Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
170/19.4GDLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: CONDUÇÃO DE VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
EXAME SANGUÍNEO
INCUMPRIMENTO OU CUMPRIMENTO DEFEITUOSO DOS PROCEDIMENTOS LEGAIS
PROIBIÇÃO DE VALORAÇÃO DE PROVA
Data do Acordão: 02/16/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL – JUIZ 1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 152.º E SEGS. DO CÓDIGO DA ESTRADA; ARTS. 4.º A 6.º DA LEI N.º 18/2017, DE 17-05 [REGULAMENTO DE FISCALIZAÇÃO DA CONDUÇÃO SOB A INFLUÊNCIA DO ÁLCOOL OU DE SUBSTÂNCIAS PISCOTRÓPICAS]; NORMAS DA PORTARIA N.º 902/2007, DE 13-04
Sumário: I – Através dos procedimentos decorrentes do conjunto normativo formado pelos artigos 152.º e segs. do Código da Estrada, pelos artigos 4.º a 6.º da Lei n.º 18/2017, de 17-05 [Regulamento de Fiscalização da Condução sob a Influência do Álcool ou de Substâncias Piscotrópicas] e pelas normas inscritas na Portaria n.º 902/2007, de 13-04, o legislador visa assegurar a imprescindibilidade da manutenção da cadeia de custódia do sangue, de modo a que não subsista qualquer dúvida de que o sangue examinado – no caso com vista à detecção e quantificação da taxa de álcool – pertence ao sujeito a quem o resultado do exame será imputado.

II – Não estabelecendo aquele complexo normativo a consequência para o incumprimento ou cumprimento defeituoso dos referidos procedimentos, a “falha” só pode relevar se efectivamente puser em causa a fidedignidade do resultado do exame e/ou da respectiva atribuição a um concreto indivíduo. Dito de outro modo, apenas perante tal circunstância terá de ser ponderada a proibição de valoração de prova.

Decisão Texto Integral:




Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do processo comum singular n.º 170/19.4GDLRA do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Leiria – JL Criminal – Juiz 1, por sentença de 06.05.2021 o tribunal decidiu [transcrição parcial do dispositivo]:

«A. Condenar CM, pela prática em autoria material, no dia 23.07.2019, de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelos arts. 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1 al. a) do Código Penal, na pena de 4 (quatro) meses de prisão;

B. Suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido pelo período de 1 (um) ano;

C. Condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao cumprimento, até ao término do período de suspensão, das seguintes injunções:

a. Frequentar um programa direcionado à segurança rodoviária, a indicar pela DGRS.

D. Determinar que a DGRS proceda ao acompanhamento e fiscalização do cumprimento das regras de conduta acima fixadas (cf. o art. 51.º, n.º 4, ex vi o art. 52.º n.º 4, ambos do Código Penal).

E. Condenar CM na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 8 (oito) meses;

(…)».

2. Inconformado com a decisão recorreu o arguido, formulando as seguintes conclusões:

I. O recorrente foi condenado pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez.

II. Com base na prova produzida, não devia o Tribunal recorrido ter dado como provado os factos constantes dos pontos 2, 3 e 4 todos dos factos dados como provados na sentença.

III. Na sentença de que ora se recorre, foi dado como provado que o arguido CM possuía uma T.A.S de pelo menos 1,27g/litro, o que não podia ter acontecido, uma vez que o procedimento de recolha da amostra de sangue, não cumpriu os requisitos legalmente previstos.

IV. Ora, quanto ao tubo referido no ponto 5.º, secção II, da já referida Portaria n.º 902-B/2007, de 13 de Abril, refere-se explicitamente que o “tubo adequado destinado à amostra de sangue” deve estar dentro de “uma bolsa devidamente selada”, o que não aconteceu no caso concreto.

V. Devia o tribunal a quo ter dado como provado os seguintes factos:

a) O tubo de ensaio utilizado para recolher a amostra de sangue do arguido, não corresponde á bolsa “devidamente selada” onde o mesmo vinha acondicionado, tendo sido trocado por outra bolsa.

b) O Médico responsável pela execução do exame de pesquisa de álcool no sangue, não realizou a colheita, tendo a mesma sido realizada pela enfermeira;

c) O Médico responsável pela execução do exame de pesquisa de álcool no sangue, não preencheu o impresso constante do anexo I da Portaria n.º 902B/2007, de 13 de Abril, tendo o mesmo sido preenchido pelo Guarda da GNR, BM; e,

d) O Médico responsável pela execução do exame de pesquisa de álcool no sangue, não colocou a sua vinheta de identificação profissional no triplicado do impresso.

