Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
97/16.1T9CNT.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELENA BOLIEIRO
Descritores: FALSIDADE DE TESTEMUNHO
ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO TIPO
CRIME DE PERIGO ABSTRACTO
CRIME DE MERA ACTIVIDADE
CRIME DE MÃO PRÓPRIA
Data do Acordão: 01/22/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE CANTANHEDE)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 360.º, N.OS 1 E 3 DO CP
Sumário: I – O crime de falsidade de testemunho tutela o bem jurídico realização da justiça, enquanto função do Estado, e o seu tipo base, descrito no artigo 360.º, n.º 1 do Código Penal, tem como elementos constitutivos:
Quanto ao tipo objectivo,

- Que o agente, investido na qualidade processual de testemunha, preste depoimento falso;

- Perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento.

Quanto ao tipo subjectivo,

- O dolo, como conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, em qualquer das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal. Note-se que não se exige um qualquer elemento subjectivo específico, uma intenção de atentar contra a justiça, de beneficiar ou prejudicar uma das partes, apenas o dolo genérico sob qualquer das suas modalidades, nos termos atrás referidos.

II – Trata-se de um crime de perigo abstracto, pois não é necessário que a declaração falsa influencie, de forma efectiva, o esclarecimento da verdade, nem que, em concreto, tenha criado esse risco. É também um crime de mera actividade pois, para além da conduta típica traduzida na prestação de declaração falsa, não se exige a verificação de qualquer outro resultado. Isto para além de consistir num crime de mão-própria, que só pode ser praticado por determinadas pessoas investidas de certa qualidade (no caso, a de testemunha).

O tipo base é agravado na pena, com a moldura prevista no artigo 360.º, n.º 3 do Código Penal (prisão até cinco anos ou multa até 600 dias), se o agente tiver prestado juramento e tiver sido advertido das consequências da prestação de depoimento falso.

III – A falsidade de declaração a que se reporta o artigo 360.º, n.º 1 do Código Penal corresponde à desconformidade entre a declaração emitida pelo agente e a realidade por ele apreendida, independentemente de a verdade ter sido apurada no processo e qual seja ela, pelo que, perante declarações contraditórias entre si, uma delas exclui necessariamente a outra e sendo inequívoco que o agente declarou com falsidade. É irrelevante que não se apure em que momento o agente faltou à verdade, uma vez que o seu comportamento como testemunha no processo deve ser perspectivado na globalidade e não de uma forma fraccionada, em tantos momentos quantos aqueles em que foi chamado a depor (aferidos, cada um deles, com base na realidade histórica).

Decisão Texto Integral:









Acordam, em conferência, na 4.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório 

1. No Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – Juízo Local Criminal de Cantanhede, o Ministério Público requereu o julgamento em processo comum com intervenção do tribunal singular, do arguido CR, com os demais sinais dos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 360.º, n.os 1 e 3 do Código Penal.

Realizada a audiência de julgamento, o tribunal a quo proferiu sentença em que condenou o arguido pela prática de um crime falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 360.º, n.os 1 e 3 do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa à taxa diária de 5,00 € (cinco euros), num total de 1 000,00 € (mil euros).

2. Na sequência de recurso interposto pelo arguido, esta Relação proferiu acórdão em que declarou nula a sentença recorrida por falta de fundamentação quanto à decisão sobre a matéria de facto e determinou a sua substituição por outra que suprisse a declarada nulidade.

3. Os autos baixaram à 1.ª instância para que o tribunal a quo procedesse ao suprimento da nulidade, o qual proferiu nova sentença, depositada em 3 de Junho 2019, em que, efectuando a pertinente fundamentação, condenou o arguido nos mesmos termos da primeira decisão.

4. Novamente inconformado, recorreu o arguido da sentença, formulando, no termo da motivação, as seguintes conclusões (transcrição):

(…)

Cumpre agora decidir.


*

II – Fundamentação 

1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do CPP que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões formuladas na motivação, as quais delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar[1], sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso[2].

Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência do recorrente com a decisão impugnada, são as seguintes as questões a decidir:

- Erro notório na apreciação da prova.

- Subsunção dos factos ao tipo base do artigo 360.º, n.º 1 do Código Penal.

- A diminuição da pena aplicada.


*

2. A sentença recorrida.

2.1. Na sentença proferida pelo tribunal a quo foram dados como provados os seguintes factos:

“No dia 22 de Fevereiro de 2016, pelas 14h30m, nas instalações do Tribunal Judicial de Cantanhede, em sede de audiência de julgamento no âmbito do processo comum singular n.º (…), no qual se encontrava a ser julgado AJ, o arguido, na qualidade de testemunha de acusação, prestou declarações, depois de previamente ter prestado juramento e ter sido advertido pela Mmo. Juiz que presidiu àquela audiência de julgamento das consequências penais em que incorreria se faltasse à verdade.

No decurso da referida audiência foi perguntado ao arguido pelo Sra. Procuradora-adjunta se também recolhia sucata e vendia ao AJ, tendo respondido que sim.

Após, foi questionado se tinha conhecimento de pessoas que fizessem a mesma coisa, que vendessem materiais ao AJ, tendo o arguido respondido que não.

