Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
630/11.5TBPCV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: PATRIMÓNIO COMUM DO CASAL
BENFEITORIA
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Data do Acordão: 05/15/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - PENACOVA - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 204, 216, 473, 474 CC
Sumário:
1 – É possível licitar uma verba relativa a um crédito do património comum do casal sobre um dos cônjuges (crédito esse que pode valer mais ou menos em relação ao valor fixado na relação de bens ou ser mais ou menos elevado o risco da respetiva cobrança), como ocorre com o crédito emergente de benfeitorias feitas pelo casal em prédio propriedade de um deles.
2 – Nos termos do n.º 2 do artigo 204.º do Código Civil, um prédio rústico é constituído por uma parte delimitada do solo e pelas construções nele existentes que não tenham autonomia económica, e um prédio urbano por qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro, pelo que, se é anunciada judicialmente a venda de um prédio, seja ele rústico ou urbano, vende-se o conjunto formado pelas edificações, quando existem, e pelo solo, não sendo, por isso, juridicamente possível alienar o direito de propriedade sobre uma casa de habitação sem transmitir ao mesmo tempo o terreno onde a mesma assenta.
3 - Não ocorre enriquecimento sem causa – artigo 474.º do Código Civil – por parte do comprador de um prédio que o comprou em venda judicial, depois do mesmo ter sido indevidamente posto à venda, porquanto devia ter sido colocado à venda, no lugar dele, apenas o direito de crédito do casal relativamente à benfeitoria feita no prédio propriedade de um dos cônjuges.
4 - Não há enriquecimento sem causa – artigo 474.º do Código Civil – por parte do outro cônjuge se este licitou o direito de crédito por valor superior ao atribuído no inventário à benfeitoria feita pelo casal no prédio propriedade do outro cônjuge.
Decisão Texto Integral:
I. Relatório
a) O diferendo que opõe a Autora recorrente e os Réus teve origem na venda do prédio urbano inscrito na matriz predial rústica da freguesia de L..., concelho de Penacova, sob o artigo (...), mais tarde inscrito sob o artigo (…) urbano, e registado na Conservatória do Registo Predial de P... sob a descrição (…)/freguesia de L....
Esta venda foi realizada no âmbito do inventário para separação de meações subsequente ao divórcio entre a Autora e o réu A (…).
Sucede que durante o casamento entre a autora e o réu A (…), os pais da Autora doaram a esta, e só a ela, o mencionado prédio rústico e nesse prédio rústico foi construída por ambos uma casa de habitação.
No inventário subsequente ao divórcio esta casa foi descrita na relação de bens como benfeitoria feita pelo casal no prédio rústico doado à Autora, prédio rústico este que não foi levado à relação de bens.
Por conseguinte, ficou a constar da relação de bens esta verba:
«Direito de crédito – do património comum, respeitante à benfeitoria – prédio urbano composto por casa de habitação com o valor patrimonial de 19.589,72 Euros, construído a expensas de ambos os cônjuges».
Sucede que no inventário este «direito de crédito» foi licitado pelo réu A(…) por 80.000,00 Euros e foi-lhe adjudicado por tal quantia.
Como o réu A (…) não pagou esta quantia, a ora Autora requereu a venda e foi ordenada a venda do imóvel que veio a ser adquirido em tribunal pelos réus M (…) e esposa.
Por entender que o objeto da aludida venda era apenas a parte edificada, mas não o terreno, que lhe pertencia exclusivamente, a Autora instaurou a presente ação contra os Réus com fundamento em enriquecimento sem causa destes, porquanto ao terem adquirido o edifício, único bem em venda, adquiriram também, pelo mesmo preço, o terreno onde se encontra implantada a edificação, o qual não era objeto da venda.
É este o fundamento para o pedido formulado, isto é, a condenação dos Réus a pagarem-lhe, solidariamente, a quantia de EUR 30.000,00, acrescida de juros legais após a citação, correspondente ao valor do terreno.
Os Réus M(…)e esposa contestaram argumentando, em síntese, que não existiu enriquecimento da sua parte, porquanto se limitaram a comprar o prédio que havia sido colocado em venda pelo tribunal, composto por terreno e construção, devendo improceder, por isso, a ação.
O réu A (…) pronunciou-se no mesmo sentido, referindo que foi a Autora quem requereu, em 31 de janeiro de 2011, no âmbito do processo de inventário, a venda do prédio urbano, descrevendo-o sem qualquer referência a direito de crédito ou benfeitoria, identificando-o como um artigo matricial de natureza urbana.
