legal e se encontrar devidamente instruída e fundamentada e, bem assim, conforme os ditames da lei e da mais elementar Justiça.

O. Devendo, pois, improceder, “in totum”, todos os argumentos aduzidos pelo Recorrente.

Conclui pela improcedência do recurso.


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

• Saber se o Réu/Apelante é responsável pelas despesas e encargos bancários emergentes das letras de câmbio – e respectivas reformas – que aceitou com vista ao pagamento dos trabalhos realizados pela Autora e produtos fornecidos;

• Saber se prescreveu ou não o crédito da Autora peticionado nos autos e relacionado com tais despesas e encargos.


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III.

Na 1ª instância, foi considerada provada a seguinte matéria de facto:

1. A Autora dedica-se à Construção Civil de Obras Públicas e Particulares e outras actividades especializadas relacionadas com a construção civil – al. A) dos Factos Assentes.

2. No exercício da sua actividade e a pedido do Réu, a Autora realizou a empreitada de construção de um edifício multifamiliar, no lugar de Aguim, concelho da Anadia, para o que a Autora forneceu mão-de-obra, bens, produtos, serviços e tudo quanto necessário para a cumprir o solicitado pelo Réu – al. B) dos Factos Assentes.

3. Em relação a todos os trabalhos realizados pela Autora, e referidos em 2., a Autora emitiu facturas ao Réu, por este aceites, algumas pagas com letras de câmbio aceites pelo Réu – al. C) dos Factos Assentes.

4. No âmbito dos autos n.º 88497/10.0YIPRT, o Réu enviou à Autora, em 24/11/2010, nota de custas de parte, elaborada nos termos do artigo 25.º do Regimento das Custas Judiciais, no valor de 1.071,00€ (mil e setenta e um euros), que a Autora não pagou – al. D) dos Factos Assentes.

5. As letras de câmbio aceites pelo Réu para pagamento das facturas referidas em 3. foram sendo pagas através de sucessivas reformas e através da emissão de novos aceites – resposta ao ponto 1º da Base Instrutória.

6. Que acarretaram à Autora despesas bancárias e despesas com imposto de selo, que as partes convencionaram ser da responsabilidade do Réu – resposta ao ponto 2º da Base Instrutória.

7. Para cobrança de tais despesas e encargos a Autora emitiu a Nota de Débito n.º 95, com vencimento em 16-10-2006, no valor de €17.542,98, relativa aos aceites n.ºs 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24 – resposta ao ponto 3º da Base Instrutória.

8. A Nota de Débito n.º 106, com vencimento em 15-02-2007, no valor de €11.901,10, relativa aos aceites n.ºs 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35 – resposta ao ponto 4º da Base Instrutória.

9. A Nota de débito n.º 117 com vencimento em 15-05-2007, no valor de €4.568,30, relativa aos aceites n.ºs 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41 – resposta ao ponto 5º da Base Instrutória.

10. A Nota de débito n.º 125 com vencimento em 13-10-2007, no valor de €4745,21, relativa aos aceites n.ºs 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51 – resposta ao ponto 6º da Base Instrutória.

11. A Nota de Débito n.º 137 com vencimento em 15-01-2008, no valor de €1.154,50, relativa aos aceites n.ºs 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57 – resposta ao ponto 7º da Base Instrutória.

12. A Nota de débito n.º 142, com vencimento em 15-04-2008, no valor de €473,93, relativa aos aceites n.ºs 55, 56, 57 – resposta ao ponto 8º da Base Instrutória.

13. No que diz respeito à nota de débito n.º 95, no valor de €17.542,98, o Réu pagou a mesma parcialmente, restando a quantia de €9.615,37 – resposta ao ponto 9º da Base Instrutória.

14. Tendo a Autora solicitado ao Réu o seu pagamento – resposta ao ponto 11º da Base Instrutória.

15. O Réu pagou integralmente todas as facturas emitidas pela Autora – resposta ao ponto 12º da Base Instrutória.

16. Com a presente acção o Réu terá que suportar despesas e terá incómodos associados à existência de um processo judicial – resposta ao ponto 14º da Base Instrutória.