Durante a inquirição, referiu ainda o arguido, que o AJ lhe perguntava sempre se o material era roubado e dizia que não queria nada roubado, que já tinha problemas que chegassem.

Questionado pela Meritíssima Juiz se conhecia o R e o B, pelo arguido foi dito que sim e que o R morava com AJ e o B trabalhava para ele. À pergunta se eles angariavam material, o arguido respondeu que não.

Perguntado onde arranjava o material, o arguido respondeu que as pessoas lho davam, ou vendiam, ou recolhia no lixo.

Porém, no dia 20 de Novembro e 2013, pelas 14h50m, no decurso da sua inquirição enquanto testemunha efectuada no âmbito do inquérito que deu origem aos supra referidos autos, o arguido declarou, entre o mais, que desde há cerca de 10 anos atrás, AJ efectuava a compra de cobre, inox, alumínio, latão, bronze e demais metais ferrosos a indivíduos sem esclarecer a sua proveniência, a preços inferiores aos praticados à venda lícita dos mesmos. Disse, ainda, que os produtos e bens adquiridos pelo AJ eram provenientes de furtos, nomeadamente artigos como tampas de saneamento, artigos relacionados com cemitérios (crucifixos, cruzes, etc), cabos eléctricos, entre outros. Referiu, também, que o AJ dizia à malta onde ir buscar os artigos e o que trazer, pois ele não ia realizar os furtos. Relativamente à “malta”, esclarece que era o próprio, o R, o B de Portomar e outros indivíduos que estavam a passar necessidades e que ele acolhia em casa e dizia para irem trabalhar para ele.

Ora, o depoimento prestado em sede de audiência de julgamento é falso, o que o ora arguido não ignorava.

O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que prestava ali depoimento como testemunha e que não podia faltar à verdade ao tribunal, ademais sob juramento, o que fez ostensivamente, com o propósito de deturpar o apuramento da verdade e a realização da justiça.

Mais sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

O arguido já foi condenado pela prática do crime de condução sem habilitação legal (Proc … e …) e pela prática do crime de violência doméstica e consumo de estupefacientes (Proc …”.

                                                            

(…)

*

3. Apreciando.

3.1. No primeiro acórdão proferido por esta Relação foi declarada a nulidade da sentença, por falta de fundamentação quanto à decisão sobre a matéria de facto, uma vez que, em relação ao facto assente “o depoimento prestado em sede de audiência de julgamento é falso, o que o ora arguido não ignorava”, a 1.ª instância não havia indicado quais os concretos elementos do acervo documental em que se baseou para concluir no sentido da sua demonstração, para além de que não havia fornecido qualquer elucidação sobre o percurso lógico e racional que efectuou em sede de apreciação e valoração da prova que serviu para formar essa sua convicção.

Ora, na nova sentença, o tribunal a quo supriu a nulidade, tendo indicado a prova em que se baseou para formar a convicção que o levou a considerar assente o mencionado facto e efectuado a sua análise crítica, deixando exposta uma explanação que permite a adequada apreensão do percurso lógico e racional que realizou até chegar à conclusão assim alcançada.

Neste contexto, a 1.ª instância analisou os depoimentos que o arguido, testemunha no processo comum singular n.º (…), prestou na fase de inquérito e na audiência de julgamento, tendo identificado as razões que, à luz das regras da experiência comum e do normal acontecer, a levaram a concluir que o testemunho que aquele produziu no inquérito correspondia à verdade e que, por outro lado, era falso o que veio a proferir em audiência de julgamento. 

Dito isto.

Alega-se no recurso que o tribunal a quo errou na apreciação da prova, pois sem qualquer suporte probatório considerou que o arguido faltou à verdade no depoimento que prestou como testemunha, na audiência de julgamento realizada no processo comum singular n.º (…). Ora, não há qualquer prova nos autos de que o depoimento prestado em audiência de julgamento é falso, ou que não é falso o depoimento prestado pela testemunha no inquérito, até porque do processo n.º (…) não resulta qual foi, de facto, o acontecimento verdadeiro. É dito que o recorrente estava a encobrir a actividade da pessoa, no entanto, o arguido no referido processo n.º (…) foi absolvido. Ou seja, tal como não há prova de que o arguido naquele processo fazia tal actividade, também não há fundamento nem provas que o recorrente estaria a prestar declarações falsas.

Ademais, não ficou provado que o arguido tivesse conhecimento dos factos, que conhecia a verdade dos mesmos e que intencionalmente perverteu essa verdade. Nada no senso comum nos garante que, quem diz a verdade, afirma os factos com todo o pormenor, lógica e coerência. Tal como nada nos garante que, quem presta declarações falsas, o faz de forma ilógica, incoerente, sucinta e desalinhada. Na realidade, pessoas há que, estando a mentir, o fazem de forma pormenorizada, escorreita, lógica e outras que, estando a falar a verdade, o fazem de forma sucinta, desalinhada e inclusivamente ilógica.

Pois bem.