Deduziu ainda reconvenção, mas esta não foi admitida.
No final, a ação foi julgada improcedente, por se ter considerado que não existiu enriquecimento sem causa por parte dos Réus.
b) É desta decisão que recorre a Autora tendo formulado as seguintes conclusões:
(…)
c) Os recorridos não contra-alegaram.
II. Objeto do recurso
Tendo em consideração que o âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o presente recurso coloca a seguinte questão:
Verificar se a Autora tem direito a ser indemnizada pelos Réus, e respetivo montante, com fundamento no facto de, à data da venda do imóvel inscrito na matriz predial urbana da freguesia de L… sob o artigo (…), ser proprietária do respetivo terreno.
III. Fundamentação
a) Matéria de facto - Factos provados
1) Por escritura pública lavrada no dia 20/07/1989, a fls. 17v., do livro (…) do Cartório de P..., os pais da Autora, F (…) e M (…) doaram-lhe, já no estado de casada com o réu A (…), no regime da comunhão de adquiridos, o seguinte bem imóvel:
- terra de cultura, com a área de 715m2, no sítio de F..., freguesia de L..., a confrontar do norte com K..., do nascente com estrada, do sul com J..., do poente com S..., inscrito na matriz predial rústica da freguesia de L..., concelho de P..., sob o artigo (...).
2) Tal prédio encontrava-se registado na Conservatória do Registo Predial de P... sob a descrição (...)/freguesia de L....
3) Durante o período em que estiveram casados a autora e o réu A (…) construíram a sua casa de habitação comum, no imóvel identificado em 1), composta por rés-do-chão, 1º andar e logradouro, rés-do-chão com sala, casa de banho, cozinha, garagem e arrumos e o 1º andar com 3 quartos, 2 salas, cozinha e casa de banho, a confrontar do norte e sul com K..., nascente com estrada e poente com S..., sita na V…, Rua do Vale Frio, n.º 4, L..., que foi inscrito na matriz predial urbana da freguesia de L..., concelho de P... sob o artigo (...).
4) Após construção da moradia, o réu A (…) apresentou em 17/02/1995, junto do Serviço de Finanças a declaração modelo 129, tendo aquele serviço declarado que o referido artigo urbano proveio do artigo rústico nº (...) da mesma freguesia.
5) A autora e o réu A (…) divorciaram-se em 29/01/2008, por sentença proferida no âmbito do Processo n.º 804/06.0TMCBR do 2.º Juízo do Tribunal de Família e Menores de Coimbra.
6) Como a Autora e o réu não se entenderam quanto à partilha dos bens comuns, a Autora requereu, por apenso àquele processo, o Inventário para a separação de meações.
7) Que correu termos no Tribunal de Família e Menores de Coimbra sob o n.º 804/06.0TMCBR-D do 2.º Juízo, com sentença homologatória de partilha transitada em julgado.
8) Depois de nomeado cabeça-de-casal nos referidos autos de inventário veio, em 20/05/2008 e nessa qualidade, A (…) apresentar a relação de bens, na qual relacionou como único bem o seguinte: prédio urbano, sito em V..., composto por casa de habitação, de r/ch, 1.º andar e logradouro, a confrontar de norte e sul com K..., de poente com S..., nascente com estrada, inscrito na matriz predial de P..., com o valor tributável de EUR 19.589,72.
9) Por requerimento apresentado em 09/06/2008 veio a interessada M (…) acusar a falta de relacionação de alguns bens e, ainda, reclamar da relação de bens apresentada, pugnando nesta parte pela relacionação, em vez do bem imóvel que consta da relação de bens, da relacionação de um direito de crédito do património comum no valor de EUR 19.589,72, alegando para tanto que o imóvel urbano que constitui a habitação do casal inscrito na matriz sob o artigo (...) foi edificado no artigo rústico n.º (...) da freguesia de L..., bem doado em 25/07/1989 somente à interessada M (…), já no estado de casada, doação essa feita somente à própria, juntando com tal requerimento, entre outros documentos, a escritura de doação junta a fls. 23 a 26.
10) Na sequência de tal reclamação veio o cabeça-de-casal, em aditamento à relação de bens, relacionar, para além de outros bens, o direito de crédito do património comum, respeitante à benfeitoria – prédio urbano – composto por casa de habitação, com valor patrimonial de EUR19.589,72 – construído a expensas de ambos os cônjuges, relação de bens que passou a constar de fls. 32 do processo de inventário.
