Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
98/14.4TANZR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALICE SANTOS
Descritores: ESCUTAS TELEFÓNICAS
SIGILO DA CORRESPONDÊNCIA E DAS TELECOMUNICAÇÕES
Data do Acordão: 05/11/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (INSTÂNCIA CENTRAL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 18.º E 34.º, N.º 1, DA CRP; ARTS.187.º A 190.º DO CPP
Sumário: I - Em matéria de processo penal é admissível a limitação do direito fundamental do sigilo da correspondência e nas telecomunicações pelas autoridades públicas, corporizando os arts.187.º a 190.º.

II - Tal excepção é permitida pelo segmento final do comando constitucional instituído no n.º 1 do art. 34.º.

III - A busca da verdade material é, no processo penal, um dever ético e jurídico.

IV - Sendo o tráfico de estupefacientes um crime de grande danosidade social devido ao leque de consequências que resulta desta actividade criminosa, a compressão dos direitos individuais que implica a utilização dos referidos meios de obtenção de prova não pode considerar-se desproporcionada.

V - Também não pode ser considerada desnecessária na medida em que cons­tituem um meio de prova documental de grande relevância para a prova do crime.

VI - Quer as escutas telefónicas, quer o registo de voz e de imagem, constituem documentos no senti­do de uma declaração corporizada num suporte técnico (artigos 164.º do CPP e 255.º, a), do CP), meio que está sujeito ao controlo judicial, a quem são presentes, sendo judicialmente valorado se os elementos recolhidos são, ou não, relevantes para a prova.

VII - Havendo razões para crer que o recurso às escutas telefónicas não só se mostra indispensável para a descoberta da verdade, como a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, justifica-se a requerida intercepção e gravação das comunicações telefónicas, assim como se justifica a recolha de imagens pois os resulta­dos de investigação que se pretendem com a realização de tal diligência não são passíveis de ser alcançados através do recurso a outros meios de produção de prova.

Decisão Texto Integral:

           