*

3.2. Previamente a qualquer apreciação que se faça da questão assim suscitada, que claramente respeita à decisão que o tribunal a quo proferiu sobre a matéria de facto e à prova em que se apoiou para formar a sua convicção, revela-se essencial proceder à caracterização do tipo de crime imputado ao recorrente, debruçando-nos particularmente sobre o sentido a dar ao seu elemento integrante concernente à falsidade do depoimento.

Vejamos, então.

O crime de falsidade de testemunho tutela o bem jurídico realização da justiça, enquanto função do Estado, e o seu tipo base, descrito no artigo 360.º, n.º 1 do Código Penal, tem como elementos constitutivos:

Quanto ao tipo objectivo,

- Que o agente, investido na qualidade processual de testemunha, preste depoimento falso;

- Perante tribunal ou funcionário competente para receber, como meio de prova, tal depoimento.

Quanto ao tipo subjectivo,

- O dolo, como conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, em qualquer das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal. Note-se que não se exige um qualquer elemento subjectivo específico, uma intenção de atentar contra a justiça, de beneficiar ou prejudicar uma das partes, apenas o dolo genérico sob qualquer das suas modalidades, nos termos já referidos.

Trata-se de um crime de perigo abstracto, pois não é necessário que a declaração falsa influencie, de forma efectiva, o esclarecimento da verdade, nem que, em concreto, tenha criado esse risco. É também um crime de mera actividade pois, para além da conduta típica traduzida na prestação de declaração falsa, não se exige a verificação de qualquer outro resultado. Isto para além de consistir num crime de mão-própria, que só pode ser praticado por determinadas pessoas investidas de certa qualidade (no caso, a de testemunha).

O tipo base é agravado na pena, com a moldura prevista no artigo 360.º, n.º 3 do Código Penal (prisão até cinco anos ou multa até 600 dias), se o agente tiver prestado juramento e tiver sido advertido das consequências da prestação de depoimento falso.

Aqui chegados, importa clarificar, desde já, que entendemos que a falsidade de depoimento a que se reporta o tipo de crime em análise, corresponde à desconformidade entre a declaração emitida pelo agente e a realidade por ele apreendida (a sua ciência), independentemente de a verdade ter sido apurada no processo e qual seja ela, não se exigindo, pois, que a verdade histórica objectiva tenha de ser apurada (e deva, para tanto, constar da acusação).

Isto conforme a posição defendida por esta Relação, no Acórdão de 24-04-2018, proferido no processo n.º 1341/16.0T9CBR.C1 (relator Brízida Martins)[3], cujos fundamentos em que se apoiou merecem a nossa concordância e adesão, mormente os que resultam do Acórdão da Relação de Évora de 03-11-2015, proferido no processo n.º 49/13.3T3STC.E1 (relator António Latas)[4], e que ali foram citados nos seguintes termos:

 “(…) face às divergências verificadas na jurisprudência e doutrina a tal respeito, importa começar por tecer algumas considerações de ordem mais geral sobre o conceito de falsidade de declaração (no que aqui importa), enquanto elemento do tipo de Falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução previsto no art. 360º do C.Penal. Conforme decorre com clareza da motivação de recurso, a questão que constitui o objeto do presente recurso convoca questão de ordem substantiva e processual que tem dividido a jurisprudência e a doutrina e que pode enunciar-se assim, sem prejuízo de ulteriores especificações:

Pratica o crime de falsidade de testemunho p.p. pelo artº 360º, nº 1 do Código Penal, aquele que, na qualidade de testemunha, presta dois depoimentos contraditórios entre si ainda que se não apure em qual delas mentiu?”.

Para um dos entendimentos, a resposta é afirmativa, podendo ver-se nesse sentido, o Ac deste TRE de 22.11.2011, relator Carlos Berguete, e a jurisprudência aí citada no mesmo sentido (e em sentido contrário).

Para o entendimento oposto, “Não basta para a condenação por crime de falsas declarações que se prove que a testemunha, em dois momentos distintos, fez depoimentos contraditórios que mutuamente se excluem, é preciso confrontá-lo com os factos verdadeiros (…): sem aquele confronto, há apenas depoimentos divergentes mas não necessariamente contrários à verdade” - Cfr Ac TRG de 29 de Junho de 2009, proc. com o NUIPC 840/08.2TABRG.G1, relator, Anselmo Lopes e, entre outros, Ac RE de 10.04.2012, Relator Alberto Borges.

(…)

Na doutrina, que se divide essencialmente conforme entenda que o art. 360º do C.Penal acolhe um conceito subjetivo ou objetivo de declaração falsa, destacamos neste último sentido (conceção objetivista), Medina Seiça (cfr Comentário Conimbricense do Código Penal, III, 2001, pp. 473- 8) e Pinto de Albuquerque, que consideram, na formulação deste último, que “A declaração é falsa quando não corresponde à verdade histórica. A verdade não é a mesma coisa do que a sinceridade: o depoente não deixa de faltar à verdade quando está sinceramente convencido de que está a dizer a verdade, mas o que diz não corresponde à realidade das coisas.” (cfr Comentário do Código penal, UCP-2008, p. 848). Deste modo, só no caso de se apurar no processo qual a verdade histórica e, portanto, qual a declaração em que o agente faltou à verdade, se mostra preenchido o tipo legal, com a consequente condenação pela prática do crime de Falsidade de testemunho p. e p. pelo art. 360º do C.Penal.

