Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
336/09.5TBMMV-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: EXECUÇÃO
NULIDADES PROCESSUAIS
RECURSO
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
CONCURSO
Data do Acordão: 12/01/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. CENTRAL - SECÇÃO DE EXECUÇÃO - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 186, 196, 197, 615, 920 CPC, 824 CC
Sumário: 1. O Tribunal da Relação só pode conhecer de nulidades processuais ocorridas na primeira instância, em sede de recurso do despacho que sobre elas haja incidido.

2. O credor reclamante que não haja requerido o prosseguimento da execução extinta não é, por tal facto, afastado do concurso, pelo que, se a execução vier a prosseguir relativamente ao bem sobre o qual detém garantia real, a requerimento de outro credor reclamante, impõe-se a verificação e graduação de todos os créditos devidamente reclamados, a fim de serem satisfeitos pelo produto da venda ou adjudicação de tal bem.

Decisão Texto Integral:    
                                                                                            

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

Nos presentes autos de reclamação de créditos, deduzidos por apenso à execução inicialmente movida por P (…), Lda., contra A (…), e na qual se procedeu à penhora do prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo 2375,

reclamados que foram créditos por parte de:
a) Caixa de Crédito Agrícola Mútuo (…) CRL, no valor global de 212.939,99 €, garantidos por hipotecas;
b) ISS – IP/ Centro Distrital de Coimbra.

Pelo juiz a quo foi proferida a seguinte decisão, datada de 09.09.2010:

“SENTENÇA

Nos presentes autos de Reclamação de Créditos apensos ao processo de execução n.º 336/09.5TBMMV, em que é exequente P (…), Lda. e executado A (…) veio o ISS, IP, reclamar créditos por dívidas do referido executado, reclamação que dou aqui por integralmente reproduzida.

Cumprido o disposto no art. 866.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, não houve quaisquer impugnações aos créditos reclamados.

O tribunal é competente, não há nulidades ou questões prévias de que importe conhecer.

Cumpre analisar a reclamação de créditos apresentada e de acordo com as normas próprias, reconhecê-los e verificá-los.

Tendo em atenção que, como se disse, não houve créditos impugnados, estipula a lei (cfr. art. 868.º, n.º4, do Código de Processo Civil) que, neste caso, se devem ter como reconhecidos os créditos e as respectivas garantias, mas sem prejuízo das excepções ao efeito cominatório da revelia.

Analisada a reclamação apresentada, verifica-se que a mesma contém os elementos indispensáveis ao respetivo reconhecimento, e, assim, nos termos do disposto no n.º 4, do art. 868.º, do mesmo Código, julgo, desde já, verificado e reconhecido o crédito reclamado.

Reconhecido o referido crédito não se mostra necessário proceder à respetiva graduação pois que o credor reclamante assume já aposição de exequente nos autos de execução.


*

Com fundamento em todo o exposto julgo verificado o crédito reclamado.

Custas pelos executados, sendo a taxa de justiça reduzida a metade.

Notifique e registe.”


*

Notificado de tal despacho, por comunicação eletrónica de 13.05.2015, o credor CCCM de (…) CRL, dele vem interpor recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

(…)


*

Não foram apresentadas contra-alegações.
Dispensados os vistos legais ao abrigo do disposto no nº4, do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., arts. 635º, e 639, do Novo Código de Processo Civil[1] –, e apesar da extensão das mesmas, as questões colocadas a este tribunal são unicamente as seguintes:
1. Nulidades processuais derivadas da fala de notificação de diversos requerimentos e despachos.
2. Nulidade da sentença de verificação de créditos, por omissão da verificação e graduação do crédito do Apelante.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

São os seguintes os factos a considerar com interesse para o objeto do presente recurso:
1. A execução deu entrada em tribunal a 20.06.2009.

2. No presente apenso vieram apresentar reclamação de créditos a CCAM, aqui recorrente, e o ISS- IPP.

3. A 04.01.2010, o credor reclamante/recorrente foi notificado pelo Agente de Execução de que havia sido «(…) declarada extinta a execução, nos termos do disposto no n.º 1 alínea b) do Art.º 919.º do Código de Processo Civil, uma vez que foi efetuada a liquidação e respetivos pagamentos após a satisfação integral do crédito através da cobrança coerciva da obrigação exequenda.».

4. Por requerimento de 28.05.2010, o ISS-IPP, veio requerer o prosseguimento da execução para pagamento do seu crédito.

5. A 09.09.2010, foi proferida a “sentença” de que agora se recorre, e pela qual foi julgado verificado o crédito reclamado pelo ISS-IPP, prescindindo da respetiva graduação.

5. A 25.09.2010, foi proferido o seguinte despacho: «Atento o teor do requerimento que antecede, determino, nos termos do disposto no artigo 920º, n.º 2, do CPC, o prosseguimento da execução para efetiva verificação, graduação e pagamento do crédito reclamado pelo ISS, IP.»

