Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
51/06.1TAFZZ.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
PRINCÍPIO DO ACUSATÓRIO
Data do Acordão: 04/21/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE FERREIRA DO ZÊZERE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS, 32º DA CRP, 283º, 311º DO CPP
Sumário: Se na acusação o local da prática do crime não está perfeitamente indicado, mas é claramente identificável através dos factos ali narrados, não ocorre ausência de factos para os efeitos do disposto na al. b) do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal, e daí que acusação não seja manifestamente infundada.
Decisão Texto Integral: A - Relatório:

No processo comum com intervenção de tribunal singular que corre termos no Tribunal de Ferreira do Zêzere com o número supra referido, por despacho lavrado a 6 de Janeiro de 2010, a fls. 100-101, a Mmª Juíza rejeitou a acusação deduzida nos autos pelo MºPª com fundamento na manifesta improcedência da mesma por ausência de um elemento objectivo do crime de furto simples e por um crime de introdução em local vedado ao público imputados ao arguido, designadamente o local da ocorrência dos factos.

Inconformado com uma tal decisão, dela interpôs a Digna magistrada do Mº Pº recurso pedindo que lhe seja concedido provimento por revogação do despacho recorrido, substituindo-o por outro que receba a acusação deduzida nos presentes autos, com as seguintes conclusões:

a) Por despacho, datado de 6 de Janeiro de 2010, rejeitou o tribunal a quo a acusação constante de fls 42 a 47, referindo que a mesma padece de nulidade pois não concretiza o lugar da prática dos factos, nos termos do art. 283° nº 3 al. b) do Código de Processo Penal, sendo, desta forma, manifestamente infundada, segundo o art. 311° nº 2 al. a) e nº 3 do Código de Processo Penal.

b) Nos termos do art. 311° nº 2 “recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa, desde logo conhecer", sendo que “se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido ( ... ) de rejeitar à acusação, se a considerar manifestamente infundada" ou seja, "( ... ) quando não contenha a narração dos factos":

c) Por sua vez, estabelece o art. 283° nº 3 do Código de Processo Penal que "a acusação contem, sob pena de nulidade (...) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada".

d) Como se pode verificar, no art. 283° nº 3 do Código de Processo Penal encontramos a previsão genérica das nulidades da acusação, que deverão ser tratadas de acordo com o regime geral das nulidades processuais, por referência ao regime da taxatividade e, por isso dependentes de arguição e sanáveis.

e) Por seu turno, no art. 311° nº 3 do Código de Processo Penal encontramos os casos extremos, indicados pelo legislador como de ameaça extrema aos princípios processuais penais com assento constitucional, reconduzindo-nos a um tipo de nulidade sui generis, insuperável ou insanável.

f) Importa relembrar que são factos juridicamente determinantes aqueles que descrevem os elementos indiciários da prática do crime, ou seja, aqueles que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, sendo circunstâncias as indicações de tempo, modo, lugar, grau de participação e as relevantes para a determinação da sanção que deva ser aplicada.

g) Apenas a omissão quanto a factos juridicamente relevantes dará lugar à rejeição da acusação, nos termos do art. 311° nº 3 al. b) do Código de Processo Penal.

h) A falta de indicação das circunstâncias de tempo ou lugar em que ocorreram os factos descritos na acusação pode ser sanada no início da audiência de julgamento, de acordo com o disposto nos arts. 340°, 358° e 359° do Código de Processo Penal.

i) Acresce que, a nulidade apreciada pelo tribunal a quo se assume como uma nulidade dependente de arguição - cfr. Arts. 120°, 121° e 283° nº 3 do Código de Processo Penal, não podendo o tribunal a quo dela conhecer oficiosamente.

j) Por forma a aferir do pressuposto da competência territorial do tribunal a quo sempre se dirá que o mesmo resulta de elementos de prova constantes dos autos, nomeadamente do auto de 1 ° interrogatório de arguido detido, ou mesmo do próprio despacho de encerramento do inquérito que deve, salvo melhor entendimento, ser entendido como um todo.

Termos em que requer que o recurso seja julgado procedente e, consequentemente seja o despacho recorrido substituído por outro que receba a acusação e designe data para a realização da audiência de discussão e julgamento.


*

Nesta Relação, a Exmª Procuradora-geral Adjunta, secundando o entendimento expresso no recurso, emitiu parecer no sentido da procedência do mesmo.

Foi observado o disposto no nº 2 do artigo 417° do Código de Processo Penal.

Colhidos os vistos, o processo foi à conferência.


