Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
280/10.3TBVNO-A.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
DOCUMENTO PARTICULAR
MÚTUO
Data do Acordão: 06/20/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VILA NOVA DE OURÉM
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.46 Nº1 C) CPC, 289, 1143 CC
Sumário: 1. A evolução do nosso direito processual tem sido, sistematicamente, no sentido de generalizar a exequibilidade dos documentos particulares.

2. Tendo sido dado à execução um documento particular onde se consignaram as cláusulas de um contrato de mútuo, nulo por falta de forma (art. 1143 do CC), tendo os executados confessado o empréstimo de quantias pecuniárias no requerimento de oposição, constando do título o reconhecimento da dívida exequenda e a obrigação de restituição, o direito do exequente não emerge do contrato (face à sua nulidade formal), mas do dever de restituição do que foi prestado (face ao regime previsto no art. 289/1 CC), não fazendo sentido obrigar o credor munido dum documento particular com as características apontadas, a instaurar uma acção declarativa com vista a obter um outro título para substituir aquele que já detém.

Decisão Texto Integral: I. Relatório
Por apenso à acção executiva sob forma comum n.º 280/10.3TBVNO-A.C1, para pagamento de quantia certa, JL (…) e mulher ME (…) e PM (…) e mulher DM (…)  deduziram oposição à referida acção executiva que lhes foi movida por DC (…) e mulher MA (…) pedindo, em síntese, a extinção da acção executiva com absolvição dos executados do pedido exequendo e a condenação dos exequentes como litigantes de má fé em multa e indemnização.
  Alegaram em síntese os opoentes para fundamentar as suas pretensões: sob pressão do exequente que ameaçava o primeiro opoente de que iria fazer constar na praça que era mau pagador, subscreveram um escrito onde consta a assunção da obrigação de pagamento da quantia de quarenta e cinco mil euros, tendo sido pagas sete das prestações acordadas, ficando em dívida o capital de quinze mil duzentos e cinquenta euros; foi acordado que o mútuo era gratuito, pelo que não são devidos juros e que os opoentes PM (..:) e DM (…)  respondiam na qualidade de fiadores e com benefício de excussão, tendo os opoentes JL (…) e ME (…)  bens penhoráveis; o título exequendo, na parte onde constam as obrigações assumidas pelas partes, não se mostra assinado, na sua totalidade.
  A oposição foi liminarmente recebida, sendo os exequente notificados para, querendo, contestarem.
  DC (…) e mulher MA (…)  contestaram a oposição arguindo, em síntese, a intempestividade da oposição deduzida por JL (…), a obrigação dos restantes opoentes pagarem multa processual por dedução da oposição no primeiro dia útil seguinte ao termo do prazo para o efeito, a litigância de má fé e com abuso de direito por parte dos opoentes, alegando que o documento oferecido pelos opoentes se mostra falsificado, impugnando a generalidade dos factos articulados pelos opoentes e reiterando a factualidade vertida no requerimento executivo, concluindo pela total improcedência da oposição.
Mostra-se junto aos autos o original do título executivo (fls. 56).
Os opoentes responderam à contestação.
Realizou-se audiência preliminar na qual as partes acordaram na suspensão da instância pelo prazo de dez dias, em virtude de estarem em vias de chegar a acordo no presente litígio, suspensão que foi deferida, tendo-se gorado a almejada resolução consensual do litígio.
A 11 de Março de 2011 foi proferida decisão que com base em falta de título executivo julgou procedente a oposição à acção executiva, declarando-se extinta a acção executiva.
Inconformados com esta decisão, DC (…)  e mulher MA (…)impugnaram-na em recurso de apelação.
Os autos subiram a este Tribunal, onde em 6 de Setembro de 2011 foi proferido acórdão[1], transitado em julgado, com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, em audiência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra acordam em julgar procedente o recurso de apelação interposto por DC (…)e MA (…) e, em consequência, em revogar a decisão proferida a 11 de Março de 2011, a qual se substitui por outra que determina o prosseguimento dos autos com conhecimento das restantes questões suscitadas pelas partes e, se for caso disso, com a condensação da factualidade relevante para a boa decisão da causa, tendo sempre presente as regras da distribuição do ónus da prova.»
Baixaram os autos ao Tribunal de 1.ª instância, onde o M.º Juiz proferiu despacho (fls. 203), no qual refere:
«… mostrando-se o mútuo concedido nulo por ausência de observância de forma, forçosa é também a conclusão da falta de idoneidade ou aptidão do documento de fls. 7 para figurar como confissão da dívida naquele ínsita.
Isto obviamente sem prejuízo da possibilidade que sempre restará aos Exequentes de mobilizar acção declarativa com vista à constatação judicial da nulidade do mútuo concedido com paralela obrigação de restituição de tudo o que haja sido prestado.».
E conclui com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, e nos termos referenciados, o Tribunal, à luz dos artigos 458.º do Código civil e 46.º, 812.º-E, n.º 1, alínea a) e 820.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, decide absolver os Executados JL (…), ME (…), DM (…) e PM (…) da instância executiva que corre termos nos autos principais impulsionada por DC (…) e MA (…).
Novamente inconformados, DC (…) e mulher MA (…) interpuseram recurso de apelação, apresentando alegações onde formulam as seguintes conclusões:

a) Estamos em presença de uma excepção dilatória - caso julgado - pois foi proferido douto acórdão nesse Venerando Tribunal em 6/09/2011 Ref.ª n.º 3537777 datada de 9/09/2011 há muito transitado em julgado que apreciou e decidiu a (in)exequibilidade do título em apreço, optando decidindo por considerá-lo exequível.

b) A presente decisão, ora tomada em crise, é manifestamente contraditória com o douto acórdão supra referido e por demais com referência ao mesmo processo e preciso título (documento) exequendo.

c) O título dado à execução, tratando-se como se trata de um documento particular, preenche todos os requisitos melhor enunciados na alínea c) do artº 46° do C.P.C.

d) Tal título, já foi e por douto acórdão proferido nesse Venerando Tribunal, há muito transitado em julgado, devidamente sufragado, tendo-se concluído pela sua idoneidade e aptidão como título executivo.

e) Nada mais havia ou poderá haver a apreciar sob pena de violação do caso julgado, quanto à idoneidade e aptidão do título dado à presente execução.

Pois que,

f) O título dado à execução já há n1uito foi reconhecido como idóneo e apto à instrução da presente execução.

Daí que,

g) Somente resta manter e ordenar, como o fora já anteriormente, o prosseguimento dos autos principais de execução - Como se Requer!

h) A presente decisão (sentença) é manifestamente contraditória com o aresto já proferido por esse Venerando Tribunal e transitado em julgado, e viola os mais elementares princípios do direito.
Não foram apresentadas contra-alegações.

II. Do mérito do recurso
1. Definição do objecto do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 684º, nº 3, e 690º, nºs 1 e 3, CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se em duas questões: i) saber se o despacho recorrido viola o caso julgado, face à anterior decisão desta Relação; ii) saber se o título executivo é válido, apesar da nulidade do mútuo que consubstancia.