No sentido de um conceito subjetivo de declaração falsa, vale por todos a posição de Nuno Brandão, Inverdades e consequências: considerações em favor de uma conceção subjectiva da falsidade de testemunho. Anotação aos acórdãos da Relação do Porto de 30.01.2008 e da Relação de Guimarães de 29.06.2009 in RPCC 2010, 3, p. 477 e sgs.

Escusando-nos de a repetir aqui, para além do essencial, limitamo-nos a dar conta da nossa concordância com a clara e bem fundamentada posição deste autor, seguindo de perto aquele mesmo texto.

Em primeiro lugar, convence o entendimento do autor segundo o qual parece não ter sido posta em causa ou abandonada pelo Código Penal de 1982 a conceção de pendor subjetivo que una voce vinha valendo há mais de um século na doutrina e na jurisprudência portuguesa (embora escassa sobre a questão), segundo a qual “será falso o depoimento que se mostre contrário ou que oculte a verdade conhecida pela testemunha” ou, em enunciado de Luis Osório, referindo-se a Manzini, “a falsidade do testemunho consiste na desconformidade entre a declaração e a sciência da testemunha; e não entre aquela declaração e a realidade das coisas”.

Em segundo lugar, constituindo a (correta) realização da justiça o bem jurídico protegido pelo crime de Falsidade de testemunho, não faz sentido a conceção objetiva da falsidade que vê nesta a desconformidade entre a declaração do agente e a realidade objetivamente apurada, porquanto a verdade histórica ou material que a conceção objetiva toma por termo de comparação com a declaração da testemunha, não constitui um dado prévio e autónomo em relação àquela declaração.

A verdade que se procura e se alcança no processo é, antes, uma verdade processualmente construída, com base nos meios de prova carreados para o processo onde muitas vezes avultam decisivamente os depoimentos das testemunhas, pelo que fazer depender a falsidade do depoimento da verdade que vier a apurar-se no processo, nomeadamente com base no depoimento da testemunha e/ou outros meios de prova, significa incorrer num raciocínio circular, com efeitos potencialmente perversos relativamente ao bem jurídico (correta realização da justiça) que se pretende proteger, podendo redundar na impunidade de quem, deturpando a realidade, consegue convencer o tribunal de que os factos se passaram nos termos por si falsamente descritos.

Em terceiro lugar, a doutrina ou conceção objetiva mostra-se incapaz de funcionar nas constelações de casos de in dubio pro reo em processo penal, pois subsistindo dúvida insanável, eventualmente inculcada pelo próprio depoimento falso, não se apura no processo a realidade objetiva, pelo que é assegurada a impunidade de quem, notoriamente, mentiu sobre esses mesmos factos, relatando versão que não correspondia à perceção e memória que tinha desses mesmos factos, ficando impunes os depoimentos que objectivamente comprometeram a realização da justiça.

Em quarto lugar, como enfatiza Nuno Brandão, é essencial a ligação que a conceção subjetiva reconhece entre o dever da testemunha relatar com verdade os factos sobre os quais é inquirida, tal como afirmado nas leis de processo (vg art. 132º nº 1 d) CPP), e a tutela do bem jurídico protegido pelo crime de Falsidade de testemunho, ou seja, a realização da justiça, pois o cumprimento deste dever pela testemunha [declarando o que pensa ser a verdade] constitui o penhor mais seguro de uma boa administração da justiça. Havendo coincidência entre a realidade que a testemunha pessoalmente conheceu [e recorda] e a realidade que relata quando é inquirida, (…) o seu depoimento não é idóneo a afetar o bem jurídico protegido, sendo, antes, um meio adequado para que a justiça se realize efetivamente, ao mesmo tempo que cumpre fielmente o seu dever de depor com verdade, pelo que a sua conduta não deve ser qualificada como típica, nem mesmo no plano do tipo-de-ilícito objetivo, pois corresponde exatamente àquilo que dela se espera.

Independentemente de um depoimento com estas caraterísticas não ser típico mesmo de acordo com a teoria objetiva, por não ser doloso, sempre o universo de condutas impunes aumentaria sem justificação político criminal se apenas fosse punível a declaração desconforme com a verdade apurada no processo. Na verdade, se a testemunha relata uma realidade diferente daquela por si experienciada ao tempo dos factos, o testemunho deve ser qualificado como falso, dado que viola o seu dever de ser fiel à verdade e do mesmo passo pode comprometer o desiderato de uma efetiva realização da justiça no caso concreto. Como enfatiza Nuno Brandão, isto sucede mesmo quando o relato da testemunha [que sabe que o mesmo não corresponde à sua perceção dos factos] vá ao encontro daquilo que o tribunal acabou por dar como provado, como sucederá, num caso em que a testemunha, que não estava presente no local onde se deu um acidente de viação, narra ao tribunal os factos tal como (o tribunal considerou que] efetivamente ocorreram, como se deles tivesse tido conhecimento direto.