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra



O Digno Magistrado do Ministério Público, não se conformando com o despacho de fls 251 a 257, que indeferiu a realização de escutas telefónicas bem como de recolha de imagens, vem dele interpor recurso para este tribunal, sendo que na respectiva motivação formulou as seguintes conclusões:
1. Por despacho proferido no dia 23 de Fevereiro de 2016, entendeu o MM. Juiz de Instrução indeferir a autorização das promovidas intercepções telefónicas, bem como da autorização para recolha de imagens.
2. Tal despacho teve por base a promoção de fls. 241 a 248 dos autos a qual, nesta sede, se reproduz na íntegra.
3. Considerando as questões suscitadas pelo Juiz de Instrução e pese embora nos afastemos radicalmente das reservas que então manifestou, entendeu-se determinar a realização de mais algumas diligências, bem como de explicitar pontos concretos. Assim, foi desencadeada uma vigilância no dia 16 de Fevereiro de 2016- cfr. fls. 217 e 218 -outra no dia 16 de Fevereiro de 2016 - cfr. fls. 219 e 221 - outra no dia 17 de Fevereiro de 2016 - cfr. fls. 225 e 226 - , todas com o intuito de demonstrar, como demonstram, que indiciariamente, do interior da habitação da A... foram efectuadas vendas de produto estupefaciente a indivíduos que se deslocaram às traseiras da habitação e que os consumidores recorrem ao telemóvel para agendar os encontros.
4. Entende o Juiz de Instrução que "Essa avaliação do resultado das vigilâncias policiais realizadas em 03 e 16 de Fevereiro de 2016 coincide, ponto por ponto, com a feita pelo Sr. Comandante da Esquadra de Investigação Criminal de Leiria no relatório intercalar que subscreve (cfr. fls. 228 a 239). Contudo, com o devido respeito, a mesma não tem sustentáculo bastante nos relatórios de vigilância de fls. 217/218 e 219 a 221, como se tentará demonstrar. Relativamente ao relatório da vigilância efectuada em 03/02/2016, dá-se aí conta que, pelas 10:56 horas entrou um indivíduo em casa dos suspeitos e que, pelas 11:34  horas foi visto outro indivíduo a dirigir-se para as traseiras dessa casa, sem confirmação se aí entrou ou não (cfr. fls. 217/218).
Já do relatório da vigilância realizada em 16/02/2016  (e não 16/01/2016 como se refere a fls. 219) resulta que foram vistos quatro indivíduos, no espaço de cerca de uma hora e meia, a entrar e/ou sair da casa dos suspeitos (cfr. fls. 219 a 221). Não foi vista qualquer transacção de estupefaciente, não é descrito qualquer uso de telemóvel, não foi interceptado qualquer suposto consumidor na posse de estupefaciente, continua a não se referir o motivo pelo qual se atribui o uso dos concretos números de telemóvel aos suspeitos (nem aquele que levou agora a distribuí-los pelos mesmos, já que antes se dizia serem todos usados por A... )."
Quanto a este ponto reitera-se a impossibilidade de visionar a entrada dos consumidores na habitação, considerando as características geográficas do local, já amplamente descritas e constantes dos fotogramas juntos aos autos, o que reforça a necessidade absoluta de recurso a intercepções telefónicas, demonstrado que está a actividade de venda de droga naquele local, por parte dos suspeitos. No entanto, a circunstância de não se conseguir confirmar se as pessoas que afluem à residência dos visados ali efectivamente entram não permite, no entanto, desconsiderar a existência de outros indícios do tráfico de droga, como sejam a afluência de várias pessoas àquela casa, onde permanecem apenas por breves instantes, fazendo uso de telemóvel, sendo alguns deles conhecidos como consumidores de droga, tendo havido intercepção de uma consumidora detendo cocaína, vinda daquele local.
5. Todos os indícios recolhidos, se correctamente analisados, permitem ter como suficientemente indiciada a prática do crime de tráfico de estupefacientes.
6. Considera o Sr. Juiz de Instrução que os indícios recolhidos em Agosto de 2015 foram totalmente perdidos pela investigação, porque ficou "meses a fio sem realizar qualquer diligência, mas também porque "antes conseguia ver-se a fotografar-se a entrada de indiciados consumidores de estupefacientes na casa dos suspeitos, agora quase nada se consegue ver e nenhum registo fotográfico é conseguido".
A dificuldade de prosseguir com a investigação, recorrendo apenas aos métodos de investigação até agora utilizados, e consequentemente a necessidade incontornável do recurso a intercepções telefónicas, está amplamente demonstrada nos autos.
Na sequência da impossibilidade de usar o ponto de vigilância fixo, pelos motivos supra referidos, no mês de Janeiro de 2016, foram retomadas as diligências tendentes à recolha de prova material.
Das diligências efectuadas, nomeadamente duas vigilâncias em Janeiro de 2016, foi possível continuar a verificar os seguintes factos:
• Do interior da habitação da A... foram efectuadas um total de seis deslocações de indivíduos às traseiras da habitação;
• Nas deslocações dos consumidores/ compradores que se fazem transportar em viaturas constata-se que continuam a efectuar paragens nos mesmos locais utilizando as mesmas ruas da urbanização para ter acesso às traseiras da habitação dos alvos em investigação;
