Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
26/14.7T8CNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
AUTO-ESTRADA
ANIMAL
CONCESSIONÁRIA
JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA
Data do Acordão: 01/12/2016
Votação: MAIORIA COM VOTO DE VENCIDO
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - CANTANHEDE - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.1º Nº5 DA LEI Nº 67/2007 DE 31/12, 4º Nº1 I) ETAF ( LEI Nº 13/2002 DE 19/2, DL Nº 294/97 DE 24/10
Sumário: 1.- Para determinar a competência dos tribunais administrativos no que concerne às acções de responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito privado, há que verificar se a mesma está, ou não, sujeita ao regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, nos termos do art. 1º, nº 5, da Lei 67/2007, de 31.12.

2.- Nos termos do citado art. 1º, nº 5, da Lei 67/2007, tais entidades privadas ficam submetidas a um regime de responsabilidade administrativa, com a consequente sujeição à jurisdição dos tribunais administrativos, nos termos do art. 4º, nº 1, i), do ETAF, sempre que esta responsabilidade seja emergente do exercício de uma actividade administrativa, constituindo factores indicativos duma actividade desta natureza o uso de prerrogativas de poder público e a sujeição dessa actividade a disposições ou princípios de direito administrativo.

3.- Cabe ao Tribunal Administrativo a competência para conhecer da acção proposta contra a Brisa e a sua seguradora, com vista a obter a sua condenação no pagamento de indemnização emergente de acidente de viação em consequência de suposta omissão por ela praticada como concessionária de obra pública – exploração da A1 – , nos termos das disposições conjugadas dos mencionados arts. 4º, nº 1, i), do ETAF e 1º, nº 5, da Lei 67/2007.

Decisão Texto Integral:

I - Relatório

1. J (…) e esposa M (…) instauraram contra a “Brisa-Concessão Rodoviária, SA” e “K... – Companhia de Seguros, SA, no Tribunal de Cantanhede, acção declarativa, de condenação, sob a aforma de processo comum.

Pediram:

A condenação das rés a pagarem-lhe uma indemnização no montante global de 7.205,28 €, acrescido de juros de mora desde citação, à taxa legal, até efectivo e integral pagamento.

Alegaram, em síntese: no dia 08.10.2011, cerca das 19.40h, a autora mulher, condutora do veículo ligeiro de passageiros de matrícula (...)VF, pertença dos demandantes, quando circulava na auto-estrada nº 1, ao Km 35/150, zona de Ançã, no sentido Figueira da Foz-Coimbra, foi surpreendida pelo súbito atravessamento de um animal de raça canina, acabando por embater com parte da frente do veículo no referido animal. Desse acidente resultaram danos para os autores, da responsabilidade da ré Brisa Auto-Estradas de Portugal, SA, porquanto sendo concessionária da auto-estrada não tomou as precauções necessárias para prevenir o acidente, e da ré seguradora na medida em que assumiu a responsabilidade civil daquela pelo pagamento das indemnizações devidas a terceiros naquela sua qualidade de concessionária.

Ambas as rés apresentaram contestação impugnando a factualidade alegada pela autora.

Prosseguiram os autos com a prolação de despacho saneador, tendo sido agendada audiência de julgamento no início da qual, e uma vez frustrada a tentativa de conciliação, foi proferido despacho, concedendo-se oportunidade às partes de se pronunciarem relativamente à (in)competência do tribunal em razão da matéria.

Notificadas, pronunciaram-se as partes no sentido da competência deste Tribunal, aduzindo essencialmente que à ré Brisa não é aplicável o regime específico da responsabilidade do estado e demais pessoas colectivas públicas, e que a mesma não é uma pessoa colectiva pública, mas uma sociedade anónima de direito privado que não actua com as prerrogativas de direito público.

2. Seguidamente foi proferido despacho no qual se decidiu: «…ao abrigo dos normativos atrás citados, decide-se declarar a incompetência absoluta deste Tribunal em razão da matéria por tal competência pertencer aos Tribunais Administrativos e, consequentemente, absolver as rés da instância.»

3. Inconformados recorreram os autores.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

I-No âmbito dos presentes autos, foram as rés absolvidas da instância em virtude do Tribunal a quo se ter declarado absolutamente incompetente, em razão da matéria, por tal competência pertencer aos Tribunais Administrativos, nos termos da al. i) do nº1 do artigo 4º do ETAF.

II-Assim, para que tal entendimento fosse sufragável era necessário que: 1.A acção tenha por objecto a responsabilidade civil extracontratual; 2. O responsável seja uma entidade privada; 3.À entidade privada responsável seja aplicável o regime específico da responsabilidade do estado e demais pessoas colectivas de direito público;

III-Ora, a Brisa-Concessão Rodoviária, S.A. é uma pessoa colectiva de direito privado, tendo sido demandada para efectivação da sua responsabilidade civil extracontratual, na qualidade de empresa concessionária da via rodoviária onde ocorreu o acidente, devido àquela não ter assegurado a segurança da circulação da via, como estava obrigada, pelo que se encontram verificados os pressupostos referidos em II.1 e II.2.;

IV-Sucede que, em nosso entender, falece a verificação do último pressuposto, uma vez que a responsabilidade da ré Brisa por indemnizações devidas a terceiros por acidentes de viação ocorridos nas auto-estradas por falha objectiva das condições de segurança, na qual se incluiu o atravessamento de animais, como sucede no caso dos autos, não se encontra sujeita ao regime previsto na Lei 67/2007 que regula a responsabilidade extracontratual do Estado e demais entidades Públicas;

V-No mais, o legislador afastou expressamente a co-responsabilidade do Estado nessas circunstâncias, uma vez que o nº1 da Base XLIX sob a epígrafe “Indemnizações a terceiros” dispõe que “São da inteira responsabilidade da concessionária todas as indemnizações que, nos termos da lei, sejam devidas as terceiros em consequência de qualquer actividade decorrente da concessão”;

VI-Ora, tal disposição acentua a natureza privada da responsabilidade da concessionária perante terceiros, afastando a existência de prerrogativas de direito público;

VII-Razão pela qual entendemos que é inaplicável ao caso sub judice o regime específico da LRCEE mas sim as regras do direito civil, tratando-se de um conflito de natureza privada em que ré Brisa não actua investida de jus imperii, como entendemos verificado in casu.

VIII-Assim sendo, não se encontram reunidos os pressupostos para sujeitar a determinação de tal responsabilidade aos tribunais administrativos, nos termos do disposto no nº1 do artigo 4º do ETAF, funcionando, assim, a regra da competência residual dos tribunais judiciais pelo que o Tribunal a quo é o competente para conhecer do objecto da acção. Nestes termos e nos melhores de direito deve o presente recurso merecer provimento em toda a sua extensão e, em consequência, ser a douta Sentença revogada, considerando-se o J1, Secção Cível- Instância Local de Cantanhede-Comarca de Coimbra, materialmente competente para o Julgamento da causa.

4. Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e e 639º  do CPC - de que o presente caso não constitui excepção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

- Competência material: do tribunal comum ou do tribunal administrativo?

5. Apreciando.

A questão está mais do que debatida e escalpelizada nos seus possíveis argumentos.

Os que defendem a competência do tribunal administrativo em casos como o presente, - a maioria na jurisprudência, vg. do tribunal de conflitos – argumentam tal como expendido pela julgadora do caso sub judice, a saber:

«A competência em razão da matéria é fixada em função dos termos em que a acção é proposta, tendo em conta o teor da pretensão do autor e dos fundamentos em que a baseia. Cfr. Ac T. Conflitos. 23.09.2004, proc. 05/04, disponível em www.dgsi.pt, cujo sumário reza assim: “I - A determinação do tribunal materialmente competente para o conhecimento da pretensão deduzida pelo Autor deve partir do teor desta pretensão e dos fundamentos em que se baseia sendo, para este efeito, irrelevante o juízo de prognose que se possa fazer relativamente à viabilidade da mesma (por se tratar de questão atinente ao mérito da pretensão). II - A competência terá, por isso, de se aferir pelos termos da relação jurídico-processual tal como foi apresentada em juízo.”

