Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
123/15.1T8TCS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: INTERDIÇÃO
INCAPACIDADE
INÍCIO DA INCAPACIDADE
PRESUNÇÃO
INCAPACIDADE ACIDENTAL
PARTILHA
ANULAÇÃO
Data do Acordão: 12/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - TRANCOSO - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.150, 257, 287 CC
Sumário: 1 – Quanto ao valor da fixação na sentença que decreta uma interdição da data do começo dessa incapacidade, na vigência do Código Civil de 1966, a doutrina e a jurisprudência têm atribuído a tal declaração judicial um valor meramente indiciário: não de uma presunção legal (iuris et iure ou iuris tantum), mas o valor de mera presunção simples, natural, judicial, de facto ou de experiência que, embora constitua um começo de prova, não inverte o ónus da prova da existência da incapacidade no momento da prática do ato – ónus que impende sobre quem pede a anulação.

2 – Contudo, é legítimo falar a este propósito de uma forte presunção de que o negócio praticado depois da data em que principiou a incapacidade natural (segundo a sentença de interdição), foi celebrado por pessoa incapacitada de entender o sentido da declaração ou privada do livre exercício da sua vontade, sendo a esta luz que haverá como que um ónus “reforçado” de contraprova por parte dos demandados na acção – de contraprova da incapacidade, isto é, de que o ato foi praticado num momento “lúcido”.

3– A presunção judicial intercede na operação de apreciação e valoração da prova ao constituir um mecanismo necessário para levar o Tribunal a afirmar a verificação de certo facto controvertido, suprindo as lacunas de conhecimento ou de informação que não possam ser preenchidas por outros meios de prova, ou servindo ainda para valorar os meios de prova produzidos.

4– Resultando apurado que a “diminuição inespecífica do volume encefálico” (decorrente duma intervenção cirúrgica no ano de 2002), ainda que não a única causa, foi seguramente determinante para a “síndrome demencial” que o A./recorrente veio a patentear, a qual “evoluiu para um défice cognitivo global muito marcado em comorbilidade com Diabetes”, situação diagnosticada à data do ato impugnado na acção (no ano de 2011), a presunção natural ou judicial aludida tinha que ser atendida na valoração das provas e suprimento das lacunas de informação, em ordem a concluir-se pelo déficite cognitivo no momento do negócio, isto é, que o A./recorrente não tinha uma vontade livre e discernida no ato em causa.

5 – Estando em causa um ato praticados antes da publicidade da ação de interdição, há que atender, ex vi legis, ao disposto relativamente à incapacidade acidental (cf. art. 150º do C.Civil).

6 – A incapacidade acidental, prevista e regulada no artigo 257º do C.Civil, exige, para a anulabilidade do acto, que, no momento da prática do acto, haja uma incapacidade de entender o sentido da declaração negocial ou falte o livre exercício da vontade; e que a incapacidade natural existente seja notória ou conhecida do declaratário (passível de apreensão por uma pessoa média, colocada na posição do declaratário), assim se tutelando a boa-fé deste último e a segurança jurídica.

7 – Encontra-se ferida de anulabilidade a celebração da partilha do património conjugal, efectuada por uma pessoa maior, mas dotada de incapacidade acidental de exercício, no momento da prática desse acto, não interdita, nem inabilitada, se a contraparte sabia ou devia ter-se apercebido que o declarante não estava “lúcido”.

Decisão Texto Integral:   










          Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 – RELATÓRIO

 L (…) aqui representado pela tutora I (…), contribuinte fiscal n.ºs (…) residente no (...) , intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra A (…), residente na (...) , peticionando, que seja decretada a anulabilidade da partilha do património conjugal celebrada entre Autor e Ré no âmbito do processo de divórcio por mutuo consentimento n.º (...) /2011 que correu termos na Conservatória do Registo Civil de (...) ou quando assim não se entenda, deverá ser declarada a nulidade da referida partilha, por violação do disposto no art.º 1689.º n.º 1 do Código Civil.

Para o efeito, o Autor, aqui representado pela tutora, alega, em síntese, que, à data da celebração da partilha não se encontrava capaz de compreender o seu sentido, sendo a sua debilidade mental notória, e de total conhecimento da ré que ainda assim não se absteve de outorgar a partilha. Mais invoca, que veio a ser declarado interdito por sentença datada de 02.04.2014, transitada em julgado, que fixou o início dessa incapacidade em 05.02.2002.

Elenca as diversas vicissitudes clínicas por si vivenciadas, alegando que era totalmente depende de terceiros para diversas actividades, não compreendendo o valor dos bens designadamente o que lhe foram adjudicados na partilha. Ademais, alega que o valor atribuído ao bem imóvel objecto da partilha é manifestamente inferior ao seu valor real tendo sido atribuído de forma artificial, pois se lhe tivesse sido atribuído o seu valor real a ré teria de pagar ao autor tornas no valor de 25.000€ ao invés do que consta da escritura de partilhas celebrada. Mostra-se pois, em seu entendimento, prejudicado com a partilha outorgada, tendo a ré retirado proveito do seu estado de incapacidade mental, locupletando-se à sua custa e enriquecendo na mesma medida.

Por outro lado, alega, ainda, o Autor que, se impunha na realização da partilha que cessando as relações patrimoniais entre si e a ré se materializou o direito à sua meação do património comum, que foi manifestamente violado.

*

Citada, a Ré contestou, apresentando defesa por excepção e por impugnação.

Em síntese, a Ré aceita os factos que respeitam ao vínculo conjugal que a uniu ao autor, a sua dissolução e os bens a partilhar elencados na respectiva escritura, impugnando, no entanto, que o autor não compreendesse o alcance dos actos que praticou, tanto mais que foi este que se quis divorciar e determinou como deviam ser partilhados os seus bens. Mais refere que o autor mesmo após a cirurgia a que foi submetido continuou ainda a desempenhar cabalmente as funções que desempenhava profissionalmente, transportando diversos colegas de trabalho no seu veículo, até ao momento em que se despediu. Em seu entendimento, tal desempenho laboral não se coaduna com as incapacidades que agora invoca, realçando que se as suas incapacidades fossem as que elenca, então a Sra. Conservadora perante a qual a partilha foi realizada teria facilmente percebido o estado do autor, que aliás se fez sempre acompanhar de advogado que contratou para o efeito, cuidando de todos os documentos necessários para efectivar o divórcio e subsequente partilha.

Assim, entende que o autor compreendeu perfeitamente todos os termos da partilha, tanto mais que depois desta levou consigo o veículo automóvel que lhe tinha sido atribuído e continuou a conduzi-lo, gerindo os seus bens e administrando-os de forma autónoma.

Ademais invoca, que foi a Ré que ficou a suportar o empréstimo bancário que ainda impende sobre o imóvel que lhe foi adjudicado que foi avaliado em valor superior ao constante da matriz.

Conclui, que apesar de invocar uma série de factos com os quais pretende demonstrar que não se encontrava capaz de realizar a partilha celebrada, tais factos reportam-se a lapso temporal extenso revelando unicamente para o caso em apreço o estado do autor no dia da celebração do divórcio e subsequente partilha pelo que indemonstrado o primeiro requisito do art.º 257 do C. Civil e sendo estes cumulativos, deve a acção ser julgada improcedente.

Realizou-se audiência de julgamento com observância das formalidades legais, como se alcança das respetivas atas.

Veio, na sequência, a ser proferida sentença, na qual após identificação em “Relatório”, das partes e do litígio, se alinharam os factos provados e não provados, relativamente aos quais se apresentou a correspondente “Motivação”, após o que se considerou, em suma, que face à factualidade apurada importava concluir que a Ré ilidiu a presunção de existência do estado demencial no momento do negócio (partilha dos bens entre os ex-cônjuges) assim improcedendo o pedido de decretamento da anulação da partilha por incapacidade acidental do interdito (cf. art. 257º do C.Civil) a essa data (de 2.02.2011), que era anterior à sua interdição (que teve lugar por sentença de 3.05.2014), sendo que igualmente improcedia o pedido subsidiário de declaração de nulidade da partilha por violação do disposto no art. 1689º, nº1 do C.Civil, termos em que se concluiu com o seguinte concreto “dispositivo”:

«Decisão:

Nestes termos e em face do exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente e, em consequência absolve-se a Ré dos pedidos formulados.

a) Absolve-se a Ré do peticionado.

b) Condena-se o Autor no pagamento das custas processuais

*

Registe e notifique.»

