Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
596/15.2T8PBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: COMPETÊNCIA
TRIBUNAL
BALCÃO NACIONAL DE ARRENDAMENTO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
INDEMNIZAÇÃO
INTERESSE EM AGIR
PROCEDIMENTO ESPECIAL DE DESPEJO
Data do Acordão: 06/14/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - POMBAL - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: LEI Nº 31/2012 DE 14/08, ARTIGOS15º-A E 15º NºS 1 E 2 DO NOVO REGIME DO ARRENDAMENTO URBANO (NRAU), APROVADO PELA LEI Nº 6/2006, DE 27/02, COM AS ALTERAÇÕES QUE LHE FORAM INTRODUZIDAS, DESIGNADAMENTE PELA CITADA LEI Nº 31/2012 E ARTIGO 1084º DO CC
Sumário: I – Os Tribunais judiciais são competentes para conhecer de uma acção em que, além de indemnização por danos causados, é pedida a resolução de um contrato de arrendamento com base em diversos fundamentos (designadamente em mora no pagamento de rendas), sendo certo que o Balcão Nacional de Arrendamento, além de não dispor de competência para apreciar pedidos de indemnização por danos causados, também não tem competência para declarar a resolução do contrato; o BNA apenas tem competência, no âmbito do procedimento especial de despejo, para executar e tornar efectivo o despejo na sequência de cessação do contrato que (alegadamente) já tenha operado extrajudicialmente, nos casos em que a cessação do contrato opera sem necessidade de intervenção judicial.

II – Assim, se o senhorio não procedeu à resolução extrajudicial do contrato de arrendamento (ainda que, com fundamento na falta de pagamento de rendas, tal lhe fosse permitido), optando por intentar uma acção judicial com vista a obter e ver declarada tal resolução, são os tribunais judiciais – e não o BNA – os competentes para a sua apreciação, apenas se podendo questionar se o senhorio tem ou não um interesse processual relevante (interesse em agir) no que toca ao pedido de resolução com base em falta de pagamento de rendas em virtude de a lei determinar que a resolução do contrato com esse fundamento opera por comunicação à contraparte sem necessidade de intervenção judicial.

III – Todavia, pretendendo o senhorio obter a resolução do contrato por diversos fundamentos e sendo certo que a resolução com base em alguns desses fundamentos apenas poderia ser decretada pelo Tribunal, impõe-se reconhecer que tem um interesse processual relevante em pedir ao Tribunal a resolução do contrato com base em todos esses fundamentos e que, como tal, dispõe de interesse em agir no que toca ao pedido de resolução com base em falta de pagamento de rendas ainda que, com este específico fundamento, pudesse ter resolvido o contrato de forma extrajudicial e mediante comunicação a efectuar ao arrendatário, nos termos previstos na lei.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A... , residente em Rua (...) , Pombal, veio intentar acção de despejo, sob a forma de processo sumário, contra B... e C..., com domicilio em Rua (...) , Sintra, alegando, em suma: que celebrou com os Réus um contrato de arrendamento para habitação referente a um imóvel de que é proprietário; que os Réus deixaram de pagar as rendas desde 01/12/2014, encontrando-se em dívida o valor de 1.200,00€; que, entretanto, foi informado que os Réus haviam deixado de habitar o locado e que este estava a ser alvo da entrada de estranhos; que, quando se deslocou ao local, constatou que a moradia estava a ser alvo de uma diligência ordenada pelo Ministério Público, no âmbito da qual as portas foram arrombadas; que, posteriormente, foi informado pelo NIC que a casa no interior estava toda degradada; que, tendo ligado ao NIC para informar que as portas estavam abertas, foi-lhe informado que os arrendatários tinham sido presentes a Tribunal mas voltariam para casa e depois fechariam a porta que estava aberta e que, relativamente aos arrendatários, havia mandado de busca por tráfico de estupefacientes, de armas proibidas e tráfico de viaturas com matrículas falsas; que, posteriormente, deparou-se novamente com as portas da moradia aberta, tendo alertado a GNR. Relatando ainda outros factos similares, alega que o prédio apresenta diversos danos no valor global de 15.883,00€ e que os equipamentos também apresentam danos ainda não avaliados.