Na presente lide pretendem os autores a condenação das rés no pagamento de indemnização pelos danos decorrentes do acidente de viação ocorrido na A1 no dia 08.10.11 de que a 1ª ré é concessionária causado pelo súbito atravessamento de uma animal de raça canina, e que a 1ª ré, que para a segunda transmitiu a responsabilidade civil por danos sofridos por terceiros utentes da via, não evitou como devia, omitindo o cumprimento dos deveres decorrentes do contrato de concessão celebrado com o Estado.

Dada a relação material controvertida tal como é configurada pelos autores e a pretensão apresentada, trata-se de uma acção para efectivação da responsabilidade civil da 1ª ré, demandada na qualidade de empresa concessionária da via rodoviária onde ocorreu o acidente devido àquela não ter assegurado a segurança da circulação na via como estava obrigada.

Nos termos do art. 38º da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei nº 62/2013 de 26.08 - LOSJ) e art. 61º do Código de Processo Civil (CPC) a competência dos tribunais judiciais fixa-se no momento em que a acção é proposta, sendo irrelevantes as modificações de facto ou de direito que ocorram posteriormente, a menos que seja suprimido o órgão a que a causa estava afecta ou lhe seja atribuída competência de que inicialmente carecesse para o conhecimento da causa. O momento em que a acção é proposta é também o relevante na fixação da competência dos tribunais administrativos (art. 5º da Lei nº 13/2002 de 19.02 (ETAF).

Os tribunais judiciais são os tribunais com competência material residual, conforme resulta dos arts. 211º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP), art. 40º, nº 1 da LOSJ e art. 64º do CPC.

O art. 212º, nº 3 da CRP preceitua que: “Compete aos Tribunais Administrativos e Fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. Este preceito constitucional consagra uma reserva relativa de jurisdição atribuída aos tribunais administrativos, daí resultando serem estes os Tribunais comuns em matéria administrativa.

Significa isto que o conhecimento de uma questão de natureza administrativa pertence aos Tribunais da ordem administrativa se não estiver expressamente atribuída a nenhuma outra jurisdição (quanto ao alcance da reserva constitucional da jurisdição administrativa, vd. Vieira de Andrade, “A Justiça Administrativa”, 6ª ed. Almedina, pag. 109 e ss e Ac. STA de 28.11.2007, proc. 06/07).

Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são assim os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (art. 1º, nº 1 do ETAF).

“A doutrina entende que devem ser consideradas relações jurídicas administrativas as relações interpessoais e inter-administrativas em que de um dos lados da relação se encontre uma entidade pública, ou uma entidade privada dotada de prerrogativas de autoridade pública, tendo como objecto a prossecução do interesse público, de acordo com as normas de direito administrativo .... “ (Jonatas E. M. Machado, “Breves Considerações em torno do âmbito da justiça administrativa. Reforma da Justiça Administrativa”, Boletim da Faculdade de Direito/Universidade de Coimbra, Studia Juridica 86, Colloquia 15, 2005, pág. 93).

Nas palavras de J. C. Vieira de Andrade in “A Justiça Administrativa” (Lições), 6ª ed., pág. 57 e 58, são aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido.

“Por relação jurídico-administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas. Pode tratar-se de uma relação jurídica intersubjectiva, como a que ocorre entre a Administração e os particulares, intra-administrativa, quando se estabelecem entre diferentes entes administrativos, no quadro de prossecução de interesses públicos próprios que lhes cabe defender, ou inter-orgânica, quando se interpõem entre órgãos administrativos da mesma pessoa colectiva pública, por efeito do exercício dos poderes funcionais que lhes correspondem. Por outro lado, as relações jurídicas podem ser simples ou bipolares, quando decorrem entre dois sujeitos, ou poligonais ou multipolares, quando surgem entre três ou mais sujeitos que apresentam interesses conflituantes relativamente à resolução da mesma situação jurídica (…). Por outro lado, não está excluída a ocorrência de litígios interprivados, não só por efeito do apontado alargamento da competência dos tribunais administrativos no âmbito da impugnação de actos pré-contratuais e da acção de contratos e da acção de responsabilidade civil extracontratual (artigo 4.º, n.º 1, alíneas g) e i), do ETAF)” [Fernandes Cadilha, in Dicionário de Contencioso Administrativo, Almedina, 2006, pgs. 117-118, citado no acórdão do STJ de 14/01/2013, supra referenciado]. – Cfr. Ac. RP de 10.03.15, proc. 528/10.4TBVPA.P1.

O art. 4º do ETAF concretiza o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos, definindo, através de enumerações exemplificativas, quer os litígios nela incluídos quer os que dela estão excluídos.

“Com a reforma do contencioso administrativo, a pedra de toque para a atribuição da competência em razão da matéria aos tribunais administrativos ou aos tribunais judiciais passou a ser o conceito de relação jurídica administrativa, considerado um conceito-quadro muito mais amplo do que o de gestão pública. Todavia, como assinala Mário Aroso de Almeida, em termos metodológicos, o ponto de referência a ser adoptado para determinar perante um caso concreto, se um determinado litígio deve ser submetido à apreciação dos tribunais administrativos e fiscais ou dos tribunais judiciais não reside, em primeira linha, no artigo 1.º, n.º 1, do ETAF nem no critério constitucional da relação jurídica administrativa ou fiscal [9]. O art. 212.º, n.º 3 da CRP ao assentar a definição do âmbito da jurisdição administrativa num critério substantivo, centrado no conceito de “relações jurídicas administrativas e fiscais”, não estabelece uma reserva material absoluta, admitindo derrogações pontuais, desde que não descaracterizem o modelo típico da dualidade de jurisdições[10].

Na ausência de determinação expressa em sentido diferente, contida em lei avulsa, que determine a competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, valem os critérios contidos nos artigos 1.°, n.° 1 e 4.° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

Da conjugação destes normativos conclui Mário Aroso de Almeida, que «pertence ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de todos os litígios que versem sobre matéria jurídica administrativa e fiscal e cuja apreciação não seja expressamente atribuída, por norma especial, à competência dos tribunais judiciais, assim como aqueles que, embora não versem sobre matéria jurídica administrativa ou fiscal, são expressamente atribuídos, por norma especial, à competência desta jurisdição - sendo que encontramos no artigo 4.° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais algumas disposições especiais com este alcance» - cfr. Ac. STJ 14.01.14, proc. 871/05.4TBMFRE.L1.S1.

O seu nº 1, al. i) dispõe o art. 4º do ETAF que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto “responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público” – al. i).

Isto é, o art. 4º nº 1 al. i) do ETAF atribuiu competência aos tribunais administrativos e fiscais para apreciar (e decidir) a responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados em relação aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público. A competência do foro administrativo em relação à responsabilidade civil extracontratual dos privados, está portanto dependente de a este dever ser aplicado o regime próprio da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público. “Considerou-se aqui, implicitamente, ser adequado entender as relações firmadas, como relações jurídicas administrativas”. (cfr. Ac. STJ de 16.10.12, proc. 950/10.6TBFAF-A.G1.S1).

Preceitua o art. 1º nº 5 da Lei nº 67/2007 de 31/12 (diploma que aprovou o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas) que “as disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou princípios de direito administrativo”.

Quer tal norma significar, concretizando o princípio previsto no art. 4º, nº 1, al. i) do ETAF, que mesmo em relação às entidades de direito privado, é lhes aplicável o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado, desde que estejam em causa acções ou omissões levadas a cabo “no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou princípios de direito administrativo”.

Resulta desta nova lei, que a jurisdição administrativa pode conhecer, em matéria de responsabilidade civil extracontratual, de litígios entre particulares. Necessário será que as acções ou omissões geradoras de responsabilidade sejam levadas a cabo «no exercício de prerrogativas de poder público», ou que sejam «regulados por disposições ou princípios de direito administrativo», isto é, desde que as pessoas colectivas de direito privado actuem em moldes de direito público deve aplicar-se às suas acções e omissões o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado” – Cfr. o já mencionado Ac. STJ de 14.01.14.

Conforme se decidiu no acórdão do Tribunal de Conflitos de 30/5/2013, proc. 017/13 “as entidades privadas concessionárias que são chamadas a colaborar com a Administração na execução de tarefas administrativas através de um contrato administrativo (que poderá ser de concessão de obras públicas ou de serviço público), têm a sua atividade regulada e sujeita a disposições e princípios de direito administrativo.