*

B - Fundamentação:

B.1 - São estes os elementos de facto relevantes, decorrentes do processo:

No processo comum com intervenção de tribunal singular que corre termos no Tribunal de Ferreira do Zêzere com o número supra referido, por despacho lavrado a 6 de Janeiro de 2010, a fls. 100-101, a Mmª Juíza lavrou o seguinte despacho:

“Nos termos do disposto no artigo 311°, nº 2, alínea a) do Código de Processo Penal, «se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada (...)».

Por sua vez, prevê o n." 3 do mesmo normativo que a acusação se considera manifestamente infundada:

a) Quando não contenha a identificação do arguido;

b) Quando não contenha a narração dos factos;

c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam e, por último,

d) Se os factos não constituírem crime.

No caso em apreço, o arguido vem acusado da prática de um crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203.°, nº 1 e por um crime de introdução em local vedado ao público, p. e p. pelo artigo 191.°, ambos do Código Penal.

Como resulta do disposto no artigo 283.°, nº 3, alínea b) do Código de Processo Penal, sendo possível determinar o lugar da prática do factos, deve a acusação conter tal menção, sob pena de nulidade.

Todavia, não se mostra descrito na acusação o local onde se localizava o armazém de bebidas da empresa "Cobezer", local onde terão ocorrido os factos imputados ao arguido, sendo que, de acordo com as informações constantes do auto de notícia de fls. 4, seria possível determinar o lugar da prática dos factos imputados ao arguido.

Por outro lado, para aferir da competência territorial deste Tribunal, sempre seria necessário concretizar factos de onde se permitisse retirar que a prática de um eventual crime tivera lugar em área desta comarca.

Nestes termos, havendo total omissão de referência ao lugar onde ocorreram os factos, tal omissão deve ser considerada suficiente para rejeitar a acusação, sendo esta a única possibilidade que se impõe (Neste sentido, vd Acórdão da Relação de Lisboa de 6 de Julho de 2006, in www.dgsi.pt)

Pelo exposto, atentas as considerações expendidas e as normas legais invocadas, rejeito a acusação de fls. 42-46 por manifestamente infundada e nula, nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 311.°, nº 2, al. a) e nº 3 b) e 283.°, nº 3 do Código de Processo Penal.

Notifique”.

O MºPº havia deduzido acusação, na qual constava, de entre outros, os que se referem ao local da prática dos factos:

…..

“No dia 9 de Junho de 2006, cerca das 22h00m, o arguido e um individuo de identidade não apurada, conforme combinado entre si, dirigiram-se para o armazém de bebidas da empresa "C..", de que F... é legal representante, com o intuito de se apoderarem de bem que aí encontrassem.

Este armazém encontra-se vedado ao público, estando delimitado por um muro, com uma vedação de rede e um portão.

Uma vez aí chegado, o arguido e o outro indivíduo, de modo não apurado, entraram para o pátio do referido armazém, sem que, para tal, estivessem autorizados por F… ou por alguém em seu nome”.

……..


*****

B.2 -  O objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação – art.º 403, nº1, e 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

A questão abordada no recurso reconduz-se, pois, a apurar se à acusação deduzida pelo MºP falta um dos elementos objectivos do ilícito penal imputado ao arguido e, por isso, se é manifestamente infundada.


***

O essencial da presente matéria já foi abordado, em acórdão lavrado na Relação de Évora pelo mesmo relator do presente acórdão.

Nesse acórdão (da Relação de Évora, de 10-10-2006, proc. nº 996/06-1) a propósito de um crime de desobediência, sumariava-se:

                                                                                 

“1.É mera assunção constitucional do princípio do acusatório a nítida separação entre entidade acusadora e juiz de julgamento e a distinção entre fases do processo, estabelecendo o legislador, de forma clara, o papel do Ministério Público enquanto entidade dominus do inquérito, quanto à promoção do processo e à dedução da acusação.

2. Ao juiz de julgamento, assim impedido de se pronunciar quanto a essa fase processual – a acusação – restaria o papel de direcção da fase de julgamento.

3. O legislador viu-se obrigado a restringir estes efeitos extremos de um processo acusatório puro, um puro “adversarial system”, mas fê-lo de forma clara e excluindo a possibilidade de um retorno a um sistema que fizesse repristinar o artigo 351º do Código de Processo Penal de 1929.

4. O papel da al. a) do nº 2 e das quatro alíneas do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal é o de evitar que casos extremos de iniquidade da acusação conduzam a julgamento um cidadão que se sabe, será decididamente absolvido, pretendendo evitar sujeitá-lo, inutilmente, a um processo incómodo e vexatório.