Com estes fundamentos, pede:

A) Que os Réus sejam condenados a reconhecer e ver declarado e resolvido o mencionado contrato de arrendamento, por sentença, com base na falta de pagamento das rendas, e demais fatos vertidos de 1º a 70 da p.i.;

B) Que os Réus sejam condenados a restituir imediatamente ao Autor o prédio locado, identificado pelo contrato de arrendamento, junto aos autos, objecto de locação, e livre e desocupado de pessoas e bens, em bom estado de conservação;

C) Que os Réus sejam condenados a pagar ao Autor a indemnização correspondente à quantia de 15.883,00€, referente a rendas, danos causados pelos RR, acrescido de juros vencidos;

D) Que os Réus sejam condenados a pagar ao Autor indemnização correspondente ao valor das rendas mensais vincendas e juros vencidos, até decisão a proferir;

E) Que os Réus sejam condenados a pagar ao Autor a indemnização correspondente ao valor das rendas mensais vincendas, após sentença e, até efectiva entrega do locado, acrescido dos respectivos juros moratórios, até integral pagamento;

G) Que os Réus sejam condenados a pagar-lhe o que se vier a liquidar em execução de sentença, quanto a danos patrimoniais, verificados no prédio identificado no contrato de arrendamento, objecto de locação, como referido na p.i.

Efectuada a citação dos Réus, foram as partes notificadas para se pronunciarem quanto à excepção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal que poderia estar configurada.

O Autor e o Réu responderam, sustentando o primeiro que o meio processual utilizado era o próprio e sustentando o segundo que o Tribunal é incompetente porque a lei impõe o recurso ao procedimento especial de despejo.

Na sequência desse facto, foi proferido despacho – em 10/02/2016 – que, julgando verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal, absolveu os Réus da instância.

Inconformado com essa decisão, o Autor veio interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

Da violação do art. 661º do CPC, dos limites da sentença e da actividade do Juiz:

1- A O Juiz ao não seguir o procedimento processual, como pedido na p.i., violou o art. 661º do CPC, não podendo condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir

Das nulidades da sentença, art. 668, d) e e) do CPC:

2- Na decisão verificam-se nulidades da sentença.

3- Foi violado a al. d) do nº 1 do art. 668º do CPC, nomeadamente por o Meritíssimo Juiz não se ter pronunciado sobre questões que devesse apreciar e conheceu de questões que não deveria apreciar

4- Foi violado o previsto e estatuído na al. e) nº 1 do art. 668 do CPC, no sentido de que o Meritíssimo Juiz condenou em objecto diferente do pedido.

Da violação do princípio do dispositivo, art. 264º e 664º do CPC:

5- Na elaboração da sentença o Juiz só pode servir-se dos factos articulados pelas partes. - Vide in Antunes de Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, pág. 413.In concreto o Juiz valorou provas e factos que não foram alegados pelas partes.

6- Pelo que foi violado o previsto e estatuído no art. 264º e 664º do CPC.

Da competência do Tribunal:

7- O A usou a forma de ação declarativa sob a forma de processo comum, em função da causa de pedir e do pedido, o A na causa de pedir alegou questões de ilícitos criminais de tráfico de droga e danos patrimoniais dolosos no bem imóvel, se o A usasse o procedimento especial de despejo, do BNA, nunca poderia pedir danos causados na habitação, o que motivou que ousasse a ação declarativa sob a forma de processo comum.

b) No seguimento de jurisprudência abaixo citada:

(……)

Do efeito cominatório pleno

8- Os RR não contestaram, a p.i., conforme aí vertido, existindo efeito cominatório pleno, pelo que deveria o meritíssimo juiz ter dado como provados todos os fatos e condenado os RR no pedido.

Das disposições legais violadas:

9- Foram violados os artigos 484, nº 1, 661º, 668º al. d) e e), 671º, nº  o CPC, 665º, 264º, 664º, 66º, al. b), nº 2 art. 4º, 574 do CPC; artigos 204, nº 2, 1325 e 1340, 1022 a 1030, 1038 a 1049, 1079 a 1084, 1251º, 1258º, 1259º, 1260º, 1261º, 1262º, 1263º, 1311º, 1316º do C. C; artigos 116º, nº 1 e 117-B, nº 1 e 2 do CRP, 2078º do C. C.

O Réu apresentou contra-alegações, sustentando a improcedência do recurso e a confirmação da decisão recorrida.


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II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se o Tribunal recorrido é (ou não) competente para conhecer da presente causa.


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III.

Entrando na análise do objecto do recurso, caberá dizer, em primeiro lugar, que o Apelante alude a uma série de questões que, salvo o devido respeito, carecem de qualquer sentido e de qualquer fundamento.

O Apelante começa por aludir a uma pretensa violação do art. 661º do CPC (art. 609º do CPC actualmente vigente), dizendo que o juiz não podia condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir.