17. No âmbito dos autos sob n.º 88497/10.0YIPRT da Secção Única do Tribunal Judicial da Mealhada em que a aqui Autora peticionou, através de requerimento de injunção, contra o aqui Réu, o pagamento das mesmas notas de débito cujo pagamento reclama nestes autos, este deduziu oposição em que refere, além do mais, nos artigos 16.º e 17.º dessa peça processual:

Tal como, a nota de débito n.º 95, a primeira a ser emitida, foi paga parcialmente” e “E, apenas o foi parcialmente, pelo facto de as fracções desde logo ostentarem vícios e defeitos (…)” – cfr. certidão de fls. 156 e ss..

18. No âmbito dos autos de Inventário para partilha de bens em casos especiais, que correm termos sob n.º 368/12.6T2OBR do Juízo de Média e Pequena Instância Cível de Anadia, em que é cabeça de casal o aqui Réu, este relacionou como passivo comum dos cônjuges, sob “Verba 3” “Divida à A (...) & Construções, SA (…) (eventualmente) (Processo 179/11.6T2AND – Juízo de Grande Instância Cível – Juiz 1 – Comarca do Baixo Vouga – Juízos de Anadia) valor da acção 50.157,00.” – cfr. certidão de fs. 186 e ss..


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IV.

Como decorre das alegações e respectivas conclusões, o objecto do presente recurso prende-se com duas questões:

• A responsabilidade do Réu/Apelante pelas despesas e encargos bancários emergentes das letras de câmbio – e respectivas reformas – que o Réu aceitou com vista ao pagamento dos trabalhos realizados pela Autora e produtos fornecidos;

• A prescrição do crédito da Autora peticionado nos autos e relacionado com tais despesas e encargos.

No que toca à 1ª questão, sustenta o Apelante – citando jurisprudência nesse sentido – que o aceitante de uma letra de câmbio só é responsável pelas referidas despesas se tiver assumido a obrigação de proceder ao seu pagamento, mais alegando que não ficou provado que as partes assim o tenham convencionado, já que as testemunhas da Autora nada disseram, com certeza, relativamente a essa questão.

Ora, estando provado – cfr. resposta ao ponto 2º da base instrutória – que as partes convencionaram que as referidas despesas seriam da responsabilidade do Réu, parece que o Apelante pretenderá impugnar a decisão da matéria de facto. A verdade é que não o disse (pelo menos de forma clara e expressa). E parece que pretenderá impugnar a resposta dada ao citado ponto 2º, pois é aí que consta esse facto. Mas também não o disse claramente. Parece ainda que o Apelante pretenderá dizer que, na resposta dada ao citado ponto da matéria de facto, o Tribunal incorreu em erro de julgamento e errada valoração da prova e que, ao invés da resposta dada, o citado ponto da base instrutória deveria ter merecido resposta negativa. Mas também não o disse expressamente.

Daí que a Apelada sustente, nas suas contra-alegações, que o recurso deve ser rejeitado por falta de cumprimento dos ónus impostos pelo art. 685º-B do C.P.C.

Dispunha o art. 685º-B do anterior Código de Processo Civil[1] - tal como dispõe o art. 640º do C.P.C. actualmente vigente – que:

Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”.

Ora, é, no mínimo, discutível que o Apelante tenha cumprido os ónus impostos pela norma citada, sendo certo que não declara sequer – de forma expressa – pretender impugnar a decisão da matéria de facto.

Mas a verdade é que o Réu afirma – nas suas alegações – que não se provou que as partes tivessem convencionado a responsabilidade do Réu pelas despesas bancárias emergentes das letras de câmbio, mais afirmando que nenhuma das testemunhas da Autora demonstrou ter conhecimento desse facto.

Ora, sendo certo que esse facto – acordo/convenção sobre a responsabilidade do Réu pelas referidas despesas – foi considerado provado, parece que as alegações do Apelante não se compadecem com outra leitura ou interpretação que não seja a de aí se pretender impugnar a decisão que considerou esse facto como provado, importando notar que, como vem sendo entendido pelo STJ – cfr. Acórdãos de 04/11/2010 e de 29/11/2011, proferidos nos processos nºs 7006.05.1TBBRG.G1.S1 e 39/2002.E1.S1, respectivamente (disponíveis em http://www.dgsi.pt.) – “o cumprimento do ónus de especificação dos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, imposto para que a Relação aprecie a impugnação da decisão de facto, não implica a sua identificação por referência aos correspondentes artigos da base instrutória”.