5. Sujeitando-se ao risco de inconstitucionalidade, já que atribui ao mesmo juiz o papel de fiscalizador moderado da acusação e de presidente da fase de julgamento, algo afastado pelo processo acusatório, risco excluído pela interpretação tendencialmente taxativa e restritiva a que haverá que sujeitar o citado preceitos.

6. Essa tendencial taxatividade só poderá ser ultrapassada em casos de idêntica ou mais grave natureza não previstos pelo legislador, mas de igual ou mais grave violação da constituição processual penal.

7. As alíneas do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal consagram uma forma de nulidade da acusação por referência a uma forma extremada do vício, em contraposição com as nulidades sanáveis previstas no artigo 283º, nº 3 do Código de Processo Penal”.

E, nesse acórdão, citado pela Digna magistrada do MºPº em 1ª instância nas suas alegações de recurso e que sustentam as suas conclusões d) e e), mas sem aspas e sem indicação da fonte, afirmava-se:

«Como afirma Germano Marques da Silva, o arguido tem que se defender de “factos juridicamente qualificados”, com relevância normativa, e esse está contido na acusação, não obstante se possa afirmar que melhor estaria se contivesse aquela data.
Daí não resulta – da ausência da data – que se possa afirmar que a acusação não poderá proceder ou que o arguido se não possa dela defender.
Os factos citados como constando da acusação serão suficientes, mesmo que se venha a entender proceder ao seu complemento em audiência de julgamento, já que o tribunal não está impedido de o fazer, ainda que o considere como alteração não substancial, nos termos do artigo 358º do Código de Processo Penal.  
No entanto, não nos parece que tal ocorra, pois que a aposição de tal data será mera decorrência do facto já contido na acusação.
Como se afirmava no acórdão do STJ de 7 de Maio de 1997 (BMJ, 467, 419):

I - A acusação, à semelhança de qualquer outro texto, mesmo que não jurídico, não pode ser lida e interpretada sectorialmente e em função de frases isoladas, mas antes globalmente.
II - É lícito ao tribunal explicar com pormenores os factos constantes do despacho acusatório e dar como assente matéria de facto que é mero desenvolvimento dos factos que dele constavam, desde que não saia do âmbito do seu conteúdo fáctico, nem com essa pormenorização agrave a posição processual do arguido. (Ac. STJ de 7 de Maio de 1997; BMJ, 467, 419);

b) - Estes considerandos preliminares reenviam-nos para a questão essencial do presente recurso. Poderia o Sr. Juiz recorrido, com tal enquadramento, rejeitar a acusação por manifestamente infundada?
É um dado assente, não obstante nem sempre apreendido, que o actual Código de Processo Penal português se perfila como um processo de “máxima acusatoriedade … compatível com a manutenção, na instrução e em julgamento, de um princípio de investigação judicial”, tal como afirmado pelo Prof. Figueiredo Dias em nome da Comissão de Reforma do Código de Processo Penal, [1] expressão que ficou a constar do nº 4, nº 2 do artigo 2º da Lei de autorização legislativa em matéria de processo penal, Lei nº 43/86, de 26 de Setembro.
Enfim, a consagração do sistema acusatório com princípio da investigação, já defendido por aquele ilustre penalista nas suas lições de 1974, [2] reafirmadas no processo legislativo [3] e elogiado pelo que significa de “superação da tradicional antinomia entre os modelos «inquisitório» e «acusatório»”, como salientou a Prof. Mireille Delmas--Marty. [4]
Daqui resulta, incontestavelmente, como mera assunção constitucional do princípio do acusatório, a nítida separação entre entidade acusadora e juiz de julgamento (dimensão orgânico-subjectiva do princípio do acusatório) e a distinção entre fases do processo (no caso, acusação e julgamento), no que é definido como a dimensão material daquele princípio. [5]
É assim que o Código de Processo Penal vem a estabelecer, de forma clara, o papel do Ministério Público, enquanto entidade dominus do inquérito, quanto à promoção do processo e à dedução da acusação nos artigos 48º e 53º do Código de Processo Penal (com as naturais limitações constantes dos artigos 49º a 52º do mesmo diploma).
Ao juiz de julgamento, assim impedido de se pronunciar quanto a essa fase processual – a acusação – restaria o papel de direcção da fase de julgamento (no que ao caso concreto interessa, já que a instrução se não encontra em discussão), balizado e limitado pelo conteúdo da acusação, pelo thema decidendum (objecto do processo) e pelo thema probandum (extensão da cognição), no que seria uma manifestação de alguma disponibilidade das “partes” na definição do que se pretenda seja apreciado pelo tribunal.
Naturalmente que o nosso legislador se viu obrigado a restringir estes efeitos extremos de um processo acusatório puro, um puro “adversarial system”.
Mas fê-lo de forma clara e mitigada, excluindo a possibilidade de um retorno a um sistema inquisitorial, mesmo que mitigado, que fizesse repristinar o polémico e sarilhento artigo 351º do Código de Processo Penal de 1929.
É esse o papel da al. a) do nº 2 e das quatro alíneas do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal. Evitar a todo o custo que casos extremos de iniquidade da acusação conduzam a julgamento um cidadão que se sabe, será decididamente absolvido, pretendendo evitar sujeitá-lo, inutilmente, a um processo incómodo e vexatório.
Naturalmente sujeitando-se ao risco de inconstitucionalidade, já que atribui ao mesmo juiz o papel de fiscalizador moderado da acusação e de presidente da fase de julgamento, algo excluído pelo processo acusatório. Esse risco, no entanto, parece estar limitado, excluído, diríamos, pela interpretação restritiva a que haverá que sujeitar os citados preceitos.