Mas, como é evidente, essa alegação não tem qualquer fundamento; o tribunal não condenou em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pediu; na realidade, o tribunal não condenou em coisa alguma porque entendeu estar verificada uma excepção dilatória (incompetência absoluta) que – como dispõe expressamente o art. 576º, nº 2, do CPC (reportamo-nos ao CPC actualmente vigente) – obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, impedindo, naturalmente, que o juiz possa apreciar os pedidos formulados. Assim, ao julgar procedente uma excepção dilatória, o tribunal não apreciou o mérito da causa, não apreciou os pedidos, não condenou (nem absolveu) o réu nesses pedidos e, portanto, não faz sentido afirmar que condenou em quantidade superior ou em objecto diverso daquele que havia sido pedido.

 

Continua dizendo o Apelante que a sentença é nula nos termos do art. 668º, d) e e) do CPC – art. 615º, nº1, alíneas d) e e) do CPC actualmente vigente – porque o juiz não se teria pronunciado sobre questões que devesse apreciar e conheceu de questões que não deveria apreciar, além de ter condenado em objecto diferente do pedido.

Também não tem sentido útil esta alegação.

A decisão recorrida limitou-se a julgar procedente a excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal, sendo que, como dispõe o art. 578º do CPC, o tribunal deve conhecer oficiosamente das excepções dilatórias. Assim, se essa questão era de conhecimento oficioso do tribunal, é evidente que a decisão recorrida não se pronunciou sobre questão que não podia apreciar. E também não tem sentido afirmar que o juiz não se pronunciou sobre questões que devia apreciar, já que, julgando procedente uma excepção dilatória – que, como se referiu, obsta à apreciação do mérito da causa –, o juiz não tinha que apreciar o objecto do litígio e tão pouco poderia fazê-lo.

   

Alude também o Apelante a uma pretensa violação do princípio do dispositivo, na medida em que o juiz teria valorado provas e factos que não foram alegados pelas partes e antes tomou em consideração factos que não foram invocados pelo recorrente.

Estamos novamente perante uma alegação sem o mínimo fundamento.

O Juiz não valorou quaisquer provas e factos que não tivessem sido invocados, tendo-se limitado a concluir que, tendo em conta os pedidos formulados e a respectiva causa de pedir, o Tribunal era absolutamente incompetente para a sua apreciação.

Parece – se bem se entende a sua alegação – que, na perspectiva do Apelante, a decisão recorrida não poderia ter julgado procedente a excepção de incompetência porque tal não havia sido pedido. Mas, como já afirmámos – e reafirmamos – o Tribunal não estava, nessa matéria, limitado pela alegação ou invocação das partes, já que tal excepção era de conhecimento oficioso do Tribunal. Portanto, o Tribunal podia e devia julgar procedente essa excepção – caso ela se configurasse – abstendo-se de apreciar o mérito da causa.

Resta saber se a aludida excepção estava ou não configurada, sendo essa, na realidade, a única questão relevante que vem suscitada no presente recurso; foi essa a única questão apreciada pela decisão recorrida e o que importa agora saber é tal decisão decidiu correctamente quando julgou verificada a aludida excepção.

Vejamos, portanto, se o Tribunal recorrido tem ou não competência para conhecer da presente causa.

A decisão recorrida julgou verificada a aludida excepção por entender, em linhas gerais, que o pedido de despejo formulado nos autos é da competência do Balcão Nacional do Arrendamento, através do procedimento especial de despejo criado pela Lei nº 31/2012 de 14/08.

Mas, salvo o devido respeito, sem razão.

O procedimento especial de despejo – criado pela citada Lei – corresponde a um procedimento extrajudicial cuja tramitação é assegurada pelo Balcão Nacional do Arrendamento (cfr. art.15º-A do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27/02, com as alterações que lhe foram introduzidas, designadamente pela citada Lei nº 31/2012) e que, como dispõe o nº 1 do art. 15º do citado diploma, “…se destina a efetivar a cessação do arrendamento, independentemente do fim a que este se destina, quando o arrendatário não desocupe o locado na data prevista na lei ou na data fixada por convenção entre as partes”.

