Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
467/13.7GASEI-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: AMEAÇA AGRAVADA
CRIME PÚBLICO
CRIME SEMI-PÚBLICO
Data do Acordão: 07/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (INSTÂNCIA LOCAL DE SEIA– SECÇÃO CRIMINAL – JUIZ 2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 153.º E 155.º DO CP
Sumário: O crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, do CP, tem natureza pública.
Decisão Texto Integral:









Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

 

I. RELATÓRIO

No processo especial sumaríssimo nº 467/13.7GASEI, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca da Guarda – Seia – Instância Local – Secção de Competência Genérica – J2, foi proferido despacho que julgou inoperante a desistência da queixa apresentada pelo ofendido A... contra o arguido B... , na parte relativa ao denunciado crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153º, nº 1 e 155º, nº 1, a) do C. Penal (redacção da Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro).


*

            Inconformada com a decisão, recorreu a Digna Magistrada do Ministério Público, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

1. Nos presentes autos vem imputado ao arguido, para além do mais, a prática de um crime de ameaça agravado, p. e p. pelos art. 153º, nº 1 e 155º, nº 1, a), ambos do C. Penal.

2. O ofendido veio, por requerimento dirigido ao processo em 17.12.2015, desistir da queixa apresentada.

3. Todavia, o M.mo Juiz de Instrução Criminal não homologou a desistência de queixa quanto ao crime de ameaça agravada, por considerar que o mesmo reveste natureza de crime público, não admitindo, por conseguinte, a desistência de queixa.

4. Ora, salvo o devido respeito, não podemos perfilhar de tal solução.

5. Com efeito, antes da reforma do Código penal, aprovada pela Lei n.º 59/2007, de 04.09, o crime de ameaça simples e o crime de ameaça qualificado, previstos no mesmo preceito legal, assumiam natureza semipública.

6. Após a reforma realizada pela referida Lei, e não obstante a alteração legislativa operada pela mesma à sistemática do Código Penal, mormente no que respeita aos crimes de ameaça e coação, ponderando o argumento lógico histórico, e mesmo sistemático, deve, quanto a nós, continuar a entender-se que o crime de ameaça agravada, p. e p. pelos art. 153º, n.º 1 e 155º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, mantém natureza semipública.

7. Com efeito, consideramos que a situação a que alude a al. a), do n.º 1 do art. 155º do Código Penal, tal como aliás resulta da epígrafe de tal artigo, apenas se traduz numa agravação da moldura penal do crime base (o do art. 153º ou do art. 154º do Código Penal), não constituindo a situação de tal alínea, um tipo autónomo relativamente à previsão típica do crime de ameaça do art. 153º, limitando-se a constituir um fator de agravação do limite máximo da pena daquele crime, quando praticado nas circunstâncias ali previstas, pelo que nada contende com a natureza pública ou semipública do crime.

8. Acresce que nos referidos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea a), está em causa a tutela dos mesmos bens jurídicos.

9. Por outro lado, analisando o art. 153º e a al. a) do art. 155º, constatamos que este último preceito legal não contém, ao nível do tipo de ilícito, qualquer elemento diverso ou mais grave do que se encontra tipificado no primeiro, onde o preceito alude já a crimes contra a vida, sendo certo que não concebemos a ameaça da prática de crime contra a vida sem que se esteja perante a ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos – cfr. art. 155º, n.º 1, al. a) do Código Penal.

10. Aliás, seria uma contradição punir como crime de ameaça o anúncio a outrem da prática de um crime contra a vida, nos termos do disposto no art. 153º e dizer que, neste caso, o procedimento criminal depende de queixa – n.º 2 do citado preceito legal –, e ao mesmo tempo, por força da al. a) do art. 155º, afirmar que nos encontramos perante um crime cujo procedimento criminal não depende de queixa, porque, afinal, o mal ameaçado, a concretizar-se, seria punido, em princípio com pena de prisão superior a 3 anos.

11. Nesta medida e, quanto a nós, a única solução defensável é a de que existe um só tipo legal, consagrado no art. 153º (crime base), mas verifica-se uma agravação na moldura penal, no caso previsto na al. a) do art. 155º, mas que não confere distinta natureza ao crime.

