Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
397/08.4JAAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EDUARDO MARTINS
Descritores: RESISTÊNCIA E COACÇÃO SOBRE FUNCIONÁRIO
VIOLÊNCIA
Data do Acordão: 01/12/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA -ALBERGARIA A VELHA – JUÍZO DE INSTÂNCIA CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 347º CP
Sumário: 1. No conceito de violência do crime de resistência e coacção sobre funcionário uma coisa é alguém afirmar que não se sente ameaçado ao ver uma arma de fogo apontada à sua cabeça. Cada indivíduo reage à sua maneira, sendo certo que, pelo menos, alguns elementos policiais, até por dever de ofício, têm uma especial preparação para enfrentar situações perigosas, não sendo, pois de estranhar por aí além que afirmem não sentir medo ao se verem confrontados com armas de fogo.

2.Outra coisa é o acto, em termos objectivos, de apontar uma arma de fogo à cabeça de alguém, num cenário que nada tem de hipotético, antes pelo contrário, é bem real (perseguição policial). Trata-se, deveras de um acto hostil, diferente, evidentemente, da agressão física, o qual consiste numa força moral que se emprega abusivamente contra alguém.

Decisão Texto Integral: I. Relatório:
No âmbito do Processo Comum (Tribunal Colectivo) n.º 397/08.4JAAVR que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca do Baixo Vouga, Albergaria-A-Velha – Juízo de Instância Criminal, o arguido J..., por acórdão de 16/7/2010, foi condenado, pela prática, em co-autoria, de um crime de furto qualificado, sob a forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 22º, 23º, 73º, 203º, nº1 e 204º, nº1, al. a), do Código Penal (ATM da Junta de Freguesia), na pena de 2 anos e 6 meses de prisão; pela prática, em co-autoria de um crime de furto de uso de veículo, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 208º, n.º1. do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão, e pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão, o que deu origem, em cúmulo jurídico, à pena única de 4 anos de prisão.
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Inconformado com parte da decisão (a relativa ao crime p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1, do C. P.), dela recorreu o arguido, em 6/10/2010, defendendo que deve ser alterada a matéria de facto dada como provada nos pontos 20 a 23 do acórdão ora em análise, de acordo com o depoimento prestado pela testemunha JF..., daí decorrendo, necessariamente que deve ser absolvido da prática do crime de resistência e coacção sobre funcionário, extraindo da respectiva motivação do recurso as seguintes conclusões:
1. Foram indevidamente dados como provados os factos descritos nos pontos 20 a 23 da matéria de facto dada como provada;
2. Do depoimento da testemunha JF…, resulta que tais factos foram, na sua essencialidade, indevidamente dados como provados;
3. A aludida testemunha apresenta uma versão dos factos diferente da que consta da acusação e dos factos que, com base nesse depoimento, foram dados como provados no douto acórdão recorrido;
4. Do essencial do seu depoimento, resulta que o recorrente nunca ameaçou, com as expressões dadas como provadas, nunca o tentou agredir e a testemunha nunca se sentiu ameaçada e muito menos ofendida na sua integridade física e vida;
5. A condenação do recorrente pelo crime de resistência e coacção sobre funcionário deve-se ao facto de ser dado como provada a actuação do arguido tal como vem descrita nos referidos pontos 20, 21 e 22 do douto acórdão recorrido;
6. A punição pelo crime de resistência e coacção sobre funcionário pressupõe que a pessoa sobre a qual é exercida a violência se sinta ameaçada ou seja ofendida a sua integridade física;
7. Do depoimento da aludida testemunha resulta que esta não se sentiu ameaçada nem viu ofendida a sua integridade física;
8. Não foi o facto de o recorrente ter exibido uma suposta arma de fogo que impediu a testemunha de levar a cabo a detenção;
9. A testemunha continuou a tentar deter o recorrente só não o conseguindo fazer porque este conseguiu da mesma libertar-se sem utilizar a suposta arma;
10. Apesar de a testemunha não saber que tipo de arma exibia o recorrente e se esta estava municiada, nunca se sentiu, na altura, minimamente ameaçada;
11. O Acórdão recorrido, ao condenar o recorrido, fez assim uma errada interpretação e aplicação do artigo 347.º, n.º 1, do Código Penal;
12 Em função da prova efectivamente produzida, deveria o arguido ser absolvido do aludido crime por não se encontrarem preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos da respectiva infracção..