2. Fundamentação de facto
É a seguinte a factualidade relevante:
2.1. DC (…)e mulher MA (…) instauraram a acção executiva a que estes autos estão apensados oferecendo um escrito composto de três páginas, constando na terceira página, após a palavra “Primeiros”, as assinaturas de DC (…) e MA (…), após a palavra “Segundos” as assinaturas de JL (…) e ME (…) e após a palavra “Terceiros”, as assinaturas de PM (…) e de DM (…), constando das duas primeiras páginas do referido documento o seguinte texto (fls. 56):
“- CONTRATO DE MÚTUO –
Primeiros Outorgantes: DC (…) e mulher MA (…)casados sob o regime da comunhão de adquiridos e residentes na Avenida (...) , em Ourém, portadores dos Bilhetes de Identidade números (...)e (...) , emitidos em 26-09-2002 e 19-05-2005 pelo Arquivo de Identificação de Santarém, e contribuintes fiscais números (...) e (...) , respectivamente, na qualidade de Mutuantes;
Segundos Outorgantes: JL (…) e mulher ME (…) casados sob o regime da comunhão de adquiridos e residentes em (...) , concelho de Tomar, portadores dos Bilhetes de Identidade números (...) e (...) , emitidos em 18-09-2007 e 23-08-2000, pelo Arquivo de Identificação de Santarém e contribuintes fiscais números (...) e (...) , respectivamente, na qualidade de Mutuários.
Terceiros Outorgantes: PM (…) e mulher DM (…), casados sob o regime da comunhão de adquiridos e residentes na Praceta (...) , em Ourém, portadores dos Bilhetes de Identidade números (...) e (...) , emitidos em 10-03-2004 e 14-05-2004, pelo Arquivo de Identificação de Santarém e contribuintes fiscais números (...) e (...) , respectivamente, na qualidade de Fiadores.
- PRIMEIRO –
Os Primeiros contraentes emprestam nesta data aos Segundos, o montante de € 255.000,00 (Duzentos e cinquenta e cinco mil Euros).
- SEGUNDO -
Os Segundos contraentes, declaram-se devedores aos Primeiros da quantia mutuada de € 255.000,00 (Duzentos e cinquenta e cinco mil Euros), comprometendo-se a pagar o capital da seguinte forma:
A) Em 60 (sessenta) prestações mensais e sucessivas de € 4.250,00 (quatro mil duzentos e cinquenta Euros);
B) A primeira prestação vence em 20 de Abril de 2008 ;
C) As restantes serão pagas nos meses subsequentes e nos mesmos dias.
- TERCEIRO –
O presente mútuo é gratuito, não vencendo juros o capital mutuado.
- QUARTO –
No caso de incumprimento por parte dos Segundos Outorgantes, os Terceiros Outorgantes, na qualidade de Fiadores, só ficam obrigados ao pagamento da divida mutuada, depois de excutido todo o património dos devedores .
- QUINTO –
O presente contrato satisfaz a vontade das partes, prescindindo as mesmas da celebração do mesmo por escritura pública.
Ourém, 11 de Março de 2008.”
2.2. JL (…) e mulher ME (…) e PM (…) e mulher DM (…)ofereceram cópia de um escrito composto de três páginas, constando na terceira página, após a palavra “Primeiros”, as assinaturas de DC (…) e MA (…), após a palavra “Segundos” as assinaturas de JL (…) e ME (…) e após a palavra “Terceiros”, as assinaturas de PM (…)e de DM (…), constando das duas primeiras páginas do referido documento o seguinte texto (fls. 118):
“- CONTRATO DE MÚTUO –
Primeiros Outorgantes: DC (…) e mulher MA (…)casados sob o regime da comunhão de adquiridos e residentes na Avenida (...) , em Ourém, portadores dos Bilhetes de Identidade números (...) e (...) , emitidos em 26-09-2002 e 19-05-2005 pelo Arquivo de Identificação de Santarém, e contribuintes fiscais números (...) e (...) , respectivamente, na qualidade de Mutuantes;
Segundos Outorgantes: JL (…) e mulher ME (…) casados sob o regime da comunhão de adquiridos e residentes em (...) , concelho de Tomar, portadores dos Bilhetes de Identidade números (...) e (...) , emitidos em 18-09-2007 e 23-08-2000, pelo Arquivo de Identificação de Santarém e contribuintes fiscais números (...) e (...) , respectivamente, na qualidade de Mutuários.
Terceiros Outorgantes: PM (…) e mulher DM (…) casados sob o regime da comunhão de adquiridos e residentes na Praceta (...) , em Ourém, portadores dos Bilhetes de Identidade números (...) e (...) , emitidos em 10-03-2004 e 14-05-2004, pelo Arquivo de Identificação de Santarém e contribuintes fiscais números (...) e (...) , respectivamente, na qualidade de Fiadores.
- PRIMEIRO –
Os Primeiros contraentes emprestam nesta data aos Segundos, o montante de € 51.000,00 (cinquenta e um mil Euros).
- SEGUNDO -
Os Segundos contraentes, declaram-se devedores aos Primeiros da quantia mutuada de € 51.000,00 (cinquenta e um mil Euros), comprometendo-se a pagar o capital da seguinte forma:
  A) Em 12 (doze) prestações mensais e sucessivas de € 4.250,00 (quatro mil duzentos e cinquenta Euros) ;
  B) A primeira prestação vence em 20 de Abril de 2008;
C) As restantes serão pagas nos meses subsequentes e nos mesmos dias.
- TERCEIRO –
O presente mútuo é gratuito, não vencendo juros o capital mutuado.
- QUARTO –
No caso de incumprimento por parte dos Segundos Outorgantes, os Terceiros Outorgantes, na qualidade de Fiadores, só ficam obrigados ao pagamento da divida mutuada, depois de excutido todo o património dos devedores.
- QUINTO –
O presente contrato satisfaz a vontade das partes, prescindindo as mesmas da celebração do mesmo por escritura pública.
Ourém, 11 de Março de 2008.”
2.3. A datação dos escritos mencionados em 3.1 e 3.2 ocupa a última linha da segunda página de cada um dos escritos.
2.4. Consta da primeira sentença proferida nos autos (fls. 134):

«Da (In)existência do título executivo

Sustentam os oponentes a inexistência de título executiva alegando que se se manusear o título dado à execução - falso, na sua teses - e na primeira folha onde consta a quantia de 255.000 € não consta qualquer assinatura.