                                                           *

            Inconformado com essa sentença, apresentou o A. recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

          (…)

                                                                       *

Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

                                                           *

            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelo Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detectar o seguinte:

            - admissão do documento como questão prévia;

            - incorrecta valoração da prova produzida, que levou ao incorrecto julgamento de factos como “provados”, a saber, os factos constantes dos pontos “8º”, “12º”, “13º”, “14º”, “19º”, “33º”, “34º”, “36º” e “39º” [aos quais, ao invés, deve ser dada resposta de “não provado”] e aos factos constante das alíneas “a)”, “b)”, “c)”, “d)”, “e)”, “f)”, “g)”, “h)”, “i)”, “j)”, “k)” e “l)” dos factos “não provados” [aos quais deve ser dada resposta positiva, transitando para o elenco dos factos “provados”];

            - erro de decisão, ao considerar improcedente a acção, particularmente quanto ao pedido de decretamento da anulação da partilha fundada na incapacidade que o A. padecia à data da celebração dessa partilha (que o impedia de compreender o alcance dos actos que praticava, sendo tal incapacidade notória e do conhecimento da Ré).                                                                                               *

            3 – QUESTÃO PRÉVIA

Cabe apreciar se deve ser admitido o documento junto pelo Apelante com as suas alegações.

Na verdade, com as suas alegações recursivas, o Apelante junta um documento, consistente em “Relatório Clínico”, subscrito pelo Médico Psiquiatra/Diretor do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental da (...) , E.P.E.”, Dr. (…), datado de 16 de Junho de 2017, através do qual intenta concretizar e detalhar o seu quadro clínico, mormente com referência à data da outorga da escritura de partilhas cuja decretamento de anulação ou declaração de nulidade tinha reclamado na ação que interpôs.

Estabelece o nº 1 do art. 651º do n.C.P.Civil aplicável que «As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância».

Por sua vez, prescreve o art. 425º: «Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento».

Ora, o Apelante alega suficientemente que só agora (na fase de recurso e para este) logrou obter o dito documento “que retrata de forma elucidativa os sintomas do recorrente”.

Compulsados os autos, cuja sentença foi prolatada em 30.05.2017, com o resultado de improcedência dos pedidos formulados pelo A/recorrente, pelos fundamentos muito sinteticamente supra referidos, a saber, não se reconhecer padecer o A./recorrente de incapacidade à data da outorga da dita escritura de partilhas, e bem assim atenta a ausência de qualquer oposição a esta junção, importa concluir, liminarmente, que a junção se tornou necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância.

Portanto, a junção do documento é lícita e tempestiva, à luz das citadas disposições legais.

Nestes termos, se admite a junção do dito documento, e sem custas.

                                                                       *

4 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

4.1 – Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado fixado/provado pelo tribunal a quo, ao que se seguirá o elenco dos factos que o mesmo tribunal considerou/decidiu que “não se provou”, pois que estes últimos também são alvo do recurso interposto, donde com relevância para efeitos desta decisão, sempre obviamente sem olvidar que tal enunciação terá um carácter “provisório”, na medida em que o recurso tem em vista a alteração parcial dessa factualidade. 

            Tendo presente esta circunstância, são os seguintes os factos que se consideraram provados no tribunal a quo:

«1.º A. e Ré contraíram casamento católico na Igreja Paroquial de (...) , sem convenção antenupcial, no regime de comunhão de adquiridos, no dia 20 de Julho de 1996.

2.º A única doença de que o autor padecia era de diabetes mellitus.

3.º O A. desde momento não concretamente apurado passou a ingerir bebidas alcoólicas de forma desregrada.

4.º Na constância do casamento, mais concretamente a 05/02/2002, o A. foi submetido a uma cirurgia craniana por trepanação, com enucleação do seu globo ocular esquerdo para exisão de tumor maligno, com redução do volume encefálico.

5.º A Ré teve conhecimento da cirurgia a que o A. se submeteu, acompanhando o A. antes, durante e após a sua cirurgia.

6.º Após a cirurgia, o Autor teve um período de recuperação, no qual viu as suas capacidades físicas reduzidas.

7.º Tal redução das suas capacidades não o impediram, de posteriormente continuar a exercer a sua actividade laboral até Agosto de 2004, momento em que se despediu.

8.º Após o período de recuperação, o Autor recuperou as suas capacidades físicas, não tendo do evento cirúrgico, resultado qualquer alteração das capacidades cognitivas.

9.º O Autor trabalhou na D (...) até Agosto de 2004 com a categoria profissional de operário especializado-3, e exerceu funções, que implicavam responsabilidade, precisão e cuidado, designadamente nas mesas de controlo.

10.º Depois de o autor ter ficado desempregado, foi a ré que o ajudou durante mais de 7 anos, trabalhando para sustentar todo o agregado familiar.

11.º Através de divórcio por mútuo consentimento com n.º (...) /2011 que correu termos na Conservatória do Registo Civil de (...) , A. e Ré divorciaram-se no dia 02/02/2011.

12.º O A. comportou-se normalmente, de forma coerente, respondendo ao que lhe foi perguntado, inclusivamente pela Sra. Conservadora que o questionou quanto a vários aspectos próprios do divórcio e partilha.

13.º O sentido, alcance e consequências dos actos praticados na Conservatória foram explicados pela Sra. Conservadora.

14.º Em momento algum, na celebração do divórcio e subsequente partilha a Sra. Conservadora denotou qualquer desorientação no tempo ou no espaço, ou teve qualquer período de delírio ou agitação, ou foi perceptível qualquer anomalia.

15.º No âmbito do referido processo de divórcio por mútuo consentimento, a 02.02.2011, A. e Ré, acordaram proceder à partilha do património conjugal.

16.º O património conjugal de A. e Ré era constituído pelos seguintes bens:

Activo

Verba n.º 1 – Prédio urbano, sito em (...) , destinada para habitação, descrito sob o n.º 647, da Conservatória do Registo Predial de (...) , inscrito na matriz sob o artigo 430, com o valor patrimonial de 3817.78 e valor atribuído de € 6 112.46.

Verba n.º 2 – Veiculo automóvel, com a marca Hyundai, modelo H1, matricula (...) , valor atribuído de € 1000.00.

Verba n.º 3 – Motociclo, com a marca G.0, modelo IG MAX, matricula (...) valor atribuído de € 100.00.

Passivo

Verba n.º 4 – Empréstimo hipotecário, (...) , no Banco (...) , S.A. valor € 6112.46.

17.º A verba n.º 2 foi adjudicada ao A.

18.º As verbas n.º 1, 3 e 4 foram adjudicadas à Ré.

19.º Questionados A. e R sobre os termos do divórcio, pela Sra. Conservadora, ambos aceitaram os mesmos e bem assim questionados ainda se corroboravam os termos da partilha, que leu e que se realizaria do seguinte modo: ficaria a Autora com o prédio urbano, identificado na verba n.º1, bem como com o respectivo empréstimo hipotecário, identificado na verba n.º4. Ficaria ainda com o motociclo (verba n.º3), enquanto o Autor ficaria com o veículo automóvel identificado na verba n.º2, igualmente aceitaram os termos da partilha.

20.º O imóvel identificado na verba n.º 1, tinha um valor de mercado aproximadamente de 40.700.00€, é composto por rés-do-chão e primeiro andar, destinada a habitação, com uma área coberta de 112 m2, e terreno anexo com 51 m2 situado num aglomerado de habitações, na freguesia de (...) .

21.º Por sentença proferida a 02.04.2014 no âmbito da acção especial de interdição por anomalia psíquica, que correu termos no Tribunal Judicial de Trancoso, sob o n.º 50/12.4TBTCS, intentada a 08.02.2012, o A. foi declarado interdito com fundamento em anomalia psíquica, tendo sido fixado o início da incapacidade em 05/02/2002.

22.º Da sentença mencionada infere-se:

“(…)Teve internamentos psiquiátricos, em número não concretamente apurado, por quadro depressivo involutivo e cumpre actualmente terapêutica psiquiátrica com (…)

Em 5 de Fevereiro de 2002 foi operado a um tumor maligno, com enucleação do globo ocular esquerdo.

Desde o referido é portador de um quadro clínico de perturbação da personalidade secundária a lesão cerebral, a que corresponde o código F07 da International Classification of Diseases and Related Health problems, Tenth Revision ( ICD-10).

Padece ainda de Diabetes Mellitus tipo II, insulina tratada, HTA e possui antecedentes pessoais de alcoolismo crónico episódico. À data da realização do exame pericial apresentava um humor alexitímico, com embotamento afectivo, encontrava-se apático, respondendo apenas ao solicitado e de forma coerente, mas sucinta, não se alongando no discurso.(…)

(..)Identifica notas e é capaz de fazer trocos.