1. Invocação de nulidades processuais.

O credor Apelante vem arguir a nulidade decorrente de diversas irregularidades processuais alegadamente cometidas no processo de execução, e que, em seu entender, importariam a nulidade de todo o processado posterior – quer nos autos principais, quer no apenso da verificação de créditos:

- omissão da notificação do requerimento pelo qual o ISS-IP, pelo qual veio requerer o prosseguimento dos autos;

- omissão da notificação do despacho do juiz a quo a determinar o prosseguimento da execução a requerimento do ISS-IPP;

nulidades estas que já teriam sido por si invocadas na execução, e a que, segundo o apelante, o despacho proferido, na execução, pelo juiz a quo, a 24.03.2015, não terá dado resposta, tendo o credor Apelante até hoje sido notificado unicamente da sentença de verificação de créditos.

Encontrando-se em causa nulidades de procedimento – a omissão de notificação relativa a um requerimento e a um despacho – e não uma nulidade de julgamento, e não sendo de conhecimento oficioso, tais nulidades encontram-se sujeitas ao regime das nulidades processuais previsto nos artigos 186º e ss., do CPC, pelo que, deveriam ter sido arguidas pelo credor reclamante perante o juiz do processo[2] (artigos 196º e 197º), intervindo este tribunal tão só em sede do recurso da decisão que o juiz da 1ª instância viesse a proferir sobre as mesmas

Como salienta Abrantes Geraldes[3], as nulidades que não se reconduzam a alguma das situações previstas no artigo 615º, als. b) a e), estão sujeitas a um regime que é incompatível com a sua invocação apenas no recurso a interpor da decisão final, sendo que a decisão que venha a ser proferida pelo juiz a quo é que poderia ser suscetível de ser impugnada pela via recursória, agora com o limite constante do nº3 do artigo 630º do CPC.

A invocação de tais nulidades (ainda por cima respeitantes a irregularidades praticadas na execução) perante o tribunal ad quem, no recurso que interpõe da sentença proferida no apenso da reclamação de créditos, não é o meio adequado a suscitar a sua apreciação por parte do tribunal.

Como tal, não se conhece das invocadas nulidades, por falta de competência funcional do tribunal de recurso para a respetiva apreciação.

2. Nulidade da sentença de verificação e graduação de créditos por omissão de pronúncia.

Segundo o Apelante, a sentença de verificação e graduação de créditos de que ora se recorre, ao ter omitido qualquer pronúncia sobre a reclamação apresentada pela recorrente, encontrar-se-á ferida de nulidade, por omissão de pronúncia, nos termos e ao abrigo do disposto no já referido artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do NCPC, impondo-se, assim, a baixa dos autos ao Tribunal a quo para que proceda à sua reforma e/ou à supressão da invocada nulidade.

Da leitura da sentença recorrida não se consegue atingir se a ausência de apreciação da reclamação apresentada pela CCAM (…) CRL, se deveu à circunstância de, por mero lapso, não se ter atentado na existência desta reclamação ou se, na consideração implícita de que, na ausência de resposta da sua parte à notificação que lhe fora feita da extinção da instância para os efeitos previstos no nº2 do artigo 920º do antigo CPC, se entendeu que desistira da mesma.

De qualquer modo, e embora só na primeira hipótese nos encontrássemos perante uma nulidade da sentença, o certo é que independentemente das circunstâncias que levaram a que o juiz o quo não apreciasse a reclamação apresentada pela CCM e, em consequência, considerasse dispensada a graduação de créditos, o certo é que tal omissão constitui um erro.

Com efeito, o facto de a credora CCAM (…) CRL, nada ter vindo dizer, quando notificada da extinção da execução face à liquidação integral do crédito exequendo, para os termos previstos no nº2 do antigo artigo 920º, não implica qualquer desistência do seu crédito ou do direito a exercer a sua reclamação nos presentes autos[4].

Com efeito, pressupondo o impulso da execução o incumprimento do dever de prestar e a correspetiva lesão do direito de crédito[5], só os credores reclamantes cujos créditos se achem em incumprimento terão legitimidade para, ao abrigo do nº2 do artigo 920º, do antigo CPC, requererem o prosseguimento da execução, ocupando o lugar de exequente (embora limitados à satisfação do seu crédito pelo produto do bem penhorado sobre o qual possuem garantia real).

De qualquer modo, vindo a execução a prosseguir relativamente ao imóvel sobre o qual a CCAM possui garantia real, a requerimento de um outro credor reclamante, ISS-IP, que, ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 920º, do antigo CPC, assume agora a posição de exequente, não se poderá proceder a qualquer pagamento pelo produto da venda ou adjudicação de tal imóvel, sem que se tenha procedido à verificação e graduação de todos os créditos reclamados.

Ou seja, dúvidas não haverão de que, à data em que foi proferida a sentença, esta deveria ter abrangido todos os créditos até então reclamados, apesar de só um deles ter requerido o prosseguimento do processo[6]. A partir do momento em que ocorre a renovação da execução extinta, a requerimento de um dos credores que tenham reclamado o seu crédito sobre determinado bem que não chegou a ser adjudicado ou vendido, e que a execução volta a prosseguir sobre determinado imóvel, volta a ter interesse a elaboração da sentença de verificação e graduação dos créditos já reclamados ou que venham ainda a ser reclamados, uma vez que o pagamento pelo produto de tal bem terá necessariamente que respeitar a preferência resultante dos ónus reais existentes, desde que respeitantes a créditos reclamados, sendo que é a garantia da satisfação destes ónus que explica que os bens sejam adjudicados ou vendidos na execução livres de ónus ou encargos (artigo 824º, nº2 do CC).