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O Ministério Público junto do Tribunal recorrido, em 22/10/2010, apresentou resposta, defendendo a improcedência total do recurso, apresentando como conclusões: 1. Não ocorreu qualquer erro de julgamento dos factos julgados como provados e o Tribunal “a quo” fez um correcto e minucioso exame crítico de toda a prova produzida em audiência de julgamento, na estrita observância do disposto nos artigos 127.º e 374.º, n.º 2, do CPP, pelo que não merece censura o juízo probatório vertido nos factos que permitem condenar o arguido pelo crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1, do Código Pena.;
2. Com efeito, essa prova, produzida, apreciada, ponderada e valorada pelo Tribunal de acordo com os preceitos legais aplicáveis e supra referidos, suporta objectivamente o julgamento de facto havido e impregna o processo decisório de formação da convicção do Colectivo de toda a justeza, correcção e objectividade que tal juízo tem que conter;
3. A decisão recorrida encontra-se devidamente fundamentada, quer de facto, quer de direito, não é possuidora de qualquer vício que inquine a sua validade, substancial ou formal, o Tribunal apreciou criticamente o depoimento do agente da GNR, JF..., que foi claro e objectivo, e, sendo esta a única questão colocada no recurso e não havendo fundamentos para alterar este juízo probatório, terá que necessariamente improceder o presente recurso e o douto Acórdão impugnado deverá ser mantido nos seus precisos termos.
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O recurso foi, em 26/10/2010, admitido.
Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu, em 17/11/2010, douto parecer, no qual defende a improcedência total do recurso, acompanhando, na íntegra, a posição assumida pelo Ministério Público em 1ª instância.
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o direito de resposta.
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II. Decisão Recorrida (com relevo para o presente recurso):
“(…)
II – Fundamentos:
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:
(…)
20. Por seu turno, o militar JF… seguiu no encalço do arguido J..., o qual estava munido de uma arma de fogo, cujas características concretas não se logrou apurar, e deu ordens ao arguido para parar. No entanto, o arguido J... não acatou tal ordem de paragem, seguindo pelos terrenos de cultivo e mato, empunhando a referida arma.
21. A dada altura da perseguição, quando o militar se encontrava próximo do arguido, este encostou-lhe a arma de fogo à cabeça, no temporal esquerdo, dizendo, em voz alta e em tom sério, “é p´ra matar” e que não tinha nenhum problema em fazê-lo, expressões que repetiu por várias vezes, ao mesmo tempo que pressionava o cano da arma contra a cabeça do dito Guarda.
22. Após alguns segundos, o arguido desferiu um empurrão no corpo do militar e colocou-se em fuga. Apesar de ter sentido medo pela sua integridade física e vida, o mesmo militar ainda efectuou vários disparos para o ar, para servir de intimidação, contudo, o arguido logrou fugir.
23. O arguido, ao agir da forma descrita, fê-lo com o intuito de se opor a que o militar da GNR praticasse um acto relativo ao exercício das suas funções de agente policial, evitando que este o detivesse e identificasse.”
(…)
Convicção do tribunal.
Relativamente aos factos provados.
Diga-se, em primeiro lugar, que apenas os arguidos F..., J… e T... prestaram declarações sobre os factos e para negar a sua prática.