VI. Neste sentido veja-se o depoimento do guarda da GNR, BM, entre os minutos 4:00 e 6:03: “nessa situação o que ocorreu foi que, a enfermeira que nos foi orientada, no preenchimento da folha do selo, neste caso do envelope que vai para análise, preencheu lá a parte que era indicada para o laboratório. Nessa situação pedimos ao posto de Leiria, que deslocasse uma patrulha para transportar, para trazer outro kit, para utilizar um envelope novo. Após esse preenchimento, a amostra utilizada foi a que foi recolhida, foi feito o preenchimento do formulário, preenchimento do kit sem erros e foi assim, ficou ao cargo do hospital para depois o encaminhar para o laboratório”, “apercebi-me desse lapso, fui eu e a enfermeira”

VII. Ainda no seguimento deste depoimento, entre os minutos 7:27 e 10:10, veja-se o seguinte:

“Advogado: Foram feitas duas recolhas de sangue?

Guarda BM: não, só foi feita uma recolha de sangue.

Advogado: o kit quando vem não traz já os instrumentos próprios para tirar o sangue ao arguido?

Guarda BM: o kit vem acompanhado de dois envelopes lacrados, o primeiro envelope é rasgado por nós, e preenchido pela enfermeira que faz a recolha, e lá dentro vem outro envelope, para enviar para o laboratório, e neste caso o recipiente onde vai a amostra do sangue.

Advogado: esse recipiente não tem um código próprio?

Guarda BM: tem um código de barras sim.

Advogado: então como é que o código de barras do primeiro serviu para o segundo?

Guarda BM: porque pode servir (…) aquele código de barras é o código utilizado da amostra, o kit em si tem a numeração para nosso registo, registo da Guarda, os envelopes não utilizados, tem que se dar baixa, é feito um relatório de serviço para dar baixa do mesmo”;

Aos 25:55 minutos do depoimento, note-se que:

“Advogado: o senhor sabe que o tubo tem que voltar a ser introduzido no envelope?

Guarda BM: sim, foi o que foi feito.

Advogado: então porque é que o tubo do primeiro Kit foi introduzido no segundo envelope?

Guarda BM: o tubo foi utilizado na bolsa que se podia utilizar

Advogado: colocou o tubo de sangue do primeiro kit no envelope do segundo kit, foi isso que aconteceu?

Guarda BM: sim, porque o primeiro kit, a primeira bolsa ficou inutilizada, não podia ser feito o teste com aquela bolsa”

VIII. No depoimento da testemunha JI, enfermeira, entre os minutos 16:58 e 19:00, consta o seguinte: “ou selámos mal, ou eu escrevi mal, mas depois foram buscar outro saquinho para colocar, outro saco, porque creio que o saco é que não estava legível, e assinei no errado porque são dois.”

IX. Quando questionada sobre se fazem nova colheita nestas situações, respondeu que “Por norma não, eu não fiz nova colheita porque ia estar a picar novamente o senhor”.

X. A mesma testemunha, afirmou entre os minutos 26:57 e 27:11, o seguinte: “todos os sacos tem um número, a partir do momento em que o primeiro saco com o número está errado, eles foram buscar outro, e usei esse saco com outro número, não é igual.”

XI. Mais uma vez, o procedimento não foi respeitado e o médico que realizou a colheita não colocou a sua vinheta de identificação, conforme indicado na alínea b) e d) referidas anteriormente, aliás, nem foi o médico que realizou a colheita, mas sim a enfermeira, tendo o primeiro apenas dado o consentimento/ordem.

XII. Mais ainda, não foi o médico que preencheu o anexo I, como consta da Secção II, ponto 9.º, alínea a) e passando a citar que “o médico que promover a colheita deve preencher, correta e completamente, o impresso do modelo do anexo I;”

XIII. Este impresso constante do anexo I da Portaria n.º 902-B/2007, de 13 de Abril foi preenchido pelo agente da GNR, BM, e não pelo médico, facto que foi admitido tanto por ele, como pela enfermeira, como aliás consta na própria sentença, na sua página 4: “As testemunhas mais relataram, porém, que o referido documento foi preenchido pelo militar BM, apenas sendo assinado pelo médico assistente no final do procedimento [sendo que, quanto a este, a testemunha JI reconheceu a assinatura e o número de cédula manuscrito no campo destinado à vinheta].”