Na verdade, a construção de uma autoestrada, a sua exploração, manutenção, vigilância e segurança, nomeadamente do tráfego, são tarefas próprias da administração do Estado. A concessão dessa obras e serviços públicos a uma entidade privada não significa que as respetivas atividades percam a sua natureza pública administrativa, pois o Estado não pode abrir mão dessa responsabilidade. Antes a outorga, por determinado período, a terceiro da esfera privada, a quem permite obter lucros económicos (através, nomeadamente, das portagens, estas também regulamentadas pelo Estado), mas regulando-a e fiscalizando-a, ao abrigo de normas jurídicas de natureza administrativa que ficam inscritas no contrato de concessão”.

Ora, no caso concreto, verificam-se os dois factores determinantes do conceito de actividade administrativa exigidos pelo nº 5 do art. 1º da Lei nº 67/2007. Com efeito, a 1ª ré é demandada enquanto concessionária da exploração e conservação da estrada onde ocorreu o acidente por não ter observado as suas atribuições legais, designadamente no que respeita à manutenção da segurança da circulação na via, originando o acidente. Não obstante ser uma pessoa colectiva de direito privado, enquanto concessionária de bens públicos, actua como se fosse uma entidade pública, em substituição do Estado, em execução de actividade pública, regulada pelos princípios e normas de direito administrativos constantes do respectivo contrato de concessão.

As obrigações de manutenção da auto-estrada e da segurança rodoviária, por referência à data e ao troço onde ocorreu o acidente, constam do anexo ao DL nº 294/97 de 24.10 alterado pelo DL nº 247-C/2008 de 30.12. Nele se estipula, além do mais, que “a concessão tem por objecto a construção, conservação e exploração, em regime de portagem, das seguintes auto-estradas:” (Base I), “a concessão para construção, conservação e exploração das auto-estradas referidas na base i é de obras públicas” (Base II, nº 1), “a zona da auto-estrada fica a pertencer ao domínio público do Estado a partir da data em que for aberta ao tráfego” (Base IV, nº 2), “a concessionária deverá manter as auto-estradas que constituem o objecto da concessão em bom estado de conservação e perfeitas condições de utilização, realizando, na devidas oportunidades, todos os trabalhos necessários para que as mesmas satisfaçam cabal e perfeitamente o fim a que se destinam, em obediência a padrões de qualidade que melhor atendam os direitos do utente” (Base XXXIII, nº 1), “a concessionária será obrigada a assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas, quer tenham sido por si construídas, quer tenham sido entregues para conservação e exploração, sujeitas ou não ao regime de portagem” (Base XXXVI, nº 2), “serão da inteira responsabilidade da concessionária todas as indemnizações que, nos termos da lei sejam devidas a terceiros em consequência de qualquer actividade decorrente da concessão” (Base XLIX, nº 2).

Ora, resulta destas e demais cláusulas do contrato de concessão que a actividade da concessionária se desenvolve num quadro de ambiência pública. Assim, à sua eventual responsabilização pelos danos decorrentes por actos ou omissões dessa actividade é aplicável o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais empresas públicas e, consequentemente, são os tribunais administrativos ou competentes, em razão da matéria para conhecer do litígio, nos termos da al. i) do nº 1 do art. 4º do ETAF.

Tem sido este, de resto, o entendimento maioritário na jurisprudência recente.

Veja-se a título exemplificativo, e para além dos já referenciados, os Acs. da RC de 08.04.14, proc. 1158/13.4TBLRA.C1, da RP de 30.06.14, proc. 140/14.9YRPRT, da RG de 02.12.14 808/14.0TBFAF.G1, e do Trib. Dos Conflitos de 25.03.15, proc. 053/14.»

O presente relator (por vencimento) e presente 1º adjunto comungam deste entendimento, que ainda muito recentemente expressaram no acórdão de 3.11.2015, proferido no Proc.69/14.0T8CNT, em www.dgsi.pt. Por comodidade de compreensão vai reproduzir-se o mesmo:

Este entendimento corresponde ao que foi defendido em acórdão de 17.4.2012, no Proc.1181/10.0TBCVL, em www.dgsi.pt (relatado pelo actual relator) e que vamos chamar à colação.

A competência é um pressuposto processual, isto é, uma condição necessária para que o Tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa através de uma decisão de procedência ou improcedência.

Como tem sido repetido, a competência do tribunal determina-se com referência ao momento da proposição da acção, sendo irrelevantes as modificações de facto ou de direito que ocorram posteriormente, excepto se o órgão competente para conhecer da causa deixar de existir, ou caso lhe seja atribuída competência de que este inicialmente carecesse para o conhecimento da causa (art. 38º da Lei 62/2013 de 26.8 - Lei de Organização do Sistema Judiciário).

O art. 211º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa estabelece o princípio da competência jurisdicional residual dos tribunais judiciais, pois ela estende-se a todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.

Este princípio da competência residual dos tribunais judiciais no confronto com as outras ordens de tribunais está consagrado ainda no art. 64º do Novo Código de Processo Civil e art. 40º, nº 1, da citada Lei 62/2013.

Nos termos do art. 212º, nº 3, da CRP, “compete aos tribunais administrativos (...) o julgamento das acções que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas (...)”.

E, de harmonia com o disposto no art. 1º do ETAF (Lei 13/2002, de 19.2), os tribunais de jurisdição administrativa são competentes para administrar a justiça nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.

Por sua vez, estatui o art. 4º, nº 1, do mesmo diploma (vide a redacção emergente da Lei 107-D/2003, de 31.12), que compete aos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:

“(…)
g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;

(…)

i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público”.

Constata-se, assim, ter o ETAF operado um alargamento da competência dos tribunais administrativos em matéria de responsabilidade civil das pessoas colectivas através de duas diferentes vias.

Uniformizou o âmbito da jurisdição no que se refere à responsabilidade decorrente da actividade administrativa, passando a atribuir aos tribunais administrativos as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, sem atentar na clássica distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada -1ª parte da citada alínea g).

E passou a incluir no âmbito da jurisdição administrativa a responsabilidade civil extracontratual de sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado - citada alínea i).

Com a reforma do contencioso administrativo, alterou-se, assim, no âmbito da responsabilidade extracontratual, o critério determinante da competência material entre jurisdição comum e jurisdição administrativa, que deixou de assentar na clássica distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada, passando a jurisdição administrativa a abranger, por um lado, todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado.

E, por outro lado, passou a abarcar a responsabilidade extracontratual das pessoas colectivas de direito privado às quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.

Daqui decorre que, para determinar a competência dos tribunais administrativos no que concerne às acções de responsabilidade civil extracontratual de pessoa colectiva de direito privado, há que verificar, apenas e tão-só, se a mesma está, ou não, sujeita ao regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, instituído pela Lei 67/2007, de 31.12. (em vigor desde 30.1.2008). 

A norma que, no plano do direito substantivo, dá concretização prática ao disposto no art. 4º, nº 1, i), do ETAF é a do art. 1º, nº 5, da referida Lei, a qual estabelece que “As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”.

Explicita, assim, este preceito em que termos é que as entidades privadas podem ficar subordinadas a um regime de responsabilidade administrativa e, consequentemente, quando poderão ser demandadas em acções de responsabilidade civil perante os tribunais administrativos, nos termos do citado art. 4º, nº 1, i), do ETAF, com a consequente sujeição ao contencioso administrativo.

E dele pode concluir-se, por um lado, que isso acontece sempre que tais entidades desenvolvam uma actividade administrativa, o que significa ter o legislador adoptado, no que se refere às acções de responsabilidade civil, um critério funcional de administração pública.

E, por outro lado, que são dois os factores indicativos do conceito de actividade administrativa.

Um constituído pelo exercício de prerrogativas de poder público, ou seja, quando, para a execução de tarefas públicas de que sejam incumbidas, lhes sejam outorgados poderes de autoridade.

Um outro, pela vinculação do exercício da actividade a um regime de direito administrativo, isto é, quando intervenham no exercício de tarefas que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.