No relatório pericial de fls. 189 a 191 conclui-se que o quadro clinico referido é irreversível e afecta todas as áreas da vida corrente, social, afectiva e económica de (…), sendo este total e definitivamente incapaz para a realização de tais actos, necessitando de supervisão e ajuda permanentes, pelo que se entende que nada obsta a que seja declarado interdito, em razão de anomalia psíquica.”

23.º O exame pericial mencionado na aludida sentença foi realizado a 21.10.2013 e respectivo relatório mostra-se datado de 15 de Novembro de 2013 e dele se infere na parte atinente à avalização clinica que o examinando sabe o nome e a data de nascimento, (…) que está reformado desde 2010, não sabe que outra medicação faz para além de insulina, identifica notas e notas de euros, é capaz de fazer trocos(…) Ao exame mental apresenta humor alexitímico, com embotamento afectivo. Está apático, respondendo apenas ao solicitado e de forma coerente mas sucinta, não se alongando no discurso. A sua atenção é facilmente captável e capaz de ser mantida. Não se apuraram sintomas psicóticos.”

24.º Do histórico de internamentos dos A. ressalta:

a) Esteve internado na ULS (...) entre 04.02.2002 a 06.02.2002;

b) Esteve internando na ULS (...) entre 19.03.2006 a 20.05.2006;

c) Esteve internado na ULS (...) entre 19.07.2009 a 28.09.2009;

d) Esteve internado na ULS (...) entre 08.03.2010 a 06.04.2010;

e) Em 06.04.2010 o A. esteve internado na Unidade de cuidados continuados da Santa Casa de Misericórdia (...) proveniente do Serviço de Psiquiatria do HSM onde este internado por quadro depressivo descompensado.

f) Da respectiva nota de alta clinica prevista para 05.05.2010 infere-se que “se trata de um diabético insulino-tratado, frequentemente descompensado, foi pedida a sua integração na RNCC para reequilíbrio da diabetes. Cumprido o objectivo do internamento, tendo decorrido sem intercorrências, com valores equilibrados de glicemia e doses de insulina ajustadas, sinais vitais estabilizados e valores laboratoriais de citometria e bioquímica, dentro dos valores de referencia.

g) Do relatório clinico atinente à alta de 05.05.2010 infere-se que o A. tinha estado “internado pelo SU por cetoacidose diabética. Revertida clinicamente o quadro de urgência, foi internado nesta UCC, na tipologia de convalescença, para controlo das glicémias, gestão e controlo do regime terapêutico, ensino ao cuidados do controlo de glicemias e administração de insulinas, incentivo na realização das AVD’s e apoio emocional para recuperar a sua auto-estima e do próprio cuidador. Portador de DM insulino-tratada, apresenta também diagnósticos secundários, Depressão Major, Enucleação do globo ocular esquerdo e aparente síndrome demencial com provável relação com atrofia cerebral, que as frequentes crises de descompensação da Diabetes Mellitus com cetoacidose, cirurgia craniana por trepanação, aquando da enucleação, terão desencadeado”.

h) Em Junho de 2010 o A. foi observado na Consulta Externa de Oftalmologia, inferindo-se do relatório médico ”(…) Teve nova consulta em Junho 2010, em que não colaborava para avaliação de acuidade visual por síndrome demencial (…)

i) O A. esteve internado no Departamento de Psiquiatria da ULS Guarda de 20.09.2010 a 03.11.2010, tendo alta com boa evolução clinico-psiquiátrica, dentro das limitações da sua patologia crónica: Perturbação Depressiva; atrofia cerebral; Diabetes Mellitus I e Hipertensão Arterial.

j) Em 03.11.2010 o A. esteve internado na Unidade de cuidados continuados da Santa Casa de Misericórdia (...) proveniente do Serviço de Psiquiatria do HSM onde este internado por quadro depressivo descompensado.

k) Do respectivo relatório clinico de alta a 29.11.2010 infere-se que “se trata de um diabético insulino-tratado, frequentemente descompensado, foi pedida a sua integração na RNCC para reequilíbrio da diabetes. Cumprido o objectivo do internamento, tendo decorrido sem intercorrências, com valores equilibrados de glicemia e doses de insulina ajustadas, sinais vitais estabilizados e valores laboratoriais de citometria e bioquímica, dentro dos valores de referência.(…) ”

j) O A. foi sujeito a internamento a 12.07.2012 no Departamento de Psiquiatria da ULS Guarda.

25.º À data da partilha, o A. sofria de depressão major e diabetes mellitus de tipo II insulino-tratada.

26.º Foi o Autor quem pediu o divórcio à Ré, mas foi esta que diligenciou pela documentação com vista a que o divórcio e a partilha tivessem lugar, contratando para o efeito advogado.

27.º Foi o mandatário que elaborou todos os acordos necessários à instrução e apresentação do requerimento de divórcio por mútuo consentimento, bem como à partilha efectuada e acompanhou A. e R. em todos os actos praticados.

28.º O A. foi sempre uma pessoa reservada e tímida, facto que se verificava já anteriormente ao casamento, não tendo essa atitude sofrido qualquer alteração na vigência do matrimónio.

29.º O A. tinha uma atitude passiva.

30.º Mesmo depois de interpelado, reagia timidamente.

31.º O A. não reconhecia e ainda hoje não reconhece o seu problema de saúde.

32.º Era a Ré e posteriormente a mãe deste quem o tratavam na doença, quando este necessitava de ajuda para alguma das actividades da vida corrente.

33.º Até à data do divórcio, o Autor sempre se vestiu e comeu sozinho.

34.º Sempre efectuou a sua higiene pessoal sozinho, bem como todos os actos da vida corrente, nomeadamente, ir ao café, almoçar, conversar com os seus amigos, adquirir bens.

35.º Sempre teve ao seu dispor dinheiro, para custear todas as despesas.

36.º O A. sempre soube gerir o dinheiro que tinha à sua disposição, pagando e recebendo trocos.

37.º O A. tanto antes como após a partilha continuou a conduzir o veículo automóvel que lhe foi atribuído, como até aí vinha fazendo.

38.º O A., após o divórcio e partilha, foi residir para um sótão sito em Pinhel, levando consigo os seus haveres pessoais e bem assim o veículo automóvel que lhe tinha sido atribuído na partilha.

39.º Passou a partir dessa data a gerir e administrar os seus bens de forma autónoma, continuando a conduzir o veículo automóvel.»        

                                                                                         *

E os seguintes os factos que se consideraram não provados no tribunal a quo:

«a) No momento da partilha, a Ré tinha conhecimento da incapacidade de que o A. padecia.

b) À data da partilha o A. sofria de síndrome demencial e a sua debilidade mental era notória quando se falava com o mesmo.

c) Já antes da intervenção cirúrgica a que foi submetido a 05.02.2002, o A. apresentava sintomas depressivos persistentes apesar da medicação instituída.

d) Já antes da intervenção cirúrgica tinha internamentos psiquiátricos por quadros depressivo involutivo e cumpria terapêutica psiquiátrica com haldol, tercian, largactil e akineton.

e) À data da partilha o quadro clínico do A. era irreversível e afectava todas as áreas da sua vida corrente, social, afectiva e económica, sendo este total e definitivamente incapaz para a realização de tais actos, designadamente para uma partilha, necessitando de supervisão e ajuda permanentes.

f) À data da partilha por força da doença de que padecia e padece, o A. mostrava-se desorientado, não se recordando de determinados eventos.

g) Não sabia contar o dinheiro.

h) Não tinha capacidade para administrar o dinheiro.

i) Não tinha igualmente capacidade para compreender o valor dos bens, designadamente os que lhe foram adjudicados na partilha.

j) Nem compreendeu que estava a outorgar uma partilha do seu património conjugal, através do qual deixava de ser proprietário de alguns dos bens identificados no art.º 16.º e passava a ser único proprietário de outro.

k) A Ré induziu em erro o A., diligenciando pelo divórcio e pela consequente partilha, com o único objectivo de se aproveitar daquele e enriquecer à sua custa.

l) O A. tão pouco percebia que se havia divorciado.

m) Que foi o autor que pagou os honorários ao mandatário contratado.

n) Que o A. tivesse um diálogo fluente na celebração do divórcio e subsequente partilha na Conservatória.

o) O sentido, alcance e consequências lhe foram explicados pelo mandatário.

p) O A., após o divórcio e partilha, foi residir para casa dos seus pais.

q) O A. comunicou à Ré que se deveria deslocar à Conservatória para assinar todos os documentos necessários para o divórcio e partilha.