XIV. Quanto aos restantes procedimentos, previstos na Portaria, refira-se que devia ter sido o médico a realizá-los, o que não foi feito. Neste sentido, vejamos os seguintes depoimentos:

XV. No depoimento do guarda da GNR, BM, entre os minutos 10:11 e 11:00: “existe um médico que está lá que depois assina lá o nosso documento, apenas dá a ordem para fazer a recolha, dentro do gabinete, não tenho acesso a isso”.

XVI. Veja-se também o depoimento da testemunha JI (enfermeira), entre os minutos 8:25 e 09:26: “a função do médico é basicamente, ele sabe que aquela amostra vai ser realizada, acaba por assinar, consentir que pode ser realizada (...). ele acaba por assinar e só atestar que pode e está em condições para colher o sangue.” Ao minuto 22:17, a testemunha questionada quando é utilizada a vinheta do medico, respondeu que: “metem o número mecanográfico e nem vinheta utilizam.” Ainda neste seguimento, entre os minutos 29:00 e 30:00, questionada novamente acerca de qual o papel do médico, a mesma respondeu que:

“Advogado: não há contacto entre o médico e a GNR?

Enfermeira JI: apesar de ser uma situação rápida é sempre o senhor agente que vai falar com o médico.

Advogado: faz a assinatura e mete lá o tal número mecanográfico?

Enfermeira JI: sim”.

XVII. Pelo que, o tribunal a quo errou, pois que da prova produzida resulta que o procedimento indicado na Portaria n.º 902-B/2007, de 13 de Abril, não foi respeitado, como, mais uma vez consta da própria sentença: “ No entanto, as testemunhas, de forma espontânea, relataram ainda que, após a realização da colheita de sangue, ocorreu um erro/lapso no preenchimento do envelope [ou bolsa nos termos constantes do §5.º da secção II da Portaria 902-B/2007, de 13.08], pelo que houve a necessidade de inutilizar a referida bolsa e solicitar novo kit, do qual foi utilizada apenas a bolsa [”envelope”] em substituição da anteriormente inutilizada.”

XVIII. Face aos factos que entendemos que deveriam ter sido dados como provados, concluímos que não foram cumpridos os seguintes requisitos, previstos na Portaria acima referida:

a) Ponto 5.º e primeira parte da alínea d) do ponto 9.º da referida Portaria, pois que o tubo de ensaio que pertencia ao primeiro kit do conjunto, foi colocado dentro da bolsa que fazia parte do segundo kit ou conjunto trazido a posteriori pelos Guardas da GNR, sendo que deveria ter sido efetuada nova colheita de sangue ao arguido com recurso ao segundo tubo de ensaio;

b) Ponto 7.º e 9.º da referida Portaria, uma vez que não foi um médico, mas sim uma enfermeira, quem procedeu à recolha do sangue;

c) Ponto 9.º, alínea a), da referida Portaria, já que foi o Guarda BM, e não o médico, quem preencheu o impresso do anexo I da referida Portaria;

d) Ponto 9.º, alíneas b) e d), da referida Portaria, porque o médico que deveria ter procedido à colheita de sangue, não colocou a sua vinheta de identificação profissional, nem no impresso constante do anexo I, nem no triplicado do mesmo.

XIX. Sucede que, a lei prevê os acima referidos procedimentos, para a colheita de sangue para pesquisa de álcool, por forma a garantir a fidedignidade e autenticidade da prova/resultado, que venha a ser apurado.

XX. Tais requisitos visam proteger a pessoa a quem é recolhida sangue e impedir que a amostra seja extraviada ou trocada por uma outra qualquer.

XXI. Posto isto, não podia o Tribunal a quo ter dado como provado que o arguido tinha álcool no sangue e que, conseguinte, conduzido sob o seu efeito.

XXII. Assim, aquela prova é nula, o que expressamente se invoca.

XXIII. Consequentemente, o Tribunal recorrido, errou ao dar como provado os factos constantes dos pontos, 2, 3 e 4 dos factos dados como provados constantes da sentença.

XXIV. Tal interpretação (a do Tribunal recorrido) seria sempre inconstitucional por violação do princípio da presunção de inocência, bem como o princípio do acusatório, ambos decorrentes do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.