*
2 - Aliás, é bem elucidativo o desenvolvimento legislativo e jurisprudencial sobre o tema.
A primeira versão de tal artigo apenas continha os dois primeiros números:
ARTIGO 311º
(Saneamento do processo)
1. Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa de que possa, desde logo, conhecer.
2. Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
 De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
 De não aceitar a acusação do assistente na parte em que ela representa uma alteração substancial da acusação do Ministério Público, nos termos do artigo 284.°, nº 1.

Face à profusão de posições sobre o conceito de “acusação manifestamente infundada”, reconduzindo algumas delas à prolação de jurisprudência obrigatória (já caduca) que, no extremo, veio a consagrar a possibilidade de rejeição da acusação por manifesta insuficiência da prova indiciária (acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 17-02-1997, in DR. I-A, de 26 de Março), o legislador [6] vem a propor a alteração do preceito, alterando os números 1 e 2 e aditando o nº 3 com três alíneas, como segue:
ARTIGO 311
(Saneamento do processo)
1. Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem a apreciação do mérito da causa e de que possa, desde logo, conhecer.
2. Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido Instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar mani­festamente infundada:
b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos dos artigos 284.°, n. ° 1, e 285.°, n. ° 3, respectivamente.
3. Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
c) Se os factos não constituírem crime.

 Será assim que a Lei nº 59/98, de 25 de Agosto virá a alterar neste sentido o artigo 311º do Código de Processo Penal, aditando-se, no entanto, uma quarta alínea por sugestão do Cons. Maia Gonçalves, [7] ficando o preceito com a actual redacção, a saber:

3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.