11) Na sequência da notificação que para o efeito lhe foi efetuada, veio o cabeça-de-casal informar que excluía o bem imóvel (prédio urbano), inicialmente relacionado, passando a constar apenas o direito de crédito, respeitante à benfeitoria.
12) Por despacho proferido em 16/09/2008, o juiz titular do processo consignou que a relação de bens correta era a que constava de fls. 32.
13) M (…) veio requerer a avaliação das benfeitorias constantes da relação de bens (direito de crédito), excluindo-se o valor do respetivo terreno, requerimento esse que veio a ser deferido, determinando-se a avaliação do mesmo nos termos do artigo 1369.º do Cód. Processo Civil, a levar a cabo por um só perito a nomear pelo tribunal, suspendendo-se para o efeito a conferência de interessados.
14) Feita tal avaliação veio a ser indicado como valor das referidas benfeitorias o de EUR 80.000,00 (oitenta mil euros).
15) Designada data para a conferência de interessados, que veio a ter lugar em 04/03/2010, e na falta de acordo dos mencionados cabeça-de-casal e interessada em relação à adjudicação de parte dos bens relacionados, foi licitada pelo cabeça-de-casal a verba nº 30 da relação de bens, correspondente ao direito de crédito do património comum, respeitante à benfeitoria – prédio urbano – composto por casa de habitação, com valor patrimonial de EUR 19.589,72 – construído a expensas de ambos os cônjuges, pelo valor de EUR 92.000,00 (noventa e dois mil euros).
16) Proferido despacho determinativo da partilha e elaborado mapa informativo da partilha, foi cumprido o disposto no artigo 1377.º do Cód. Processo Civil, na sequência do qual veio a interessada M (…) requerer o pagamento das tornas que, de acordo com tal mapa, lhe eram devidas.
17) Notificado o cabeça-de-casal A (…) para depositar as tornas por ele devidas à interessada M (…), aquele não procedeu ao respetivo depósito.
18) Em face do não depósito de tais tornas, veio a interessada M (…) requerer a venda do imóvel adjudicado ao cabeça-de-casal com vista ao pagamento das tornas que lhe eram devidas.
19) Organizado, rubricado e analisado o mapa de partilha, foi o mesmo posto em reclamação, após o que veio a ser homologada a partilha constante do mesmo e adjudicadas a cada um dos mencionados cabeça de casal e interessada as verbas que lhes couberam na conferência de interessados.
20) Transitada em julgado a referida sentença homologatória da partilha, veio a interessada M (…), por requerimento apresentado em 31/01/2011 reiterar o pedido de venda do bem adjudicado ao cabeça-de-casal para pagamento das tornas que lhe eram devidas, bem esse que em tal requerimento identificou da seguinte forma: prédio urbano, sito em V..., composto por casa de habitação, de R/C, 1.º andar e logradouro, a confrontar de norte e sul com K..., do poente com S... e do nascente com estrada, inscrito na matriz predial sob o n.º (...), da freguesia de L....
21) Por requerimento apresentado em 01/03/2011 veio novamente a interessada M (…) reiterar o pedido aludido em 20).
22) Por despacho proferido em 14/03/2011 foi determinada a venda do imóvel em questão mediante propostas em carta fechada, para abertura das quais foi designado o dia 10/05/2012, pelas 10:00 horas, fixando-se como valor base o de EUR 92.000,00 e o valor a anunciar para venda o de 70% desse valor base.
23) Anunciada a venda mediante editais dos quais constava identificado o imóvel como: prédio urbano, sito em V..., composto por casa de habitação de R/C, 1.º andar e logradouro, a confrontar de norte e sul com K..., do poente com S... e do nascente com estrada, inscrito na matriz predial sob o n.º (...), da freguesia de L..., concelho de P..., veio tal venda a ter lugar na data designada.
24) Aquando da abertura de propostas em carta fechada, na qual estiveram presentes a interessada M (…) acompanhada pelo seu advogado constituído nos referidos autos, foi apresentada por aquela interessada uma proposta para compra do referido bem, a qual não foi admitida por despacho judicial que a considerou extemporânea, vindo tal bem a ser adjudicado aos proponentes M (…) e mulher S (…) após apreciação e aceitação da proposta por estes apresentada.