XXV. Os erros acima referidos ou lapsos são notórios.

XXVI. Por conseguinte, devia o arguido ter sido absolvido da prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez.

XXVII. Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo violou o princípio da presunção da inocência, do “in dubio pro reo” e do acusatório decorrente do nº 2 do artigo 32º da Constituição da República.

XXVIII. Com o devido respeito e salvo melhor entendimento, sindicamos que o tribunal a quo cometeu um erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410º, nº 2, alínea c) do CPP.

XXIX. Assim, deve ser revogada a sentença recorrida e o arguido absolvido da prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez.

XXX. Em nosso entender, não podia o recorrente ter sido condenado pela prática do crime acima referido.

Nestes termos e nos demais de direito, cometeu o tribunal a quo erro notório na apreciação da prova – al. c) do nº 2 do artigo 420º do C.P.P. – devendo ser dado como provado os seguintes factos:

- O tubo de ensaio utilizado para recolher a amostra de sangue do arguido, não corresponde á bolsa “devidamente selada” onde o mesmo vinha acondicionado, tendo sido trocado por outra bolsa.

- O Médico responsável pela execução do exame de pesquisa de álcool no sangue, não realizou a colheita, tendo a mesma sido realizada pela enfermeira; - O Médico responsável pela execução do exame de pesquisa de álcool no sangue, não preencheu o impresso constante do anexo I da Portaria n.º 902B/2007, de 13 de Abril, tendo o mesmo sido preenchido pelo Guarda da GNR, BM;

- O Médico responsável pela execução do exame de pesquisa de álcool no sangue, não colocou a sua vinheta de identificação profissional no triplicado do impresso;

Devendo ainda ser aquela decisão revogada na parte em que deu como provados os factos constantes dos pontos 2, 3 e 4 dos factos dados como provados na sentença.

Consequentemente, deve a sentença ser revogada e o arguido absolvido da prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez.

Assim sendo, Vªs Exªs fareis a já costumada JUSTIÇA.

3. Foi proferido despacho de admissão do recurso.

4. Em resposta ao recurso o Ministério Público concluiu:

1. Discorda o ora recorrente da sentença que condenou o arguido pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo art.º 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, na pena de 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, mediante a injunção a frequentar um programa direcionado à segurança rodoviária, a indicar pela DGRSP, bem como na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 8 (oito) meses.

2. Com efeito, entendeu a MM. Juiz que da prova junta aos autos e produzida em audiência, não resultam quaisquer dúvidas que o arguido praticou os factos de que vinha acusado.

3. Assim, foi declarada válida a prova recolhida, e consequente foi a mesma valorada.

4. Não nos merece, contudo, reparo a decisão recorrida.

5. Com efeito, e abstendo-nos de reproduzir os argumentos vertidos na decisão recorrida quanto ao enquadramento jurídico-legal da factualidade indiciada nos autos, entendemos que os mesmos são pertinentes, pelo que tal decisão, enquanto corolário lógico da argumentação expendida, tem a nossa concordância.

No entanto V. Ex.ªs farão a habitual Justiça.

5. O Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pronunciando-se no sentido de o recurso não merecer provimento.

6. Cumprido o n.º 2, do artigo 417.º do CPP, o recorrente não reagiu.

7. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cabendo, pois, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

Tendo presente as conclusões, pelas quais se delimita o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de eventuais questões de natureza oficiosa, no caso em apreço cabe apreciar se o tribunal a quo valorou prova ferida de nulidade e, nessa medida, incorreu em erro de julgamento e/ou em erro notório, violando os princípios do acusatório, da presunção de inocência e in dubio pro reo.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar da sentença em crise [transcrição parcial]:

1. No dia 23.07.2019, pelas 17 horas e 10 minutos, o arguido circulava na Estrada Nacional 109, ao quilómetro 161, em Leiria, conduzindo o veículo ligeiro de passageiros de matrícula (…).

2. Submetido ao teste de pesquisa de álcool no sangue, por análise sanguínea, revelou possuir uma T.A.S. de, pelo menos, 1,27 gramas por litro de sangue.

3. O arguido sabia que havia ingerido bebidas alcoólicas e que, por isso, conduzia sob o efeito do álcool, o que não o demoveu de o fazer, porque o quis, fez e conseguiu.

4. Agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.


*

5. O arguido está desempregado desde Setembro de 2020.

6. O arguido está inscrito no Centro de Emprego, mas encontra-se em situação de baixa médica na sequência de um “acidente de trabalho”, sendo que, não aufere quaisquer rendimentos porquanto se encontra em litígio com a seguradora.