(…)
Os factos descritos em 15. a 23., relativos à forma como os arguidos foram perseguidos pela GNR e actuação dos arguidos J...e T..., resultaram provados tendo em consideração os autos de reconhecimento de fls. 29/31, 32/33, 378/380 e auto de exame de fls. 761. Para além disso, tiveram-se em consideração os depoimentos dos agentes da GNR que estiveram envolvidos nas detenções e perseguições, concretamente as testemunhas JC..., JF…, Ta… e TD…, tendo todos prestado depoimentos claros e credíveis, não tendo quaisquer dúvidas sobre a identificação dos arguidos, incluindo dos que não foram detidos na altura por terem logrado a fuga.
(…)
Relativamente aos crimes de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1, do C. Penal, que vêm imputados a cada um dos arguidos T… e J..., em autoria material e em concurso real com as infracções atrás descritas e também imputadas a estes arguidos. O artigo 347.º, do Código Penal pune com pena de prisão até 5 anos quem empregar violência ou ameaça grave contra funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, para se opor a que ele pratique acto relativo ao exercício das suas funções, ou para o constranger a que pratique acto relativo ao exercício das suas funções.
Com esta incriminação, pretende-se proteger a autonomia intencional do estado, isto é, as exigências de legalidade, objectividade e independência que, num Estado de Direito, têm de presidir ao desempenho das funções públicas (Almeida Costa, in Comentário Conimbricense, III, Coimbra Editora, 2001, 661).
Dito de outro modo, incrimina-se uma actividade dirigida ao agente de autoridade, traduzida numa atitude de oposição à execução de um acto ou numa atitude de constrangimento para a prática de um acto de poder público, mediante actos de coacção física (uso de força física) ou psíquica (ameaça e acto material e violento com o fim de impedir o agente de autoridade de exercer as suas funções) perturbadores da segurança e tranquilidade ou mediante a exteriorização de uma vontade de fazer nascer um mal sério, geralmente imediato, de natureza a influenciar a acção legal do agente da autoridade. (…) pune-se a oposição pelo uso ilegítimo da força ou grave ameaça, quer o agente do crime tome a ofensiva ou a defensiva contra a autoridade (José Luís Lopes da Mota, in Jornadas de Direito Criminal, volume II, C.E.J., Lisboa, 1998, 421).
A violência aludida no artigo 347.º não necessita de ser grave e nem sequer tem de consistir em agressão física; basta a simples hostilidade, idónea a coagir, impedir ou dificultar a actuação legítima do funcionário (Acórdão R.P., 29/3/1995, C.J., II, 232).
A violência prevista neste preceito pressupõe manifestação de força ao serviço de um fim ilegal, isto é, constituindo obstáculo ao exercício da autoridade, independentemente de luta ou atentado corporal (Acórdão R.L., 12/6/1991, C.J., III, 185).
Tanto a resistência eficaz, como a ineficaz estão compreendidas na previsão do artigo 347.º (cfr. neste sentido, Comentário Conimbricense, pág. 342).
Atenta a factualidade dada como provada, resulta estarem preenchidos os elementos objectivos do tipo legal de crime em causa, relativamente a ambos os arguidos.
De facto, a GNR é uma força de segurança e os militares JC... e JF... encontravam-se no exercício das suas funções, estando como tal perfeitamente identificados e tendo sido chamados ao local em virtude de terem sido informados da tentativa de furto da caixa ATM, seguindo no encalço dos presumíveis autores.
Foi em pleno exercício das funções em que estão investidos, designadamente, de investigação de factos relativos à prática de furtos, que aqueles agentes, atentas as atitudes suspeitas e local e hora em que se depararam com os arguidos, perseguiram os arguidos T... e J...que se haviam colocado em fuga.
Por outro lado, foi com intenção de se opor e impedir o exercício cabal de tais funções que os arguidos apontaram, cada um deles, uma arma de fogo aos militares em causa, por forma a fugir do local, o que, aliás, lograram.