25) Após o que, foi no mesmo ato, ordenada a notificação dos proponentes para, no prazo de 15 dias, depositarem numa instituição de crédito a parte do preço devido em falta à ordem da secretaria, e, na sequência de tal notificação veio a ser pedida a palavra pelo advogado da interessada M (…), o qual, no uso da mesma, ditou para a ata o seguinte:
«como melhor consta dos autos, o bem partilhado consiste no bem descrito nos autos, mas como melhor consta do processo de Inventário esse bem é uma benfeitoria ou uma acessão industrial imobiliária, conforme se entenda. Com efeito, o bem em causa – casa de habitação – foi um bem comum dos interessados M (…) e A (…) contudo, a mesma foi edificada sobre um imóvel rústico exclusivamente doado à interessada M (…) pelos seus pais através de escritura pública lavrada em 20/07/1989, a fls. (…) do Livro (…) do Cartório Notarial de P..., a que corresponde o artigo matricial rústico (...)º, descrito na Conservatória do Registo Predial de P... sob o nº (...) da freguesia do L..., a interessada M (…), irá propor acção judicial para ser ressarcida do valor do terreno, cujo pedido será a quantia de 30.000 euros».
26) Comprovado nos autos o pagamento feito pelos proponentes da restante parte do preço em dívida, foi proferido despacho, datado de 30/05/2011, a adjudicar o prédio urbano sito em V..., L..., P..., inscrito na matriz predial urbana da dita freguesia sob o n.º (...) M (…) e S (…) e ainda ordenada a passagem do título de transmissão, o qual veio a ser emitido com data de 21/06/2011.
27) Por requerimento apresentado pela interessada M (…) em 30/06/2011, veio a mesma arguir a nulidade de todo o processado após o despacho que determinou a venda incluindo este, alegando que o prédio identificado no título de transmissão não podia ter sido adjudicado ao interessado A (…) nem posto à venda no seguimento do não pagamento das tornas devidas por este, porque se trata de uma benfeitoria construída sobre um bem próprio da interessada, benfeitoria essa que por isso estaria excluída de licitação por se tratar de uma dívida da interessada M (…) ao património comum, pelo que a sua adjudicação ao cabeça de casal por licitação já enfermou de erro que arguirá em sede própria por apenso ao inventário, enfermando, por isso, o título de transmissão de erro no seu conteúdo por não ter sido transmitido o prédio urbano nele descrito, mas sim uma benfeitoria que indevidamente foi adjudicada como bem ao cabeça-de-casal quando teria a mesma de ser considerada como dívida ativa – dívida passiva da interessada.
28) Por requerimento interposto em 04/07/2011 veio a mesma interessada interpor recurso do despacho de adjudicação aludido em 26).
29) Por despacho proferido em 07/10/2011 foi indeferida a arguição da nulidade aludida em 27).
30) Admitido o recurso aludido em 28), veio o mesmo a ser decidido por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 20/12/2011, no sentido da respetiva improcedência.
31) M (…) instaurou ação de emenda da partilha, em 16/12/2011, por apenso aos autos de inventário n.º 804/06.0TMCBR, demandando nesta ação o réu A (…), conjuntamente com os demais réus, M (…) e S (…) pedindo se emende a partilha, tratando o prédio identificado como casa de habitação, composta por rés-do-chão, 1º andar e logradouro, sita na V..., Rua (…), L..., inscrito na matriz predial urbana desta freguesia, concelho de P..., sob o artigo (...), como uma benfeitoria – dívida ativa do casal, passiva da Autora – adjudicando-se a mesma a esta, que pagará tornas ao 1.º Réu, nos termos que se vierem a apurar e se condenem os 2º e 3.º Réus a reconhecerem a presente emenda à partilha e, consequentemente, declarado ineficaz o ato de venda realizado no processo de que este é apenso.
32) Citados regularmente contestaram todos os RR., pugnando pela procedência das exceções invocadas ou pela improcedência da ação, pedindo ainda a condenação da Autora como litigante de má fé.
33) No despacho saneador elaborado no mencionado processo, veio a ser decidida a procedência da exceção perentória de caducidade e, em consequência, a absolvição dos RR. do pedido, julgando-se, ainda, improcedente o pedido de condenação da autora como litigante de má-fé.
34) Inconformada com o decidido, recorreu a ali Autora, recurso esse que foi admitido, vindo a ser decidido por Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 29/01/2013, no sentido da respetiva improcedência.
35) O prédio identificado em 1) tem a área matricial de 715 m2, contudo o mesmo tem, na realidade e no terreno a área de 610m2.
36) Situado em zona de construção urbanística da aldeia da V....
37) Servido por estrada, luz elétrica e saneamento básico.
38) Valendo não menos de EUR 11.950,00 (onze mil novecentos e cinquenta euros) à data da incorporação das obras no ano de 1995.
39) Os réus M (..:) e M (…), após a aquisição mencionada em 26), fizeram registar a aquisição sobre o registo predial e na descrição do imóvel identificado em 1).