12. Sendo o crime de ameaça agravado um crime semipúblico, o mesmo admite desistência de queixa, pelo que deverá o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que homologue a desistência de queixa apresentada.

13. Face ao exposto, entendemos que o despacho recorrido violou o disposto nos art. 153º, n.º 1 e 155º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal e art. 48º, 49º e 51 º, todos do Código de Processo Penal.

Nestes termos, e com os fundamentos expostos, deve o despacho recorrido ser revogado e, em sua substituição, ser proferido um outro que homologue a desistência de queixa apresentada pelo ofendido, com a consequente extinção do procedimento criminal.

Porém, V. Exas. decidirão como for de JUSTIÇA!


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            Não houve resposta ao recurso.

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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pronunciando-se no sentido da natureza pública do crime de ameaça agravada e concluiu pelo não provimento do recurso.

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            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

 

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


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            II. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pela Digna Magistrada do Ministério Público recorrente a questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, é a de saber se o crime de ameaça agravada tem ou não, natureza pública e, em consequência, se não admite ou admite, desistência da queixa.


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            Para a resolução destas questões importa ter presente o teor do despacho recorrido, que é o seguinte, na parte relevante:

            “ (…).

            Por requerimento de folhas 163, veio o ofendido A... declarar que desiste da queixa por si apresentada conta o arguido B... (crime de dano e ameaça agravada).

Cumpre apreciar e decidir:

Como bem referir a Digna Magistrada do Ministério Público, se quando à natureza do primeiro dos crimes (de dano), não há dúvida que o mesmo reveste natureza semipública, o mesmo já na se passará quanto ao segundo.

Assim a questão a decidir é a de saber se o crime de ameaças agravado, p e p pelo artigo 155º, n.º 1, al. a) do C. Penal - na redacção do diploma saída da revisão de 2007 - admite desistência da queixa.

Postula o art. 153º n.º 1 do Código Penal, na redacção dada pela Lei n°59/2007, de 4 de Setembro:

1 – Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a  sua liberdade de autodeterminação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias,

2 –  O procedimento criminal depende de queixa.

Por sua vez, sob a epígrafe “Agravação”, estabelece o Artigo 155º (também na redacção da Lei n°59/2007, de 4 de Setembro):

Quando os factos previstos nos artigos 153º e 154º forem realizados:

Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos; ou

Contra pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez;

Contra uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132º, no exercício das suas funções ou por causa delas;

Por funcionário com greve abuso de autoridade;

(…).

No âmbito do descrito quadro legal, sobre a questão em apreço, surgiram duas posições antagónicas:

- Aquela que é defendida por Pedro Anjos Frias “Por quem dobram os sinos? – A perseguição pelo crime de ameaça contra a vontade expressa do ofendido?! Um silêncio ruidoso” publicado na Revista Julgar, Edição da Associação Sindical dos Juízes Portugueses Janeiro/Abril de 2010; na qual o crime em causa reveste a natureza semipública e

- Aquela que defende que o crime em causa reveste natureza pública, assumida em múltiplas decisões dos tribunais superiores – cfr., entre outros: Ac. do TRP de 01 de Julho de 2009, proc. n.º 968/07.PBVLG.P1 – 4ª Sec.; Parecer da Procuradoria-geral Distrital do Porto, publicado em 11 de Outubro de 2010, via SIMP; Ac. TRC de 01.06.2011, recurso n.º 1222/09.4TAVR.C1; Ac. TRC de 02.03.2011, recurso n.º 550/09.3GCAVR; AC.TRC de 30.03.2011, processo n.º15596/08.4PBAVR,C1; Ac. TRC de 30.03.2011, processo n.º 400/09.0PBVR.C1; AC.RL DE 13.10.2010, processo n.º 36/09.6PBSRQ.L1-3; Ac. TRP de 27.04.2011, processo n.º 53/09.6GBNF.P1; ACTRP 15.09.2010, processo n.º 354/10.0PBVLG.P1; 29.09.2010, processo N.º 162/08.9GDGDM.P1; Ac. RG de 15.11.2010, processo 343/09.8GBGMR.G1; TRE de 12.11.2009, processo n.º 214/08.9PAPTM.E1, todos acedidos em www.dgsi.pt.