Significa isto, no dizer de Carlos Cadilha (Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, 1ª Ed., págs. 29 a 32, 35, 48/49) que a submissão de entidades privadas ao regime de responsabilidade civil da administração terá de ser definida casuisticamente em função da natureza jurídica dos poderes que tais entidades tenham exercitado em dada situação concreta ou da sua subordinação a um regime de direito administrativo.

E toda esta dicotomia está presente nas entidades concessionárias que são chamadas a colaborar com a Administração na execução de tarefas administrativas através de um contrato administrativo, que poderá ser um contrato de concessão de obras públicas ou de serviço público, tal como acontece com a ré Brisa, que tem por objecto a concepção, projecto, construção, financiamento, exploração e conservação dos lanços de auto-estrada, nos termos do contrato de concessão celebrado com o Estado – conferir as Bases da concessão referidas na decisão recorrida - estando, por isso, esta sua actividade, em nexo funcional com a Administração Pública, pautada por execução de tarefas públicas, em que lhes são outorgados poderes de autoridade, e regulada por disposições e princípios de direito administrativo.

Ora porque, no caso em apreço, estamos perante uma acção de responsabilidade civil extracontratual deduzida contra a aludida ré Brisa, com vista a obter o pagamento de indemnização por danos emergentes de acidente de viação em consequência de suposta omissão por ela praticada como concessionária de obra pública – exploração da A1 – no troço de estrada indicado, por isso, regida pelo direito público, inquestionável se torna que a eventual responsabilização da ré, por actos ou omissões decorrentes desta actividade, insere-se no âmbito de aplicação do art. 1º, nº 5, do novo Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas.

Pelo mesmo diapasão segue o Ac. do T. Conflitos de 20.1.2010, Proc.025/09, em www.dgsi.pt, ao assinalar que “Como se viu, nos termos do art. 1° n° 5 da Lei 67/2007, são dois os factores determinativos do conceito de actividade administrativa. O primeiro refere-se ao exercício de prerrogativas de poder público, o que equivale ao desempenho de tarefas públicas para cuja realização sejam outorgados poderes de autoridade. O segundo respeita a actividades que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo, o que significa que os respectivos exercícios deverão ser reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.

Segundo o acórdão recorrido é precisamente neste factor indicativo da actividade administrativa, que a acção da R., questionada no presente processo, deve ser integrada. As entidades privadas concessionárias que são chamadas a colaborar com a Administração na execução de tarefas administrativas através de um contrato administrativo (que poderá ser de concessão de obras públicas ou de serviço público), devem ter a sua actividade regulada e sujeita a disposições e princípios de direito administrativo.

Parece-nos ser certa esta posição. Com efeito (…) foi celebrado entre o Estado Português e a R., C…, o contrato de concessão de lanços de auto-estrada, designada por concessão SCUT (…). Nesse contrato ficou estabelecido, no que toca ao objecto e tipo de concessão, que esta tem por objecto a concepção, projecto, construção, financiamento, conservação, exploração em regime de portagem SCUT, os lanços de auto-estrada (…) Na cláusula 6 do contrato ficou estabelecido que a concessão é de obra pública e é estabelecida em regime de exclusivo relativamente à auto-estrada que integra o seu objecto. Na cláusula 7.2 estabeleceu-se que a concessionária não pode, em qualquer circunstância, recusar o fornecimento do serviço público concessionado a qualquer pessoa ou entidade, nem discriminar ou estabelecer diferenças de tratamento entre utentes.

Por sua vez, o Dec-Lei (…) que aprovou as bases da concepção, projecto, construção, financiamento, conservação e exploração dos lanços de portagem acima indicados, na sua Base III e sobre a natureza da concessão, estabeleceu que a concessão é de obra pública.

Destas normas é possível inferir-se que a actividade a desenvolver pela R. no âmbito da concessão em causa, desenvolve-se num quadro de índole pública. A entidade privada concessionária da auto-estrada, é notoriamente chamada a colaborar com a Administração na execução de uma tarefa administrativa de gestão pública10 Aí se deve inscrever a tarefa de realização de vias de comunicação em Portugal. (…)

Assim sendo como, no caso vertente, os AA pretendem ser ressarcidos com vista a receberem uma indemnização, em razão de uma invocada responsabilidade extracontratual da R. (…), em consequência de uma actividade por ela desenvolvida na qualidade de concessionária da auto-estrada em questão, lícito é concluir que a sua eventual responsabilização, por actos e omissões decorrentes dessa sua actividade, se insere no âmbito de aplicação do art. 1° n° 5 da Lei 67/2007 e, consequentemente, serão os tribunais administrativos os competentes para conhecer do pleito (art. 4° n° 1 al. i) do ETAF)”.

Consequentemente, por tudo o exposto, terá a ré que ser demandada perante os tribunais administrativos, nos termos do art. 4º, nº1, al. i) do ETAF. (vide, ainda, neste preciso sentido sobre concessionárias de estradas, os Acds. da Rel. Porto 3.11.2011, Proc.9806/09.4.TBVNG, da Rel. de Lisboa 30.6.2011, Proc.1394/10.5YXLSB, e da Rel. Guimarães, de 2.7.2009, Proc.2903/08TBVCT, bem como os demais pertinentemente referidos na decisão recorrida, e ainda da Rel. de Coimbra de 21.5.2013, Proc.2073/09.1TBCTB-K, e o recentíssimo Ac. do STJ de 8.10.2015, Proc.1085/14.8TBCTB-A - que revogou acórdão desta Relação, de 10.3.2015, de sentido contrário, relatado pela actual 2ª adjunta - todos em www.dgsi.pt)” – fim de transcrição.

Não procede, pois, o recurso.

6. Sumariando.

i) Para determinar a competência dos tribunais administrativos no que concerne às acções de responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito privado, há que verificar se a mesma está, ou não, sujeita ao regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, nos termos do art. 1º, nº 5, da Lei 67/2007, de 31.12;

ii) Nos termos do citado art. 1º, nº 5, da Lei 67/2007, tais entidades privadas ficam submetidas a um regime de responsabilidade administrativa, com a consequente sujeição à jurisdição dos tribunais administrativos, nos termos do art. 4º, nº 1, i), do ETAF, sempre que esta responsabilidade seja emergente do exercício de uma actividade administrativa, constituindo factores indicativos duma actividade desta natureza o uso de prerrogativas de poder público e a sujeição dessa actividade a disposições ou princípios de direito administrativo;

iii) Cabe ao Tribunal Administrativo a competência para conhecer da acção proposta contra a Brisa e a sua seguradora, com vista a obter a sua condenação no pagamento de indemnização emergente de acidente de viação em consequência de suposta omissão por ela praticada como concessionária de obra pública – exploração da A1 – , nos termos das disposições conjugadas dos mencionados arts. 4º, nº 1, i), do ETAF e 1º, nº 5, da Lei 67/2007.

7. Deliberação.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

*

Custas pelos recorrentes.

*

Coimbra, 2016.1.12

Moreira do Carmo (relator por vencimento)     

Fonte Ramos

Carlos Moreira ( vencido, conforme projecto de acórdão junto)

5.

Apreciando.

A questão está mais do que debatida e escalpelizada nos seus possíveis argumentos.

5.1

Os que defendem a competência do tribunal administrativo em casos como o presente, - concede-se que a maioria na jurisprudência, vg. do tribunal de conflitos –a argumentam tal como expendido pela julgadora do caso sub judice, a saber:

«A competência em razão da matéria é fixada em função dos termos em que a acção é proposta, tendo em conta o teor da pretensão do autor e dos fundamentos em que a baseia. Cfr. Ac T. Conflitos. 23.09.2004, proc. 05/04, disponível em www.dgsi.pt, cujo sumário reza assim: “I - A determinação do tribunal materialmente competente para o conhecimento da pretensão deduzida pelo Autor deve partir do teor desta pretensão e dos  fundamentos em que se baseia sendo, para este efeito, irrelevante o juízo de prognose que se possa fazer relativamente à viabilidade da mesma (por se tratar de questão atinente ao mérito da pretensão). II - A competência terá, por isso, de se aferir pelos termos da relação jurídico-processual tal como foi apresentada em juízo.”