Por último, acrescentamos, a conceção objetiva da falsidade típica a que se reporta o crime de Falsidade de testemunho previsto no art. 360º do C. Penal é a que melhor se coaduna com a qualificação daquele tipo legal como crime de perigo abstrato e com a caraterização da verdade processual como verdade a construir no processo. Não constituindo a verdade processual que se protege uma qualquer verdade ontológica alcançável em termos absolutos, a conduta ilícita a reprimir é a de quem ponha em risco a obtenção da verdade processual que se procura obter no processo, por não narrar os factos tal como os percecionou e recorda, independentemente de tal risco (ou o dano respetivo) se ter concretizado no caso, pois, como é próprio dos crimes de perigo abstrato, o perigo releva no momento da motivação do legislador para a incriminação e não para o preenchimento do tipo legal, o qual tem lugar mesmo que a declaração não tenha tido qualquer influência na decisão do processo em que ocorreu”.

Em suma, a falsidade de declaração a que se refere o artigo 360.º, n.º 1 do Código Penal corresponde à desconformidade entre a declaração emitida pelo agente e a realidade por ele apreendida, independentemente de a verdade ter sido apurada no processo e qual seja ela, pelo que, perante declarações contraditórias entre si, uma delas exclui necessariamente a outra, sendo inequívoco que o agente declarou com falsidade. É irrelevante que não se apure em que momento o agente faltou à verdade, uma vez que o seu comportamento como testemunha no processo deve ser perspectivado na globalidade e não de uma forma fraccionada, em tantos momentos quantos aqueles em que foi chamado a depor (aferidos, cada um deles, com base na realidade histórica).

A falta de fidelidade à verdade, traduzida num desvio da declaração em relação à realidade apreendida pelo próprio declarante e descortinada através de uma visão integrada de toda uma conduta processual, é por si só suficiente para consubstanciar a prática de um ilícito-típico objectivo de falsidade de testemunho.

Nesta ordem de ideias, porque em tais casos a prática de um falso depoimento não suscita qualquer dúvida, não há que fazer operar o princípio in dubio pro reo, levando à absolvição do agente, pois tal redundaria na impunidade perante a realização incontroversa de um crime.

O que não significa que, nos casos em que a dúvida sobre qual dos momentos processuais o agente faltou à verdade, assume relevo penal ou processual penal, v.g., para efeitos de prescrição ou da agravação prevista no n.º 3 do artigo 360.º do Código Penal, ela não deva ser valorada em obediência ao princípio in dubio pro reo, considerando na decisão o momento que, em concreto, se revela mais favorável para o arguido.

                                                                *

3.3. Revertendo ao caso dos autos, vistos os fundamentos invocados no recurso, depreende-se que o erro na apreciação da prova nele suscitado se inscreve no âmbito do vício decisório a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP.

Como é sabido, os vícios da sentença previstos naquele normativo devem resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não podendo, pois, estender-se a outros elementos, nomeadamente que resultem do processo, mas que não façam parte da decisão.[5]

Neste contexto, o erro notório na apreciação da prova, enunciado na alínea c), consiste no vício de raciocínio que não passa despercebido ao comum dos observadores, o qual, pela simples leitura da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta que, ao dar um determinado facto por provado, ou não provado, o tribunal violou as regras da experiência, baseou-se em juízo ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, ou então desrespeitou critérios legalmente fixados para a valoração da prova.[6]

Como se assinala no Acórdão do STJ de 20-04-2006, trata-se de um erro que “consiste em o tribunal ter dado como provado ou não provado determinado facto, quando a conclusão deveria manifestamente ter sido a contrária, já por força de uma incongruência lógica, já por ofender princípios ou leis formulados cientificamente, nomeadamente das ciências da natureza e das ciências físicas, ou contrariar princípios gerais da experiência comum das pessoas, já por se ter violado ou postergado um princípio ou regra fundamental em matéria de prova”.[7]

Do que se acaba de referir resulta, pois, que o erro notório consiste num vício em que as provas em que o tribunal se baseou não poderiam manifestamente levar à decisão que tomou sobre a matéria de facto, provas essas que são as que constam da fundamentação da convicção formada, segundo a valoração que o julgador delas fez, já que o erro é de decisão e tem de emergir do seu texto, sem recurso a elementos extrínsecos.

O que significa que a sentença recorrida deve fornecer elementos bastantes que permitam ao tribunal de recurso proceder à sindicância e avaliar se, efectivamente, o raciocínio efectuado e a consequente conclusão a que chegou a 1.ª instância, se revelam conformes aos princípios e regras em matéria de prova, mormente os que emergem da experiência comum, ou se, ao invés, os contrariam de tal forma notória que o resultado alcançado nunca poderia encontrar apoio nas provas consideradas ou que, pelo menos, estas são objectivamente determinantes de um estado de dúvida que, por incidir sobre factos desfavoráveis ao arguido, implica que, em obediência ao princípio in dubio pro reo, tais factos sejam dados como não provados.

                                                      *

3.3.1. No caso em análise, o tribunal a quo fez constar na sentença recorrida que, para formar a sua convicção, se baseou na prova documental dos autos, tendo para tanto indicado a certidão extraída do processo comum singular n.º (…), junta a fls.2 a 10, a transcrição do depoimento do arguido de fls.16 a 27 e o CRC de fls.50 a 52.