• São detectados consumidores que após estacionarem as viaturas fazem uso do telemóvel por breves segundos, dirigindo-se após o terminus da chamada de imediato para a residência da A... .
Contudo, aquando das duas vigilâncias anteditas, por já não existir local para efectuar vigilância estática directamente às traseiras da habitação da A... , foi por indivíduos de etnia cigana detectada a presença de elementos policiais em viaturas descaracterizadas que efectuavam deslocações pontuais aos locais para:
. Confirmar as matrículas das viaturas dos consumidores; e
. Perceber as suas movimentações na urbanização.
Esta situação culminou, mais uma vez, na impossibilidade de continuar no imediato a efectuar diligências no local.
Das conversas entabuladas com indivíduos consumidores de estupefacientes, foi possível perceber que as vendas de estupefacientes efectuadas pela família em investigação ocorrem no interior da habitação e em locais no centro e áreas limítrofes da Vila da Nazaré. Estas vendas são antecedidas de contactos telefónicos que visam perceber se existe produto estupefaciente para venda, bem como o local para procederam à transacção.
7. Nos autos investiga-se a prática de crime de tráfico de estupefacientes, p. pelo artigo 21.º  do DL 15/93, sendo suspeitos A... ( A... ), B... ( B... ou B... ) e C... , sendo os dois primeiros companheiros um do outro e o último filho de ambos.
A actividade indiciariamente delituosa tem lugar nas traseiras do lote 83 da Rua do (...) , residência dos suspeitos, pelo menos desde Abril de 2014, como resulta da participação de fls. 3.
8. Pese embora já resultasse dos autos indícios suficientes para que o Juiz de Instrução considerasse ser de autorizar a recolha de imagens sem consentimento dos visados, bem como o recurso a intercepções telefónicas, das diligências supra referidas apenas saíram reforçados, não se podendo concluir que se "mantêm inalterados os fundamentos de indeferimento explanados no despacho de 29/01/2016.
9. Reitera-se, por outro lado, não se nos afigura resultar da Lei 5/2002 de 11 de Janeiro que a autorização referida no n.° 2 do artigo 6.° dependa do facto de a recolha de imagens ser viável ou facilmente obtida pelo OPC. Não se desconhece que a Lei proíbe a prática (ou a autorização, no caso) de actos inúteis. No entanto, essa inutilidade, aliás não invocada, não se verifica em concreto. Muito menos com o recurso, em simultâneo, a intercepções telefónicas, razão pela qual, por se verificarem em concreto os pressupostos legais para a autorização requerida, deverá ser concedida.
10. A escuta telefónica é um meio de obtenção de prova cuja produção e utilização reveste significativo melindre, consabido que conflitua com direitos e valores fundamentais diversos, designadamente o direito à privacidade, o direito ao sigilo e inviolabilidade das telecomunicações.
Para serem admissíveis as escutas telefónicas:
- têm de estar preordenadas à perseguição dos chamados crimes do catálogo,
-tem de existir uma suspeita da prática do crime,
-têm de estar subordinadas ao princípio de subsidiariedade, no sentido de, em princípio não haver outro meio eficaz, menos gravoso, para alcançar o resultado probatório em vista,
- Têm que estar limitadas a um universo determinado de pessoas ou ligações telefónicas
No caso dos autos verificam-se, em concreto todas as premissas supra referidas.
Nesta fase da investigação é legítimo concluir que os telefones indicados são utilizados por qualquer um dos suspeitos, tendo a fonte de informação acerca dos números em concreto sido indivíduos consumidores de estupefacientes, conhecidos pela polícia, como aliás é frequente acontecer na investigação do tipo de crime em causa.
11. Refira-se a circunstância de não se poder recorrer a recolha de imagens e a intercepções telefónicas neste tipo de crime em geral e no caso dos autos, em particular, fere de morte a investigação e o objectivo de alcançar qualquer resultado.
12. O Juiz de Instrução violou o disposto nos artºs. 34º n.º 4 da C. R. P. e 187.º n.º 1 do C. P. Penal, por interpretação e aplicação menos adequada daquelas normas.
13. Entendemos que os inícios existentes nos autos, se correctamente analisados, fundam uma suspeita suficientemente alicerçada da prática de crime cuja natureza e gravidade, só por si, impõe os sacrifícios e perigos que a escuta telefónica envolve.
14. O que ficou dito afigura-se-nos suficiente para mostrar que o recurso deve ser julgado procedente, sendo certo que, a circunstância de não se poder recorrer a recolha de imagens e a intercepções telefónicas neste tipo de crime em geral e no caso dos autos, em particular, fere de morte a investigação e o objectivo de alcançar qualquer resultado, de nada servindo o segredo de justiça validado, o qual não se aplica ao Ministério Público e aos investigadores...
15. Aduzidos os argumentos, merecerá provimento o presente recurso, devendo ser revogado o despacho em causa e substituído por outro que autorize as requeridas intercepções e recolha de imagens.
V.Ex.as, porém, melhor apreciarão, fazendo, como sempre JUSTIÇA.

Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto apôs apenas o visto.

Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.

É este o despacho recorrido:
Em 29/01/2016, a fls. 206 a 211, proferi despacho com o seguinte teor: «(…) Promove o Ministério Público, a fls. 198 a 203, se autorize a realização de escutas telefónicas incidentes sobre comunicações efectuadas de e para cinco telemóveis da suspeita A... , bem como recolha de imagens aos suspeitos (além da citada, também B... e C... ), com fundamento em que tal se revela indispensável à investigação da prática pelos mesmos de crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22/01.
Para tanto, alegou o seguinte:
«(…) Como já se referiu no despacho de fls. 160, os factos apurados pelo investigador até ao momento são susceptíveis de integrar a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. pelo artigo 21.º do DL 15/93, sendo suspeitos A... ( A... ), B... ( B... ou B... ) e C... , sendo os dois primeiros companheiros um do outro e o último filho de ambos.
A actividade indiciariamente delituosa tem lugar nas traseiras do lote 83 da Rua do (...) , residência dos suspeitos, pelo menos desde Abril de 2014, como resulta da participação de fls. 3, encontra-se a localização demonstrada a fls. 113 a 152 e 183.
Visando a confirmação da denúncia, foram realizadas várias diligências. Para além das já elencadas a fls. 160 e 161 e espelhadas a fls. 11, 18; 25; 28 a 60 e 99, em virtude das quais se logrou confirmar a identidade dos suspeitos e contactar com indivíduos conhecidamente toxicodependentes residentes naquela cidade; apurar que vários indivíduos toxicodependentes se deslocam à residência dos suspeitos, dali saindo com “das mãos fechadas”, modo habitual de transporte de droga; abordar directamente consumidores após abandonarem as traseiras da residência dos suspeitos guardando cocaína consigo, foram realizadas vigilâncias nos dias 30 de Outubro de 2015, 8 e 9 de Janeiro de 2016.
Conforme se encontra documentado nos respectivos relatórios de vigilância que fazem fls. 171, 173 a 175 e 184 foi possível registar que considerável número de indivíduos, alguns conhecidos como toxicodependentes e nenhum residente no referido número ou rua, a diferentes horas, pela porta das traseiras do imóvel correspondente à habitação dos suspeitos, acedem ao seu interior saindo do local passados um ou dois minutos.
Importa esclarecer que, muita dessa afluência é registada sem que a A... se encontre na habitação, podendo mesmo acontecer quando esta se encontra a cumprir o seu horário de trabalho, no parque de campismo da localidade de (...) (como aconteceu no dia 8 de Janeiro de 2016) daí se podendo concluir que, as entregas de estupefaciente aos indivíduos que ali afluem, é feita pelo marido desta, B... ou o filho, C... , factos consonantes com o conhecimento funcional tido, relativamente ao “modus operandi” destes indivíduos para fazerem chegar o estupefaciente aos “clientes”.
Apurou-se que diversos indivíduos se deslocarem para as traseiras da residência dos suspeitos (alguns que ali chegam a pé, outros em viaturas automóveis) contudo, conforme também é dali perceptível, nem sempre é possível confirmar se realmente entram na residência dos suspeitos, ou qual destes últimos faz efectivamente a entrega/venda do produto estupefaciente naquele momento.
Tal dificuldade prende-se com a localização geográfica da residência dos suspeitos, a qual é acessível por vários caminhos pedonais, de difícil vigilância por parte da polícia, sem que seja prontamente detectada, quer pelos suspeitos, quer pelos próprios indivíduos que ali se deslocam, facto constatado directamente pela signatária nos dias 8 de 9 de Janeiro de 2016, o que poe em causa o sucesso da investigação, levando os mesmos a alterar por completo o “modus operandi” e assim, a conclusão deste Inquérito no mais curto período de tempo.
Torna-se pertinente salientar que, muitos dos indivíduos que se encontram com os suspeitos, primeiramente contactam-nos telefonicamente, quer para dar conhecimento das suas deslocações junto dos suspeitos, quer para saber se estes efectivamente possuem o estupefaciente, acção  essa que é habitual neste tipo de actividade ilícita, conforme se pôde constatar aquando da vigilância efectuada no dia 08-01-2016, pelas 16H37.
A A... , para poder então por em prática a actividade ilícita em investigação, apesar de se tentar rodear dos maiores cuidados – comportamento comum à maioria dos indivíduos que se dedicam a este tipo de actividade – recorre à utilização de telemóvel para poder ser contactada pelos indivíduos que pretendem adquirir o estupefaciente para consumo sendo que, actualmente, lhes são conhecidos para esse fim, os números: 932 (...) , 934 (...) , 938 (...) , 914 (...) e 915 (...) .