Tais comportamentos não podem deixar de se considerar como preenchendo o elemento de violência exigido pelo tipo.
Estão preenchidos, sem dúvida, os elementos objectivos da infracção prevista no artigo 347.º, do C. Penal.
No que diz respeito à verificação do tipo subjectivo, é necessário que o agente actue dolosamente, visto não estar prevista a possibilidade de cometimento do crime a título negligente (artigo 13.º, do C. Penal).
E, na verdade, apurou-se que o arguido T… agiu voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que, ao exibir uma arma de fogo ao militar JC..., fê-lo com o intuito de se opor a que este praticasse acto relativo ao exercício das suas funções de agente de autoridade, evitando que este o identificasse e detivesse.
Provou-se, também, que o arguido J..., ao agir da forma atrás descrita, fê-lo com o intuito de se opor a que o militar da GNR praticasse um acto relativo ao exercício das suas funções de agente policial, evitando que este o detivesse e identificasse.
Face à factualidade provada, é de concluir terem os arguidos T... e J...praticado o ilícito por que vêm acusados, pois que se encontram preenchidos os respectivos elementos objectivo e subjectivo do tipo legal, inexistindo causas que excluam a ilicitude ou a culpa.
Em suma, os arguidos T... e J...praticaram, cada um deles, em autoria material e em concurso real com as infracções atrás descrita e também imputadas a estes arguidos, um crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1, do C. Penal, ao qual corresponde a pena de prisão de 1 mês a 5 anos.”
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III. Apreciação do Recurso:
O objecto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do C.P.P. Na realidade, de harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. – Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995). São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões». A questão a conhecer é a seguinte:
- Saber se há erro de julgamento quanto à matéria de facto dada como provada nos pontos 20 a 23, devendo, em consequência disso e da respectiva alteração a efectuar, ser o arguido absolvido da prática do crime p. e p. pelo artigo 347.º, do Código Penal.
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O recorrente impugna determinada matéria de facto com base em erro de julgamento.
Pois bem, o erro de julgamento, consagrado no artigo 412º, nº 3, do CPP, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.
Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do CPP. Nos casos de impugnação ampla, aquela que nos ocupa agora, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º3, do C.P.P.: «3.Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar: a)- Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b)-As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c)-As provas que devem ser renovadas». A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. Além disso, o n.º 4, do citado artigo 412.º contempla o seguinte:Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.Ora, no caso em apreço, o recorrente, cumprindo o dever de especificação a que está obrigado por lei, refere na sua Motivação:
“Ora, salvo o devido respeito, da análise da prova produzida, nomeadamente do depoimento da testemunha JF..., resulta que tais factos (os impugnados – adiantamos nós) foram, na sua essencialidade, indevidamente dados como provados.
Assim, no seu depoimento prestado em 19/2/2010, entre as 15h28m50s e as 16h31m07s – cujo conteúdo se encontra gravado no respectivo CD Áudio -, a referida apresenta uma versão dos factos diferente da que consta da acusação e dos factos que, com base nesse depoimento, foram dados como provados no douto acórdão recorrido.
Deste modo, não referiu a aludida testemunha que tivesse dado ordens para parar ao ora recorrente e que este não tivesse acatado essa mesma ordem e seguisse pelos terrenos de cultivo e mato, empunhando a referida arma.
Também não referiu que este, encostando a arma de fogo à sua cabeça, lhe tivesse dito, em voz alta e tom sério, “é p’ra matar” e que não tinha nenhum problema em fazê-lo.
Igualmente nunca afirmou que o arguido desferiu um empurrão no corpo e que tenha sentido medo pela integridade física e vida.
No depoimento da testemunha, JF..., esta testemunha disse, a instâncias do Digno Procurador:
- “Tive agarrado a ele com a intenção de detê-lo”;
- “Tive uma arma apontada à cabeça e que me disse que também tinha uma arma igual à minha e se quisesse que me dava um tiro, entretanto ele fugiu”;
- “Fez três disparos depois dele fugir”.