A prova considerada, constituída pelos citados elementos, é, pois, unicamente documental, sendo que, como também foi referido na decisão sob recurso, o julgamento dos autos foi realizado na ausência do arguido.

Assim, para a sustentação probatória dos factos relativos ao conteúdo dos dois depoimentos que o arguido prestou como testemunha, no processo n.º (…), o tribunal a quo atendeu ao que objectivamente resulta dos elementos constantes da certidão junta a fls.2 a 10 e da transcrição de fls.16 a 27, cujo teor considerado, ou seja, o que aquele declarou nos concretos segmentos dos depoimentos indicados na sentença recorrida, não foi questionado no recurso.

In casu, o recorrente vem dizer que não há prova de que faltou à verdade, no depoimento que prestou na audiência do julgamento realizada no processo n.º (…), como também não há prova de que não é falso o que prestou durante a fase de inquérito, sendo que do referido processo não resulta qual foi o acontecimento histórico verdadeiro.

Ora, considerando que, conforme acima se expôs, para efeitos da falsidade típica a que se refere o artigo 360.º, n.º 1 do Código Penal, se estivermos perante depoimentos antagónicos sobre o mesmo acontecimento, um deles exclui necessariamente o outro e leva a concluir que o agente depôs com falsidade, sem que para tal se exija o apuramento da verdade histórica objectiva[8], é forçoso concluir que a prova em que se apoiou o tribunal a quo se revela claramente suficiente para suportar a decisão tomada, no sentido da demonstrada prática, pelo arguido, de falso testemunho.

                                                       *

3.3.2. Em relação ao momento em que faltou à verdade a que estava legalmente obrigado (artigo 132.º, n.º 1, alínea d), do CPP) – se no inquérito, se no julgamento – entendeu-se na sentença recorrida que o depoimento que o arguido prestou em audiência de julgamento é falso, o que não ignorava, tendo agido livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que prestava ali depoimento como testemunha e que não podia faltar à verdade ao tribunal, ademais sob juramento, o que fez ostensivamente, com o propósito de deturpar o apuramento da verdade e a realização da justiça, sabendo ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Para a prova do que assim considerou demonstrado, o tribunal a quo baseou-se no teor dos depoimentos em questão, que analisou criticamente, nos termos expostos na fundamentação quanto à decisão sobre a matéria de facto.

Insurge-se, no entanto, o recorrente, dizendo que não há prova de que faltou à verdade no depoimento que prestou na audiência do julgamento, como também não há prova de não é falso o que prestou durante a fase de inquérito, sendo que do referido processo n.º (…) não resulta qual foi o acontecimento histórico verdadeiro.

Ora, mais uma vez, na linha do atrás exposto, como ponto de partida da análise, importa ter em conta que o que releva para a falsidade típica do artigo 360.º, n.º 1 do Código Penal, é a desconformidade entre a declaração emitida pelo agente e a realidade por ele apreendida, independentemente de a verdade ter sido apurada no processo e qual seja ela.

Assim, como se assinala no Acórdão desta Relação de 24-04-2018, atrás indicado, “a verdade aqui em causa está sempre relacionada com aquilo de que a testemunha tinha conhecimento, e não propriamente com o que na realidade tenha sucedido, só assim se coadunando com as funções da testemunha, que é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova, nos termos do art.º 128.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. Certamente ninguém exigirá a qualquer testemunha que tenha o cabal conhecimento da verdade objectiva, tida como correspondendo à realidade histórica, mas sim e apenas que deponha, só com verdade e toda a verdade, relativamente àquela de que tenha conhecimento. De modo diverso, equivaleria a que a sua declaração se reconduzisse àquilo que cabe ao tribunal, e não à testemunha, ou seja, à descoberta da verdade material (art.º 340.º do Código de Processo Penal), pelo que alguma reserva tem de merecer a perspectiva de que a falsidade unicamente decorra de contradição entre o declarado e essa realidade histórica. Tudo dependerá da análise do caso em apreciação e do que, nesse aspecto, se torne, ou não, imprescindível para aquilatar da existência de mentira”.

Vistas assim as coisas, torna-se claro que, no caso sub judice, a desconformidade com a realidade resulta de o recorrente não poder ter tido o conhecimento antagónico revelado pelos dois depoimentos que prestou no processo n.º (…), preterindo, por isso, o dever de verdade que lhe era legalmente imposto, independentemente de se saber qual a realidade histórica objectiva referente àquele processo criminal.

Nessa medida, nada obsta a que o apuramento a que chegou o tribunal a quo, de que a falsidade/desconformidade com a realidade se deu aquando do testemunho do julgamento, tenha sido alcançado através da prova que foi considerada na sentença recorrida, consubstanciada nos depoimentos que o recorrente prestou no processo em questão, cujo conteúdo informativo e ciência relevada pelo declarante, o julgador avaliou à luz das regras da experiência comum e do normal acontecer, nos termos expostos na decisão.