40) O prédio urbano descrito sob o artigo (...) da freguesia de L..., ocupou por inteiro o primitivo prédio rústico.
41) Anteriormente existia um terreno de cultura, que deu lugar a uma habitação, garagem, arrumos e logradouro do prédio urbano, com a afetação para habitação do então casal.
Factos não provados
1) Que o artigo matricial descrito em 3) nunca foi averbado, em termos registrais ou matriciais, ao prédio descrito em 1), até à aquisição pelos réus M (…) e S (…)
2) Que o prédio identificado em 1) tem na realidade e no terreno a área de 1000m2.
3) Que valendo não menos de EUR 30,00/m2, num total de EUR 30.000,00, à data da incorporação das obras no ano de 1990.
4) Que o valor de mercado de terreno para construção não ultrapassará os EUR 7,50 o metro quadrado.
b) Apreciação da questão objeto do recurso.
Vejamos então se a Autora tem direito a ser indemnizada pelos Réus e, em caso afirmativo, qual o montante, com fundamento no facto de à data da venda do imóvel inscrito na matriz predial urbana da freguesia de L... sob o artigo (...), a Autora ser proprietária do respetivo terreno.
1 - Como já resulta do ponto «27» das alegações da Autora, «…o prédio identificado no título de transmissão não podia ter sido adjudicado ao interessado A (…) nem posto à venda no seguimento do não pagamento das tornas devidas por este, porque se trata de uma benfeitoria construída sobre um bem próprio da interessada, benfeitoria essa que por isso estaria excluída de licitação por se tratar de uma dívida da interessada M (…) ao património comum…».
Efetivamente, uma casa de habitação construída por um casal em terreno que pertence apenas a um dos cônjuges ou é considerada benfeitoria ou então é qualificada como acessão.
Trata-se de uma distinção de elevado interesse prático.
Se se concluir que é benfeitoria feita no terreno, a casa pertence ao dono do terreno, havendo apenas lugar a indemnização a favor do construtor da casa, mas se se considerar que estamos face a uma acessão, são os construtores da casa que adquirem o terreno.
Na doutrina, designadamente a preconizada por Pires de Lima/Antunes Varela, «A benfeitoria e a acessão, embora objectivamente se apresentem com caracteres idênticos, pois há sempre um benefício material para a coisa, constituem realidades jurídicas distintas. A benfeitoria consiste num melhoramento feito por quem está ligado à coisa em consequência de uma relação ou vínculo jurídico, ao passo que a acessão é um fenómeno que vem do exterior, de um estranho, de uma pessoa que não tem contacto jurídico com ela» ( Código Civil Anotado, Vol. III, pág. 163, 2.ª edição.
No mesmo sentido o Prof. Vaz Serra, «…A benfeitoria e a acessão, embora efectivamente se apresentem com caracteres idênticos pois há sempre um benefício natural para a coisa, constituem realidades jurídicas distintas. A benfeitoria consiste num melhoramento feito por quem está ligado à coisa em consequência de uma relação ou vínculo, ao passo que a acessão é um fenómeno que vem do exterior, de um estranho, de uma pessoa que não tem contacto jurídico com ela. São benfeitorias os melhoramentos feitos na coisa pelo proprietário…são acessões os melhoramentos feitos por qualquer terceiro, não relacionado juridicamente com a coisa podendo esse terceiro ser um simples detentor» - Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 108, pág. 266.).
Por conseguinte, no caso dos autos, existindo uma relação jurídica prévia entre um dos construtores da casa, isto é, o cônjuge mulher, e o terreno, a construção da casa constitui uma benfeitoria e pertence à dona do terreno (cônjuge mulher), não ao casal ( Constitui benfeitoria, e não acessão imobiliária, a construção de um prédio urbano em terreno próprio do outro cônjuge, na medida em que é do conhecimento do cônjuge não proprietário que o terreno era alheio, não podendo, assim, dizer-se preenchido o requisito da sua boa fé - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-01-1993, em http://www.gdsi.pt, processo n.º 082914.
Constitui benfeitoria e não acessão, a construção, por ambos os cônjuges, de uma casa no terreno de um deles – Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24-11-98, C.J., ano XXIII-V-21.