Esta evolução, fazendo caducar a doutrina do acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 17-02-1997, é esclarecedora do reforço claro das dimensões orgânico-subjectiva e material do princípio do acusatório, constitucionalmente consagrado.
E as diversas alíneas do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal definem, de forma clara, a área de actuação do juiz de julgamento, ao qual se impõe, em obediência àquele princípio, uma interpretação restritiva daquelas alíneas.
*
3 - Aliás, é interessante verificar que as várias alíneas daquele nº 3 vêm a consagrar uma forma de nulidade da acusação por referência a uma forma extremada do vício.
As nulidades da acusação estão previstas no artigo 283º, nº 3 do Código de Processo Penal.
Como se sabe e em obediência ao princípio da taxatividade das nulidades processuais, estão construídas como nulidades sanáveis – cfr. artigos 118º a 120º do Código de Processo Penal.
Todos os casos referidos no nº 3 do artigo 311º se contêm – de forma mais ou menos explícita - nas previsões das alíneas do nº 3 do artigo 283º.
Daí que exista uma íntima conexão entre o nº 3 do artigo 283º e os números 2 e 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal.
Ali a previsão genérica das nulidades da acusação, que deverão ser tratadas de acordo com o regime geral das nulidades processuais, por referência ao regime da taxatividade e, por isso dependentes de arguição e sanáveis.
Aqui os casos extremos, indicados pelo legislador como de ameaça extrema aos princípios processuais penais com assento constitucional, reconduzindo-nos a um tipo de nulidade sui generis, insuperável ou insanável enquanto se mantiver acto imprestável, mas passível de correcção pelo Ministério Público, a ponto de se permitir ao Juiz de julgamento a intromissão – atípica num acusatório puro – na acusação, de forma a evitar conduzir a julgamento casos em que seria manifesto isso se não justificar.
Assim, nos casos do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal, não obstante o não afirmar, o legislador veio a consagrar um regime de nulidades da acusação que, face à sua gravidade e à intensidade da violação dos princípios processuais penais contidos na CRP, são insuperáveis, insanáveis enquanto a acusação mantiver o mesmo conteúdo material. 
De facto, a falta dos elementos referidos naquelas alíneas acarretaria uma gravíssima violação dos direitos de defesa do acusado, tornando inviável o exercício dos direitos consagrados no artigo 32º da CRP.
Naturalmente que essa tendencial taxatividade só poderá ser ultrapassada em casos de idêntica ou mais grave natureza não previstos pelo legislador, mas de igual ou mais grave violação da constituição processual penal. Veja-se o exemplo citado por Simas Santos, Leal Henriques, Borges de Pinho, de acusação do lesado em vez do arguido [8] ou de familiar deste em vez do arguido.
Em termos práticos, se ao juiz de julgamento não é permitido, em homenagem às dimensões material e orgânico-subjectiva da estrutura acusatória do processo, imiscuir-se ex oficio, nas nulidades genericamente referidas no nº 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal, já se lhe impõe que impeça a ida a julgamento de acusações nos casos contados previstos no nº 3 do artigo 311º.
*
4 - Estas maiores cautelas - e necessidade de uma interpretação restritiva – na ingerência na acusação mais se justificam se recordarmos que estamos face a casos em que o processo foi remetido a julgamento sem instrução. É que, nestes casos e face à dimensão orgânico-subjectiva do princípio do acusatório, exigir-se-ia que fossem diversos os juízes: o que aprecia a acusação e o juiz de julgamento.
Não sendo isso possível ou exequível, melhor se entende a tendencial taxatividade e necessidade de interpretação restritiva das hipóteses de rejeição por manifesta improcedência, única forma de evitar que o juiz que irá proceder ao julgamento se pronuncie sobre a substância da acusação, com a consequente desconformidade ao texto constitucional.
Ora, o caso sub judicio está longe de configurar a hipótese da alínea b) do nº 3 do artigo 311º, que deverá ser interpretada, de forma extrema, como de ausência total ou parcial mas grave, “manifesta”, de factos. »

Que dizer do caso ora em apreciação?

Que, indubitavelmente, se trata, no mínimo, de caso de nulidade sanável prevista no nº 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal.

De facto, a acusação é deficiente já que não localiza o armazém de bebidas numa localidade, rua e número. Falta a precisa localização do “armazém de bebidas da empresa "C", de que F.. é legal representante”, designadamente o nome da localidade, da rua e o número de polícia.

Resta saber se se trata, também, de caso a inserir na previsão da al. b) do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal.

Reitera-se a opinião de que as nulidades sanáveis previstas no art. 283º do CPP podem assumir tal gravidade que se não fiquem por essa natureza de gravidade relativa mas assumam o papel de obstáculo absoluto à passagem para a fase processual de julgamento.

Será essa localização um “facto” relevante para o efeito previsto na al. b) do nº 3 do art. 311º do CPP?

E isto, quer para a precisa determinação do âmbito da acusação (e respectiva integração legal), quer o que seja juridicamente relevante para o exercício do direito de defesa.

Por outro lado, convém não olvidar que a acusação é que delimita o thema decidendum (objecto do processo) e o thema probandum (extensão da cognição).

Na sequência, o conteúdo do despacho de arquivamento é irrelevante para os temas levados a julgamento, assim como o conteúdo do auto de notícia.

Ora, se o juiz se encontra balizado e limitado pelo conteúdo da acusação, é de todo conveniente que a acusação contenha os factos que já foram adquiridos em inquérito (o “possível” a que se refere o artigo 283º do Código de Processo Penal) e que sejam essenciais à subsunção normativa e ao exercício do direito de defesa. E a precisa localização do armazém já se encontrava referida nos autos.

O local da prática de um crime de furto simples e de um outro crime de introdução em local vedado ao público revela-se essencial quer para a integração normativa, quer para o direito de defesa. Um outro local pode significar a prática de distintos crimes.