r) Nunca a Ré interveio na organização ou preparação do processo, nunca referiu que queria ficar com este ou aquele bem, bem nunca se dirigiu à Conservatória a fim de marcar o que quer que fosse, pois foi o A. que tudo organizou.

s) Foi o A., que fez a divisão dos bens comuns, bem como lhes atribuiu valor.

t) O imóvel encontrava-se em bom estado de conservação, dado que na constância do casamento, A. e Ré realizaram obras de restauração e beneficiação nos anos anteriores à partilha.

u) Obras que aumentaram significativamente o valor de mercado do referido imóvel.

v) As alegadas obras efectuadas na casa de morada de família, foram obras de pequena monta e custeadas com dinheiro próprio da Ré, designadamente empréstimos de seus familiares.

w) O mesmo, aconteceu com a amortização do empréstimo efectuada pela Ré, no valor de 20.000,00€ (vinte mil euros), a qual foi realizada, única e exclusivamente com o recurso a empréstimo junto dos familiares da Ré.

x) Foi a Ré que, sem conhecimento do A., que atribuiu na partilha o valor de 6.112, 46 € ao referido imóvel.

y) O veículo automóvel, com a marca Hyundai, modelo H1, matrícula 36-11-MX, indicado sob a verba n.º2, com valor atribuído de 1.000,00€ (mil euros), na verdade possuir um valor bem mais elevado.

z) O valor atribuído ao imóvel pela Ré teve como único objectivo equilibrar, de forma artificial, o valor dos bens que lhe foram atribuídos por forma a não pagar tornas ao A.

aa) O Autor levava a sua carrinha de nove lugares ocupada com colegas de trabalho, que com ele apanhavam boleia, quando se deslocava para o local de trabalho.». 

                                                                       *

4.2 – Os RR./recorrentes sustentam ter ocorrido incorrecta valoração da prova produzida, que levou ao incorrecto julgamento de factos como “provados”, a saber, os factos constantes dos pontos “8º”, “12º”, “13º”, “14º”, “19º”, “33º”, “34º”,“36º” e “39º” [aos quais, ao invés, deve ser dada resposta de “não provado”] e aos factos constante das alíneas “a)”, “b)”, “c)”, “d)”, “e)”, “f)”, “g)”, “h)”, “i)”, “j)”, “k)” e “l)” dos factos “não provados” [aos quais deve ser dada resposta positiva, transitando para o elenco dos factos “provados”]:

Começa o A./recorrente (representado pela sua Tutora), por questionar a sua capacidade intelectiva e vontade no momento da celebração da partilha ajuizada, aduzindo que tendo em conta a “motivação” expressa na sentença recorrida, o depoimento da Conservadora e funcionária da Conservatória do Registo (... )) teriam sido decisivos para a prova dos factos provados sob “12º”, “13º”, “14º” e “19º”, contudo, “não se recordando estas testemunhas do caso concreto do divórcio e partilha do recorrente e recorrida”, não podiam aqueles factos terem sido considerados como “provados”.

E para melhor fundamentar esta sua pretensão, transcreve segmentos dos respetivos depoimentos em abono dessa sua sustentação.

Que dizer?

Antes de aquilatarmos esta materialidade, cremos ser conveniente e mesmo necessário assentarmos algumas ideias sobre o que estava em jogo na presente acção e contexto em que a mesma se insere, à luz da factualidade pacificamente adquirida nos autos, e sempre com o possível e devido enfoque dogmático.

Relembre-se que o A./recorrente casou com a Ré/recorrida no ano de 1996, que a essa data apenas padecia de diabetes mellitus, mas desde momento não concretamente apurado passou a ingerir bebidas alcoólicas de forma desregrada, sendo que em 5/02/2002 foi submetido a uma cirurgia craniana por trepanação, com enucleação do seu globo ocular esquerdo para exisão de tumor maligno, com redução do volume encefálico, situação de que a Ré/recorrida naturalmente teve conhecimento, acompanhando o A./recorrente antes, durante e após a sua cirurgia.

Resulta igualmente assente nos autos (e nessa parte incontestado), que o A./recorrente, após a cirurgia, teve um período de recuperação, no qual viu as suas capacidades físicas reduzidas, mas que tal redução das suas capacidades não o impediram, de posteriormente continuar a exercer a sua actividade laboral até Agosto de 2004, momento em que se despediu, sendo certo que mais concretamente se encontra apurado que o A./recorrente trabalhou na empresa “ D (...) ” até Agosto de 2004 com a categoria profissional de operário especializado-3 (onde exerceu funções, que implicavam responsabilidade, precisão e cuidado, designadamente nas mesas de controlo).

Igualmente se encontra “provado” que “Depois de o autor ter ficado desempregado, foi a ré que o ajudou durante mais de 7 anos, trabalhando para sustentar todo o agregado familiar” (cf. facto “provado” sob “10º”).   

É neste contexto e sequência que surgem os factos “capitais”: “Através de divórcio por mútuo consentimento com n.º (...) /2011 que correu termos na Conservatória do Registo Civil de (...) , A. e Ré divorciaram-se no dia 02/02/2011” (cf. facto provado sob “11º”) e “No âmbito do referido processo de divórcio por mútuo consentimento, a 02.02.2011, A. e Ré, acordaram proceder à partilha do património conjugal” (cf. facto provado sob “15º”), sendo que esse património era constituído por um “Activo” composto por 3 bens (a verba 1 era um imóvel com o valor atribuído de € 6.112,46, a verba 2 era um veículo automóvel com o valor atribuído de € 1.000,00 e a verba 3 era um motociclo com o valor atribuído de € 100,00) e por um bem de “Passivo” (verba 4 constituindo empréstimo hipotecário no valor de € 6.112,46), sendo certo que a dita partilha se concretizou através da adjudicação ao A./recorrente da verba 2 e das restantes 3 verbas à Ré/recorrida (sem olvidar que “O imóvel identificado na verba n.º 1, tinha um valor de mercado aproximadamente de 40.700.00€, é composto por rés-do-chão e primeiro andar, destinada a habitação, com uma área coberta de 112 m2, e terreno anexo com 51 m2 situado num aglomerado de habitações, na freguesia de (...) ” – cf. facto “provado” sob “20º”).

Sucede que “Por sentença proferida a 02.04.2014 no âmbito da acção especial de interdição por anomalia psíquica, que correu termos no Tribunal Judicial de Trancoso, sob o n.º 50/12.4TBTCS, intentada a 08.02.2012, o A. foi declarado interdito com fundamento em anomalia psíquica, tendo sido fixado o início da incapacidade em 05/02/2002” (cf. facto “provado” sob “21º”, com sublinhado nosso).

Temos então que o A./recorrente foi declarado interdito em data posterior à celebração da dita partilha (cerca de 2 anos depois), sendo consabido que antes do anúncio da proposição da ação, os negócios jurídicos estão sujeitos ao regime do art. 257º do C.Civil (cf. art. 150º do mesmo C.Civil), isto é, ao regime da “incapacidade acidental”, sendo certo que “in casu” foi fixado na mesma sentença da interdição a incapacidade do A./recorrente retroagida a cerca de 9 anos antes do ato jurídico da partilha que celebrou.

Ora se assim é, qual o valor da fixação da data do começo da incapacidade?

Já foi doutamente sublinhado que o que está aqui em causa não é a data da condição de interdito ou inabilitado, pois esta só se constituiu com a sentença, mas sim de fixar a data de começo da incapacidade natural ou de facto, por ex., desde quando é que o requerido no processo passou a estar afetado por anomalia psíquica que o tornou incapaz de reger a sua pessoa e bens.[2]

Em todo o caso, na vigência do Código Civil de 1966, a doutrina e a jurisprudência[3] têm atribuído a tal declaração judicial um valor meramente indiciário: não de uma presunção legal (iuris et iure ou iuris tantum), mas o valor de mera presunção simples, natural, judicial, de facto ou de experiência que, embora constitua um começo de prova, não inverte o ónus da prova da existência da incapacidade no momento da prática do ato – ónus que impende sobre quem pede a anulação.

E com isto já estamos a divergir do entendimento perfilhado na sentença recorrida, na qual, em sede da “Fundamentação de Direito” nela empreendida, após uma correta resenha doutrinal e jurisprudencial sobre esta temática, se assentou no entendimento de que “a Ré ilidiu a presunção da existência do estado demencial no momento do negócio (…)”

Ora, tratando-se de uma mera presunção de facto ou judicial, em bom rigor a Ré não tinha que ilidir essa presunção, nem a isso estava obrigada; o Autor é que teria o ónus de prova em causa, assistindo à Ré fazer a contraprova nos termos normais (cf. art. 346º do C.Civil).