Nos termos do que dispõe o artigo 46º, n.º 1, alínea c) do C.Proc. Civil, para que tal alegado documento pudesse servir de base à execução, o mesmo devia estar assinado pelos executados, na sua totalidade, facto que se não verifica (…)

No caso concreto o documento dado à execução como dissemos é composto por duas folhas e numa primeira folha contendo o objecto da obrigação, mas que o(s) sujeitos(s) devedores nada assinaram ou rubricaram, ficando-nos uma segunda folha em branco com seis assinaturas.

Importa questionar de que se trata a segunda folha do documento dado à execução, é um documento compósito com a primeira folha? E será que pudemos dizer que os executados assinaram um documento particular com reconhecimento da dívida quando a folha onde consta o objecto da obrigação nem assinado nem rubricado se mostra?

Conforme expusemos acima, o documento particular é título executivo quando importe a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias.

As alegadas assinaturas dos executados foram apostas numa folha em “branco”, onde nada se diz quanto a uma qualquer obrigação.

Afigura-se-nos, que o documento dado à execução como título executivo, cujo original está junto a fls. 56 e 57 destes autos, não reúne as condições previstas no artigo al. c) do nº 1 do artigo 46 do CPC, motivo pelo qual se julga procedente a oposição à execução e se declara extinta a execução apensa.

Destarte, por falta de título executivo, a oposição à execução não pode deixar de ser julgada procedente, em consequência declara-se extinta a acção executiva, nos termos do disposto no artigo 817º, n.º 4 do CPC.»
2.5. Consta do acórdão proferido nesta Relação, que apreciou o recurso interposto da referida sentença:

«Na decisão sob censura, na esteira dos opoentes que invocaram a necessidade de assinatura da totalidade do título exequendo, concluiu-se pela inexequibilidade do título, porque na folha do documento exequendo onde constam as obrigações exequendas não se acha aposta qualquer assinatura, estando as assinaturas dos executados numa folha em branco, onde nada se diz quanto a uma qualquer obrigação. (…)

Pelo que precede, conclui-se, diversamente do que se decidiu em primeira instância, que o documento exequendo não enferma de inexequibilidade por falta de assinatura dos opoentes, devendo por isso ser revogada a decisão sob censura e substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos com conhecimento das restantes questões suscitadas pelas partes e, se for caso disso, com a condensação da factualidade relevante para a boa decisão da causa[2], tendo sempre presente as regras da distribuição do ónus da prova.»