Perguntado a instâncias do Digno Procurador se temeu pela vida, respondeu:
- “não sabe se tremeu
Referiu, ainda, a instâncias do ilustre mandatário dos arguidos que: não fez movimentos para fugir da arma, mas para o detere que o arguidonão o empurrou nem tentou agredi-lo, apenas tentava fugir”. Por último, afirmou quenão o largou por causa da arma.
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Face ao exposto, temos por assente, pois, que a impugnação da matéria de facto assenta no depoimento da testemunha JF..., cujo depoimento ocorreu em 19/2/2010, entre as 15h28m 50s e as 16h31m07s.
E bem se percebe que assim seja, visto que tal testemunha foi aquela que abordou, de forma directa e isolada, o ora recorrente, na sequência de factos agora em causa.
Que se oferece dizer quanto à pretensão do recorrente?
Desde já, importa esclarecer que nem todo o depoimento, cuja duração é de 01:02:17, releva para a questão em análise.
Com interesse, podemos avançar que existem apenas dois períodos, um que se situa entre os sete e os treze minutos e outro que decorre entre os vinte e um e os trinta e três minutos, tendo por referência a gravação existente nos autos.
Concretizemos o que acaba de ser referido. Nos primeiros sete minutos do seu depoimento, JF... descreve a aproximação ao local onde se situava a caixa ATM e a perseguição que, então, começou.
Entrando já no minuto sete, constatamos que a testemunha disse que correu na direcção de um dos visados na perseguição (07:05), sendo certo que o mesmo começou a fugir.
Um pouco mais adiante, referiu que chegou a estar agarrado a tal indivíduo, que veio, mais tarde, a reconhecer, na P.J., como sendo o ora recorrente, pelo pescoço e pelo peito, e nunca pela mão, depois de o perseguir com a intenção de o deter, o que não conseguiu (07:29 e 07:56).
Depois disso, acrescentou que o ora recorrente, enquanto estavam ambos em confronto físico, um visando a detenção e outro a fuga, lhe apontou uma arma de fogo à cabeça, ao mesmo tempo que lhe dizia que lhe dava um tiro porque tinha uma arma igual à dele (08:28), sendo de notar que não reproduziu, em discurso directo, o que foi declarado.
Em seguida, mais disse que o arguido J...conseguiu fugir para uma zona de mato, momento em que disparou três tiros para o ar (09:25).
Continuando a sua descrição dos factos, deixou no ar a mensagem de que tudo aconteceu de um modo muito rápido, sendo certo que, na altura dos acontecimentos, nem sequer sabia se tinha chegado a temer pela sua vida, quando viu a arma, tendo a percepção que, só mais tarde, é que se deu conta do perigo (11:10 e 11:45).
Voltou a afirmar que o arguido J...o ameaçou que tinha uma arma igual à dele e que lhe dava um tiro se quisesse (12:20).
Mais salientou que o ora recorrente não o empurrou nem lhe bateu, sendo certo que, com os movimentos que ia fazendo, quando estava a ser agarrado por si, se limitava a tentar fugir (12:45).
Saliente-se que todas as afirmações até agora mencionadas resultaram de perguntas formuladas pelo Digno Magistrado do Ministério Público, sendo certo que a testemunha, ainda a instâncias do mesmo, deixou claro que o arguido J...não foi detido pela GNR (21:41).
Um pouco mais à frente, respondendo a uma pergunta feita pela Meritíssima Juiz que presidiu ao julgamento, esclareceu que só disparou três tiros para o ar após o arguido ter conseguido fugir do seu alcance, frustrada que foi a tentativa feita para o deter (22:50).
Já na sequência de perguntas formuladas pelo ilustre mandatário do arguido J…, o Exmo. Sr. Dr. … (em 4/8/2010, veio a renunciar o respectivo mandato, dando origem a que, hoje, o recorrente se encontre representado em juízo pela Exma. Defensora Oficiosa Sra. Dra, …), a testemunha vincou que repetia o que dissera, quanto à dinâmica dos factos (24:35).