Na presente lide pretendem os autores a condenação das rés no pagamento de indemnização pelos danos decorrentes do acidente de viação ocorrido na A1 no dia 08.10.11 de que a 1ª ré é concessionária causado pelo súbito atravessamento de uma animal de raça canina, e que a 1ª ré, que para a segunda transmitiu a responsabilidade civil por danos sofridos por terceiros utentes da via, não evitou como devia, omitindo o cumprimento dos deveres decorrentes do contrato de concessão celebrado com o Estado.

Dada a relação material controvertida tal como é configurada pelos autores e a pretensão apresentada, trata-se de uma acção para efectivação da responsabilidade civil da 1ª ré, demandada na qualidade de empresa concessionária da via rodoviária onde ocorreu o acidente devido àquela não ter assegurado a segurança da circulação na via como estava obrigada.

Nos termos do art. 38º da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei nº 62/2013 de 26.08 - LOSJ) e art. 61º do Código de Processo Civil (CPC) a competência dos tribunais judiciais fixa-se no momento em que a acção é proposta, sendo irrelevantes as modificações de facto ou de direito que ocorram posteriormente, a menos que seja suprimido o órgão a que a causa estava afecta ou lhe seja atribuída competência de que inicialmente carecesse para o conhecimento da causa. O momento em que a acção é proposta é também o relevante na fixação da competência dos tribunais administrativos (art. 5º da Lei nº 13/2002 de 19.02 (ETAF).

Os tribunais judiciais são os tribunais com competência material residual, conforme resulta dos arts. 211º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP), art. 40º, nº 1 da LOSJ e art. 64º do CPC.

O art. 212º, nº 3 da CRP preceitua que: “Compete aos Tribunais Administrativos e Fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. Este preceito constitucional consagra uma reserva relativa de jurisdição atribuída aos tribunais administrativos, daí resultando serem estes os Tribunais comuns em matéria administrativa.

Significa isto que o conhecimento de uma questão de natureza administrativa pertence aos Tribunais da ordem administrativa se não estiver expressamente atribuída a nenhuma outra jurisdição (quanto ao alcance da reserva constitucional da jurisdição administrativa, vd. Vieira de Andrade, “A Justiça Administrativa”, 6ª ed. Almedina, pag. 109 e ss e Ac. STA de 28.11.2007, proc. 06/07).

Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são assim os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (art. 1º, nº 1 do ETAF).

“A doutrina entende que devem ser consideradas relações jurídicas administrativas as relações interpessoais e inter-administrativas em que de um dos lados da relação se encontre uma entidade pública, ou uma entidade privada dotada de prerrogativas de autoridade pública, tendo como objecto a prossecução do interesse público, de acordo com as normas de direito administrativo .... “ (Jonatas E. M. Machado, “Breves Considerações em torno do âmbito da justiça administrativa. Reforma da Justiça Administrativa”, Boletim da Faculdade de Direito/Universidade de Coimbra, Studia Juridica 86, Colloquia 15, 2005, pág. 93).

Nas palavras de J. C. Vieira de Andrade in “A Justiça Administrativa” (Lições), 6ª ed., pág. 57 e 58, são aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido.

“Por relação jurídico-administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas. Pode tratar-se de uma relação jurídica intersubjectiva, como a que ocorre entre a Administração e os particulares, intra-administrativa, quando se estabelecem entre diferentes entes administrativos, no quadro de prossecução de interesses públicos próprios que lhes cabe defender, ou inter-orgânica, quando se interpõem entre órgãos administrativos da mesma pessoa colectiva pública, por efeito do exercício dos poderes funcionais que lhes correspondem. Por outro lado, as relações jurídicas podem ser simples ou bipolares, quando decorrem entre dois sujeitos, ou poligonais ou multipolares, quando surgem entre três ou mais sujeitos que apresentam interesses conflituantes relativamente à resolução da mesma situação jurídica (…). Por outro lado, não está excluída a ocorrência de litígios interprivados, não só por efeito do apontado alargamento da competência dos tribunais administrativos no âmbito da impugnação de actos pré-contratuais e da acção de contratos e da acção de responsabilidade civil extracontratual (artigo 4.º, n.º 1, alíneas g) e i), do ETAF)” [Fernandes Cadilha, in Dicionário de Contencioso Administrativo, Almedina, 2006, pgs. 117-118, citado no acórdão do STJ de 14/01/2013, supra referenciado]. – Cfr. Ac. RP de 10.03.15, proc. 528/10.4TBVPA.P1.

O art. 4º do ETAF concretiza o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos, definindo, através de enumerações exemplificativas, quer os litígios nela incluídos quer os que dela estão excluídos.

“Com a reforma do contencioso administrativo, a pedra de toque para a atribuição da competência em razão da matéria aos tribunais administrativos ou aos tribunais judiciais passou a ser o conceito de relação jurídica administrativa, considerado um conceito-quadro muito mais amplo do que o de gestão pública. Todavia, como assinala Mário Aroso de Almeida, em termos metodológicos, o ponto de referência a ser adoptado para determinar perante um caso concreto, se um determinado litígio deve ser submetido à apreciação dos tribunais administrativos e fiscais ou dos tribunais judiciais não reside, em primeira linha, no artigo 1.º, n.º 1, do ETAF nem no critério constitucional da relação jurídica administrativa ou fiscal [9]. O art. 212.º, n.º 3 da CRP ao assentar a definição do âmbito da jurisdição administrativa num critério substantivo, centrado no conceito de “relações jurídicas administrativas e fiscais”, não estabelece uma reserva material absoluta, admitindo derrogações pontuais, desde que não descaracterizem o modelo típico da dualidade de jurisdições[10].

Na ausência de determinação expressa em sentido diferente, contida em lei avulsa, que determine a competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, valem os critérios contidos nos artigos 1.°, n.° 1 e 4.° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

Da conjugação destes normativos conclui Mário Aroso de Almeida, que «pertence ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de todos os litígios que versem sobre matéria jurídica administrativa e fiscal e cuja apreciação não seja expressamente atribuída, por norma especial, à competência dos tribunais judiciais, assim como aqueles que, embora não versem sobre matéria jurídica administrativa ou fiscal, são expressamente atribuídos, por norma especial, à competência desta jurisdição - sendo que encontramos no artigo 4.° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais algumas disposições especiais com este alcance» - cfr. Ac. STJ 14.01.14, proc. 871/05.4TBMFRE.L1.S1.

O seu nº 1, al. i) dispõe o art. 4º do ETAF que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto “responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público” – al. i).

Isto é, o art. 4º nº 1 al. i) do ETAF atribuiu competência aos tribunais administrativos e fiscais para apreciar (e decidir) a responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados em relação aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público. A competência do foro administrativo em relação à responsabilidade civil extracontratual dos privados, está portanto dependente de a este dever ser aplicado o regime próprio da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público. “Considerou-se aqui, implicitamente, ser adequado entender as relações firmadas, como relações jurídicas administrativas”. (cfr. Ac. STJ de 16.10.12, proc. 950/10.6TBFAF-A.G1.S1).

Preceitua o art. 1º nº 5 da Lei nº 67/2007 de 31/12 (diploma que aprovou o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas) que “as disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou princípios de direito administrativo”.

Quer tal norma significar, concretizando o princípio previsto no art. 4º, nº 1, al. i) do ETAF, que mesmo em relação às entidades de direito privado, é lhes aplicável o regime da  responsabilidade civil extracontratual do Estado, desde que estejam em causa acções ou omissões levadas a cabo “no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou princípios de direito administrativo”.

Resulta desta nova lei, que a jurisdição administrativa pode conhecer, em matéria de responsabilidade civil extracontratual, de litígios entre particulares. Necessário será que as acções ou omissões geradoras de responsabilidade sejam levadas a cabo «no exercício de prerrogativas de poder público», ou que sejam «regulados por disposições ou princípios de direito administrativo», isto é, desde que as pessoas colectivas de direito privado actuem em moldes de direito público deve aplicar-se às suas acções e omissões o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado” – Cfr. o já mencionado Ac. STJ de 14.01.14.