Sendo tal prova apta a suportar o apuramento referido, então o que se pode aqui dizer é que as razões da divergência que o recorrente apresentou em relação ao que concluiu a 1.ª instância se prendem fundamentalmente com a diferente valoração da prova produzida nos autos, dada a conhecer na sentença recorrida, sendo que aquele pretende substituir a sua própria convicção à que foi alcançada pelo tribunal que julgou a causa.

Sucede que nesta matéria vigora o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127.º do CPP, nos termos do qual, salvo existência de prova vinculada ou tarifada (como é o caso da pericial, face ao valor que lhe é reconhecido no artigo 163.º, n.º 1 do CPP), o tribunal decide quanto ao mais de acordo com as regras da experiência e a livre convicção.

Livre apreciação que, embora não sujeita a regras legais que pré-determinem o valor das provas, tem se traduzir “em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão”.[9]   

Ora, da análise do texto da decisão recorrida, em conjugação com as regras da experiência comum, não se detecta qualquer erro ostensivo que evidencie o desacerto da opção tomada quanto à matéria que o julgador considerou provada, relativamente ao elemento típico da falsidade do depoimento e ao momento em que essa falsidade ocorreu, com relevo para a agravação prevista no n.º 3 do artigo 360.º

Com efeito, na fundamentação quanto à decisão sobre a matéria de facto, transcrita em 2.3., o tribunal a quo valorou os testemunhos do recorrente no citado processo n.º (…), no qual se julgava a prática de um crime de receptação, sendo que, na sequência do depoimento que prestou em audiência de julgamento, o ali arguido (AJ) foi absolvido.

Discorrendo sobre essa valoração, o julgador assinalou que, à luz das regras de experiência comum, não pode deixar de se concluir que as declarações prestadas em inquérito correspondiam à verdade, atenta a forma escorreita, lógica, coerente e pormenorizada com que aí o recorrente revelou os factos, sendo que demonstrou um conhecimento muito concreto e próximo de que o ali arguido (AJ) adquiria produtos, que bem sabia serem furtados, explicitando a forma como este exercia a sua actividade. Também nessas declarações revelou ter medo do arguido AJ, o que poderá explicar o teor do seu depoimento em audiência, em que, inexplicavelmente, teve uma amnésia conveniente, o que redundou na absolvição do arguido AJ.

Referiu, por outro lado, a 1.ª instância que, na audiência do processo n.º (…), o recorrente alegou que tinha problemas de saúde (não se tendo produzido qualquer prova desse facto) e que, por tal motivo, não se recordava dos factos relatados com tanto pormenor no inquérito (não logrando explicar a contradição com as declarações aí prestadas), o que não pode deixar de se considerar inverosímil, até porque a sua amnésia foi cirúrgica, só não se recordando daquilo que verdadeiramente interessava e que poderia redundar numa condenação do ali arguido (AJ).

E foi pelo acima exposto que o tribunal a quo entendeu que não se pode deixar de concluir, por apelo às regras da experiência comum e do normal acontecer, que o recorrente, bem sabendo que assim estava a encobrir a actividade da pessoa que se encontrava a ser julgada no processo n.º (…), optou por alegar uma suposta amnésia, para assim se furtar a descrever todos os factos que revelou conhecer no inquérito, alterando, assim, de forma consciente, ciente da sua falsidade e deturpando o que aí havia descrito, ao afirmar inclusivamente que o ali arguido (AJ) dizia que não queria nada roubado, que é precisamente o oposto do que havia relatado (com tanto pormenor) no inquérito.

Sublinhando ainda o julgador que não se descortina qualquer motivo para o recorrente ter mentido no inquérito, sendo, outrossim, plausível que o tivesse feito em julgamento, pelo que, inexistindo quaisquer motivos para duvidar razoavelmente da concreta intencionalidade que lhe é imputada na acusação, se conclui que é forçoso considerar provados todos os factos nela elencados.

Pois bem.

                                                                      *

No caso vertente, verifica-se que a fundamentação aduzida pelo tribunal a quo se mostra consentânea com a prova que indicou para suportar a conclusão a que chegou quanto à demonstração da matéria assente, revelando-se o juízo realizado conforme às regras da experiência, e ficando, pois, afastada qualquer hipótese de, face ao texto da sentença recorrida, mormente a parte em que motivou a decisão tomada em sede factual, resultar que o julgador errou na ponderação probatória que efectuou quanto à indicada matéria, considerando-a assente.

Bem pelo contrário, a prova indicada e examinada na decisão recorrida suporta, de forma sólida e sem suscitar dúvidas que configurem qualquer situação de erro notório, todos os factos que o tribunal a quo deu como assentes, mormente os que respeitam ao elemento típico questionado no recurso.