Após uns minutos em que a testemunha explicou como agarrara o pescoço do arguido, com vista a obter a sua detenção, disse que não o largou em virtude da arma empunhada em direcção à sua cabeça, mas sim porque ele se conseguiu esquivar (24:55 a 31:26), indo em direcção a uma zona de mato que se encontrava às escuras, motivo pelo qual abdicou de o perseguir por ser perigoso (31:51).
A instâncias, ainda, do ilustre mandatário do arguido, reafirmou que, na altura do encontro físico com o arguido J…, não teve noção de medo (32:40), acrescentando que não chegou a ser agredido (33.17).
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Aqui chegados, é inegável que a testemunha JF... não disse que, alguma vez, tenha dado ordens expressas ao ora recorrente para parar e que este não tivesse acatado essa mesma ordem.
E também não disse que o arguido J…, em concreto, em voz alta e tom sério, lhe tenha dirigido a expressão “é p’ra matar” e que não tinha nenhum problema em fazê-lo.
Por fim, é verdade, ainda, que não disse que o arguido lhe desferiu um empurrão no corpo e que, no momento, tenha sentido medo.
Nessa parte, assiste razão ao recorrente.
Quanto ao mais, importa reter o seguinte:
a) ainda que não tivesse feito referência a uma ordem para parar e ao seu não acatamento, a testemunha JF... referiu que, em dado momento, aquele em que o arguido conseguiu fugir, ele o fez por uma zona de mato escura, sendo certo que, momentos antes, tinha apontado uma arma à sua cabeça. Ora, nada sendo dito quanto a um hipotético abandono da arma, forçoso é concluir que o arguido fugiu com a arma na sua posse, por tal caminho.
Assim sendo, tal não pode, pura e simplesmente, ser escamoteado dos factos provados, ainda que se conceda que, na realidade, não ficou descrita uma relação de causa e efeito entre o não acatamento de uma ordem (para mais, não demonstrada) e a fuga, sendo que esta, no entanto, existiu.
b) embora não tenha sido referida pela testemunha JF... a expressão “é p’ra matar” e por ela não tenha sido adiantado que o arguido J...lhe tenha, ainda, dito que não tinha nenhum problema em fazê-lo, o que é certo é que aquela foi bem clara ao afirmar que o ora recorrente lhe apontou uma arma à cabeça, ao mesmo tempo que lhe dizia que lhe dava um tiro porque tinha uma arma igual à dele.
c) não obstante a testemunha JF... ter dito que não chegou a sofrer um empurrão, não é menos verdade que a mesma deixou bem expressa a ideia de que chegou a agarrar, por breves instantes, o arguido José, pelo pescoço e pelo peito, sendo certo que o mesmo conseguiu escapar, através de movimentos corporais de resistência à acção que desenvolvia.
Umas últimas palavras a propósito do que a testemunha disse quanto a ter ou não sentido medo.
A ideia que fica a pairar é que tudo aconteceu tão depressa que nem sequer houve tempo para ter medo, mas que, se, por absurdo, o tempo tivesse sido concedido à testemunha, ela teria sentido muito medo…
Só assim se compreende que a testemunha tenha dito “nem sei se temi…foi tudo tão rápido…tive medo….mais tarde…”
Bom, uma vez que o tribunal tem que lidar com factos objectivos e não com processos de intenções, de natureza especulativa, assentemos que, na altura dos factos, a testemunha não sentiu medo, por isso ser o que realmente foi dito em audiência de julgamento.