Demostrando que está a ineficácia das vigilâncias, por um lado, mas a continuidade da actividade de venda de cocaína, por outro, cumpre recorrer à intercepção das comunicações móveis, que se encontram a ser utilizados para a prática da actividade de tráfico de estupefacientes no âmbito do presente inquérito, meio de obtenção de prova, neste caso, essencial, determinante e indispensável para atingir tal fim, porquanto demonstra ser a única forma possível de:
 Perceber eventuais alterações na estrutura responsável pela venda de estupefaciente delimitando individualmente o grau de envolvimento de cada indivíduo; ou mesmo deslocações para outros pontos do país;
 Permitir, em tempo real, antever alterações de moradas ou alterações às suas rotinas ou mesmo deslocações para outros pontos do país;
 Prever o momento da chegada do produto estupefaciente à posse dos suspeitos e deste modo poder interceptar uma maior quantidade das substâncias traficadas;
 Identificar e localizar os locais de armazenamento do produto estupefaciente aquando da sua recepção por parte dos indiciados;
 Localização dos alvos em tempo real para uma abordagem com sucesso, sem possibilidade de, caso tal não aconteça, existir a forte probabilidade de culminar na perturbação da investigação, com destruição de provas e/ou ausência dos alvos para parte incerta;
 Esclarecer o volume de vendas, preço e quantidades.
Assim, pelos fundamentos da promoção que antecede, bem como pelos argumentos aduzidos pelo investigador na informação de serviço que antecede, sustentados nos factos observados, atenta a natureza do ilícito em causa, os métodos utilizados e os factos já verificados, somos de entender que se verifica a necessidade urgente, pertinente e urgência de se proceder à intercepção telefónica dos indicados números de telefone, visto estar demonstrado que o prosseguimento e a eficácia da investigação está manifestamente dependente da realização de escutas telefónicas e, bem assim, da recolha de imagem, com a indicação, quanto à recolha de imagem, se e sempre que existam condições físicas e técnicas para a obter (…)».
Cumpre apreciar.
O presente inquérito iniciou-se em Abril de 2014 (fls. 1 a 3), mas apenas mereceu desenvolvimentos significativos em Agosto de 2015. Durante esse mês, a PSP efectuou diversas vigilâncias à indicada residência dos suspeitos, recolhendo abundantes imagens demonstrativas da inusitada afluência a tal casa de um grande número de indivíduos, aparentando serem toxicodependentes, alguns deles referenciados pela PSP como tal, aí permanecendo poucos minutos, saindo de “mãos fechadas”, com quem traz algo de pequenas dimensões aí guardado. A PSP logrou inclusivamente interceptar uma pessoa que saía dessa residência na posse de cocaína (cfr. fls. 28 a 33, 35, 37 a 79, 81 a 86, 90 a 96 e 104 a 152). Tais vigilâncias, findadas em 31/08/2015, motivaram o pedido de autorização de recolha de imagem à actividade ilícita dos suspeitos investigada, sendo que tal pedido só foi formulado e deferido em Outubro de 2015 (cfr. fls. 153 a 158, 160/161 e 164). Na altura, pese embora o decurso de mais de trinta dias sem diligências concretas de investigação, era legítimo considerar vigentes os indícios recolhidos em Agosto de 2015.
Posteriormente a essa autorização, inexplicavelmente, não mais foram recolhidas imagens à habitação dos suspeitos, a estes ou às pessoas que aí se deslocariam.
Desde 31/08/2015, num período de praticamente cinco meses, a actividade investigatória limitou-se, tanto quanto resulta dos autos, à realização de três vigilâncias policiais. Na primeira, realizada em 30/10/2015, apurou-se que A... se encontrava no Parque de Campismo de (...) , onde trabalha, não sendo visualizada qualquer actividade de tráfico, muito menos na residência dos suspeitos (cfr. fls. 171). A segunda vigilância realizou-se apenas em 08/01/2016, tendo constatado, em concreto, que uma pessoa se deslocou à casa dos suspeitos às 15:17 horas e que uma outra, pelas 16:37 horas, depois de usar o telemóvel por breves segundos, se dirigiu igualmente à casa dos suspeitos de onde saiu passados dois minutos. Foram detectados outros indivíduos a dirigirem-se em direcção às traseiras da casa dos suspeitos, mas não foi possível confirmar que aí entraram (cfr. fls. 173 a 175). Considerando as características do local (habitação integrada num vasto conjunto de outras – cfr. fls. 183), não pode considerar-se indiciado que tais pessoas se dirigiram à casa dos suspeitos. O mesmo vale para a vigilância realizada no dia seguinte em que, de concreto, apenas se apurou que uma pessoa se dirigiu para o interior da residência dos suspeitos (cfr. fls. 184/185).