Como já afirmava o Prof. Eduardo Correia, [9]o facto criminoso, a infracção, é o necessário ponto de partida do direito penal, sendo este sempre, portanto, um direito penal do facto

Por outro lado, num argumento de maior formalismo mas não despiciendo, de entre as nulidades sanáveis do artigo 283º do Código de Processo Penal, o legislador foi claro na escolha indistinta dos “factos” como motivo de “manifesta improcedência” da acusação na al. b) do artigo 311º do Código de Processo Penal.

Num argumento mais substancial, os “factos” (a sua falta) foram entendidos pelo legislador como tendo uma dignidade normativa suficiente para merecer a sanção extrema da improcedência manifesta, não fazendo a al. b) do artigo 311º do Código de Processo Penal destrinça sobre quais os factos previstos no artigo 283º, nº 2 do mesmo diploma que merecem tal mais exigente registo.

E, convenhamos, o local da prática de um crime assume um relevo de monta de entre os factos referidos naquela norma. A sua não inclusão na acusação representa um inultrapassável inconveniente para a defesa e um potencial revés para a própria acusação.

Mas faltará o facto? Ou estará este apenas incompleto?

O que consta da acusação é que “No dia 9 de Junho de 2006, cerca das 22h00m, o arguido e um individuo de identidade não apurada, conforme combinado entre si, dirigiram-se para o armazém de bebidas da empresa "C", de que F é legal representante, com o intuito de se apoderarem de bem que aí encontrassem”.

Ora, o facto com sentido normativo está exposto faltando apenas a precisa localização do armazém identificado, sendo certo que a sua localização é determinável pelos elementos já constantes do processo. Trata-se, pois, de acusação deficiente mas passível de correcção.

E, se é possível afirmar que a acusação sofre da nulidade sanável contida no artigo 283º do Código de Processo Penal (logo, não passível de conhecimento oficiosos), não é possível afirmar uma ausência manifesta de “facto” a incluir na previsão da al. b) do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal.

É certo que se a sentença viesse a conter tal facto nos termos expostos na acusação padeceria de vício insanável a incluir na previsão do artigo 410º do Código de Processo Penal.

Mas, muito embora a acusação se destine a fazer-se valer de forma autónoma em julgamento, não deixa de ser uma peça provisória, a narração de “um pedaço de vida” a comprovar. É um ponto de partida factual e normativo passível de alteração ou correcção, ao contrário do que acontece com uma sentença.

E a alteração a proceder – a mera localização espacial de um armazém identificado – nem sequer assume a natureza de uma alteração não substancial com relevo.

Por outro lado, a atribuição de competência ao tribunal para conhecer dos factos dos presentes autos não foi efectuada em função do conteúdo da acusação, mas sim do teor do auto de notícia e restantes elementos indiciários existentes nos autos, pelo que é argumento não relevante.

Por tudo, o recurso deve proceder.


*

B - Dispositivo:

Face ao que precede, os Juízes da 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra concedem provimento ao recurso e, em consequência, revogam o despacho recorrido, o qual, oportunamente, deverá ser substituído por outro que designe data para julgamento.

Notifique.

Não são devidas custas.

Coimbra, 

(Processado e revisto pelo relator)

João Gomes de Sousa

Calvário A

[1]  - “Grandes princípios orientadores da elaboração do projecto de Código de Processo Penal”, 1984, in “Jornadas de Processo Penal” – Revista do MP, Cadernos 2 – pag. 330. 
[2]  - “Direito Processual Penal” – Coimbra Editora, 1974, pags. 71-72.
[3]  - “Código de Processo Penal – Processo Legislativo”, vol. II – Tomo II, Assembleia da República, 1999, pag. 24.
[4]  - Delmas-Marty, Prof. Mireille - “A caminho de um modelo europeu de processo penal” in Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, Ano 9, Fasc. 2º, Abril-Junho, pag. 229-231, 1999 e “Conferência Parlamentar – A Revisão do Código de Processo Penal”, in “Código de Processo Penal – Processo Legislativo”,  Vol. II – Tomo II, Assembleia da República, Lisboa, pag. 33, 1999.
[5]  - “Constituição da República Portuguesa Anotada – Gomes Canotilho e Vital Moreira, Coimbra Editora, 1993, pag. 206.
[6]  - Projecto de Revisão do Código de Processo Penal – Proposta de Lei apresentada à Assembleia da República – Ministério da Justiça, 1998.
[7]  - V. g. “Código de Processo Penal Anotado” – 2004, pag. 616.
[8]  - In “Código de Processo Penal” – 2º Vol., Rei dos Livros, pag. 202.
[9]  - “Direito Criminal”, Vol. I, 231, Almedida, 1971.