I- No caso de prédio rústico, propriedade de um dos cônjuges, no qual foi implantado um imóvel já na pendência do casamento, que foi contraído sob o regime de comunhão de adquiridos, e cujo custo foi suportado por mútuo com garantia real (hipoteca) contraído por ambos os cônjuges, para efeitos de relação de bens não há que entrar em linha de conta com o regime da acessão industrial imobiliária porque a construção não foi implantada em terreno alheio (artigo 1340.º/1 do Código Civil). II- As obras realizadas (implantação do imóvel) devem ser qualificadas de benfeitorias (artigos 204.º e 216.º do Código Civil). III- À relação de bens devem ser levadas as obras realizadas no prédio rústico, como um direito de crédito, mas descritas na sua materialidade e não apenas pelo seu valor que, não sendo nessa fase determinável, deverá figurar como crédito ilíquido (artigo 1346.º/3, alínea a) do Código de Processo Civil). IV-E o valor será considerado na sua totalidade, atenta a sua natureza de bem comum do casal, não por metade - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12-07-2007, em http://www.gdsi.pt, processo n.º 5851/2007-8.
São benfeitorias os melhoramentos feitos na coisa por proprietário, comproprietário, possuidor, locatário, comodatário ou usufrutuário. São acessões os melhoramentos feitos por qualquer terceiro, não relacionado juridicamente com a coisa, podendo esse terceiro ser um simples detentor ocasional – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Maio de 1995, C.J. – S.T.J. – Ano III-II-70.).
No caso dos autos, a benfeitoria foi descrita e bem ( Como dispunha, à data, o n.º 5 do artigo 1345.º do CPC, ao determinar que «As benfeitorias pertencentes à herança são descritas em espécie, quando possam separar-se do prédio em que foram realizadas, ou como simples crédito, no caso contrário;…». Ver Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Vol. I, 4.ª edição, pág. 477.) como um direito de crédito do património comum do casal sobre o cônjuge mulher (a Autora) e foi fixado o montante deste crédito, por avaliação, em EUR 80.000,00.
Ou seja, a benfeitoria foi avaliada em EUR 80.000,00, sendo esta a quantia que o cônjuge mulher tinha de entregar ao património comum do casal, sendo certo que lhe cabia depois metade do valor desta verba, pelo que, em termos práticos, apenas desembolsava EUR 40.000,00.
Sucede que o Réu marido licitou este direito de crédito por EUR 92.000,00.
Podia fazê-lo, pois é possível licitar verbas relativas a créditos da herança sobre terceiros ou do património comum conjugal ( Neste sentido Lopes Cardoso, quando refere que «Em princípio, a licitação recai sobre todos os bens descritos e sujeitos à partilha entre os interessados (…). O mesmo deve entender-se quanto aos créditos litigiosos ou insuficientemente comprovados ou bens sem valor, e ainda no que respeita a créditos não litigiosos ou suficientemente comprovados, por argumento do art. 1374.º-d) do Cod. Proc. Civ. e ainda porque podem ter valor diferente, valerem mais ou menos, serem cobráveis ou incobráveis. A solvabilidade do devedor muitas vezes depende da qualidade do credor» - Partilhas Judiciais, Vol. II, 4.ª edição, pág. 260-261.), créditos esses que podem valer mais ou menos em relação ao valor fixado na relação de bens ou ser mais ou menos elevado o risco da respetiva cobrança.
Efetivamente, os herdeiros podem preferir receber do co-herdeiro licitante uma quantia menor e deixar correr por conta deste o risco da cobrança do crédito e o licitante pode licitar por ter um qualquer interesse em ficar credor daquele devedor.
Por conseguinte, ao licitar este direito de crédito, o réu assumiu a titularidade deste direito de crédito e foi-lhe adjudicado por EUR 92.000,00, aquando da composição do seu quinhão.
Ou seja, o réu ficou titular do direito de crédito relativo àquela benfeitoria, isto é, ficou credor da sua ex-mulher, quanto a essa benfeitoria.
Tendo o réu licitado este direito de crédito, isso implicou que ele tivesse de entregar ao património comum EUR 92.000,00.
Como o réu não depositou esta quantia, a sua ex-esposa requereu ao abrigo do n.º 3 do artigo 1378.º do Código de Processo Civil, onde se determinava que «Podem também os requerentes pedir que, transitada em julgado a sentença, se proceda no mesmo processo à venda dos bens adjudicados ao devedor até onde seja necessário para o pagamento das tornas», a Autora requereu, dizia-se, a venda do bem licitado.
Ocorreu aqui um erro que consistiu em ter sido vendido de seguida o prédio onde tinha sido realizada a benfeitoria em vez de ter sido vendido o direito de crédito relativo à benfeitoria, pois foi este último o bem que foi licitado.