Os indícios recolhidos em Agosto de 2015 foram totalmente perdidos pela investigação. Não só porque ficou meses a fio sem realizar qualquer diligência, mas também porque a quantidade e qualidade dos resultados piorou consideravelmente. Antes conseguia ver-se e fotografar-se a entrada de indiciados consumidores de estupefaciente na casa dos suspeitos, agora quase nada se consegue e ver e nenhum registo fotográfico é conseguido.
Extrair-se do facto de alguém, em 08/01/2016, usar o telemóvel antes de ir a casa dos suspeitos que tal significa que a actividade de tráfico que, em Agosto de 2015, se indiciava ser por eles praticada nesse local se continua a exercer e com recurso a cinco telemóveis é, no mínimo, esforçado e infundado.
Não se fundamenta a fonte de conhecimento do uso pela suspeita A... dos cinco números de telemóvel indicados, sendo que tal informação surge numa altura em que, durante cinco meses, a actividade investigatória foi pouco menos que nula.
Não se percebe a razão pela qual é precisamente a suspeita que, segundo a promoção, muitas vezes nem sequer estará na residência quando “os clientes” lá vão adquirir droga, aquela que usa cinco números de telemóvel para a prática de actividades de tráfico.
Com base em tão curtos indícios nos últimos cinco meses, não pode autorizar-se diligência tão intrusiva e excepcional como as escutas telefónicas. Sobretudo tendo em vista investigação de actividade de tráfico de estupefacientes que ocorre exclusivamente ou maioritariamente na habitação do suspeito.
Na actualidade, nem sequer há justificação para deferir a recolha de imagem à actividade dos suspeitos, que o OPC confessa não conseguir descortinar em moldes minimamente fiáveis.
Assim, considerando inexistir indiciação suficiente de que a intercepção e gravação de comunicações telefónicas ou a recolha de imagens se revela indispensável à prova do crime investigado, julgo inverificados os requisitos legais de admissibilidade de realização de escutas telefónicas (artigo 187º, n.º 1, do C. P. Penal e 6º da Lei n.º 5/2002, de 11/01).
Razão pela qual indefiro o promovido pelo Ministério Público (…)».
*
Reitera o Ministério Público a sua promoção anterior invocando que «(…) Após a decisão do Sr. Juiz de Instrução, foi ainda possível efectuar um conjunto de diligências nos autos. Destacam-se assim a efectivação de duas vigilâncias estáticas – cfr. fls. 217 a 218 e de 219 a 221 - , onde mais uma vez se verificou o seguinte:
Do interior da habitação da A... foram efectuadas vendas de produto estupefaciente a indivíduos que se deslocaram às traseiras da habitação;
Nas deslocações dos consumidores/compradores que se fazem transportar em viaturas constata-se que continuam a efectuar paragens nos mesmos locais utilizando as mesmas ruas da urbanização para ter acesso às traseiras da habitação dos alvos em investigação;
São detectados consumidores que após estacionarem as viaturas fazem uso do telemóvel por breves segundos, dirigindo-se após o términus da chamada de imediato para a residência da Anisabel;
São visionados no interior da habitação C... e a sua companheira,D... e dois menores de idade (filhos de C... e D... ) (…)».
Essa avaliação do resultado das vigilâncias policiais realizadas em 03 e 16 de Fevereiro de 2016 coincide, ponto por ponto, com a feita pelo Sr. Comandante da Esquadra de Investigação Criminal de Leiria no relatório intercalar que subscreve (cfr. fls. 228 a 239). Contudo, com o devido respeito, a mesma não tem sustentáculo bastante nos relatórios de vigilância de fls. 217/218 e 219 a 221, como se tentará demonstrar. Relativamente ao relatório da vigilância efectuada em 03/02/2016, dá-se aí conta que, pelas 10:56 horas entrou um indivíduo em casa dos suspeitos e que, pelas 11:34 horas foi visto outro indivíduo a dirigir-se para as traseiras dessa casa, sem confirmação se aí entrou ou não (cfr. fls. 217/218). Já do relatório da vigilância realizada em 16/02/2016 (e não 16/01/2016 como se refere a fls. 219) resulta que foram vistos quatro indivíduos, no espaço de cerca de uma hora e meia, a entrar e/ou sair da casa dos suspeitos (cfr. fls. 219 a 221). Não foi vista qualquer transacção de estupefaciente, não é descrito qualquer uso de telemóvel, não foi interceptado qualquer suposto consumidor na posse de estupefaciente, continua a não se referir o motivo pelo qual se atribui o uso dos concretos números de telemóvel aos suspeitos (nem aquele que levou agora a distribuí-los pelos mesmos, já que antes se dizia serem todos usados por A... ).
Ou seja, mantêm-se inalterados os fundamentos de indeferimento explanados no despacho de 29/01/2016, que aqui reitero, nada justificando decisão diversa.