Sem embargo do vindo de dizer, alinhamos com aqueles que entendem ser legítimo falar a este propósito de uma forte presunção de que o negócio praticado depois da data em que principiou a incapacidade natural (segundo a sentença de interdição), foi celebrado por pessoa incapacitada de entender o sentido da declaração ou privada do livre exercício da sua vontade.[4]

Sendo a esta luz que haverá como que um ónus “reforçado” de contraprova por parte dos demandados na acção – de contraprova da incapacidade, isto é, de que o ato foi praticado num momento “lúcido”.[5]

Assente fica assim esta grande importância prática para efeitos de aplicação do art. 257º do C.Civil, resultante da fixação, na sentença constitutiva da interdição, da data provável do início da incapacidade.

Vejamos agora a concretização da atendibilidade dessa presunção judicial em sede da decisão sobre a matéria de facto, mais concretamente como é que a mesma intercede – se é que intercede – com a operação de apreciação e valoração da prova numa situação como a do caso vertente.

A nosso ver ela intercede precisamente na medida em que constitui um mecanismo necessário para levar o Tribunal a afirmar a verificação de certo facto controvertido, suprindo as lacunas de conhecimento ou de informação que não possam ser preenchidas por outros meios de prova, ou servindo ainda para valorar os meios de prova produzidos.[6]

Temos presente que como meio de prova para a formulação de um juízo sobre a existência de uma incapacidade proveniente de uma anomalia psíquica e data do seu começo é preponderante o parecer dos peritos médicos, uma vez que se trata de uma questão eminentemente técnica e que exige conhecimentos especiais que em regra o julgador não possui.[7]

Naturalmente que nesta sede se revestiria da maior relevância e preponderância a realização de testes psicométricos, pois que só estes meios auxiliares de diagnóstico, pelo seu valor e garantia técnico-científica, permitiriam um juízo seguro e de certeza sobre a verificação (ou não) à data do ato ajuizado (celebração da partilha) e em que grau/dimensão (sendo disso caso), sobre aqueles que usualmente são considerados os três elementos fundamentais integrantes da capacidade jurídica do ponto de vista médico-legal – i) uma soma de conhecimentos acerca dos direitos e deveres e das regras de vida em sociedade ii) um juízo suficiente para aplicá-los num caso concreto; iii) integridade da vontade necessária para influenciar uma decisão livre.

Ora, lamentavelmente, essa prova não foi feita no caso vertente, nem em sede do processo onde foi decretada a interdição, nem no presente processo.

Mas será que com os dados dos autos, ainda assim, se pode formar uma convicção segura designadamente quanto ao aspeto da integridade da vontade necessária para influenciar uma decisão livre por parte do A./recorrente à data do ato ajuizado, mais concretamente em termos de aquilatar se esta última resultava prejudicada por falência dos respetivos mecanismos cerebrais de controlo?

Na sentença recorrida formou-se convicção globalmente no sentido de que não se teve por demonstrada a alegada incapacidade do A./recorrente, justificando-se tal ter resultado da «análise crítica e conjugada, à luz das regras de experiência e segundo critérios de normalidade e, ainda, segundo as regras do ónus da prova aplicáveis, dos depoimentos prestados pelas testemunhas (…)

Que dizer?

Desde já se adianta – e releve-se o juízo antecipatório! – que quanto à matéria objecto de impugnação se reconhece assistir no essencial razão ao A./recorrente, decisivamente por se não ter atendido na operação de apreciação e valoração da prova à presunção de facto ou judicial da incapacidade do A./recorrente, isto é, da existência do estado demencial no momento do negócio, mormente  suprindo as lacunas de conhecimento ou de informação que não podiam ser preenchidas por outros meios de prova, ou não valorando adequadamente os meios de prova produzidos.

(…)

Assim, reponderando a prova produzida, determina-se que a redação dos ditos pontos de facto “provados” sob “12º” e “19º” passe a ser, respectivamente, do seguinte teor:

«12.º O A. não manifestou recusa ou oposição perante a Srª Conservadora.»

 «19.º Questionados A. e R sobre os termos do divórcio, pela Sra. Conservadora, por ambos foram aceites os mesmos e bem assim questionados ainda se corroboravam os termos da partilha, que leu e que se realizaria do seguinte modo: ficaria a Autora com o prédio urbano, identificado na verba n.º1, bem como com o respectivo empréstimo hipotecário, identificado na verba n.º4. Ficaria ainda com o motociclo (verba n.º3), enquanto o Autor ficaria com o veículo automóvel identificado na verba n.º2, igualmente por ambos foram aceites os termos da partilha.»

Já quanto à factualidade constante dos pontos “13º” e “14º”, entendemos que deve subsistir a versão positiva constante da sentença recorrida, e nos seus precisos termos, por estar primacialmente neles em causa a correcção e lisura de procedimentos por parte da Srª Conservadora, que não vislumbramos que no global se possa licitamente considerar abalada.

                                                           ¨¨

Passemos ao ponto de facto “provado” sob “8º”.

Recorde-se, antes de mais, o seu teor literal:

«8.º Após o período de recuperação, o Autor recuperou as suas capacidades físicas, não tendo do evento cirúrgico, resultado qualquer alteração das capacidades cognitivas.»

Face ao precedentemente exposto, cremos que a resposta já em parte se adivinha.

Na verdade, quanto a nós apenas pode subsistir deste ponto de facto como “provado” o constante da sua 1ª parte, isto é, o atinente a o Autor ter recuperado as suas capacidades físicas, aspeto sobre o qual igualmente de forma insofismável aponta o constante da demais factualidade incontroversamente apurada, como sejam o Autor ter na sequência retomado a sua actividade laboral e ter continuado a conduzir o veículo automóvel.

Já quanto ao segundo aspeto – não ter do evento cirúrgico resultado qualquer alteração das capacidades cognitivas – não pode o mesmo manifestamente subsistir como “provado”.

É que, se encontra repetida e uniformemente sublinhado em todos os “Relatórios médicos” constantes dos autos, que a cirurgia a que o Autor foi submetido em 05/02/2002 (cirurgia craniana por trepanação, com enucleação do seu globo ocular esquerdo para exisão de tumor maligno) implicou e/ou teve como consequência a redução do volume encefálico, o que se traduziu numa atrofia cerebral, senão simultânea, pelo menos com origem nesse ato e com desenvolvimento a partir dele, isto “a par da comorbilidade já existente: Diabetes Tipo I e Hipertensão Arterial[8].

Ora, esta “diminuição inespecífica do volume encefálico”, ainda que não a única causa, foi seguramente determinante para a “síndrome demencial” que o A./recorrente veio a patentear, a qual “evoluiu para um défice cognitivo global muito marcado em comorbilidade com Diabetes[9], como tal seguramente apurado em atenção aos quatro internamentos psiquiátricos nos anos de 2006, 2009, 2010 e 2012.

Sendo precisamente face a estes dados clínicos, seguramente enunciados nos “Relatórios Médicos” constantes dos autos, que divisamos a nossa divergência frontal e discordância com a interpretação e avaliação dos meios de prova constante da sentença recorrida, inclusive desses mesmos meios de prova: é que na “motivação” da sentença recorrida, tanto quanto nos é dado perceber, desvalorizou-se uma tal evidência, com argumentação de que “não resulta demonstrado que o Autor a 02.02.2011 padecesse de síndrome demencial a ponto de não compreender os actos que praticou

Sucede que a nossa interpretação é precisamente a oposta: se em atenção aos ditos internamentos psiquiátricos – e historial médico e cirúrgico do Autor – a patologia foi diagnosticada como constituindo “um défice cognitivo global muito marcado(sublinhado nosso), não vislumbramos como considerar que o A./recorrente tinha uma vontade livre e discernida no ato em causa – partilha outorgada em 02.02.2011[10].

Atente-se que a atrofia cerebral teve lugar precisamente na parte frontal do cérebro (cf. ato de excisão do globo ocular).

Acontece que é precisamente a este nível que usualmente ocorre um processo de deterioração cognitiva, dado o compromisso das funções nervosas superiores (em termos intelectivos e volitivos), donde possíveis défices cognitivos seletivos ou lacunares, que comprometem a capacidade de cálculo (incluindo para operações simples ou elementares), a compreensão e o manejo das quantidades (do todo e das partes), podendo mesmo vir a traduzir-se numa menor conservação de áreas cerebrais nobres (corticais) responsáveis pelo efeito da abstração e pelo sequenciamento e/ou processamento das diferentes etapas de elaboração mental.