Admitimos, portanto, - mas não sem dúvidas – o cumprimento (ainda que em termos deficientes) dos ónus legalmente impostos ao Recorrente, na medida em que é expressamente mencionado nas alegações (ainda que sem referência ao artigo da base instrutória ou à numeração da sentença), o facto que, na perspectiva do Apelante, não deveria ter sido – como foi – julgado provado.

E considera o Apelante que esse facto não poderia ser considerado provado porque nenhuma das testemunhas da Autora demonstrou ter conhecimento desse facto.

Mas, na verdade, não é assim.

A decisão recorrida fundamentou a decisão proferida relativamente a esse facto no depoimento da testemunha, Pedro Santiago, mais referindo que esse acordo de pagamento das despesas bancárias resultantes das reformas de letra também resulta do facto de o Réu ter pago parcialmente a nota de débito n.º 95.º, como o mesmo admite na sua contestação, pois de outro modo não se compreenderia este pagamento.

De facto, e ao contrário do que sustenta o Apelante, a referida testemunha – que é o director administrativo e financeiro da Autora – declarou que o pagamento por letras foi acertado entre si e o Réu e dadas as dificuldades financeiras que este invocava para proceder aos últimos pagamentos dos trabalhos realizados pela Autora. Mais declarou a testemunha que tais letras foram objecto de reformas – que o Réu solicitava e que a Autora aceitava, atendendo às dificuldades financeiras invocadas pelo Réu – e que, quando surgiu essa situação, falaram sobre o assunto e o Réu assumiu o pagamento dos encargos inerentes a tais reformas.

Não é verdade, portanto, que o aludido acordo/convenção não resulte dos depoimentos de nenhuma das testemunhas da Autora. Ele resulta, como vimos, do depoimento da testemunha Pedro Santiago.

Por outro lado, e sendo certo que – como decorre do depoimento da aludida testemunha – o pagamento através de letras de câmbio e as reformas posteriores foram solicitadas pelo próprio Réu e eram do seu exclusivo interesse, já que esse facto decorreu das dificuldades financeiras que invocava para proceder ao pagamento do crédito da Autora, seria normal – e o contrário é que era de estranhar – que fosse o Réu a assumir o pagamento das despesas daí decorrentes, tal como a referida testemunha declara ter acontecido.

Refira-se ainda que, conforme decorre de certidão junta aos autos, no âmbito dos autos sob n.º 88497/10.0YIPRT em que a aqui Autora peticionou, através de requerimento de injunção, contra o aqui Réu, o pagamento das mesmas notas de débito cujo pagamento reclama nestes autos – e na qual o Réu veio a ser absolvido da instância – este deduziu oposição e nunca aí sustentou não ser responsável pelas aludidas despesas e nunca alegou a inexistência de acordo das partes nesse sentido. De facto, além de alegar ter procedido ao pagamento parcial de uma dessas notas de débito, alega que nada mais pagou devido aos defeitos que a obra apresentava e chega mesmo a invocar que o crédito da Autora emergente das aludidas despesas deveria ser compensado com o crédito que detinha sobre a Autora emergente dos defeitos da obra.

Ou seja, o Réu/Apelante nunca alegou – na aludida acção – que não era responsável pelo pagamento daquelas despesas por não ter existido qualquer acordo nesse sentido e tal circunstância também não poderá deixar de ser ponderada, na medida em que reforça o depoimento da testemunha, Pedro Santiago, quando declara ter ficado acordado entre as partes que o Réu assumia a responsabilidade pelo pagamento daquelas despesas.

Parece-nos, pois, em face do exposto, que nenhuma razão existe para alterar a decisão da matéria de facto e, portanto, estando provada a existência desse acordo, improcede a primeira questão suscitada no recurso.

As despesas em causa nos autos são, pois, da responsabilidade do Réu/Apelante, porque assim foi convencionado entre as partes.