            Cumpre apreciar:
O art. 187º consagra a admissibilidade da intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas, como meio de prova, desde que ordenadas ou autorizadas por despacho judicial, relativamente aos crimes enumerados nas als. a) a e), do nº1, daquele preceito legal se houver razões para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.
Por seu turno, o art. 188º determina as formalidades a que estão sujeitas as intercepções e gravações como meio de recolha de prova. Os citados normativos estabelecem um regime de autorização e controlo judicial, e sistema de catálogo, em que a escuta telefónica é utilizada exclusiva e relativamente a ilícitos criminais que pelas suas características tornam tal meio de recolha de prova particularmente apto à investigação ou que, pela gravidade dos interesses em jogo (expressa numa moldura penal abstracta qualificada), podem justificar a adopção de uma medida consensualmente vista como portadora de um elevado potencial de danosidade social . (Ac Rel. Lx 65/11.0FUN.ALIS relatado pela Exma  Sra Desembargadora Margarida Blasco)
Tais normas reflectem os princípios ínsitos na Lei Fundamental que no seu art. 34º, nº 1, estabelece que: O domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis, bem como no seu nº 4, no qual se consagra que é proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação social, salvo os casos previstos na lei em matéria de processo penal.
           Deste normativo resulta que apenas em matéria de processo penal é admissível a limitação do direito fundamental do sigilo da correspondência e nas telecomunicações pelas autoridades públicas, corporizando os arts.187º a 190º tal excepção indicada no segmento final do comando constitucional atrás citado.