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Como resultado do que acaba de ser exposto, concluímos existir erro de julgamento na apreciação da prova, embora não com o alcance que o recorrente pretende. Pelo exposto, nos termos do artigo 431.º, als. a) e b), do CPP, face ao reexame da prova efectuado, há que proceder a certas alterações nos factos dados como provados nos pontos 20, 21 e 22, mantendo-se inalterável o ponto 23. Vejamos, já de seguida, as alterações a introduzir: O facto provado n.º 20 passará a ter a seguinte redacção: - Por seu turno, o militar JF... seguiu no encalço do arguido J..., o qual estava munido de uma arma de fogo, cujas características concretas não foi possível apurar, não conseguindo evitar que o mesmo fugisse pelos terrenos de cultivo e mato ali existentes. Por sua vez, o facto provado n.º 21, passará a ser o seguinte: - A dada altura da perseguição, quando o militar se encontrava próximo do arguido, chegou a agarrá-lo, por breves instantes, pelo pescoço e pelo peito, momento em que o arguido lhe apontou a arma de fogo à cabeça. Por seu turno, o facto provado n.º 22 passará a ter o seguinte teor: - Após alguns segundos, o arguido conseguiu esquivar-se à acção do militar e colocou-se em fuga, após o que este último ainda efectuou três disparos para o ar, para servir de intimidação, sem que com isso tivesse impedido que o arguido tivesse seguido pelo caminho referido em 20. ****
Face às citadas alterações, deve o recorrente ser absolvido da prática do crime p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1, do Código Penal, uma vez que não ficou provado que o militar JF... se sentiu ameaçado ou tenha visto ofendida a sua integridade física, ou que a exibição da arma tenha impedido a detenção, como defende o arguido nas suas Conclusões?
No que tange ao crime em causa no presente recurso, e antes de respondermos à pergunta ora feita, podemos considerar, em resumo, o seguinte:
a) o crime p. e p. pelo artigo 347.º, do Código Penal, é um crime de execução vinculada, na medida em que nenhum meio releva a não ser o emprego de violência ou de ameaça ou ameaça grave.
b) se não há o emprego de violência (vis phisica, vis corporalis) ou de ameaça (vis compulsiva), limitando-se o indivíduo à inacção, à atitude ghândica, à fuga ou tentativa de fuga, à oposição branca, à manifestação verbal de um propósito de recalcitrância, à simples imprecação de males (vg. Praga), não se integra a resistência – cfr. Cristina Monteiro, Comentário, Tomo III, páginas 342 e 343;
c) a violência deve surgir como pré-ordenada e idónea como forma de oposição ao exercício das funções por parte do agente da autoridade (adequação do meio);
d) não se torna necessário que à adequação do meio se siga um comportamento coagido, já que tanto a resistência eficaz como a ineficaz estão compreendidas na ofensa típica.
e) trata-se de um crime material, pois deve exigir-se, para a consumação, um resultado intermédio, isto é, que a acção violenta ou ameaçadora tenham atingido, na realidade, o seu destinatário;
f) a violência não tem que consistir numa agressão física, sendo suficiente a simples hostilidade idónea a coagir, impedir ou dificultar a actuação legítima do funcionário;
g) o bem jurídico protegido não tem natureza eminentemente pessoal, assentando o seu escopo na autonomia funcional do Estado.
h) os meios utilizados (violência, ameaça) devem ser considerados em relação a uma finalidade específica, e como tal não podem ser dissociados, ao ponto de considerar para este efeito qualquer violência ou ameaça. Neste contexto, há que ter em atenção a qualidade dos visados, quer sejam funcionários, militares ou membros de órgãos de segurança. E, dessa forma, e na medida em que seja pressuposto que tenham aptidões específicas para a função que desempenham, a adequabilidade da violência ou ameaça para colocar em perigo, para perturbar, a autonomia funcional do Estado terá de ter em conta essas especiais características.
Todavia, tal deve ser considerado num quadro de normalidade dentro dessa especificidade.
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Posto isto, é altura de vermos se as alterações produzidas na matéria de facto devem conduzir à absolvição do recorrente, quanto ao crime p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1, do C. Penal.