7. O arguido vive com a esposa, a qual exerce atividade profissional de assistente em lar de idoso, auferindo o vencimento correspondente ao salário mínimo nacional.

8. Têm dois filhos, sendo um com 23 anos de idade, que já trabalha, e outro com 17 anos de idade, estudante.

9. Vivem em casa própria, com incumprimento do mútuo bancário e na eminência de “entregar a casa ao banco”.

10. O arguido tem o 6.º ano de escolaridade.

11. O arguido é tido pelos seus familiares como uma pessoa trabalhadora, esforçada, disponível, pacata, bem considerado entre a comunidade e um pai presente e carinhoso.

12. O arguido foi condenado:

i. Por sentença proferida a 20.09.2010, transitada a 20.10.2010, pela prática, a 12.12.2009, de um crime de condução em estado de embriaguez, na pena de 60 dias de multa e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 4 meses, já declaradas extintas pelo cumprimento (processo 458/19.2GCPBL do [extinto] 1.º Juízo Criminal de Pombal);

ii. Por sentença proferida a 13.11.2013, transitada a 14.01.2014, pela prática, em 2010, de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições (art. 158.º n.º 3 do CE), na pena de 100 dias de multa, já declarada extinta pelo cumprimento (processo 634/11.8TAPBL do Juízo Local Criminal de Pombal, Juiz 2);

iii. Por sentença proferida a 13.10.2016, transitada a 24.10.2016, pela prática, a 15.05.2015, de um crime de desobediência, na pena de 90 dias de multa, já declarada extinta pelo cumprimento (processo 852/16.2T9CBR do Juízo Local Criminal de Coimbra, Juiz 1);

iv. Por sentença proferida a 23.10.2015, transitada a 11.11.2015, pela prática, a 15.05.2015, de um crime de condução em estado de embriaguez, na pena de 100 dias de multa e na pena acessória de 5 meses de proibição de condução, já declaradas extintas pelo cumprimento (processo 113/15.4GGCBR do Juízo Local Criminal de Coimbra, Juiz 3);

v. Por sentença proferida a 24.11.2020, transitada a 06.01.2021, pela prática, a 14.04.2020, de um crime de condução em estado de embriaguez, na pena de 5 meses de prisão substituída por 150 horas de trabalho a favor da comunidade e na pena acessória de 9 meses de proibição de condução (processo 177/20.9PBELV do Juízo Local Criminal de Elvas).

B - Factos Não Provados

Com relevância para a decisão da causa, não ficaram por provar quaisquer factos.

C - Convicção do Tribunal

(…).

3. Apreciação

Invocando não haverem sido cumpridos os requisitos legalmente previstos para o procedimento de recolha da amostra de sangue, defende o recorrente que o tribunal a quo não poderia dar como provados os factos inscritos nos itens 2, 3 e 4 da sentença em crise; ao invés, deveria ter antes consignado como provado que (i)O tubo de ensaio utilizado para recolher a amostra de sangue do arguido, não corresponde à bolsa “devidamente selada” onde o mesmo vinha condicionado, tendo sido trocado por outra bolsa”; (ii)O Médico responsável pela execução do exame de pesquisa de álcool no sangue, não realizou a colheita, tendo a mesma sido realizada pela enfermeira; (iii)O Médico responsável pela execução do exame de pesquisa de álcool no sangue, não preencheu o impresso constante do anexo I da Portaria n.º 902-B/2007, de 13.04, tendo o mesmo sido preenchido pelo Guarda da GNR MB”; (iv)O Médico responsável pela execução do exame de pesquisa de álcool no sangue, não colocou a sua vinheta de identificação profissional no triplicado do impresso”, omissões estas que, na sua perspetiva, implicariam a nulidade da prova com base na qual vem sustentado o seu estado de influenciado pelo álcool - no caso portador de uma T.A.S. de 1,27 gramas por litro de sangue.

Entende, pois, que ao ter decidido de modo diferente violou o tribunal a quo os princípios da presunção de inocência, do in dubio pro reo e do acusatório, decorrentes do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.

Vejamos.