A valoração feita dos dois depoimentos em confronto, em que fundadamente relacionou o modo como o recorrente testemunhou no inquérito (de modo escorreito, lógico, coerente e pormenorizado) com o conhecimento muito concreto e próximo dos factos então relatados, para além de ter identificado, de forma racionalmente sustentada, o motivo para o testemunho diverso (e de inverdades) que aquele veio a apresentar em audiência de julgamento [no inquérito revelou ter medo do arguido AJ, o que poderá explicar o teor do seu depoimento em audiência, em que, sem motivo que o justificasse, teve uma “amnésia conveniente”, o que redundou na absolvição daquele arguido]. Perante tal, a valoração apresenta-se como racionalmente plausível, sendo que não basta para pôr em crise o acerto da análise probatória assim efectuada, assente na ponderação de elementos do caso concreto e num adequado juízo de compatibilidade com a normalidade do acontecer, vir invocar-se em recurso que “nada no senso comum nos garante que, quem diz a verdade, afirma os factos com todo o pormenor, lógica e coerência, tal como nada nos garante que, quem presta declarações falsas, o faz de forma ilógica, incoerente, sucinta e desalinhada, pois que há pessoas que, estando a mentir, o fazem de forma pormenorizada, escorreita, lógica e outras que, estando a falar a verdade, o fazem de forma sucinta, desalinhada e inclusivamente ilógica”.

Da valoração que fez dos elementos probatórios considerados na sentença recorrida, tal como deixou exposto na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, resulta que o juízo que o tribunal a quo formulou sobre a prova produzida, assenta em critérios lógicos e racionais e no uso de regras da experiência, encontrando-se o exame crítico concretamente efectuado dentro de critérios de normalidade e revelando justificada razoabilidade, não havendo motivo para questionar a sua validade e legitimidade, ao valorar como valorou a referida prova que o levou a concluir pela demonstração da factualidade assente relativa aos aspectos questionados no recurso.

Temos, pois, que o tribunal a quo sustentou a convicção formada a partir da prova perante si produzida, que valorou segundo princípio da livre apreciação previsto no artigo 127.º do CPP, apresentando uma explanação racionalmente congruente e em consonância com as regras da experiência, seguindo um percurso decisório que se apresenta conforme com os princípios e regras fundamentais em matéria de prova, pelo que, feita a sindicância a que refere o artigo 410.º, n.º 2 do CPP, esta Relação conclui que a sentença recorrida não padece do vício de erro notório na apreciação da prova previsto na alínea c) deste normativo, inexistindo razões para, na presente sede recursória, se proceder a qualquer tipo de censura quanto ao desfecho alcançado pelo julgador, no sentido de considerar assente a referida factualidade posta em causa.


*

(…)

*

III – Decisão

Pelo exposto, acordam as juízas da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmam a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (artigos 513.º, n.os 1 e 3 do CPP e 8.º, n.º 9 do RCP e Tabela III anexa).

Coimbra, 22 de Janeiro de 2020

(O presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pela primeira signatária e assinado electronicamente por ambas as signatárias – artigo 94.º, n.os 2 e 3 do CPP)

                                      

Helena Bolieiro (relatora)

                                          

Rosa Pinto (adjunta)


[1] Na doutrina, cf. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113. Na jurisprudência, cf., entre muitos, os Acórdãos do STJ de 25-06-1998, in BMJ 478, pág.242; de 03-02-1999, in BMJ 484, pág.271; de 28-04-1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193.
[2] Cf. Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 7/95, de 19-10-1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28-12-1995.
  
  
[3]  Aresto disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>. Na doutrina, cf. Nuno Brandão, “Inverdades e consequências: considerações em favor de uma concepção subjectiva da falsidade de testemunho. Anotação aos acórdãos da Relação do Porto de 30.01.2008 e da Relação de Guimarães de 29.06.2009”, in RPCC 2010, 3, págs.477 e seguintes, e Luís Filipe Pires de Sousa, Prova Testemunhal, Almedina, 2013, pág.403.
[4]  Aresto disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>.Cf. ainda os Acórdãos da Relação de Évora de 20-11-2011 (proferido no processo n.º 40/10.1TAFAL.E1, relator Carlos Berguete Coelho) e de 12-09-2017 (proferido no processo n.º 54/14.2TAVRS.E1, relatora Ana Barata Brito), ambos disponíveis no sítio da Internet atrás indicado.

[5] Cf. Germano Marques da Silva, op. cit., pág.324, e Simas Santos e Leal-Henriques, op. cit., págs.84-85.
[6] Cf. Simas Santos e Leal-Henriques, op. cit., pág.80.
[7]  Aresto proferido no processo n.º 06P363 e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>.
[8]  Para além da jurisprudência atrás indicada, cf. ainda, entre outros, os Acórdãos da Relação de Coimbra de 29-09-2011 (proferido no processo n.º 157/10.2TAMMV.C1, relator Paulo Guerra), de 30-10-201 (proferido no processo n.º 802/11.2TAPBL.C1, relator Fernando Chaves), e de 10-07-2018 (proferido no processo n.º 244/17.6T9CTB.C1, relator Inácio Monteiro), o Acórdão da Relação do Guimarães de 02-05-2016 (proferido no processo n.º 787/14.3T9GMR.G1, relator João Lee) e o Acórdão da Relação do Porto de 11-06-2019 (proferido no processo n.º 1966/16.4T9GMR.G1, relator Pedro Cunha Lopes), todos eles disponíveis no sítio da Internet atrás indicado.

[9] Cf. Acórdão n.º 1165/96 do Tribunal Constitucional de 19-11-1996, disponível na Internet em <http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/>.