Conforme se decidiu no acórdão do Tribunal de Conflitos de 30/5/2013, proc. 017/13 “as entidades privadas concessionárias que são chamadas a colaborar com a Administração na execução de tarefas administrativas através de um contrato administrativo (que poderá ser de concessão de obras públicas ou de serviço público), têm a sua atividade regulada e sujeita a disposições e princípios de direito administrativo.

Na verdade, a construção de uma autoestrada, a sua exploração, manutenção, vigilância e segurança, nomeadamente do tráfego, são tarefas próprias da administração do Estado. A concessão dessa obras e serviços públicos a uma entidade privada não significa que as respetivas atividades percam a sua natureza pública administrativa, pois o Estado não pode abrir mão dessa responsabilidade. Antes a outorga, por determinado período, a terceiro da esfera privada, a quem permite obter lucros económicos (através, nomeadamente, das portagens, estas também regulamentadas pelo Estado), mas regulando-a e fiscalizando-a, ao abrigo de normas jurídicas de natureza administrativa que ficam inscritas no contrato de concessão”.

Ora, no caso concreto, verificam-se os dois factores determinantes do conceito de actividade administrativa exigidos pelo nº 5 do art. 1º da Lei nº 67/2007. Com efeito, a 1ª ré é demandada enquanto concessionária da exploração e conservação da estrada onde ocorreu o acidente por não ter observado as suas atribuições legais, designadamente no que respeita à manutenção da segurança da circulação na via, originando o acidente. Não obstante ser uma pessoa colectiva de direito privado, enquanto concessionária de bens públicos, actua como se fosse uma entidade pública, em substituição do Estado, em execução de actividade pública, regulada pelos princípios e normas de direito administrativos constantes do respectivo contrato de concessão.

As obrigações de manutenção da auto-estrada e da segurança rodoviária, por referência à data e ao troço onde ocorreu o acidente, constam do anexo ao DL nº 294/97 de 24.10 alterado pelo DL nº 247-C/2008 de 30.12. Nele se estipula, além do mais, que “a concessão tem por objecto a construção, conservação e exploração, em regime de portagem, das seguintes auto-estradas:” (Base I), “a concessão para construção, conservação e exploração das auto-estradas referidas na base i é de obras públicas” (Base II, nº 1), “a zona da auto-estrada fica a pertencer ao domínio público do Estado a partir da data em que for aberta ao tráfego” (Base IV, nº 2), “a concessionária deverá manter as auto-estradas que constituem o objecto da concessão em bom estado de conservação e perfeitas condições de utilização, realizando, na devidas oportunidades, todos os trabalhos necessários para que as mesmas satisfaçam cabal e perfeitamente o fim a que se destinam, em obediência a padrões de qualidade que melhor atendam os direitos do utente” (Base XXXIII, nº 1), “a concessionária será obrigada a assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas, quer tenham sido por si construídas, quer tenham sido entregues para conservação e exploração, sujeitas ou não ao regime de portagem” (Base XXXVI, nº 2), “serão da inteira responsabilidade da  concessionária todas as indemnizações que, nos termos da lei sejam devidas a terceiros em consequência de qualquer actividade decorrente da concessão” (Base XLIX, nº 2).

Ora, resulta destas e demais cláusulas do contrato de concessão que a actividade da concessionária se desenvolve num quadro de ambiência pública. Assim, à sua eventual responsabilização pelos danos decorrentes por actos ou omissões dessa actividade é aplicável o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais empresas públicas e, consequentemente, são os tribunais administrativos ou competentes, em razão da matéria para conhecer do litígio, nos termos da al. i) do nº 1 do art. 4º do ETAF.

Tem sido este, de resto, o entendimento maioritário na jurisprudência recente.

Veja-se a título exemplificativo, e para além dos já referenciados, os Acs. da RC de 08.04.14, proc. 1158/13.4TBLRA.C1, da RP de 30.06.14, proc. 140/14.9YRPRT, da RG de 02.12.14 808/14.0TBFAF.G1, e do Trib. Dos Conflitos de 25.03.15, proc. 053/14.»

5.2.

Já os que defendem a competência dos tribunais comuns, alcandoram-se, essencialmente, no discurso argumentativo, vertido nos seguintes arestos de que o presente também foi relator, a saber:

A) Processo nº486/11.8TBCTB-B.C1.

«Na providência de que este processo constitui causa principal, já a requerida tinha colocado a questão da incompetência, a qual foi julgada improcedente por acordão deste tribunal, no qual a decisão ora impugnada se sufragou, tendo aquele aresto decidido com base nos seguintes, essenciais, fundamentos, outrossim acolhidos nesta decisão:

. A competência material dos tribunais comuns é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual. Segundo o critério de atribuição positiva, pertencem à competência do tribunal comum todas as causas cujo objecto é uma situação jurídica regulada pelo direito privado, civil ou comercial. Segundo o critério da competência residual, incluem-se na competência dos tribunais comuns todas as causas que, apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são legalmente atribuídas a nenhum tribunal judicial não comum ou a nenhum tribunal especial (…). É entendimento pacifico o de que para determinação da competência em razão da matéria é necessário atender-se ao pedido e especialmente à causa de pedir formulados pelo autor, pois é dessa forma que se pode caracterizar o conteúdo da pretensão do demandante. (…). É o artigo 4º do ETAF (…) a norma que delimita o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal.

(…). Com a entrada em vigor do novo ETAF, o acto de gestão publica, quer na sua vertente teleológica, quer por referência ao exercício do jus imperii por parte do agente ou órgão da pessoa colectiva de direito público, deixou de ser o critério exclusivo para a atribuição dos tribunais administrativos: não estão hoje excluídos da jurisdição administrativa os recursos e as acções que tenham por objecto questões de direito privado, bastando que ambas ou uma das partes seja ente de direito público. Tal possibilidade encontra-se claramente consagrada na alínea g) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF. Deixou de relevar, para a determinação da competência, que os actos praticados sejam qualificados como de gestão pública ou de gestão privada, apenas bastando estar-se em presença de uma relação jurídico administrativa, ou seja, aquela em que pelo menos um dos sujeitos é a Administração. (…). No caso vertente, não está em causa uma relação contratual, nem a Requerida nem a Requerente surgem como entidades dotadas de jus imperii na relação que é discutida na causa de pedir (…)”».

4.2.

Concorda-se com esta fundamentação…

Quiçá ad abundantiam dir-se-á o seguinte.

As previsões do artº 212º nº3 da Constituição e do artº 1º do ETAF, que atribuem competência aos tribunais administrativos, abrangem apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais).

Verifica-se assim que para a atribuição de competência material aos tribunais administrativos, desvalorizou-se a distinção entre atos de gestão publica e atos de gestão privada – sendo, aqueles, atos que visando a satisfação de interesses colectivos, realizam fins específicos do Estado ou outro ente público-, bastando estar-se perante uma relação jurídico administrativa.

Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: primeira, as ações e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público; segunda, as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal.

Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”. Em termos positivos, um litigio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal - cfr Gomes Canotilho e Vital Moreira - “Constituição da República Portuguesa Anotada” 3 ed. pág. 815

Ou seja: «são relações jurídicas administrativas e fiscais as relações de Direito Administrativo e de Direito Fiscal, que se regem por normas de Direito Administrativo ou de Direito Fiscal. Este é, aliás, o critério que melhor corresponde à tradição do nosso contencioso administrativo, que não adopta um critério estatutário, tendendo a submeter os litígios que envolvam entidades públicas aos tribunais judiciais, quando a resolução de tais litígios não envolva a aplicação de normas de Direito Administrativo ou de Direito Fiscal» - JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS Dicionário de Contencioso Administrativo, Almedina, 2007, págs. 117 a 118.

4.3.

Não obstante há que ter presente que no artigo 4.° do ETAF, enunciam-se, exemplificativamente, as questões ou litígios, sujeitos ou excluídos do foro administrativo, umas vezes de acordo com a cláusula geral do artigo 1.°, outras em desconformidade com ela.

Assim, «é preciso, não confundir os factores de administratividade de uma relação jurídica com os factores que delimitam materialmente o âmbito da jurisdição administrativa, pois …há litígios que o legislador do ETAF submeteu ao julgamento dos tribunais administrativos independentemente de haver neles vestígios de administratividade ou sabendo, mesmo, que se trata de relações ou litígios dirimíveis por normas de direito privado. E também fez o inverso: também atirou relações onde existiam factores indiscutíveis de administratividade para o seio de outras jurisdições» - Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, in Código de Processo nos Tribunais Administrativos, vol. I págs. 26 e 27.