Antes da reforma de 2007 a agravação do crime de ameaça era feita em termos idênticos àqueles que saíram da reforma.

No entanto a agravação estava prevista no n.º 2 do art. 153º do C.P., preceito que tinha a seguinte redacção:

“2. Se a ameaça for com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos, o agente é punido (…)”.

Existia ainda um n.º 3 com a seguinte redacção: “O procedimento criminal depende de queixa”.

O crime de coacção aparecia assim totalmente autonomizado nos artigos 154º (coacção simples) e 155º (coacção agravada).

Não existia, pois, então, qualquer margem para dúvidas quanto à natureza semi-pública do crime de ameaça quer na sua forma simples, quer na forma agravada.

Aliás já antes da revisão do CP de 1995, o crime de ameaça tinha natureza semi-pública, natureza esta que transitou para a versão introduzida pelo DL 48/95 de 15 Março, apesar de terem existido outras alterações de fundo no que toca ao crime agora em apreço.

A natureza – semi-pública – do crime manteve-se assim inalterada desde 1982 a 2007.

Relevante ainda, no a evolução legislativa do crime de coacção é o facto de na reforma de 2007 ter desaparecido o antigo art. 155º com a epígrafe de “coacção grave”, substituído pelo actual art. 155º com a epígrafe “Agravação” relativo aos “factos previstos nos artigos 153º e 154º”. O mesmo é dizer aos crimes de ameaça (153º) e de coacção (154º).

Sendo, pois, após a reforma de 2007, as múltiplas causas da agravação modificativa comuns aos crimes de ameaça e de coacção.

No regime definido em 2007 essa clareza desvaneceu-se, apenas na medida em que não existe disposição que preveja de forma expressa a necessidade da queixa para o crime agravado previsto no art. 155º citado.

Ora o silêncio da lei (ausência de disposição que preveja a necessidade de queixa) aponta indubitavelmente no sentido de que actualmente, o crime de ameaça na forma agravada tem natureza pública. Pois que não existe disposição que preveja a necessidade de queixa.

Deve o intérprete partir da presunção de que o legislador soube exprimir correctamente o seu pensamento – cfr. art. 9.º, n.º 1 do C. Civil.

Como refere Figueiredo Dias (Direito Penal, Parte Geral, tomo I, Coimbra Editora, 2004, p. 28) que “O princípio da legalidade impõe que o texto da lei constitua o limite absoluto a toda a tarefa de aplicação, por só desse modo poder cumprir a função de garantia que lhe cabe no Estado de Direito”.

E a letra da lei, nada dizendo sobre a necessidade de apresentação de queixa para o crime agravado aponta, claramente, no apontado sentido.

Perante a descrita evolução dos dois tipos de crime importa ainda indagar, no quadro de uma interpretação teleológica, se existe razão de fundo, fundamento material, que tivesse levado o legislador a alterar a natureza semi-pública do crime de ameaça agravado.

Ora, visando concretamente o crime de ameaça, refere-se na Exposição de Motivos da Proposta de Lei para a alteração do C. Penal (que deu origem à reforma de 2007):

“(…) O crime de ameaça passa a ser qualificado em circunstâncias idênticas às previstas para a coacção grave. Por conseguinte, a ameaça é agravada quando se referir a crime punível com pena de prisão superior a três anos, for dirigida contra pessoa particularmente indefesa ou, por exemplo funcionário em exercício de funções ou for praticada por funcionário com grave abuso de autoridade. Esta qualificação abrange os crimes praticados contra agentes dos serviços ou forças de segurança, alargando uma solução contemplada para os casos de homicídio, ofensa à integridade física e coacção”.

Conclui daqui a tese da necessidade da queixa que o legislador pretendeu apenas estender à ameaça todas as circunstâncias que já antes agravavam o crime de coacção, arrumando juntamente a circunstância que antes constituía o n.º 2 do art. 153º. E não alterar a natureza – antes semi-pública – do crime na forma agravada.

No entanto o argumento é reversível.

Desde logo, a natureza semi-pública de qualquer crime, não se presume. Tem que resultar expressamente da lei.