 

No que toca à prescrição do direito da Autora, referiu-se na sentença recorrida o seguinte:

Põe-se, então, a questão da prescrição de tal direito de crédito da Autora nos termos do art.º 70.º da LULL, que dispõe que todas as acções contra o aceitante relativas a letras prescrevem em três anos a contar do seu vencimento. Temos, porém, para nós que esta norma apenas respeita a acções que tenham por objecto a acção cartular, a acção cambial, o que não sucede no caso dos autos, em que não é pedido o valor titulado pelas letras aceites pelo Réu, mas antes um crédito novo, resultante das despesas inerentes à reforma (à substituição) dessas letras sujeito ao prazo geral de prescrição ordinária previsto no art.º 309.º do Código Civil”.

Discordando dessa decisão, considera o Apelante que a sentença recorrida não decidiu correctamente quando considerou que o crédito referente às despesas bancárias corresponde a um crédito novo que não se relaciona com a relação cartular e sustenta que, se as acções relativas a letras prescrevem em três anos – nos termos do art. 70º da LULL –, o mesmo terá que se dizer relativamente às despesas que têm origem na reforma das mesmas, porquanto tais despesas só têm razão de ser pela emissão das letras.

Mas, salvo o devido respeito, a questão não tem razão de ser.

Dispondo, efectivamente, o art. 70º da LULL que “todas as acções contra o aceitante relativas a letras prescrevem em três anos a contar do seu vencimento”, o que aí se estabelece é, naturalmente, o prazo de prescrição da obrigação cambiária, ou seja, da obrigação literal e abstracta que está incorporada no título de crédito e que é independente da relação subjacente ou causal que deu origem à sua emissão.

Mas a verdade é que ao lado da relação cambiária, que é abstracta e que emerge da mera aceitação ou subscrição do título de crédito, existe a relação subjacente ou fundamental, que é causal e que radica no contrato ou na relação jurídica que, em momento anterior, se estabeleceu e que deu origem à emissão do título.

Ora, o citado art. 70º não estabelece qualquer prazo de prescrição relativamente à obrigação subjacente ou fundamental, apenas se reportando à obrigação cambiária e, portanto, apesar de prescrita esta obrigação cambiária, subsiste – ou pode subsistir – a relação jurídica subjacente ou fundamental. Daí que, uma vez prescrita a acção cambiária, o portador do título de crédito já não possa exigir a obrigação cartular, mas, se for sujeito da relação jurídica fundamental, poderá exigir – se nada mais obstar a tal – a satisfação dos direitos que lhe assistem em face desta relação.

Ora, independentemente da questão de saber se as despesas bancárias aqui em causa poderiam ser exigidas no âmbito da acção cambiária – questão que nos transportaria para a interpretação do art. 48º da LULL, quando determina que o portador da letra, além do valor incorporado no título e juros ali mencionados, também pode reclamar daquele contra quem exerce o seu direito de acção “outras despesas” – a verdade é que a presente acção não é uma acção cambiária, porquanto a obrigação que é exigida ao Réu/Apelante não é a obrigação abstracta emergente das letras de câmbio (que, eventualmente, poderia incluir as despesas em causa), mas sim a obrigação subjacente ou causal que emerge do contrato/acordo que foi celebrado entre as partes e nos termos do qual o Réu se obrigou a pagar à Autora as despesas que esta vem peticionar.

Esta obrigação – não cambiária e emergente do contrato/acordo que foi celebrado entre as partes – não está submetida ao prazo de prescrição estabelecido no citado art. 70º, mas sim aos prazos de prescrição que se encontram estabelecidos na lei geral, ou seja, no Código Civil[2].

Improcede, portanto, o presente recurso.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

A prescrição estabelecida no art. 70º da LULL apenas se reporta à acção/obrigação cambiária, não obstando a que o portador do título possa exigir, com fundamento na relação subjacente ou fundamental, a satisfação dos direitos que lhe assistam por força desta relação.


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V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas a cargo do Apelante.
Notifique.

Maria Catarina Gonçalves (Relatora)

Maria Domingas Simões

Nunes Ribeiro


[1] Aqui aplicável por ser o vigente à data da apresentação das alegações.
[2] Veja-se, aliás, o Assento de 08/05/1936 – hoje com valor de Acórdão Uniformizador de Jurisprudência – publicado em http://www.dgsi.pt. , onde se estabeleceu doutrina – que ainda se deve considerar em vigor – no sentido de que a prescrição da obrigação cambiária não envolve e não abrange a prescrição da obrigação subjacente.