3. Fundamentação de direito
3.1. Apreciação da excepção dilatória do caso julgado
O principal corolário da obrigatoriedade e da prevalência das decisões dos tribunais” (prevista no artigo 205º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa), traduz-se no instituto do caso julgado, decorrendo da lei fundamental a exigência de que as decisões judiciais sejam, em princípio, aptas a produzir caso julgado[3].
Visando a actividade jurisdicional a obtenção da pacificação social, torna-se necessário que a decisão proferida pelo tribunal sobre a questão concreta que lhe foi colocada seja definitiva, não podendo ser contrariada ou desautorizada por ulteriores decisões.
A definitividade na resolução do conflito de interesses, decorrente da força do caso julgado atribuída à decisão judicial que já não admite recurso ordinário ou reclamação, desdobra-se assim em duas vertentes: i) por um lado, a questão decidida não pode ser de novo reapreciada (trata-se do campo próprio de actuação da excepção dilatória de caso julgado ou do efeito negativo do caso julgado); ii) por outro lado, o respeito pelo conteúdo da decisão anteriormente adoptada implica que não possa haver decisão posterior que a contrarie (o que se traduz a denominada autoridade do caso julgado ou o efeito positivo do caso julgado)[4].
A excepção dilatória de caso julgado visa evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior (artigo 497º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Tal excepção depende da verificação de uma tripla identidade: de sujeitos, do ponto de vista da sua qualidade jurídica, do pedido, isto é da identidade dos efeitos jurídicos peticionados e da causa de pedir, ou seja da identidade do facto jurídico em que se baseiam as pretensões deduzidas (artigo 498º do Código de Processo Civil).
Na situação sub judice, com o devido respeito, parece-nos óbvia a não verificação dos requisitos enunciados.
Com efeito, e como resulta do confronto da decisão proferida por esta Relação (ponto 2.5. dos factos provados), a questão apreciada por esta Tribunal resumiu-se a saber se o título era inexequível por falta de assinaturas dos executados.
Apreciada tal questão (e apenas essa), concluiu-se no acórdão proferido nos autos: «Pelo que precede, conclui-se, diversamente do que se decidiu em primeira instância, que o documento exequendo não enferma de inexequibilidade por falta de assinatura dos opoentes, devendo por isso ser revogada a decisão sob censura e substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos com conhecimento das restantes questões suscitadas…».
Refere-se no início do despacho recorrido: «Atenta a decisão a proferir, importa sublinhar que a sentença objecto de revogação (…) apenas abordava a temática da inexistência do título executivo em função da aferição da questão da falta de assinaturas. Com o que, com o devido respeito e salvo melhor entendimento, não se acha vedado a este Tribunal de 1.ª instância a apreciação das demais questões conexionadas com a existência e validade do título por não se encontrarem abrangidas pela força de caso julgado do douto Acórdão que antecede
Afigura-se correcta a apreciação preliminar de não verificação da excepção dilatória do caso julgado, feita pelo M.º Juiz.
Com efeito, a declaração por parte deste Tribunal, de que o título dado à execução “não enferma de inexequibilidade por falta de assinatura dos opoentes”, não impede a averiguação e pronúncia sobre os restantes requisitos de exigibilidade.
No despacho sob censura conclui-se pela inexigibilidade do título, com outro fundamento que não foi objecto de qualquer apreciação judicial anterior nestes autos: a nulidade do contrato de mútuo.
Decorre do exposto a manifesta improcedência da excepção dilatória deduzida.

3.2. Apreciação da validade do título
Resta para apreciação a averiguação sobre se o título enferma de inexequibilidade decorrente da nulidade formal do contrato de mútuo que as partes nele consignaram.
Refere o M.º Juiz na decisão recorrida:

«… mostrando-se o mútuo concedido nulo por ausência de observância de forma, forçosa é também a conclusão da falta de idoneidade ou aptidão do documento de fls. 7 para figurar como confissão da dívida naquele ínsita.

Isto obviamente sem prejuízo da possibilidade que sempre restará aos Exequentes de mobilizar acção declarativa com vista à constatação judicial da nulidade do mútuo concedido com paralela obrigação de restituição de tudo o que haja sido prestado.».
Consta do título dado à execução, designado pelas partes como “CONTRATO DE MÚTUO”: que são 1.ºs outorgantes os ora exequentes DC (…) e MA (…); que são 2.ºs outorgantes os ora 1.ºs opoentes JL (…) e mulher ME (…) que são 3.ºs outorgantes ora 2.ºs opoentes PM (…) e mulher DM (…); que os primeiros outorgantes emprestam aos segundos o montante de € 255.000,00 (Duzentos e cinquenta e cinco mil Euros); que os segundos outorgantes se declaram devedores aos primeiros da quantia mutuada de € 255.000,00 (Duzentos e cinquenta e cinco mil Euros), que se comprometem a pagar; que o capital mutuado não vence juros; que no caso de incumprimento por parte dos segundos outorgantes, os terceiros outorgantes, na qualidade de Fiadores, só ficam obrigados ao pagamento da divida mutuada, depois de excutido todo o património dos devedores; e que “o presente contrato satisfaz a vontade das partes, prescindindo as mesmas da celebração do mesmo por escritura pública”.
Como se referiu, ficou decidido nesta Relação, com trânsito em julgado, que «o documento exequendo não enferma de falta de assinatura, nem tão-pouco os opoentes o assinaram em branco, estando apenas colocada em crise a sua autenticidade material, matéria a apurar, se for caso disso, de acordo com as pertinentes regras probatórias e com as provas oferecidas pelas partes, sem prejuízo das diligências instrutórias que o tribunal entenda levar a cabo ex vi artigo 265º, nº 3, do Código de Processo Civil.»[5]
Não restam dúvidas sobre a nulidade do mútuo por ausência de observância da forma legal prevista no artigo 1143.º do Código Civil.
No entanto, com o devido respeito, apesar de a questão não ser pacífica, não partilhamos o caminho trilhado pelo M.º Juiz na solução jurídica que deu a este caso.
Vejamos.
Sob a epígrafe “Espécies de títulos executivos”, prescreve o artigo 46.º do Código de Processo Civil:

1 - À execução apenas podem servir de base:

a) As sentenças condenatórias;

b) Os documentos elaborados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;

c) Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto;

d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.

2. Consideram-se abrangidos pelo título executivo os juros de mora, à taxa legal, da obrigação dele constante.
A matriz da alínea c) do n.º 1 do normativo transcrito foi formulada na revisão operada pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, que a anunciava no seu preâmbulo, nestes termos: “cumpre referir que se optou pela ampliação significativa do elenco dos títulos executivos, conferindo-se força executiva aos documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinável em face do título, da obrigação de entrega de quaisquer coisas móveis[6] ou de prestação de facto determinado.”
Como refere Lebre de Freitas[7], constitui requisito de fundo que do título conste a obrigação de pagamento de quantia determinada ou determinável por simples cálculo aritmético, constituindo o documento particular título executivo, tal como acontece com os documentos autênticos ou autenticados, “tanto quando formaliza a constituição duma obrigação como quando o devedor nele reconhece uma dívida preexistente”.
E a questão a que se resume o objecto deste recurso é a seguinte: a falta de forma legal do contrato impedirá a exequibilidade do título?
Numa primeira leitura do normativo em causa, não se vislumbram obstáculos à exequibilidade: i) trata-se de um documento particular; ii) está assinado pelos devedores que nele reconhecem uma obrigação pecuniária; iii) e o montante dessa obrigação é determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas constantes do documento.
Por outro lado, os executados no requerimento de oposição (fls. 6), alegam: “É verdade que os exequentes emprestaram aos executados várias dezenas de milhares de euros (…). Dos dinheiros emprestados, unicamente - repete-se – aos primeiros oponentes, estes pagaram não a totalidade do mútuo, mas a grande maioria deles. (…) Ficando a dever aos exequentes apenas a quantia de 45.000€”. (arts. 10.º a 13.º do requerimento de oposição)
Referem depois a sua versão sobre a forma como foi formalizado o “mútuo”, com reconhecimento da dívida, não de € 45.000,00, mas de € 51.000,00[8]. (arts. 19.º a 22.º do requerimento de oposição)
Concluem que efectuaram o pagamento de sete prestações, pelo que somente devem € 15.250,00 (arts. 27.º e 28.º do requerimento de oposição).
Sem prejuízo da produção de prova sobre a factualidade que os executados alegam, podemos desde já concluir que: a) os exequentes emprestaram quantias pecuniárias aos 1.ºs executados; b) os 1.ºs executados subscreveram um documento em que reconhecem dever valores pecuniários que receberam no âmbito desse empréstimo; c) mais reconheceram os 1.ºs executados a obrigação de restituição dos valores recebidos; d) no mesmo título, reconheceram os 2.ºs executados, a sua qualidade de fiadores.
Contrariamente ao que se refere no despacho sob censura, a causa debendi está claramente configurada no título dado à execução e na confissão feita pelos executados no articulado de oposição (a reforçar aquela que já constava do título), traduzindo-se no empréstimo de quantias pecuniárias que os executados expressamente referem ter recebido com obrigação de devolver[9].
Com o devido respeito, a questão é outra, reconduzindo-se à nulidade (por vício de forma) do negócio e ao facto de a “fonte” da obrigação de restituição emergir dessa nulidade (art. 289/1 CC), implicando para alguma doutrina e jurisprudência a necessidade prévia (como também se refere no douto despacho recorrido), de uma acção declarativa a declarar essa nulidade e, consequentemente, a determinar a restituição do que foi prestado.
Em suma: haverá ou não que recorrer a um outro título (sentença), em substituição do documento particular, face ao vício formal apontado?
Nesta matéria seguimos caminho diverso daquele que se preconiza na douta sentença recorrida, já trilhado por esta Relação, nomeadamente no acórdão de 13.09.2011[10]
Tal entendimento tem sido perfilhado em recentes acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, onde se defende a desnecessidade da acção declarativa prévia, desde que do documento particular dado à execução conste o reconhecimento da obrigação pecuniária.
Nesse sentido, veja-se o acórdão do STJ, de 13.07.2010[11], cujo sumário se transcreve:
«Numa execução fundamentada numa declaração de dívida em que a executada reconhece haver recebido importância determinada do exequente através de um contrato de mútuo com este celebrado e tendo este exequente no requerimento executivo alegado haver sido celebrado tal contrato por mero documento particular quando o mesmo, por lei substantiva, devia ter sido celebrado por escritura pública, pode o exequente no mesmo requerimento pedir a execução da executada para reaver o montante mutuado, ao abrigo do disposto no art. 289º, nº 1 do Cód. Civil, sem necessidade de, previamente, ter de propor uma acção declarativa, para o efeito.»
No mesmo sentido, veja-se o acórdão do mesmo Supremo Tribunal, de 1.02.2011[12], em cujo sumário se refere:

«Considerando que, por via de confissão contida no documento dado à execução, está demonstrada a realidade dum empréstimo no montante de € 39 903,83 feito (…) aos executados, o facto de se tratar de mútuo ferido de nulidade, nos termos dos arts. 220.º, 294.º e 1143.º do CC, dado que não foi celebrado por escritura pública, não retira exequibilidade ao título. (…) encontrando-se plenamente provada, por confissão, a realidade do mútuo ajuizado, nos exactos termos em que surge retratado no título executado, nenhum sentido faria, por via da negação da sua força executiva, remeter o exequente para uma acção declarativa destinada a obter o reconhecimento dum direito que, para além de já estar válida e eficazmente reconhecido pelo devedor, também se encontra definido em todos os seus contornos juridicamente relevantes na mencionada confissão de dívida».[13]
Sem desconsiderar a posição divergente, que tem bons defensores na doutrina e na jurisprudência, pensamos que a questão se deverá reconduzir aos requisitos imperativamente enunciados na alínea c) do n.º 1 do artigo 46.º do CPC, onde se exige um documento particular, assinado pelo devedor, onde este reconheça uma obrigação pecuniária, com um montante determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto.
O título dado à execução é um documento particular, onde os 1.ºs executados reconhecem uma obrigação pecuniária, constando do mesmo a causa debendi (recebimento de quantias e compromisso de restituição das mesmas), sendo o montante a restituir determinável face aos termos do acordo.
O título dado à execução não vale como contrato de mútuo (porque é nulo), mas valerá como documento particular onde é reconhecido o crédito exequendo e onde se consignaram as razões que o originaram (empréstimo com obrigação de devolução, confessado pelos executados).
Na interpretação da norma, convém não esquecer o objectivo expressamente enunciado pelo legislador no preâmbulo do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro: “cumpre referir que se optou pela ampliação significativa do elenco dos títulos executivos, conferindo-se força executiva aos documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinável em face do título, da obrigação de entrega de quaisquer coisas móveis ou de prestação de facto determinado.”
Como refere Lebre de Freitas[14], a evolução do nosso direito foi, desde o Código de Processo Civil de 1876, no sentido de generalizar a exequibilidade dos documentos particulares[15]. Com o DL 242/85, de 9 de Julho, o legislador dispensou o reconhecimento notarial da assinatura do devedor nas letras, livranças e cheques, de qualquer montante (era, antes dele, o regime exclusivo das letras, livranças e cheques de montante superior ao valor da alçada da Relação - desde o DL 533/77, de 30 de Dezembro, pois até aí os títulos de crédito não tinham regime especial, estando sujeitos, como os restantes documentos, a reconhecimento simples ou presencial consoante o valor da dívida -, bem como do extracto de factura, emitido, por exigência do DL 19 490, de 21-3-31, em caso de contrato de compra e venda mercantil a prazo entre comerciantes).
A revisão de 1995-1996 dispensou o reconhecimento notarial da assinatura do devedor em todos os casos (salvo o do documento assinado a rogo) e conferiu exequibilidade aos documentos particulares, que antes a não tinham, desde que dos mesmos conste obrigação pecuniária a liquidar por simples cálculo aritmético, obrigação de entrega de coisa móvel infungível ou obrigação de prestação de facto. Com a reforma da acção executiva, também a entrega de coisa imóvel ficou abrangida - no pressuposto, evidentemente, de que a obrigação de entrega pode validamente constar de documento particular, como normalmente acontece com a que respeita a direito pessoal de gozo, mas já não com a que respeita a direito real de gozo.
Constando do título o reconhecimento da dívida exequenda e a obrigação de restituição, o direito do exequente não emerge do contrato (face à sua nulidade formal), mas do dever de restituição do que foi prestado (face ao regime previsto no art. 289/1 CC), não fazendo sentido, perante a evolução legislativa que se sintetizou (que vai no sentido de generalizar a exequibilidade dos documentos particulares), obrigar o credor munido dum documento particular com as características apontadas, a percorrer a via crucis processual preconizada na tese que rejeitamos, instaurando uma acção declarativa, com vista a obter um outro título para substituir aquele que já detém.
Tudo isto, obviamente, sem prejuízo do apuramento da autenticidade material do documento, posta em crise pelos opoentes, matéria a apurar, se for caso disso, de acordo com as pertinentes regras probatórias e com as provas oferecidas pelas partes, sem prejuízo das diligências instrutórias que o tribunal entenda levar a cabo ex vi artigo 265º, nº 3, do Código de Processo Civil, como já se referiu no acórdão anterior.
Do exposto concluímos, salvo o devido respeito, pela procedência do recurso, o que implica a revogação da douta sentença recorrida e a declaração de exequibilidade do título executivo, apesar da nulidade do mútuo nele consignado.