 Sendo certo ainda que, como é consabido: «A competência do tribunal em razão da matéria afere-se pela natureza da relação jurídica apresentada pelo autor na petição inicial, independentemente do mérito ou demérito da pretensão deduzida. É na ponderação do modo como o autor configura a acção, na sua dupla vertente do pedido e da causa de pedir, e tendo ainda em conta as demais circunstâncias disponíveis pelo tribunal que relevem sobre a exacta configuração da causa, que se deve guiar a tarefa da determinação do tribunal competente para dela conhecer» -. Ac. do STJ de de 06.05.2010, p. 3777/08.1TBMTS.P1.S1.

Finalmente e  máxime nos casos mais intrincados, duvidosos ou de fronteira, é admissível e até curial o chamamento de  um argumento de eficácia, celeridade  e boa decisão da causa, pelo que: «A atribuição da competência em razão da matéria será daquele tribunal que estiver melhor vocacionado para apreciar a questão colocada pelo autor, projectando um critério de eficiência que só poderá ser aferido em função do pedido deduzido e da causa de pedir, donde, portanto, a necessidade de verificar se existe norma que atribua a competência a um tribunal especial e, não havendo, caberá ela, subsidiária e residualmente, aos designados “tribunais comuns”» -  Ac. do STJ de 12.02.2009,  dgsi.pt, p. 08A4090, citando ainda os Acs. do STJ de 27.05.03, p. 03A1376 e de 11.12.03, p. 03B3845.»

B) Processo nº125/09.7TBIDN.C1

«A Sra. Juíza aduziu como fundamento para a sua decisão o seguinte discurso argumentativo:

«Em anotação a este preceito, (artigo 212.°, n.° 3, da Constituição) Gomes Canotilho e Vital Moreira - “Constituição da República Portuguesa Anotada” 3 ed. pág. 815 – referem que estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais).

Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: primeira, as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público; segunda, as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal.

Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”. Em termos positivos, um litigio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal

Para Vieira de Andrade (A Justiça Administrativa, Lições, 2000, pág. 79.)
define-se a
relação jurídica administrativa como sendo “aquela em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.

No artigo 4.° do ETAF, enunciam-se, exemplificativamente, as questões ou litígios, sujeitos ou excluídos do foro administrativo, umas vezes de acordo com a cláusula geral do referido artigo 1.°, outras em desconformidade com ela.

Importa, porém, salientar que é “preciso, não confundir os factores de administratividade de uma relação jurídica com os factores que delimitam materialmente o âmbito da jurisdição administrativa, pois, como já se disse, há litígios que o legislador do ETAF submeteu ao julgamento dos tribunais administrativos independentemente de haver neles vestígios de administratividade ou sabendo, mesmo, que se trata de relações ou litígios dirimíveis por normas de direito privado. E também fez o inverso: também atirou relações onde existiam factores indiscutíveis de administratividade para o seio de outras jurisdições”. (Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, in “Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, vol. I págs. 26 e 27.)

O actual ETAF eliminou o critério delimitador da natureza pública ou privada do acto de gestão que gera o pedido.

O critério material de distinção assenta, agora, em conceitos como relação jurídica administrativa e função administrativa - conjunto de relações onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público ( Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 9 edição, 103, e Margarida Cortez, “Responsabilidade Extracontratual do Estado, Trabalhos Preparatórios da Reforma”, 258. )…

Ainda na procura de um conceito mais afinado sobre o conceito em apreço Fernandes Cadilha sustenta que: “Por relação jurídico administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas. Pode tratar-se de uma relação jurídica intersubjectiva, como a que ocorre entre a Administração e os particulares, intradministrativa, quando se estabelecem entre diferentes entes administrativos, no quadro de prossecução de interesses públicos próprios que lhes cabe defender, ou inter orgânica, quando se interpõem entre órgãos administrativos da mesma pessoa colectiva pública, por efeito do exercício dos poderes funcionais que lhes correspondem. Por outro lado as relações jurídicas podem ser simples ou bipolares, quando decorrem entre dois sujeitos, ou poligonais ou multipolares, quando surgem entre três ou mais sujeitos que apresentam interesses conflituantes relativamente à resolução da mesma situação jurídica (quanto às características de uma relação jurídica deste tipo, Gomes Canotilho, “Relações jurídicas poligonais, ponderação ecológica de bens e controlo judicial preventivo”, Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, n° 1, Junho 1994, págs. 55 e ss.)”(“Dicionário de Contencioso Administrativo”, 2007, págs. 117/118.).

Conscientes da relatividade dogmática das opções do ETAF nesta matéria, pode então dizer-se, a propósito dos referidos factores de determinação das pretensões jurídicas formuláveis perante a jurisdição administrativa, que o legislador fez prevalecer aí, umas vezes critérios objectivos ou materiais, abstraindo da sua pertinência subjectiva (pública).

Nesses casos, foi a natureza administrativa da relação jurídica, a sua regulação por normas de direito administrativo, o factor determinante da sujeição das pretensões conexas à jurisdição dos tribunais administrativos, levando a incluir no seu âmbito litígios em que não é parte a  administração Pública, uma qualquer Administração Pública, mas órgãos de outros poderes do Estado ou até sujeitos privados a actuar no exercício de poderes ou de funções administrativas (…).

Noutros casos, passa-se o contrário, e é o factor subjectivo ou orgânico, digamos assim, que determina o domínio da justiça administrativa, independentemente da natureza das relações jurídicas litigiosas. O legislador, nessas hipóteses, atribuiu competência aos tribunais administrativos porque se trata de conflitos em que estão envolvidos entes com natureza ou forma jurídico pública, sem se preocupar se os mesmos são regulados pelo direito administrativo ou privado, ou se confluem ambos na sua regulação”  (Maria e Rodrigo Esteves de Oliveira, ob. cit. pág. 27).

Como bem salienta o acórdão do STA, de 11.07.2000, proc. 000318, disponível em www.dgsi.pt em 03.01.2010, citado pelos RR., “A determinação do tribunal materialmente competente para o conhecimento da pretensão deduzida pelo autor ou requerente deve partir do teor desta pretensão e dos fundamentos em que se estrib,..”.

Dúvidas não existem que as autarquias locais integram a Administração Pública autónoma de base territorial, desempenhando actividade administrativa de gestão pública ao nível local. Por sua vez, os Réus são sujeitos privados.

Por outro lado, a Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, que aprovou o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais veio eliminar a cláusula de exclusão de competência dos tribunais administrativos quanto à questão da qualificação dos bens como pertencentes ao domínio público e actos de delimitação destes com bens de outra natureza (anterior al. e), do n.º 1, do art. 4.º, do ETAF).

Ora, com bem salienta Vieira de Andrade, com tal eliminação, a apreciação de tal questão passa a integrar a competência dos tribunais administrativos porque se trata de uma questão de direito administrativo, nos termos e para os efeitos do artigo 1.ºdo citado diploma legal (ob. cit., pág. 130 e 131).

Face à conformação da causa de pedir pela Autora – i.e. possuidora e proprietária do prédio objecto dos autos desde 1976, ano em que o mesmo lhe foi entregue pelo Ministério da Agricultura e das Pescas, sendo que, desde 1976, como é de conhecimento público, a Autora, anualmente, permite que o mesmo (os dois prédios) seja explorado agrícola e pecuariamente por residentes na dita Freguesia de Zebreira, através de um processo que, consiste na divisão do mesmo em lotes de terreno, de acordo com um regulamento existente, e posterior sorteio dos mesmos pelos residentes em Zebreira, que necessitem de terra para cultivar e pastorear – e à natureza jurídica desta, dúvidas não restam que, nos presente autos, a Autora actua com vista à realização de um interesse público e na qualidade de ente público, no exercício de um poder de autoridade, não obstante o conflito em causa ser regulado por normas de direito privado, sendo da competência do Tribunal Administrativo o conhecimento da questão objecto dos presentes autos…»

(sublinhado nosso)

6.5.