Aliás, foi seguramente nessa ponderação que se veio a concluir pelo decretamento da modalidade no regime de ajuda ao incapacitado reservada para os casos mais graves, que é a interdição, pois que a lei destina a inabilitação para as deficiências que não apresentem um grau elevado de incapacidade que não impeçam nem excluam totalmente a indispensável aptidão do visado para gerir os seus interesses.

Acresce que por igual razão e ponderação se entendeu fixar o início da incapacidade em 05/02/2002, isto é, logo desde a data da cirurgia cerebral ao tumor maligno, por se considerar que o quadro clínico de anomalia psíquica (“perturbação da personalidade, secundária a lesão cerebral”) se verificava desde essa data. 

O que tudo serve para dizer que a presunção natural ou judicial daí decorrente tinha que ser atendida na valoração das provas e suprimento das lacunas de informação, o que não resulta ter ocorrido.

 Sendo precisamente aqui que entendemos ter existido o maior erro na apreciação da prova, o qual se transmitiu em grande medida a outros factos dos pontos que aparecem questionados nas alegações recursivas.

Dito de outra forma: não pode subsistir integralmente a redação do dito ponto de facto “provado” sob “8º”, passando a mesma a ser do seguinte teor:

«8.º Após o período de recuperação, o Autor recuperou as suas capacidades físicas.»

Consequente e correspondentemente, passa a figurar entre os factos “não provados”, o segmento «Que do evento cirúrgico realizado em 05/02/2002, não tenha resultado qualquer alteração das capacidades cognitivas do Autor.»

                                                           ¨¨

Vejamos para finalizar (nesta parte dos factos “provados”) da resposta a dar aos pontos de facto “provados” sob “33º”, “34º”,“36º” e “39º”

E vamos fazê-lo globalmente, por a apreciação e decisão sobre eles poder e dever assim ter lugar.

Senão vejamos.

Trata-se de factos instrumentais para aferir a capacidade do Autor, os três primeiros reportados ao período temporal que antecedeu o divórcio (“33º”, “34º” e “36º”) e o último (“39º”) ao período subsequente.

Na “motivação” da sentença recorrida considerou-se «Que comia e se vestia sozinho (ponto 33 e 34), não oferece dúvida, desde logo porque as altas médicas conferidas pela unidade de cuidados continuados da Santa Casa referem que deve ser estimulado a praticar as actividades da vida corrente. Ora, só pode ser estimulado a realizar actividades, quem tem capacidade para, por si, desenvolver essas actividades (…)»

Sem denegar a valia de uma tal argumentação, cremos que não se pode igualmente olvidar – por manifesto e incontroverso – que aquando dos picos graves das suas doenças, determinantes dos seus internamentos, o Autor seguramente não tinha essa autonomia, ficando mais dependente de terceiros, acrescendo que, em nosso entender, não foi feita prova sobre uma tão grande autonomia do Autor no quotidiano, que a redação do ponto de facto “34º” inculca .

Por isso que o factualismo dado como “provado” nesta parte deve refletir tais aspetos.

Por outro lado, quanto ao constante da 1ª parte do ponto de facto “36º” – que o Autor sempre soube gerir o dinheiro que tinha à sua disposição – cremos que a prova testemunhal feita o desmente claramente.

Temos presente que o Autor mantinha em 2013 – data do exame médico no âmbito do processo de interdição – a capacidade para conhecer notas e saber fazer trocos, donde entendermos que deve subsistir a parte final deste ponto de facto.

Contudo, daí não decorre que o Autor fosse ou soubesse ser uma pessoa criteriosa e ponderada a gerir o dinheiro que tinha à sua disposição, na medida em que pelo menos as testemunhas (…)clara e enfaticamente aludiram a gastos inopinados (designadamente na compra de computadores numa ida à Makro de Coimbra, que nem sequer sabia manuear) e desregrados (como convites reiterados à família para irem ao Restaurante ou em álcool).

Donde a necessária eliminação dessa 1ª parte do ponto de facto “36º”, a qual deve transitar para os factos “não provados”.

Já quanto ao constante da 1ª parte do ponto de facto “39º” – que o Autor “passou” depois do divórcio a gerir e administrar os seus bens de forma “autónoma” – quanto a nós intercede uma similar lógica com o vindo de expor: é que a redação nele consignada inculca a ideia de que o Autor a partir do divórcio manifestou maiores e melhores capacidades, quando a prova produzida de todo o não autoriza, pois que dela resulta, ao invés, que o mesmo ficou muito desorientado, sendo que estando entregue a si próprio manifestamente não tinha capacidade para administrar os seus bens e tomar conta de si próprio [cf. as testemunhas (…)aí que tendo inicialmente ficado a morar sozinho num “sótão” em Pinhel que a Ré/recorrida lhe providenciou (sem qualquer mobília e a dormir no “chão”), depois tenha sido socorrido pelos familiares, indo viver com a mãe.

Ademais, desconhece-se que “bens” estão em causa neste ponto de facto, sendo certo que não se vislumbram outros para além do veículo, dinheiro de bolso mensal e os haveres pessoais que consigo levou, donde não ter grande sentido a amplitude que a redação em si comportava.  

De referir que a 2ª parte deste ponto de facto “39º” concerne à condução de veículo pelo Autor nesse período, aspeto que não merece objeção (independentemente do “risco” para o próprio e 3os que tal representava!).

Termos em que se decide pela reformulação da dita 1ª parte do ponto de facto “39º”, a qual deve passar a constar com uma redação mais consentânea com a prova produzida, a saber, no sentido de que após o divórcio o Autor ficou entregue a si próprio e à orientação pela sua cabeça.     

Será então do seguinte teor a nova redacção dos pontos de facto “33º”, “34º”, “36º” e “39º”:

«33.º Com exceção dos períodos em que tinham lugar os picos das suas doenças, até à data do divórcio o Autor sempre se vestiu e comeu sozinho.»

«34.º Com exceção dos períodos em que tinham lugar os picos das suas doenças, o Autor sempre efectuou a sua higiene pessoal sozinho, bem assim em atos da vida corrente, como ir ao café, almoçar, conversar com os seus amigos, adquirir bens.»

«36.º O Autor sempre soube pagar e receber trocos.»

«39.º Após o divórcio o Autor ficou entregue a si próprio e à orientação pela sua cabeça, continuando a conduzir o veículo automóvel.»

 Consequente e correspondentemente, transita para o elenco dos factos “não provados” o seguinte:

  «Que o A. sempre soube gerir o dinheiro que tinha à sua disposição»

  «Passou a partir da data do divórcio a gerir e administrar os seus bens de forma autónoma»

                                                           ¨¨¨¨

É então tempo de passar à apreciação dos factos “não provados”, ditas alíneas “a)”, “b)”, “c)”, “d)”, “e)”, “f)”, “g)”, “h)”, “i)”, “j)”, “k)” e “l)” do correspondente elenco.

Será que a todos eles deve ser dada resposta positiva como reclama o A./recorrente, isto é, que todos eles devem transitar para o elenco dos factos “provados”?

A resposta será diferenciada, como vamos passar a detalhar, sendo que tal decorre de razões diversas mas em que o precedentemente exposto e decidido terá naturalmente um papel preponderante, sem embargo de a exposição ser feita por grupos de pontos de facto sempre que a similitude de razões o justifique.

                                                           ¨¨

Alínea “a)” [No momento da partilha, a Ré tinha conhecimento da incapacidade de que o A. padecia.]

Começaremos por dizer que a redação que ao mesmo foi dada era perfeitamente inconcludente, na medida em que o termo “incapacidade”, só por si, não permitia clarificar a situação, donde, sendo disso caso, terá que ser introduzida concretização suficiente neste ponto de facto.

Mas enfrentando directamente a questão, cremos que a resposta quanto a este ponto de facto já se adivinha em grande medida, atento o precedentemente exposto.

Na verdade, tendo-se concluído, pelas razões que foram enunciadas, que o A./recorrente não tinha uma vontade livre e discernida no ato em causa – partilha celebrada em 02.02.2011 – a convicção positiva de que tal era do conhecimento da Ré/recorrida impõe-se quase como uma evidência.

Atente-se que os mesmos eram casados até à data, vivendo conjuntamente e tendo, pelo que resulta dos autos, a Ré/recorrida acompanhado pessoal e diretamente toda a situação clínica do Autor, mormente a intervenção cirúrgica de 2002 e os internamentos psiquiátricos dos anos de 2006, 2009 e 2010, nomeadamente falando e sendo informada pelos médicos do seu estado de saúde em cada momento (aí avultando a depressão major e o síndrome demencial), para além de ter naturalmente vivenciado com a maior proximidade o declínio cognitivo que o mesmo patenteava, e de que foi dado público testemunho em audiência.