Em face da lei portuguesa, promovida a execução por um certo credor, são chamados e admitidos a intervir os credores do executado que sejam titulares de direitos reais de garantia sobre o bem penhorado.

E, como salienta Lebre de Freitas[7], uma vez que a penhora será, normalmente, seguida da transmissão dos direitos do executado, livres de todos os direitos reais de garantia que os limitam (artigo 824º, nº2 CC), os credores vêm ao processo, não tanto para fazerem valer os seus direitos de crédito e obterem pagamento, como para fazerem valer os seus direitos de garantia sobre os bens penhorados[8].

Assim sendo, e ainda que os respetivos créditos se não encontrem em incumprimento, se não quiserem perder a garantia real de que gozam terão o ónus de reclamar o respetivo crédito na execução[9], uma vez que a venda executiva produz a extinção das garantias (artigo 824º, nº3, CC), e os créditos passam de garantidos a comuns.

Concluindo, e na procedência parcial da apelação, haverá que reformular a sentença de verificação de créditos, de modo a que nela se aprecie igualmente o crédito da Apelante, procedendo-se de seguida à graduação dos créditos reclamados[10].

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente:

- não se conhecendo das invocadas nulidades processuais ocorridas na execução;

- revogando-se a decisão recorrida e determinando a sua substituição por outra que proceda à verificação do crédito da Apelante, bem como à graduação dos demais créditos reclamados, a fim de serem pagos pelo produto da venda do imóvel penhorado.

O apelante suportará metade das custas devidas pela interposição do recurso.         

                                                                            Coimbra, 1 de dezembro de 2015

Maria João Areias ( Relatora )

Fernanda Ventura

Fernando Monteiro


V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
1. O tribunal da relação só pode conhecer de nulidades processuais ocorridas na primeira instância, em sede de recurso do despacho que sobre elas haja incidido.
2. O credor reclamante que não haja requerido o prosseguimento da execução extinta não é, por tal facto, afastado do concurso, pelo que, se a execução vier a prosseguir relativamente ao bem sobre o qual detém garantia real, a requerimento de outro credor reclamante, impõe-se a verificação e graduação de todos os créditos devidamente reclamados, a fim de serem satisfeitos pelo produto da venda ou adjudicação de tal bem.
 


[1] Tratando-se de decisão proferida após a entrada em vigor do novo código, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, em ação instaurada depois de 1 de Janeiro de 2008, aplicar-se-á o regime de recursos constante do novo código, de acordo com o artigo 5º, nº1 do citado diploma – cfr., neste sentido, António Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina 2013, pág. 16.
[2] “As nulidades dos atos processuais (incluindo as derivadas de erros ou omissões dos funcionários da secretaria) devem ser arguidas, no prazo respetivo, no tribunal onde foram cometidas e não no âmbito do recurso da decisão proferida no pressuposto da sua não verificação” – Cfr., Acórdão do STJ de 12.10.2006, relatado por Salvador da Costa, disponível in http://www.dgsi.pt.jstj.
[3] “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina 2013, págs. 21 e 162.
[4] Como muito bem foi entendido pelo juiz do processo no despacho por si proferido a 24.03.2015, podendo a aqui Apelante vir a requerer o prosseguimento do processo no final do prazo de suspensão do acordo de pagamento fracionado celebrado entre o executado e o I.S.S..
[5] Neste sentido, Catarina Serra, “A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito”, Coimbra Editora, págs. 88 a 95., pág. 174.
[6] Em igual sentido se pronunciou o Acórdão do TRC de 28-05-2013, relatado por Maria Domingas Simões, disponível in www.dgsi.pt.
[7] “A Ação Executiva depois da reforma da reforma”, 5ª ed., Coimbra Editora, págs. 302 e 303.
[8] Em igual sentido, cfr., Catarina Serra, “A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito”, Coimbra Editora, págs. 88 a 95.
[9] Como refere Manuel Gomes da Silva, apesar de, em regra, o poder de execução só poder ser exercido quando o credor não cumpre voluntariamente a obrigação (artigo 817º, CC), “não se trata de um princípio absoluto, porque existe uma hipótese em que os credores podem recorrer ao poder de execução, sem o devedor se encontrar em mora: é a hipótese dos credores preferentes, que têm direito a entrar no concurso de credores, ainda que não estejam vencidos os seus créditos” – Conceito e Estrutura da Obrigação”, pág. 138.
[10] Sentença na qual, face à posterior apresentação de uma reclamação de créditos por parte de um outro credor (Catarinos – Alimentação Especializada, Lda.), se poderá aproveitar para se apreciar igualmente este novo crédito.