Como refere Costa Andrade, (no ac. cit.): O teor particularmente drástico da ameaça representada pela escuta telefónica explica que a lei tenha procurado rodear a sua utilização das maiores cautelas. Daí que a sua admissibilidade esteja dependente do conjunto de exigentes pressupostos materiais e formais previstos nos arts. 187º e segs. da lei processual portuguesa (….).
O legislador português procurou, assim, inscrever o regime de escutas telefónicas sobre a exigente ponderação de bens entre, por um lado, os sacrifícios ou perigos que a escuta telefónica traz consigo e por outro lado, os interesses mais relevantes da perseguição penal. (Ac. cit).
Ora, a luta contra a criminalidade passa inúmeras vezes pela limitação de direitos fundamentais. Aliás, a protecção dos direitos e garantias só é crível e exequível à custa da sua própria e inevitável limitação e restrição.
A busca da verdade material é, no processo penal, um dever ético e jurídico, mas o Estado, como titular do jus puniendi, está interessado em que apenas os culpados de actos criminosos sejam punidos (satius esse nocetem absolvi innocentem damnari); no entanto, há limites decorrentes do respeito pela integridade moral e física das pessoas; há limites impostos pela inviolabilidade da vida privada, do domicílio, da correspondência e das telecomunicações, que só nas condições previstas na lei podem ser transpostos.
Mas, por outro lado, exige-se a manutenção de uma administração de justiça capaz de funcionar, devendo reconhecer-se as necessidades irrenunciáveis de uma acção penal eficaz e acentuar-se o interesse público numa investigação da verdade, o mais completa possível, no processo penal, sendo o esclarecimento dos crimes graves tarefa essencial de uma comunidade orientada pelo aludido princípio.
Como refere o Professor Castanheira Neves a existência de uma tensão incontornável entre os dois princípios ético-jurídicos fundamentais: o princípio da reafirmação, defesa e reintegração da comunidade ético-jurídica – i. é, do sistema de valores ético-jurídicos que informam a ordem jurídica, e que encontra a sua tutela normativa no direito material criminal –, e o princípio do respeito e garantia da liberdade e dignidade dos cidadãos, i. é, os direitos irredutíveis da pessoa humana” (“Sumários de Processo Criminal”, 1967-1968).
Pelo que no imperativo da fidelidade estrita do paradigma da ponderação legalmente codificada, residirá uma razão decisiva e abono da exigência de uma interpretação restritiva das normas atinentes às escutas telefónicas: concretamente, tratando-se de uma diligência de investigação que restrinja direitos fundamentais com tutela constitucional, há que respeitar os princípios da proporcionalidade, da adequação e da necessidade referidos no nº 2 do art.18ºda CRP, ou seja dizer-se que o primado da esfera íntima, face às necessidades da justiça penal na procura da verdade, tem de recuar quando, à luz do princípio de proporcionalidade, a ponderação com o significado do direito fundamental de respeito pela dignidade humana e o livre desenvolvimento da personalidade faz emergir prevalecentes necessidades da justiça criminal, que exigem a admissibilidade de produção e valoração do meio de prova (Ac. cit).
Acresce ainda que a própria lei ordinária estabelece requisitos formais e substantivos, (que no caso em apreço se põem em causa no despacho recorrido) e que têm a ver com a existência de fortes indícios ou, pelo menos, de indícios suficientes da prática de um crime do catálogo, e se a intercepção telefónica e captação de imagens requerida está submetida a uma cláusula de imprescindibilidade ou indispensabilidade (como defende o recorrente MP).
Sendo o tráfico de estupefacientes um crime de grande danosidade social devido ao leque de consequências que resulta desta actividade criminosa, a compressão dos direitos individuais que implica a utilização dos referidos meios de obtenção de prova não pode considerar-se desproporcionada.
Também não pode ser considerada desnecessária na medida em que cons­tituem um meio de prova documental de grande relevância para a prova do crime, pois quer as escutas telefónicas, quer o registo de voz e de imagem, constituem documentos no senti­do de uma declaração corporizada num suporte técnico (artigos 164.º do Código de Proces­so Penal e 255.º, a) do Código Penal), meio que está sujeito ao controlo judicial, a quem são presentes, sendo judicialmente valorado se os elementos recolhidos são, ou não, relevantes para a prova.
Assim, sendo conhecidas as cautelas usadas pelos traficantes de estupefa­cientes, as estratégias e os meios que utilizam para se furtarem ao controlo policial, a rapi­dez e a dissimulação na concretização dos actos de tráfico e a circunstância de, em muitos dos casos, conhecerem os agentes policiais e as viaturas que utilizam, torna-se evidente que as escutas telefónicas, tal como o registo voz e de imagem, constituem um poderoso ins­trumento de investigação particularmente adequado e eficaz.
É sabido que no tipo de crime em investigação é difícil e improvável a obtenção de outros meios de prova, como, por exemplo, a prova testemunhal (quase impos­sível atentas as relações, dependências e cumplicidades normalmente estabelecidas entre os intervenientes no tráfico de estupefacientes), além de que as cautelas usualmente observa­das pelos intervenientes neste tipo de actividade criminosa para manutenção do anonimato e fácil mobilidade se traduzem habitualmente no recurso à utilização de telemóveis para a realização dos contactos entre esses intervenientes, tendo em vista o desenvolvimento dessa mesma actividade.
Deste modo, havendo razões para crer que o recurso às escutas telefónicas não só se mostra indispensável para a descoberta da verdade, como a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, justifica-se a requerida intercepção e gravação das comunicações telefónicas, assim como se justifica a recolha de imagens pois os resulta­dos de investigação que se pretendem com a realização de tal diligência não são passíveis de ser alcançados através do recurso a outros meios de produção de prova.
Procede, portanto, o interposto recurso.
Pelo exposto acordam os juízes desta Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, revogar o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que defira o requerido.
Sem tributação

Coimbra, 11 de Maio de 2016

(Alice Santos - relatora)

(Abílio Ramalho - adjunto)