A sentença encerra uma apreciação exaustiva e crítica da prova produzida e analisada em sede de audiência de julgamento, da qual em substância, quer do que resulta da “suposta” impugnação da matéria de facto, quer dos “supostos” erros notórios, não se vê que se afaste o recorrente. Com efeito, o recurso mais não faz do que evidenciar falhas no procedimento de colheita do sangue destinado à realização das análises para quantificação da taxa de álcool, falhas essas, sobre as quais o tribunal a quo não deixou de se pronunciar, concluindo, embora, em sentido diverso do que preconiza o recorrente, ou seja afastando a invocada nulidade da prova.

Seria fastidioso repetir a fundamentação da convicção, acima reproduzida; contudo, convém enfatizar as seguintes passagens:

As testemunhas [reportando-se ao militar BM e à enfermeira JI] confirmaram … que foi efetuada uma colheita de sangue ao arguido de acordo com os formalismos legais (…) nas circunstâncias descritas no documento no documento de fls. 7 [o qual corresponde ao impresso do modelo do anexo I previsto no 45.º da secção II da Portaria 902-B/2007, de 13.08, e do qual foi deixado um duplicado na entidade hospitalar, conforme resulta do documento de fls. 234]. As testemunhas mais relataram, porém, que o referido documento foi preenchido pelo militar BM, apenas sendo assinado pelo médico assistente no final do procedimento [sendo que, quanto a este, a testemunha JI reconheceu a assinatura e o número de cédula manuscrito no campo destinado à vinheta]. No entanto, as testemunhas, de forma espontânea, relataram ainda que, após a realização da colheita de sangue, ocorreu um erro/lapso no preenchimento do envelope [ou bolsa nos termos constantes do § 5.º da secção II da Portaria 902-B/2007, de 13.08], pelo que houve a necessidade de inutilizar a referida bolsa e solicitar novo Kit, do qual foi utilizada apenas a bolsa [“envelope”] em substituição da anteriormente inutilizada. E as testemunhas mais confirmaram que, nessa segunda bolsa [cuja cópia consta documentada a fls. 235], foram então introduzidos o tubo com a amostra de sangue anteriormente colhida ao arguido, acondicionado no respetivo contentor, bem como o duplicado do documento constantes de fls. 7.

(…)

Ora, confrontando o relato das testemunhas (…) com o procedimento legal acima transcrito, podemos concluir, sem qualquer dúvida razoável, que a colheita de sangue ao arguido foi efetuada de acordo com tal procedimento. É certo que o expediente final remetido ao INML para análise era composto pelo tubo e respetivo contentor do primeiro Kit e pela bolsa do segundo Kit. No entanto, tal facto não inquina, de forma alguma, a validade da colheita em si mesmo, na medida em que, por um lado, os tubos e contentor de todos os Kits são idênticos entre si, e, por outro lado, a correspondência/identidade entre os vários componentes da colheita – modelo do anexo I e bolsa com o tubo com a amostra de sangue, é feita apenas através da aposição do “número do” bolsa no modelo anexo I. Ou seja, o que interessa é que a amostra de sangue colhida ao individuo identificado no Anexo I seja introduzida na bolsa com o mesmo código que é aposto no Anexo I. E, quanto a isso, não subsistem quaisquer dúvidas de que, no caso concreto, a amostra de sangue enviada para análise com o código “54090” corresponde efetivamente à colheita efetuada ao arguido nas circunstâncias descritas no documento de fls. 7.”

Segundo o recorrente em causa estaria a violação dos procedimentos a que se reporta a Portaria n.º 902-B/2007, de 13 de abril, concretamente os pontos 5.º e primeira parte da alínea d) do ponto 9.º [na medida em que «o tubo de ensaio que pertencia ao primeiro Kit do conjunto, foi colocado dentro da bolsa que fazia parte do segundo Kit ou conjunto trazido à posteriori pelos Guardas da GNR, sendo que deveria ter sido efetuada nova colheita de sangue ao arguido com recurso ao segundo tubo de ensaio»], 7.º e 9.ºuma vez que não foi o médico, mas uma enfermeira, quem procedeu à recolha de sangue»], 9.º, alínea a)já que foi o Guarda BM, e não o médico, quem preencheu o impresso do anexo I da referida Portaria»], 9.º, alíneas b) e d)porque o médico que deveria ter procedido à colheita de sangue, não colocou a sua vinheta de identificação profissional, nem no impresso constante do anexo I, nem no triplicado do mesmo»].

Do conjunto normativo formado pelo artigo 152.º e segs. do Código da Estrada, pelos artigos 4.º a 6.º da Lei n.º 18/2017, de 17 de maio [Regulamento de Fiscalização da Condução sob a Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas] e pelas normas inscritas na Portaria n.º 902-B/2007, de 13 de abril, resulta que o processo de fiscalização da condução sob a influência do álcool obedece a determinados trâmites/procedimentos.