É o que sucede, caso a caso, em relação a todos os crimes que dependem de queixa, como decorre do princípio geral enunciado no art. 48º do C.P.P: “O MºPº tem legitimidade para promover o processo penal, salvas as restrições constantes dos artigos 49º a 52º”.

Por outro lado, se o legislador agregou a agravação dos crimes de ameaça e de coacção na mesma disposição legal, não pode deixar de daí retirar todas as consequências. Entre elas as inerentes à desnecessidade da apresentação de queixa para o crime agravado.

E a perspectiva subjacente à decisão recorrida levaria a que também o crime de “coacção agravada” – punido, tal como a ameaça agravada pelo mesmo art. 155º – fosse de natureza semi-pública, em relação a todas as múltiplas actuações ali previstas.

Não se vendo razão para o crime de ameaça agravada ser semi-público e já não o ser o de coacção agravada, previstos, repete-se, no mesmo preceito.

Assim, dependem da apresentação de queixa os crimes de coacção e de ameaça “simples” nos termos previstos no n.º 2 do art. 153º e no n.º 4 do art. 154º do C. Penal. Mas já não dependerão de queixa quer o crime de coacção agravado quer o crime de ameaça agravado, previstos nas múltiplas alíneas do art. 155º.

Não competindo ao intérprete encontrar distinções onde o legislador as não fez.

Se o legislador tinha, antes da reforma, um crime de coacção agravado semi-público, ao autonomizar a agravação, nela abrangendo dois crimes distintos (o do art. 153º e o do art. 154º) omitindo qualquer referência à necessidade de queixa, não pode deixar de se considerar que o fez intencionalmente.

Nesse sentido aponta a vontade do legislador quando refere, na exposição de motivos, que “O crime de ameaça passa a ser qualificado em circunstâncias idênticas à revistas para a coacção ao grave”.

Pelo que, incluindo a agravação ao de ambos na mesma previsão legal, não pode deixar de assumir as consequências daí resultantes.

Por outro lado a agravação abrange os crimes praticados “Contra uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132º no exercício das suas funções ou por causa delas”. Aqui sendo incluídos, entre uma multiplicidade de agentes que exercem funções de natureza pública, os próprios titulares de órgãos de soberania, alargando uma solução contemplada para os casos de homicídio.

Daí que, ao “arrumar” todas as circunstâncias agravantes no art. 155º quis assumir, deliberadamente, que naqueles casos, não houvesse necessidade de apresentação de queixa.

Existindo, salvo melhor opinião, uma razão material, de fundo, para tal opção, identificada pelo próprio legislador, como fundamento da agravação, atenta a natureza das suas causas que justificam a censura agravada do crime: - ameaça (…) com a prática de crime punível com pena superior a 3 anos de prisão; dirigida contra pessoa particularmente indefesa em razão da idade, deficiência, doença, gravidez; contra membro de órgão de soberania ou equiparados [remissão para o art. 132º, n.º2, al. l)]; praticada por funcionário com grave abuso de autoridade.

Tudo razões suficientemente fortes para justificar a desnecessidade da queixa para o crime agravado, ao contrário do crime simples, tendo em vista os fundamentos da agravação do crime ou pela situação de especial fragilidade da vítima ou pela natureza das funções públicas que exerce. Não se justificando, pois que o legislador, em tais casos, quisesse “obrigar” o ofendido a apresentar queixa, pela natureza especialmente desvaliosa do crime (agravado) ou do seu resultado especialmente gravoso, enfim, da sua especial relevância social.

Parece assim resultar do referido enunciado de motivos não só a intenção do legislador em manter público o crime em todos os casos previstos no art. 155º bem como a existência de fundamentos materiais para o efeito: a natureza das agravantes que qualificam o crime.

Pode-se questionar a bondade da opção em determinados casos concretos, mas a lei tem essa força: aplica-se a todos os casos nela previstos por igual. Ao intérprete não cabe questionar as opções legislativas. Cabe-lhe apenas nelas conformar o caso concreto no estrito quadro dos princípios da hermenêutica e da conformidade com a Constituição da República.