Admitindo-se, contudo, que não foi feita prova direta sobre tal conhecimento, e bem assim porque se desconhece o grau de instrução da Ré/recorrida e o concreto volume e nível de informação médica a que a mesma acedeu ao longo do tempo, ainda assim a resposta não deixa de ser de sentido afirmativo, pese embora por uma outra via.   

Na verdade, nos termos do nº2 do art. 257º, “o facto é notório quando uma pessoa de normal diligência o teria podido notar.”

Assim, dado que a saúde mental do A./recorrente apresentava à data da partilha graves desequilíbrios, bem como atento o seu estado de perturbação e a sua debilidade física, não podia a Ré/recorrida deixar de se aperceber que tal estado afetava, de forma séria, a capacidade de entender e querer por parte do A./recorrente, isto é, estamos perante uma situação que era perfeitamente cognoscível por qualquer terceiro medianamente diligente que com ele interagisse (um declaratário que se comporte com normal diligência teria podido, então, notar o facto) o que é quanto basta para este efeito.[11]

Presunção esta que se retira a partir de factos conhecidos e provados.

Dito de outra forma: a Ré/recorrida se não conhecia o dito estado de incapacidade em que o A./recorrente se encontrava à data da outorga da partilha, não podia ter deixado de o notar.[12]

Ora se assim é, deve tal ponto de facto transitar para o elenco dos factos “provados” e com a seguinte numeração e redação:

«40º No momento da partilha, era visível para terceiros, nomeadamente, para a  Ré, que a saúde mental do Autor apresentava graves desequilíbrios, bem como que o estado de perturbação e a debilidade física dele, lhe afectavam, de forma séria, a capacidade de entender e querer.»

                                                           ¨¨

Alínea “b)” [À data da partilha o A. sofria de síndrome demencial e a sua debilidade mental era notória quando se falava com o mesmo.]

Na sequência do precedentemente exposto e em consonância com o mesmo, este ponto de facto também deve transitar para o elenco dos factos “provados”, embora com uma correcção de pormenor determinada pela necessidade de introduzir uma precisão que os dados dos autos atestam, a saber, que numa conversa ou diálogo breve poderia não ser percetível a “debilidade mental” em causa (como teria sucedido na celebração da partilha perante a Srª Conservadora).

Assim sendo, deve tal ponto de facto transitar para o elenco dos factos “provados” e com a seguinte numeração e redação:

«41º À data da partilha o A. sofria de síndrome demencial e a sua debilidade mental era perceptível quando se aprofundava uma conversa com o mesmo.»

                                                           ¨¨

Alínea “e)” [À data da partilha o quadro clínico do A. era irreversível e afectava todas as áreas da sua vida corrente, social, afectiva e económica, sendo este total e definitivamente incapaz para a realização de tais actos, designadamente para uma partilha, necessitando de supervisão e ajuda permanentes.]

 Este ponto de facto, no que à sua 1ª parte diz respeito deve igualmente transitar sem qualquer dúvida ou hesitação para o elenco dos factos “provados”.

Já o mesmo se não diga quanto à sua 2ª parte, pois que a mesma reveste manifesto cariz conclusivo, devendo, como tal, este segmento ser, sem mais eliminado.

Assim sendo, determina-se que figure no elenco dos factos “provados”, o ponto de facto com a seguinte numeração e redação:

«42º À data da partilha o quadro clínico do A. era irreversível e afectava todas as áreas da sua vida corrente, social, afectiva e económica.»

                                                           ¨¨

Alíneas “c)”, “d)”, “f)”, “g)” e “k)”

Em relação a este conjunto de 5 pontos de facto não encontramos razão para alterar o juízo/convicção expresso pela 1ª instância.

Quanto às alíneas “c)” e “d), porque o punctum saliens das mesmas é o momento temporal nelas em causa (ser antes da intervenção cirúrgica), quando é certo que não se encontra qualquer prova concludente nesse sentido, nem aliás, o A./recorrente a intentou convictamente afirmar.

Quanto à alínea “f)”, porque prova de “desorientação” do A./recorrente, reportada ao ato (celebração da partilha), igualmente se não divisa.

 Quanto à alínea “g)”, porque a dar-se como “provada” a factualidade dela constante, se entraria em manifesta contradição com os pontos de facto “provados” sob “35º”, “36º” e “39º”!  

Finalmente, quanto à alínea “k)”, porque não se divisa qualquer prova concludente nesse sentido, estando, aliás, em parte contrariada pelo dado como “provado” sob “26º”, sendo certo, em todo o caso, que não é factualidade que, pelo seu sentido preciso, seja de presumir…

¨¨

            Alíneas “h)”, “i)”, “j)”, e “l)”

            Já quanto a esta residual factualidade a resposta é diametralmente oposta, devendo todos eles transitar para o elenco dos factos “provados”.

            Na verdade, figurar a factualidade constante das três primeiras alíneas no elenco dos factos “provados” decorre directamente do já antes exposto e decidido, sendo o seu corolário e consequência lógica, sem embargo de ter havido prova testemunhal de sentido expressamente afirmativo nesse mesmo sentido (para além do já supra referido, v.g. a testemunha (…)

Já quanto à factualidade constante da alínea “l)”, porque prova testemunhal de sentido expressamente afirmativo teve igualmente lugar: assim pela testemunha (…)

 Assim sendo, determina-se que figurem no elenco dos factos “provados”, os pontos de facto com a seguinte numeração e redação:

«43º Não tinha capacidade para administrar o dinheiro.»

«44º Não tinha igualmente capacidade para compreender o valor dos bens, designadamente os que lhe foram adjudicados na partilha.»

«45º Nem compreendeu que estava a outorgar uma partilha do seu património conjugal, através do qual deixava de ser proprietário de alguns dos bens identificados no art.º 16.º e passava a ser único proprietário de outro.»

«46º O A. tão pouco percebia que se havia divorciado.»

                                                           *

Procede e improcede nos termos vindos de explicitar a impugnação da matéria de facto.

                                                           *

5 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Cumpre agora entrar na apreciação da última questão igualmente supra enunciada, esta já directamente reportada ao mérito da sentença, na vertente da fundamentação de direito da mesma, a saber, ter havido erro de decisão, ao considerar improcedente a acção, particularmente quanto ao pedido de decretamento da anulação da partilha fundada na incapacidade que o A. padecia à data da celebração dessa partilha (que o impedia de compreender o alcance dos actos que praticava, sendo tal incapacidade notória e do conhecimento da Ré):

Cremos que a resposta a esta questão se constitui como linear e inabalável.

É que, quanto a nós, por força do acolhimento que antecede, na parte mais relevante, da impugnação sobre a decisão da matéria de facto, resulta agora de forma incontornável que deve ser decretada a anulação da partilha fundada na incapacidade que o A. padecia à data da celebração dessa partilha.

Senão vejamos.

Já supra se fez um primeiro enquadramento jurídico desta temática, tendo-se sublinhado que no caso vertente está em causa um ato praticados antes da publicidade da ação de interdição, donde haver que atender, ex vi legis, ao disposto relativamente à incapacidade acidental (cf. art. 150º do C.Civil).

Consabidamente, a incapacidade acidental, prevista e regulada no art. 257º do mesmo C.Civil, exige, para a anulabilidade do acto, que, no momento da prática do atos, haja uma incapacidade de entender o sentido da declaração negocial ou falte o livre exercício da vontade; e que a incapacidade natural existente seja notória ou conhecida do declaratário (passível de apreensão por uma pessoa média, colocada na posição do declaratário), assim se tutelando a boa-fé deste último e a segurança jurídica.

Por outro lado, não bastará demonstrar um estado habitual de insanidade de espírito na época do negócio, tornando-se antes necessário provar a existência de uma perturbação psíquica no momento em que a declaração de vontade foi emitida

Por último, e no que tange ao regime da anulabilidade, há que lançar mão do disposto no art. 287º e segs, ainda do mesmo C.Civil, ou seja, terá legitimidade para requerer a anulação do ato a pessoa que se encontrava em situação de incapacidade ou, caso o haja, o seu representante legal, o que poderá ser feito no prazo de um ano a contar da cessação da incapacidade, se o negócio já tiver sido cumprido, ou, na hipótese contrária, invocada a todo o tempo, por via de ação ou de exceção.

Face a este quadro dogmático sucintamente enunciado, a conclusão sobre a procedência da pretensão à luz dos mesmos formulada pelo A./recorrente afigura-se-nos como incontornável.