Liminarmente, há que salientar que as aludidas alterações não eliminaram o cerne do conjunto dos factos a ter em linha de conta e que pode ser resumido nos seguintes momentos:
1 – o início da perseguição do militar da GNR ao arguido e fuga deste;
2- o encontro entre ambos, durante o qual o elemento da GNR, por breves instantes, chegou a agarrar o arguido;
3- o gesto feito pelo arguido de apontar a arma à cabeça da testemunha Fernandes;
- a posterior fuga pela zona de mato
Com efeito, no caso vertente:
1) o arguido, em primeiro lugar, ao ver a presença de elementos da GNR, colocou-se em fuga;
2) depois, ao ser agarrado, ofereceu resistência física, através de movimentos do seu corpo que evitaram ser imobilizado, só sendo compreensível a sua conduta como a forma que encontrou para impedir ser detido e identificado;
3) não contente com isso, empunhou, ainda, uma arma à cabeça da testemunha Fernandes, só sendo, uma vez mais, de entender esta sua acção como a expressão máxima de que pretendia impedir que aquela o detivesse;
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Ora, perante a alteração dos factos provados, é certo que não ficou provado que o militar da GNR se tenha sentido ameaçado.
Por conseguinte, não estamos na presença de um dos elementos objectivos previstos na lei (ameaça grave).
Todavia, não podemos esquecer que a ameaça grave não é o único elemento objectivo do tipo de crime em causa.
A lei refere-se, também, a “violência”.
Não vislumbramos, com todo o respeito, como possa não ser considerada violenta a conduta do arguido.
O militar JF... disse que o arguido não o empurrou nem lhe bateu.
Tendo isso bem presente, não se esqueça, porém, que acrescentou que o arguido sempre tentou fugir, fazendo força para o efeito, logrando, até, escapar.
Tal só pode significar, em termos práticos, que o arguido resistiu, e bem, à acção policial, através de movimentos corporais bruscos, nada compatíveis com os ensinamentos de Ghandi, fazendo apelo ao que defende Nelson Hungria, Comentários ao CP, IX, 411…
E, mais grave do que isso, o arguido apontou uma arma de fogo à cabeça de JF..., o que é, pela sua natureza, um acto eivado de violência, ainda que só na vertente psicológica, sob pena da nossa sociedade tudo banalizar e aceitar como normal, se o contrário se admitir.
E não se confunda.
Uma coisa é alguém afirmar que não se sente ameaçado ao ver uma arma de fogo apontada à sua cabeça. Cada indivíduo reage à sua maneira, sendo certo que, pelo menos, alguns elementos policiais, até por dever de ofício, têm uma especial preparação para enfrentar situações perigosas, não sendo, pois de estranhar por aí além que afirmem não sentir medo ao se verem confrontados com armas de fogo.
Outra coisa é o acto, em termos objectivos, de apontar uma arma de fogo à cabeça de alguém, num cenário que nada tem de hipotético, antes pelo contrário, é bem real (perseguição policial). Trata-se, deveras de um acto hostil, diferente, evidentemente, da agressão física, o qual consiste numa força moral que se emprega abusivamente contra alguém.
Violência encerra em si algo de desumano.
Apontar uma arma de fogo à cabeça de alguém cabe, sem dúvida, nessa categoria.
Tal é o padrão num Estado de Direito, sem embargo de, casuisticamente, poder verificar-se uma causa que exclua a ilicitude e a culpa de quem assim tenha procedido.
Ora, a conduta do arguido, através de violência, nos termos descritos, visou obstar a que o agente da autoridade praticasse acto relativo às suas funções.
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IV. Decisão:
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5 ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra, não obstante haver lugar à alteração da matéria de facto nos termos supra descritos, em declarar improcedente o recurso interposto.
Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em cinco UC.
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José Eduardo Martins (Relator)
Isabel Valongo