Precisando e concretizando o âmbito do aludido procedimento, dispõe o nº 2 do citado art. 15ºque:

Apenas podem servir de base ao procedimento especial de despejo independentemente do fim a que se destina o arrendamento:

a) Em caso de revogação, o contrato de arrendamento, acompanhado do acordo previsto no n.º 2 do artigo 1082.º do Código Civil;

b) Em caso de caducidade pelo decurso do prazo, não sendo o contrato renovável, o contrato escrito do qual conste a fixação desse prazo;

c) Em caso de cessação por oposição à renovação, o contrato de arrendamento acompanhado do comprovativo da comunicação prevista no n.º 1 do artigo 1097.º ou no n.º 1 do artigo 1098.º do Código Civil;

d) Em caso de denúncia por comunicação pelo senhorio, o contrato de arrendamento, acompanhado do comprovativo da comunicação prevista na alínea c) do artigo 1101.º ou no n.º 1 do artigo 1103.º do Código Civil ou da comunicação a que se refere a alínea a) do n.º 5 do artigo 33.º da presente lei;

e) Em caso de resolução por comunicação, o contrato de arrendamento, acompanhado do comprovativo da comunicação prevista no n.º 2 do artigo 1084.º do Código Civil, bem como, quando aplicável, do comprovativo, emitido pela autoridade competente, da oposição à realização da obra;

f) Em caso de denúncia pelo arrendatário, nos termos dos n.os 3 e 4 do artigo 1098.º do Código Civil e dos artigos 34.º e 53.º da presente lei, o comprovativo da comunicação da iniciativa do senhorio e o documento de resposta do arrendatário”.

Significa isso, portanto, que o procedimento especial de despejo se destina a efectivar a cessação do arrendamento que já se operou, seja por revogação, caducidade ou denúncia, seja por resolução nos casos em que esta pode operar sem intervenção judicial, correspondendo, na prática, a um procedimento de natureza executiva ao qual servem de base os documentos que, segundo a lei anteriormente vigente, eram considerados títulos executivos.

Ora, tendo em conta os factos alegados na petição inicial, parece que o Autor não estaria em condições de recorrer ao aludido procedimento especial de despejo, na medida em que não é detentor (pelo menos não alega que o seja) dos documentos que, segundo a disposição supra citada, seriam indispensáveis para esse efeito.

O Autor pretende ver declarada a resolução do contrato de arrendamento por diversos fundamentos e, designadamente, por falta de pagamento de rendas.

Como decorre do disposto no art. 1084º do CC, a resolução do contrato pelo senhorio apenas pode operar por comunicação ao arrendatário em caso de mora no pagamento da renda, encargos ou despesas ou em caso de oposição do arrendatário à realização de obra ordenada por entidade pública, nos termos e nas condições mencionadas na aludida disposição legal; a resolução do contrato pelo senhorio com qualquer outro fundamento é decretada nos termos da lei de processo – cfr. nº 1 do citado art. 1084º - e, portanto, com intervenção judicial.

A decisão recorrida, considerando que aquilo que o Autor pretende (fundamentalmente) é a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento pontual das rendas e o consequente despejo do locado, sustenta que essa pretensão teria que ser formulada através do procedimento especial de despejo que não é da competência do Tribunal mas sim do BNA.

Mas, para que o Autor pudesse recorrer a tal procedimento seria necessário que apresentasse o comprovativo da comunicação prevista no nº 2 do art. 1084º do CC (cfr. nº 2 alínea e) do citado art. 15º), ou seja, teria que proceder previamente à resolução do contrato mediante comunicação ao arrendatário nos termos previstos na aludida disposição legal e, ao que parece, não o fez (sendo que nada foi alegado nesse sentido). E, não tendo procedido à resolução do contrato por essa via, não estava, naturalmente, em condições de recorrer ao procedimento especial de despejo.

É certo, portanto, que, atendendo aos factos alegados na petição inicial, a pretensão que o Autor vem exercer não era da competência do BNA; o que o Autor pretende, por via desta acção, é que seja declarada a resolução do contrato de arrendamento e para esse efeito o BNA não dispõe de qualquer competência; o BNA apenas tem competência para executar e tornar efectivo o despejo na sequência de cessação do contrato que já tenha operado pelos meios e nos termos previstos na lei e não para declarar a resolução do contrato.

A questão que se poderia colocar era a de saber se o Autor (senhorio) podia ou não vir pedir ao Tribunal a resolução do contrato com fundamento em falta de pagamento de rendas, quando a lei determina que a resolução do contrato com esse fundamento opera por comunicação à contraparte sem necessidade de intervenção judicial. Mas ainda que se entendesse que não podia recorrer ao Tribunal, não estaria em causa, salvo o devido respeito, uma questão de competência, mas sim uma questão de interesse processual (interesse em agir) que, como se tem entendido, constitui um pressuposto processual da acção.