 Concretamente sobre a análise de sangue para averiguação e quantificação da taxa de álcool dispõe a Secção II da Portaria n.º 902-B/2007:

3.º A substância objeto de análise laboratorial de quantificação da taxa de álcool no sangue é o álcool etílico.

4.º A colheita do sangue destinado à realização das análises para quantificação da taxa de álcool é efetuada em estabelecimento da rede pública de saúde a que o examinando seja conduzido pelo agente de autoridade, o qual, em caso de acidente de viação, pode ser o serviço de saúde em que dê entrada.

5.º Para a realização da colheita prevista no número anterior, o agente de autoridade deve entregar no estabelecimento da rede pública de saúde um impresso do modelo do anexo I, acompanhado de uma bolsa devidamente selada de modelo aprovado pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), contendo o material destinado à recolha e acondicionamento da amostra, constituído por:

a) Tubo com a capacidade mínima de 5cc, contendo um anticoagulante e conservante adequados destinado à amostra de sangue;

b) Contentor adequado ao acondicionamento do tubo referido na alínea anterior.

6.º O funcionário do estabelecimento da rede pública de saúde encarregado de receber o equipamento deve garantir a segurança das amostras e a sua correta expedição para o Instituto Nacional de Medicina Legal, I.P.

7.º No estabelecimento da rede pública de saúde, o médico que atender o examinando deve providenciar a obtenção de um volume de sangue venoso suficiente para encher por completo o tubo referido na alínea a) do n.º 5, recolhido de acordo com os procedimentos habituais, mas sem usar álcool como desinfetante cutâneo.

8.º Para a expedição, o tubo que contém a amostra de sangue é introduzido no contentor referido na alínea b) do n.º 5 e, em seguida, fechado dentro de bolsa de modelo a aprovar pela ANSR.

9.º O médico que promover a colheita deve:

a) Preencher, correta e completamente, o impresso do modelo do anexo I;

b) Entregar ao agente de autoridade que requisitou o exame o original preenchido, contendo a sua vinheta de identificação profissional.

c) Entregar o duplicado ao examinado ou, caso não seja possível, ao agente de autoridade que requisitou o exame para que, posteriormente o entregue ao examinado ou a quem legalmente o represente.

d) Providenciar para que sejam introduzidos na bolsa referida no número anterior a amostra de sangue, devidamente acondicionada no tudo no tubo e contentor respetivos, e o triplicado do impresso preenchido, contendo a sua vinheta de identificação profissional.

e) Providenciar para que a bolsa selada seja remetida, de imediato, à delegação do Instituto Nacional de Medicina Legal, I.P., da sua área ou, caso não seja possível, que seja mantida refrigerada até à sua remessa.”

Através dos ditos procedimentos o legislador visa assegurar a imprescindibilidade da manutenção da cadeia de custódia do sangue, de modo a que não subsista qualquer dúvida de que o sangue examinado – no caso com vista à deteção e quantificação da taxa de álcool – pertence ao sujeito a quem o resultado do exame será imputado. Contudo, como refere o acórdão do TRG de 09.03.2020 (proc. n.º 91/18.GAVNH.G1), «… o incumprimento de alguns dos procedimentos aí referidos ou o seu cumprimento de forma diferente da exatamente prevista, só afetará o valor do respetivo exame de avaliação do estado de influenciado pelo álcool, em termos de o mesmo deixar de poder ser utilizado para o fim a que se destina, se e na medida em que a inviolabilidade da cadeia da custódia do sangue e a fidedignidade na atribuição do resultado do exame forem postas em causa pelo incumprimento ou cumprimento defeituoso do concreto passo estabelecido nos mencionados preceitos».

De facto, não estabelecendo o complexo normativo acima identificado a consequência para o incumprimento ou cumprimento defeituoso dos ditos procedimentos a “falha” só pode relevar se efetivamente puser em causa a fidedignidade do resultado do exame e/ou da respetiva atribuição a um concreto individuo. Dito de outro modo, apenas perante tal circunstância terá de ser ponderada a proibição de valoração da prova do mesmo resultante.

Aqui chegados podemos desde já avançar não assistir razão ao recorrente.