E, no caso, não são invocados nem se detectam conteúdos constitucionais que exijam uma tal interpretação que suprima um preceito que defina expressamente a natureza semi-pública do crime, pelo que teremos que concluir que tal crime reveste a natureza pública, sendo inoperante a desistência de queixa.

Notifique.

(…)”.


*

            Da natureza, pública ou semi-pública, do crime de ameaça agravada

            1. Como já se notou, a questão a decidir consiste em saber se o crime de ameaça agravada tem natureza pública, não admitindo desistência da queixa, como se entendeu no despacho recorrido ou se, pelo contrário, tem natureza semi-pública e admite a desistência da queixa, como defende a Digna Magistrada recorrente.

            A questão não é nova e sobre ela contam-se, como dá conta a decisão em crise, duas distintas posições. Os aqui, relator e adjunto, na mesma qualidade, tiveram já oportunidade de sobre ela se pronunciarem, no acórdão de 2 de Abril de 2014, proferido no processo nº 222/12.1GCVIS.C1, consultável em www.dgsi, que aqui seguiremos de perto.

2. Na versão inicial do C. Penal o crime de ameaças [assim era, então, designado na respectiva epígrafe] encontrava-se previsto no art. 155º.

A ameaça simples [Quem ameaçar outrem com a prática de um crime, provocando-lhe receio, medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a sua liberdade de determinação, será punido com prisão até 1 ano ou com multa até 100 dias.] no seu nº 1, e a ameaça agravada ou qualificada [No caso de se tratar de ameaça com a prática de um crime a que corresponda pena de prisão superior a 3 anos, poderá a prisão elevar-se até 2 anos e a multa até 180 dias.] no seu nº 2. O nº 3 determinava a natureza semi-pública do crime, em qualquer das suas modalidades [O procedimento criminal depende de queixa.].

Com a Revisão de 1995 [Dec. Lei nº 48/95, de 15 de Março] o crime passou a estar previsto no art. 153º do C. Penal, com a denominação, ameaça. O tipo foi restringido à ameaça com a prática de determinados crimes [contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor], deixando se ser suficiente para o seu preenchimento a ameaça com a prática de qualquer crime. Foi mantida a ameaça simples (nº 1) e a ameaça agravada ou qualificada (nº 2), sofrendo ambas agravamento, ligeiro, da moldura da pena de multa, e foi também mantida a natureza semi-pública do crime, relativamente às duas modalidades (nº 3).

Com a Revisão de 2007 [Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro] o crime de ameaça permaneceu no art. 153º do C. Penal, cuja redacção passou a ser a seguinte:

1 – Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.

2 – O procedimento criminal depende de queixa

O actual art. 153º prevê a ameaça simples, que manteve a natureza semi-pública. Nele deixou de estar prevista a ameaça agravada ou qualificada, agora prevista no art. 155º do C. Penal que, sob a epígrafe, «Agravação», dispõe: 

1 – Quando os factos previstos nos artigos 153.º e 154.º forem realizados:

a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos; ou

b) Contra pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez;

c) Contra uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas;

d) Por funcionário com grave abuso de autoridade;

o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, no caso do artigo 153.º, e com pena de prisão de um a cinco anos, no caso do n.º 1 do artigo 154.º.

2 – As mesmas penas são aplicadas se, por força da ameaça ou da coacção, a vítima ou a pessoa sobre a qual o mal deve recair se suicidar ou tentar suicidar-se.   

A alteração verificada tem para nós o significado de que a ameaça agravada ou qualificada, prevista no art. 155º do C. Penal – conjuntamente com a coacção agravada ou qualificada – passou a constituir um crime distinto, deixando de comungar com a ameaça simples, a natureza de crime semi-público, pelas razões que se seguem.

3. Até à Revisão operada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, o crime de ameaça, simples ou qualificada, teve sempre natureza de crime semi-público, e o crime de coacção, simples ou agravada, teve sempre, tendencialmente, natureza de crime público [tendencialmente porque, com a Revisão de 1995, o crime passou a ter natureza semi-pública quando o facto tivesse lugar entre pessoas ligadas pelo casamento, certos graus de parentesco, pela adopção ou por união de facto].