IV. Dispositivo
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso, e, em consequência, em revogar a decisão recorrida, que se substitui por outra que determina o prosseguimento dos autos com conhecimento das restantes questões suscitadas pelas partes e, se for caso disso, com a condensação da factualidade relevante para a boa decisão da causa.
Custas do recurso pelos Apelantes.
                                                         *


Carlos Querido ( Relator )
Virgílio Mateus
Carvalho Martins


[1] Subscrito pelo relator do presente, na qualidade de adjunto.
[2] Isto se não se enveredar pela abstenção da selecção da matéria de facto, ex vi artigos 817º, nº 2 e 787º, nº 2, ambos do Código de Processo Civil, solução que em regra não merece o nosso aplauso porque dificulta escusadamente o julgamento e a destrinça da matéria de facto pertinente da impertinente, bem como da matéria de facto da matéria conclusiva e de direito.
[3] Neste sentido, cfr: Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora 2007, Jorge Miranda e Rui Medeiros, páginas 77 e 78, anotação XII. 
[4] Neste sentido veja-se, Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora 2007, Jorge Miranda e Rui Medeiros, página 78, anotação XII, alínea a).
[5] Tal documento é o original do título, junto a fls. 56.
[6] Com a reforma da acção executiva, também a entrega de coisa imóvel ficou abrangida.
[7] A Acção Executiva depois da reforma da reforma, 5.ª edição, Coimbra Editora, pág. 58.
[8] Na sua versão, o acréscimo de € 6.00,00 corresponderia a juros.
[9] Sem prejuízo da contestação dos valores: alegam que receberam 45.000,00€ e não 51.000,00€, e que já pagaram grande parte desse valor.
[10] Proferido no Processo n.º 189/10.0TBMGR-A.C1, acessível em http://www.dgsi.pt, cujo sumário se transcreve: “Tem força executiva, relativamente ao montante do capital mutuado, o documento particular, assinado por mutuante e mutuário, que integra um contrato de mútuo nulo por falta de forma e a correspondente confissão de dívida por parte do mutuário.”
[11] Proferido no Processo n.º 6357/04.7TBMTS-B.P1.S1, acessível em http://www.dgsi.pt 
[12] Proferido no Processo n.º 7273/07.6TBMAI-A.P1.S1, acessível em http://www.dgsi.pt
[13] Veja-se no mesmo sentido o recente acórdão da Relação de Guimarães, de 12.01.2012, proferido no Processo n.º 770/11.0TBBRG.G1, também acessível no site da DGSI.
[14] A Acção Executiva depois da reforma da reforma, 5.ª edição, Coimbra Editora, pág. 57.
[15] Há legislações que não reconhecem a exequibilidade dos documentos particulares, como é o caso da lei alemã, e outras que a restringem aos títulos de crédito (caso da lei italiana) ou aos cheques (caso da lei francesa).