De facto, ainda que a questão não seja líquida, parece-nos que o senhorio terá, pelo menos em abstracto, o direito de recorrer aos tribunais e intentar uma acção judicial com vista a obter a declaração de resolução do contrato de arrendamento com fundamento em falta de pagamento de rendas e consequente condenação na entrega do imóvel e, portanto, a única questão que se poderia colocar prende-se com o interesse processual (interesse em agir).

É certo que do disposto no art. 1084º do CC e do art. 14º, nº 1, da Lei 6/2006, parece resultar que a acção de despejo apenas se destina às situações em que a lei impõe o recurso à via judicial, o que apenas acontece relativamente à resolução efectuada pelo senhorio com fundamento no disposto no nº 2 do art. 1083º e não nos casos em que a lei expressamente permite que a resolução do contrato opere por via extrajudicial.

Afigura-se-nos, porém, que essa é uma leitura demasiado redutora que colide com o direito constitucional de acesso aos tribunais, que está consagrado no art. 20º da Constituição e que inclui “…o direito de acção, isto é, o direito subjectivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional, solicitando a abertura de um processo, com o consequente dever (…) do mesmo órgão de sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada…[1] e com o disposto no art.  2º, nº 2, do Código de Processo Civil, onde se dispõe que “A todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção”.

Mas ainda que, em face do disposto nas citadas normas, não deva ser negado ao senhorio o direito, em abstracto, de recorrer aos tribunais para ver reconhecido judicialmente o seu direito à resolução do contrato de arrendamento, poder-se-á questionar se tem algum interesse processual relevante (interesse em agir) em propor uma acção com essa finalidade, quando é certo que pode resolver o contrato por via extrajudicial.

Mas, mesmo nessa perspectiva, a nossa jurisprudência tem considerado que o senhorio, ainda que tenha ao seu dispor um meio alternativo para resolver o contrato, dispõe de interesse em agir na propositura de uma acção judicial com essa finalidade[2].

De qualquer forma, ainda que noutras situações esse interesse em agir possa ser discutível, parece-nos que ele é inegável no caso sub judice, na medida em que, o Autor não se limita a pedir a resolução do contrato com fundamento na falta de pagamento de rendas, invocando também muitos outros factos que, na sua perspectiva, constituem fundamento para a resolução do contrato e com base nos quais não poderia proceder à resolução extrajudicial, na medida em que, como dispõe o art. 1084º do CC, a resolução do contrato com esses fundamentos apenas pode ser decretada pelo Tribunal.

Parece-nos, com efeito, não poder – nem dever – ser exigido ao Autor que, tendo necessidade de intentar uma acção judicial para obter a resolução do contrato com fundamento nos demais factos que vem invocar (resolução que, como se disse, apenas poderia ser decretada pelo Tribunal), tivesse que utilizar outro meio – a resolução extrajudicial – para resolver o contrato com fundamento na falta de pagamento de rendas, correndo o risco – naturalmente – de ver contestada a resolução extrajudicial e o subsequente procedimento especial de despejo a que viesse a recorrer, o que daria origem a um novo processo judicial, em conformidade com o disposto nos arts. 15º-H e segs. do NRAU. E, portanto, pretendendo obter a resolução do contrato com diversos fundamentos, não poderá deixar de ser reconhecido ao senhorio o direito e o interesse de ver apreciados todos esses fundamentos através de um único meio – a acção judicial – e de assim obter a resolução do contrato.

É certo, portanto, em face do exposto, que a decisão recorrida não pode subsistir.

Em primeiro lugar, porque a fundamentação utilizada pela decisão (ainda que estivesse correcta) apenas seria válida para o pedido de despejo com fundamento em mora no pagamento das rendas e para o pedido de pagamento dessas rendas, sendo que o BNA não dispõe de qualquer competência relativamente à resolução do contrato com outros fundamentos (que o Autor também peticionava) e relativamente ao pedido de indemnização por danos causados; no que toca a estas pretensões, o Tribunal recorrido dispunha de competência e, portanto, sempre o processo teria que prosseguir para a sua apreciação, se nenhuma outra excepção a tal obstasse.