O legislador de 2007 não ignorava a natureza dos crimes, ambos tutelares do mesmo bem jurídico, a liberdade de decisão e de acção – embora, bem entendido, sejam estruturalmente distintos e assumam diferentes graus de gravidade –, como também não ignorava que a técnica legislativa seguida no C. Penal para definir a natureza dos crimes, sempre que há um crime simples e um crime qualificado ou agravado, tem sido, a) quando crime, simples e qualificado, se encontram descritos no mesmo artigo, colocar a menção «O procedimento criminal depende de queixa» logo a seguir à definição do crime base, do crime simples, e antes da definição do crime agravado ou qualificado, assim definindo a natureza semi-pública do primeiro e a natureza pública do segundo [como acontece com o abuso de confiança ou com a burla relativa a seguros, entre outros], b) quando o crime simples e o crime qualificado são descritos em artigos diferentes, só no preceito que define o crime base consta a referida menção, assim definindo a natureza semi-pública deste e a natureza publica do crime agravado [como acontece com a ofensa à integridade física, com o furto, com a burla, entre outros].

Assim, a opção do legislador de fazer constar do art. 153º do C. Penal, na redacção em vigor, o crime de ameaça simples, a quem manteve a natureza de crime semi-público, e de ‘transportar’ o crime de ameaça agravado ou qualificado, para um outro preceito, o art. 155º do mesmo código, do qual não consta a menção «O procedimento criminal depende de queixa», juntando-o, para mais, a um crime, o de coacção agravada ou qualificada que, como dissemos, sempre teve, fosse na forma simples, fosse na forma agravada, salvo a excepção referida, a natureza de crime público, tem o inequívoco sentido de ter sido sua intenção atribuir ao crime de ameaça agravada ou qualificada a natureza de crime público.

Neste sentido tem sido, aliás, com estas e com outras mais esclarecidas razões, o entendimento, seguramente maioritário, das Relações (cfr. entre outros, Acs. da Relação de Coimbra de 3 de Fevereiro de 2016, proc. nº 164/11.8GAPNC.C1, de 20 de Maio de 2015, proc. nº 45/14.3GEACB.C1, de 26 de Junho de 2013, proc. nº 207/10.2GAPMS.C1, de 10 de Julho de 2013, proc. nº 187/11.7GBLSA.C1 e de 10 de Dezembro de 2013, proc. nº 183/09.4GFVIS.C1, da Relação de Lisboa de 3 de Novembro de 2015, proc. nº 178/13.3PASCR.L1, de 30 de Abril de 2015, proc. nº 64/14.0PAPTS.L1 e de 13 de Outubro de 2010, proc. nº 36/09.6PBSRQ.L1, da Relação do Porto de 17 de Fevereiro de 2016, proc. nº 509/12.3GBAMT.P1, de 12 de Novembro de 2014, proc. nº 883/12.1PAPVZ.P1 e de 27 de Abril de 2011, proc. nº 53/09.6BGVNF.P1, da Relação de Évora de 7 de Abril de 2015, proc. nº 517/12.4PAOLH.E1 e de 15 de Maio de 2012, proc. nº 16/11.1GAMAC.E1 e da Relação de Guimarães de 12 de Janeiro de 2015, proc. nº 59/13.0OGVCT.G1 e de 15 de Novembro de 2010, proc. nº 343/09.8GBGMR.G1, todos in, www.dgsi.pt). E também parte da doutrina vem entendendo que após a Revisão operada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, o crime de ameaça agravada passou a crime público (cfr. Taipa de Carvalho (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª Edição, 2012, Coimbra Editora, pág. 560 e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 3ª edição actualizada, 2015, pág. 614).

Em conclusão, o crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153º, nº 1 e 155º, nº 1 do C. Penal tem natureza pública.

4. A natureza pública do crime em questão determina então a irrelevância da desistência da queixa apresentada pelo ofendido.

Bem andou, portanto, o Mmo Juiz a quo, ao não a homologar a desistência da queixa.


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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso.

Em consequência, confirmam o despacho recorrido.

Recurso sem tributação.


 

Coimbra, 6 de Julho de 2016


(Heitor Vasques Osório – Relator)

(Fernando Chaves - adjunto)