Na verdade, e decisivamente, encontram-se indubitavelmente provados os ditos requisitos da incapacidade acidental.

Quanto ao primeiro deles (o da incapacidade de entender o sentido da declaração negocial ou que falte o livre exercício da vontade) encontra-se seguramente provado que à data desse ato – celebração da partilha em 02.02.2011 – o A./recorrente tinha uma saúde mental com graves desequilíbrios (estado demencial no momento do negócio), o que conjugado e acrescido com o seu estado de perturbação e debilidade física, afectava de forma séria, a sua capacidade de entender e querer, donde a legítima conclusão de que o A./recorrente não tinha uma vontade livre e discernida no ato em causa.

E bem assim quanto ao dito segundo requisito (o de que a incapacidade natural existente seja notória ou conhecida do declaratário), temos que era notória a incapacidade acidental do A./recorrente em função do constante do ponto de facto “provado “ sob “40º”, supra aditado, a saber, que no momento da partilha, a Ré não podia ter deixado de notar a incapacidade de entender o sentido da partilha por parte do A., ou que este não tinha o livre exercício da sua vontade.

De referir que «a falta de vontade não pode ser oposta ao declaratário que a recebeu e entendeu, em conformidade com o sentido que, nas circunstâncias do caso, não lhe era exigível que conhecesse e que pudesse entender como a declaração de uma vontade.»[13]

O que cremos não poder dizer-se relativamente à aqui Ré/recorrida, que não podia deixar de conhecer o quadro patológico da enfermidade psíquica do aqui A./recorrente…

Sendo certo que Ré/recorrida não fez contraprova válida no sentido de que o A./recorrente se encontrava num intervalo lúcido.

Por outro lado, entende a melhor doutrina que “para a anulabilidade dos negócios não exige a lei, neste caso, o requisito do prejuízo causado ao incapaz”. [14]

Sem embargo, esse prejuízo, na circunstância, resultaria mais do que evidenciado pelo constante do facto “provado” sob “20º”!

Donde, e sem necessidade de maiores considerações, a conclusão de que a celebração da partilha ajuizada é anulável (nos termos do artº 257º do C.Civil, como foi requerido pelo A./recorrente), por ter resultado demonstrado que, no momento do acto, o Autor estava incapacitada de entender o sentido da declaração negocial ou não tinha o livre exercício da sua vontade, e que isso era notório para a contraparte (Ré), sendo certo que competindo ao Autor a prova desses dois requisitos (cf. art. 342º, nº1 do C.Civil), o certo é que o logrou fazer, impondo-se, por isso, a revogação da sentença recorrida e dar procedência à acção.

Procedendo nestes termos o recurso.

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6 - SÍNTESE CONCLUSIVA

I – Quanto ao valor da fixação na sentença que decreta uma interdição da data do começo dessa incapacidade, na vigência do Código Civil de 1966, a doutrina e a jurisprudência têm atribuído a tal declaração judicial um valor meramente indiciário: não de uma presunção legal (iuris et iure ou iuris tantum), mas o valor de mera presunção simples, natural, judicial, de facto ou de experiência que, embora constitua um começo de prova, não inverte o ónus da prova da existência da incapacidade no momento da prática do ato – ónus que impende sobre quem pede a anulação.

II – Contudo, é legítimo falar a este propósito de uma forte presunção de que o negócio praticado depois da data em que principiou a incapacidade natural (segundo a sentença de interdição), foi celebrado por pessoa incapacitada de entender o sentido da declaração ou privada do livre exercício da sua vontade, sendo a esta luz que haverá como que um ónus “reforçado” de contraprova por parte dos demandados na acção – de contraprova da incapacidade, isto é, de que o ato foi praticado num momento “lúcido”.

III – A presunção judicial intercede na operação de apreciação e valoração da prova ao constituir um mecanismo necessário para levar o Tribunal a afirmar a verificação de certo facto controvertido, suprindo as lacunas de conhecimento ou de informação que não possam ser preenchidas por outros meios de prova, ou servindo ainda para valorar os meios de prova produzidos.

IV – Resultando apurado que a “diminuição inespecífica do volume encefálico” (decorrente duma intervenção cirúrgica no ano de 2002), ainda que não a única causa, foi seguramente determinante para a “síndrome demencial” que o A./recorrente veio a patentear, a qual “evoluiu para um défice cognitivo global muito marcado em comorbilidade com Diabetes, situação diagnosticada à data do ato impugnado na acção (no ano de 2011), a presunção natural ou judicial aludida tinha que ser atendida na valoração das provas e suprimento das lacunas de informação, em ordem a concluir-se pelo déficite cognitivo no momento do negócio, isto é, que o A./recorrente não tinha uma vontade livre e discernida no ato em causa.

V – Estando em causa um ato praticados antes da publicidade da ação de interdição, há que atender, ex vi legis, ao disposto relativamente à incapacidade acidental (cf. art. 150º do C.Civil).

VI – A incapacidade acidental, prevista e regulada no artigo 257º do C.Civil, exige, para a anulabilidade do acto, que, no momento da prática do acto, haja uma incapacidade de entender o sentido da declaração negocial ou falte o livre exercício da vontade; e que a incapacidade natural existente seja notória ou conhecida do declaratário (passível de apreensão por uma pessoa média, colocada na posição do declaratário), assim se tutelando a boa-fé deste último e a segurança jurídica.

VII – Encontra-se ferida de anulabilidade a celebração da partilha do património conjugal, efectuada por uma pessoa maior, mas dotada de incapacidade acidental de exercício, no momento da prática desse acto, não interdita, nem inabilitada, se a contraparte sabia ou devia ter-se apercebido que o declarante não estava “lúcido”.

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7 - DISPOSITIVO

Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente o presente recurso, com o que se revoga a sentença recorrida, decidindo, em consequência, decretar a anulabilidade da partilha do património conjugal celebrada entre Autor e Ré no âmbito do processo de divórcio por mutuo consentimento n.º (...) /2011 que correu termos na Conservatória do Registo Civil de (...) , referida sob os pontos “15º” a “18º” supra, celebrada no dia 02.02.2011, na Conservatória do Registo Civil de (...) .

Mais se acorda em ordenar o cancelamento de todos os registos que possam ter sido celebrados com base nessa mesma partilha.

Custas da acção e do presente recurso pela Ré/recorrente.

Coimbra, 12 de Dezembro de 2017

Luís Cravo ( Relator )

Fernando Monteiro

António Carvalho Martins


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carvalho Martins

[2] Assim por EMÍDIO SANTOS, in “Das Interdições e das Inabilitações”, QUID JURIS, 2011, a págs. 91.
[3] Cfr., neste sentido, GABRIELA PÁRIS FERNANDES, in “Comentário ao Código Civil, Parte Geral”, Universidade Católica Editora , 2014, a págs. 332.
[4] Cf. neste sentido PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in “Código Civil Anotado”, Vol. I, Coimbra Editora, 1987, a págs. 157.
[5] Assim interpretamos o constante do acórdão do STJ de 5.07.2001, no proc. nº 437/01, Comarca de Lisboa, in CJSTJ, Ano IX, Tomo II-2001, a págs. 151-164 e do T. Rel. de Coimbra de 10.03.2009, no proc. nº 469/2000.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
[6] Vide A. ABRANTES GERALDES, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, II Volume, 4ª ed. revista e atualizada, 2010, Livª Almedina, a págs. 228-234.
[7] Neste sentido o acórdão do STJ de 22.01.2013, no proc. nº 2382/09.0TBFIG.C1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[8] Citámos, mais uma vez, o Relatório Clínico” junto com as alegações recursivas, constante de fls. 287 dos autos.
[9] Cf. “Relatório de consulta” da U.L.S. (...) , E.P.E.”, de fls. 234 e vº
[10] De referir que a afeção igualmente se estendia quanto ao divórcio que concomitantemente teve lugar, mas na medida em que este ato jurídico não está questionado nesta ação, importa desconsiderar sem mais tal aspeto.
[11] Neste sentido o acórdão do STJ de 13.01.2009, no proc. nº 08A3809, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[12] Acentuando uma igual conclusão quando está em causa um convívio próximo, senão íntimo, entre declarante e declaratário, vide o já citado acórdão do STJ de 5.07.2001 referido supra em nota [6].
[13] Citámos novamente o acórdão do STJ de 13.01.2009, no proc. nº 08A3809, já supra citado em nota [12].
[14] Assim PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in “Código Civil Anotado”, Vol. I, Coimbra Editora, 1987, a págs. 157, em comentário ao art. 150º do C.Civil, isto por contraponto ao regime constante do art. 149º do mesmo C.Civil.