Se por um lado, ao médico cabe “promover a colheita” do sangue, o que evidentemente não exige que seja o próprio a executar o ato material de colheita, não tendo fundamento a objeção a propósito apresentada, por outro lado, também a circunstância de não ter sido ele (médico) a preencher o impresso do modelo do anexo I, posto que o assinou, fazendo inscrever no mesmo o número da sua cédula profissional, não constitui qualquer nulidade ou outra causa de invalidade porquanto insuscetível de abalar a “manutenção da cadeia de custódia do sangue”, isto é de fazer duvidar de que o sangue examinado, com vista à averiguação e quantificação da taxa de álcool, e cujo resultado vem imputado ao arguido/recorrente, coincide com aquele que lhe foi efetivamente extraído. Como ficou consignado no acórdão do TRE de 21.04.2015 (proc. n.º 45/09GECUB.E3) «não se vê como possa a inviolabilidade da cadeia da custódia do sangue e a fidedignidade na atribuição do resultado do exame serem afetados pela circunstância de não ser o próprio médico com a sua própria mão, a preencher [o] formulário de requisição ao IML de um exame de alcoolemia».

Pelo que, bem andou o tribunal a quo quando discerniu: «Ora, é certo que (…) não foi o médico que preencheu o anexo I constante de fls. 7. No entanto, o médico, ao assinar o referido documento e ao apor o respetivo número de cédula [que substitui a vinheta], atestou, dessa forma, a conformidade dos dados ali apostos pelo militar da GNR».

Pela mesma ordem de razões, não é difere a resposta à objeção quanto ao facto de a vinheta de identificação profissional do médico não constar do anexo I (nem do seu triplicado). Com efeito, contendo o impresso a assinatura do médico que promoveu a colheita, seguida do respetivo número de cédula profissional - elementos que permitem a sua identificação - não se vê como possa um tal fundamento abalar a fidedignidade do resultado do exame e/ou da sua imputação à pessoa do arguido/recorrente.

Por fim, também a questão que se prende com a bolsa em que foi introduzido o tubo de ensaio, encontra adequada ponderação nos segmentos supra transcritos da sentença, agora complementados com as seguintes passagens: “De facto, entendendo-se que a inutilização da bolsa de um determinado Kit implicaria necessariamente a inutilização do tubo desse mesmo Kit, tal facto obstaria simplesmente à realização do teste pretendido, uma vez que, por um lado, contendo cada tubo os correspondentes anticoagulante e conservante [cf. a alínea a) do §5.º da secção II da Portaria 902-B/2007] não pode haver transferência da amostra de sangue de um tubo para outro e, por outro lado, ao tempo da segunda colheita já teria decorrido um lapso de tempo bastante para, aí sim, pôr em causa a correspondência entre a quantidade de álcool no sangue no momento da colheita e a quantidade de álcool no sangue no momento da condução. (…), volvendo ao caso concreto, tendo por assente que a amostra de sangue do arguido foi colhida em conformidade com o procedimento legal nos termos acima enunciados, verificamos, outrossim, a correspondência do código [selo n.º 54090] aposto no documento de fls. 7 [anexo I], no documento de fls. 235 [bolsa] e no relatório final de fls. 9. Mostra-se, assim, confirmada a genuinidade e conformidade dos referidos documentos”.

Concluindo, não se assistindo à valoração de prova proibida e não cominando o legislador com qualquer consequência – muito menos com nulidade - o incumprimento ou cumprimento defeituoso dos procedimentos descritos na Secção II da Portaria n.º 902-B/2007, de 13.04, posto que das “falhas” não resulte abalada a manutenção da cadeia de custódia do sangue e a fidedignidade na atribuição do resultado do exame, como é o caso, soçobra, nesta parte, o recurso, perdendo, assim, alcance prático a “suposta” impugnação da decisão de facto, em qualquer das suas vertentes.

Finalmente, a interpretação levada a efeito pelo tribunal a quo dos identificados preceitos normativos não viola quer o acusatório, quer a presunção de inocência/in dubio pro reo, mostrando-se destituída de fundamento a invocada inconstitucionalidade.

III. Dispositivo

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar improcedente o recurso.

Custas, com taxa de justiça que se fixa em 4 (quatro) UCs, a cargo do recorrente – [cf. artigos 513.º e 514.º do CPP; artigo 8.º do RCP, com referência à tabela III].

Coimbra, 16 de Fevereiro de 2022

Texto processado e revisto pela relatora.

Maria José Nogueira (relatora)

Isabel Valongo (adjunta)