Mostra-se acertado, na sua essencialidade relevante, esta explanação teórico-dogmática relativamente à interpretação dos citados artigos atinentes à atribuição de competência material aos tribunais administrativos.

Mas desde já se adianta, e salvo o devido respeito, não ter a Sra. Juíza retirado, no caso concreto, e dados os seus contornos, a ilação mais curial  que é imposta por tais ensinamentos.

Efectivamente e perante o actual teor dos normativos pertinentes supra citados pode dizer-se que: «aos tribunais administrativos e fiscais compete o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, sendo estes os que se referem a uma controvérsia resultante de relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo ou fiscal e nas quais intervém a Administração.

Sendo que: «são relações jurídicas administrativas e fiscais as relações de Direito Administrativo e de Direito Fiscal, que se regem por normas de Direito Administrativo ou de Direito Fiscal. Este é, aliás, o critério que melhor corresponde à tradição do nosso contencioso administrativo, que não adopta um critério estatutário, tendendo a submeter os litígios que envolvam entidades públicas aos tribunais judiciais, quando a resolução de tais litígios não envolva a aplicação de normas de Direito Administrativo ou de Direito Fiscal» - JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS Dicionário de Contencioso Administrativo, Almedina, 2007, págs. 117 a 118.

Nesta conformidade e numa perspectiva positiva ou afirmativa: «pode afirmar-se que a jurisdição administrativa tem competência para a apreciação dos litígios com origem na Administração pública lato sensu (ou seja, aquela que também é integrada pelas entidades privadas investidas de funções administrativas) e que envolvam a aplicação de normas de direito administrativo ou fiscal ou a prática de actos a coberto do direito administrativo. – Acs. do STJ de 02.07.2009, dgsi.pt., p. 334/09.9YFLSB e de 06.05.2010, p. 3777/08.1TBMTS.P1.S1.

Certo é que o actual ETAF desvalorizou a distinção entre actos de gestão publica e actos de gestão privada para a atribuição de competência material aos tribunais administrativos.

Antes colocando o enfoque  no tipo ou natureza da relação jurídica que está na base do litigio e da natureza das normas que o disciplinam: se é de cariz jurídico-administrativo e regulada por normas de direito administrativo, é o tribunal administrativo o competente.

O que, adrede e meridianamente, emerge do teor dos supra citados normativos,  maxime das partes sublinhadas.

Caso contrário o tribunal administrativo não é o competente, emergindo, assim, a competência residual dos tribunais comuns – Cfr. Ac. do STJ de 12.02.2009,  dgsi.pt, p.p. 09A0078.

O que se compreende, por razões de oportunidade, conexão da matéria com os conhecimentos e as atribuições do julgador e, consequentemente, até celeridade.

Efectivamente:

 «A atribuição da competência em razão da matéria será daquele tribunal que estiver melhor vocacionado para apreciar a questão colocada pelo autor, projectando um critério de eficiência que só poderá ser aferido em função do pedido deduzido e da causa de pedir, donde, portanto, a necessidade de verificar se existe norma que atribua a competência a um tribunal especial e, não havendo, caberá ela, subsidiária e residualmente, aos designados “tribunais comuns”» -  Ac. do STJ de 12.02.2009,  dgsi.pt, p. 08A4090, citando ainda os Acs. do STJ de 27.05.03, p. 03A1376 e de 11.12.03, p. 03B3845.

Do que se pode retirar a seguinte conclusão:

Pelo menos por via de regra, mais do que saber se nos encontramos perante um acto de gestão pública ou de gestão privada, releva o facto de o cerne da acção, tal como delineado pelo autor, ter, ou não, a ver com o chamamento, interpretação e aplicação de regras de cariz administrativo.

Podendo, assim, no limite, o tribunal comum ser o competente, mesmo que o autor actue no âmbito da gestão publica, desde que para a tutela da sua pretensão convoque normas de índole jurídico-privada e se coloque numa posição processual  de igualdade perante a outra parte.

Na verdade…

São actos de gestão pública os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração no exercício de um poder público, "jus imperii", e, regulados por normas de direito público, realizam fins específicos do Estado ou outro ente público  e visando a satisfação de interesses.

Os actos de gestão privada são, de modo geral, aqueles que, embora praticados pelos órgãos, agentes ou representantes do Estado ou de outras pessoas colectivas públicas, estão sujeitos às mesmas regras que vigorariam para a hipótese de serem praticados por simples particulares. São actos em que o Estado ou a pessoa colectiva pública intervém como um simples particular, com sujeição exclusiva a normas de direito privado e despido do seu poder de soberania ou do seu "jus auctoritatis" - Marcello Caetano , Manual, tomo II, 8ª edição, p.1134; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 1º, 10ª ed., p. 648 e 649 e Ac. S.T.A. de 24/01/2002, p. nº. 048274.»

5.3.

Continuamos a pugnar em casos como o presente, pela competência do tribunal comum.

Na verdade e para além dos argumentos vertidos nos arestos supra citados importa realçar que o artº  1º nº 5 da Lei nº 67/2007 de 31/12 e a al. i) do artº 4º do ETAF não têm aqui aplicação.

Efetivamente, e como se viu, o requisito necessário, a conditio sine qua non para o chamamento de tais normativos é o ente, público ou privado, ter atuado no «exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou princípios de direito administrativo”.».

Ora, nos casos como o presente, tal atuação, em tese e em todas as situações, apenas se coloca, necessáriamente,  e por força do contrato de concessão, nas relações entre o Estado e a empresa concessionária.

Já nas relações entre esta empresa e o utente da via tal atuação apenas emerge e releva – e, assim, atribuindo competência aos tribunais administrativos – se for invocada pelo autor lesado, ou, ao menos e concedendo, pela ré concessionária e aqui BRISA.

 Não sendo invocado que a atuação da ré, relativamente aos factos que consubstanciam a causa de pedir, se revestiu de prerrogativas de poder publico, ou que, concretamente, obedeceu a regras de direito administrativo, não emerge tal conditio, e, assim a competência do tribunal administrativo.

E se, acrescidamente, o autor funda o seu pedido em regras de jaez, inteira e inequivocamente, cível, então não restam dúvidas que a competência caberá aos tribunais comuns.

Pois que, como se viu, mesmo para os defensores da tese oposta, isto – pedido e causa petendi -  é o quid nuclear para aferir da atribuição da competência.

Quando assim é, e  nenhuma das partes – rectius a ora ré -  se apresenta no processo numa posição de superioridade relativamente aos réus decorrente de uma atuação imbuída de um poder público, do "jus imperii", então, a conjugação de tais fatores dúvidas não deixa, quanto a nós, sobre a conclusão de dever ser o tribunal comum a apreciar e decidir o pleito – neste sentido cfr. o Ac. do STJ de 26.05.2015, p.1798/09.6TBCSC.L1.S1.

Até porque se mais não houvesse, que há, como se viu, sempre seria convocável o mencionado argumento, a um tempo utilitarista e de consecução da justiça material, atinente à celeridade e eficácia da decisão.

 Pois que, tal como os autores gizaram a causa, o Sr. Juiz do tribunal a quo está em tão boas ou melhores  - dada a sua maior experiencia na atividade exegética das normas invocadas - condições do que o seu colega do tribunal administrativo para mais depressa e curialmente a julgar.

Procede o recurso.

6.

Sumariando.

I- O artº 1º nº5 da Lei nº67/2007 de 31/12 e a al. i) do nº1 do artº 4º do ETAF apenas  relevam, necessariamente e em tese, nas relações Estado/ente, privado ou publico que, vg., ex vi de contrato de concessão, atuou no «exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou princípios de direito administrativo”.

II - Em concreto e no processo, e nas relações ente/lesado apenas se as partes invocarem tal jaez atuante é que a competência cabe ao tribunal administrativo.

III – Se, ao invés, elas aceitam a delimitação  e regulação do objeto do processo por normas de cariz privado e não é alegada atuação imbuída de jus imperii, é competente – até por suposta decisão mais experiente e, assim, curial e justa – o tribunal comum.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda conceder provimento ao recurso, revogar a decisão,  e declarar a competência material do tribunal recorrido.

Sem custas.

Coimbra, 2015.12.16.

Carlos Moreira