Como se vendeu o prédio, quando não havia lugar a tal venda, surgiu o presente conflito, porque a Autora pretende agora ser indemnizada do valor do terreno, porquanto, no seu entendimento, o terreno não fez parte do objeto vendido.
Mas não tem razão quanto a este modo de analisar a situação.
É que não foi vendida apenas a «benfeitoria», isto é, a casa de habitação desacompanhada do terreno, mas sim o todo, o prédio urbano em questão, composto pela edificação e pelo solo.
Com efeito, nos termos do n.º 2 do artigo 204.º do Código Civil, «Entende-se por prédio rústico uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia económica, e por prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro».
Por isso, se se vende um prédio, e no caso foi anunciada a venda de um prédio, seja ele rústico ou urbano, vende-se o conjunto formado pelas edificações e pelo solo, não sendo, por isso, juridicamente possível vender a benfeitoria, a casa de habitação, desacompanhada do terreno onde a mesma assentava a assenta.
E a autora também entende que foi vendido o prédio urbano, pois não coloca em causa a venda, nem reivindica o terreno, já que pretende apenas ser indemnizada do valor do terreno.
2 – Feito este esclarecimento, vejamos se os Réus compradores obtiveram algum enriquecimento sem causa justificativa, nos termos dos artigos 473.º e seguintes do Código Civil, enriquecimento esse que devam devolver à autora.
Nos termos do artigo 473.º do Código Civil, «1 – Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou. 2 – A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objeto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou».
São requisitos da obrigação de restituir os seguintes:
(I) Enriquecimento de alguém. Nas palavras de Antunes Varela «O enriquecimento consiste na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista» ( Das Obrigações em Geral, Vol. I, 3.ª edição revista e atualizada, Almedina/1980, pág. 373.), podendo tratar-se de um aumento do ativo patrimonial; de uma diminuição do passivo; no uso ou consumo de coisa alheia ou no exercício de direito alheio, quando estes atos sejam suscetíveis de avaliação pecuniária; poupança de despesas.
(II) Enriquecimento carecido de causa justificativa. Segundo o mesmo autor, a noção de causa do enriquecimento varia consoante a natureza jurídica do ato que lhe serve de fonte, pelo que, no que respeita à (a) causa da prestação, «… a prestação recebida pelo credor carece de causa, porque relação jurídica que ela visava extinguir já não existia na titularidade do accipiens, desde que a cessão e o pagamento feito pelo fiador produzem imediatamente os seus efeitos nas relações entre cedente e cessionário, por um lado, e entre credor e fiador por outro» ( Ob. Cit., pág. 376.); quanto à (b) causa da obrigação (negocial), «Se a obrigação tem carácter negocial (porque procede de uma venda, um arrendamento, ou empréstimo ou uma troca), a causa consiste no fim típico do negócio em que se integra. Quando esse fim falha por qualquer razão, as obrigações resultantes do negócio ficam sem causa. Se a venda é nula por falta de forma, ambas as obrigações (a do vendedor e a do comprador) carecem de causa; se é anulada por incapacidade do vendedor, é a obrigação (de entrega do preço) do comprador que não tem causa.
Como no nosso direito privado os negócios têm por via de regra natureza causal, o fim do negócio faz parte integrante do seu conteúdo (objecto lhe chama a nossa lei: art. 281.º, I), a causa é uma causa interna (…) e os vícios a ela inerentes geram a nulidade ou a resolução de todo o negócio» ( Ob. Cit., pág. 377.); quanto à (c) causa das restantes deslocações patrimoniais diz o mesmo autor que «Há, porém, muitos casos em que a situação de enriquecimento não provém de uma prestação do empobrecido ou de terceiro, nem de uma obrigação assumida por um outro, mas de um acto de intromissão do enriquecido em direitos ou bens jurídicos alheios ou de actos de outra natureza, inclusivamente de actos materiais, praticados pelo devedor ou por terceiro (gestão de negócios). E, nesses casos, em que consiste a causa? Quando se pode asseverar que a deslocação patrimonial operada carece de causa?» ( Ob. Cit., pág. 379.)
(III) Obtido à custa de quem requer a restituição. Ou seja, segundo o mesmo professor, «A correlação exigida por lei entre a situação dos dois sujeitos traduzir-se-á, em regra, no facto de a vantagem patrimonial alcançada por um deles resultar do sacrifício económico correspondente suportado pelo outro» ( Ob. Cit., pág. 381.).