Em segundo lugar, porque, mesmo no que toca à resolução do contrato por falta de pagamento de rendas, o Autor não estava em condições de recorrer ao procedimento especial de despejo porque não havia ainda procedido (pelo menos não o alegou) à resolução do contrato mediante a comunicação prevista no nº 2 do art. 1084º do CC (cuja apresentação seria necessária para o aludido procedimento), além de que o BNA não dispunha de competência para apreciar o concreto pedido que estava formulado nos autos; a pretensão solicitada pelo Autor consistia em ver declarada a resolução do contrato de arrendamento e para esse efeito o BNA não dispunha de qualquer competência, porquanto o BNA apenas tem competência para executar e tornar efectivo o despejo na sequência de cessação do contrato que já tivesse operado mediante a comunicação prevista na lei.

Tendo em conta as concretas pretensões que eram formuladas e a respectiva causa de pedir, era o Tribunal – e não o BNA – que tinha competência material para a sua apreciação, apenas se podendo questionar se o Autor tinha ou não um interesse processual relevante (interesse em agir) na propositura de uma acção judicial com vista à resolução do contrato com fundamento em mora no pagamento de rendas em virtude de a lei determinar que a resolução do contrato com esse fundamento opera por comunicação à contraparte sem necessidade de intervenção judicial.

Todavia, pretendendo o Autor obter a resolução do contrato por diversos fundamentos e sendo certo que a resolução com base em alguns desses fundamentos apenas poderia ser decretada pelo Tribunal, impõe-se reconhecer que o Autor tem um interesse processual relevante em pedir ao Tribunal a resolução do contrato com base em todos esses fundamentos e que, como tal, dispõe de interesse em agir no que toca ao pedido de resolução com base em falta de pagamento de rendas ainda que, com este específico fundamento, pudesse ter resolvido o contrato de forma extrajudicial e mediante comunicação a efectuar ao arrendatário, nos termos previstos na lei.

Procede, portanto, o recurso, revogando-se a decisão recorrida e determinando-se o prosseguimento dos autos para apreciação das pretensões formuladas se nada mais obstar a tal.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – Os Tribunais judiciais são competentes para conhecer de uma acção em que, além de indemnização por danos causados, é pedida a resolução de um contrato de arrendamento com base em diversos fundamentos (designadamente em mora no pagamento de rendas), sendo certo que o Balcão Nacional de Arrendamento, além de não dispor de competência para apreciar pedidos de indemnização por danos causados, também não tem competência para declarar a resolução do contrato; o BNA apenas tem competência, no âmbito do procedimento especial de despejo, para executar e tornar efectivo o despejo na sequência de cessação do contrato que (alegadamente) já tenha operado extrajudicialmente, nos casos em que a cessação do contrato opera sem necessidade de intervenção judicial.

II – Assim, se o senhorio não procedeu à resolução extrajudicial do contrato de arrendamento (ainda que, com fundamento na falta de pagamento de rendas, tal lhe fosse permitido), optando por intentar uma acção judicial com vista a obter e ver declarada tal resolução, são os tribunais judiciais – e não o BNA – os competentes para a sua apreciação, apenas se podendo questionar se o senhorio tem ou não um interesse processual relevante (interesse em agir) no que toca ao pedido de resolução com base em falta de pagamento de rendas em virtude de a lei determinar que a resolução do contrato com esse fundamento opera por comunicação à contraparte sem necessidade de intervenção judicial.

III – Todavia, pretendendo o senhorio obter a resolução do contrato por diversos fundamentos e sendo certo que a resolução com base em alguns desses fundamentos apenas poderia ser decretada pelo Tribunal, impõe-se reconhecer que tem um interesse processual relevante em pedir ao Tribunal a resolução do contrato com base em todos esses fundamentos e que, como tal, dispõe de interesse em agir no que toca ao pedido de resolução com base em falta de pagamento de rendas ainda que, com este específico fundamento, pudesse ter resolvido o contrato de forma extrajudicial e mediante comunicação a efectuar ao arrendatário, nos termos previstos na lei.


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IV.

Pelo exposto, concedendo-se provimento ao presente recurso, revoga-se a decisão recorrida e determina-se o prosseguimento dos autos para apreciação das pretensões formuladas se nada mais obstar a tal.

Custas a cargo do Apelado.

Notifique.

                  

Des. Relatora: Maria Catarina Gonçalves

Des. Adjuntos: Nunes Ribeiro

                            Helder Almeida


[1] J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. revista, pág. 163
[2] Cfr., entre outros, o Ac. do STJ de 06/05/2010, processo nº 438/08.5YXLSB.LS.S1 e os Acórdãos da Relação do Porto de 06/05/2014, processo nº 747/13.1TBPVZ.P1e de 17/10/2013, processo nº 2541/11.5TBOAZ.P1, todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.