À custa de porque nem sempre a obtenção da vantagem de alguém à custa de outrem se exprime no empobrecimento correlativo do património do lesado, como é o caso clássico da instalação em casa alheia ou do uso de coisa alheia, onde não há correspondência entre o enriquecimento de um dos sujeitos e o empobrecimento do outro, isto é, não existe um valor que sai de um património e entra no património do outro.
Concluindo, ainda com Antunes Varela, «Quando o enriquecimento criado está de harmonia com a ordenação jurídica dos bens aceita pelo sistema, pode asseverar-se que a deslocação patrimonial tem causa justificativa; se, pelo contrário, por força dessa ordenação positiva, ele houver de pertencer a outrem, o enriquecimento carece de causa.
Tem, assim, causa justificativa o enriquecimento proveniente da usucapião, visto a lei entender que, não obstante a falta de título válido de aquisição, a posse prolongada da coisa justifica a titularidade do direito e a consolidação do respectivo valor na esfera jurídica do possuidor» ( Ob. Cit., pág. 380.).
Cumpre então averiguar se o valor monetário reclamado pela Autora passou do património da Autora para o património dos Réus compradores sem causa justificativa, isto é, sem ter existido uma causa prevista ou admitida pela ordem jurídica para a transferência de bens de um património para o outro.
A resposta é negativa.
Com efeito, os Réus compradores compraram o bem que foi posto em venda pelo tribunal, aliás sob o impulso processual da ora Autora, e o que foi colocado em venda foi o «prédio urbano, sito em V..., composto por casa de habitação de R/C, 1.º andar e logradouro, a confrontar de norte e sul com K..., do poente com S... e do nascente com estrada, inscrito na matriz predial sob o n.º (...), da freguesia de L..., concelho de P...…» (facto provado n.º 23).
Ou seja, os réus M (…) e esposa S (…) não compraram apenas o edifício, compraram também o solo e ofereceram o valor que entenderam oferecer, superando o valor mínimo atribuído ao bem que foi de EUR 80.000,00.
Por conseguinte, este negócio de compra e venda é causa justificativa da aquisição do prédio e pelo preço oferecido que foi de EUR 80.001,00, não tendo existido, por isso, qualquer enriquecimento por parte destes Réus.
A argumentação da Autora, no sentido de que estes Réus adquiriram apenas a edificação, não o solo, porque só devia ter sido colocada à venda a edificação, mostra que os Réus nenhum enriquecimento obtiveram, pois compraram justamente aquilo que foi colocado à venda, inclusive com a promoção da Autora, como se disse, a qual promoveu a venda do prédio no processo de inventário.
Não existe, por conseguinte, enriquecimento sem causa por banda dos referidos Réus.
3 – E quanto ao Réu, seu ex-marido?
Dos factos provados não se extrai que o réu tenha obtido um enriquecimento com a venda do prédio.
Com efeito, o direito de crédito que o casal tinha sobre a aqui Autora era de EUR 80.000,00 euros, quantia em que foi avaliada a benfeitoria.
Como acima se disse, o Réu marido licitou este direito de crédito por EUR 92.000,00.
Verifica-se, por conseguinte, que o Réu marido ao licitar o direito de crédito ficou responsável pelo pagamento, ao património comum, de EUR 92.000,00.
E, em contrapartida, foi-lhe adjudicado esse direito de crédito.
Por conseguinte, ao ser-lhe adjudicado o direito de crédito pelo valor de EUR 92.000,00, o réu ficou devedor de tornas perante a sua ex-esposa e agora Autora, nos termos do artigo 1376.º, n.º 1, 1377.º e 1378.º, todos do Código de Processo Civil, em vigor à data do inventário.
Sabe-se que o réu A (…) não pagou esta quantia no inventário (e, por isso, a Autora optou pelo exercício do direito conferido no n.º 3 do artigo 1378.º do Código de Processo Civil, acima transcrito), mas ficou aí responsável pela sua realização, isto é, o ora réu constituiu-se devedor no inventário perante o património comum do casal pela quantia EUR 92.000,00.
Ora, este valor entrou na formação ou composição do valor global do património comum a partilhar e aumentou o seu valor, pois inicialmente o crédito valia apenas EUR 80.000,00.
Tendo o prédio sido vendido apenas por EUR 80.001,00, quantia inferior à da licitação, o réu não obteve qualquer enriquecimento nem no inventário, nem fora dele.
Ou seja, com a venda do prédio (incluindo o terreno), o réu A (…) não obteve qualquer benefício.
Improcede, por conseguinte, o recurso.
IV. Decisão
Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e mantém-se a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
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Coimbra, 15 de maio de 2018

Alberto Ruço ( Relator )
Vítor Amaral
Luís Cravo