Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1086/17.4T9FIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELENA BOLIEIRO
Descritores: ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA;
INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Data do Acordão: 04/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (J L CRIMINAL DA FIGUEIRA DA FOZ)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CONTRAORDENACIONAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 410, N.º 2, DO CPP
Sumário:
I – Com a invocação do vício de erro notório questiona-se, não o conteúdo da prova em si, nomeadamente do que foi dito no depoimento ou nas declarações prestadas, cujo teor se aceita, mas a utilização que foi dada à referida prova, no sentido de a mesma suportar a demonstração de um determinado facto, na medida em que o tribunal valorizou a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados ou então quando da decisão se extrai de modo óbvio que optou por decidir, na dúvida, contra o arguido.
II – No contexto de uma actuação negligente o erro invocado no recurso não é susceptível de exercer qualquer efeito ao nível da exclusão ou afastamento da respectiva punibilidade.
III – Em termos do sentido que à luz das regras da experiência comum é normal e expectável atribuir à afirmação não estava certo se poderia ou não conduzir, o assim declarado não corresponde a que o arguido desconhecesse a proibição infringida que levou ao cometimento da contra-ordenação dos autos, antes aponta para uma atitude de descuido ou desatenção que caracteriza a negligência (não estava certo se poderia ou não conduzir, mas ainda assim conduziu, violando o dever objectivo de cuidado que sobre impende enquanto condutor de um veículo).
IV – A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada tem lugar quando a factualidade dada como provada na decisão se revela insuficiente para fundamentar a solução de direito alcançada e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto que, sendo relevante para a decisão final, podia e devia ter investigado (Simas Santos e Leal-Henriques, op. cit., pág.74).
V – Tal lacuna de factos deve resultar da própria decisão recorrida, mediante a aferição interna que apenas atende ao que nela consta, e não se confunde, pois, com a eventual falta de provas que pudessem sustentar a demonstração da factualidade que ali foi dada como apurada.
VI – Para a decisão proferida não era necessário (nem exigível) o apuramento de qualquer outro elemento, sendo certo que na impugnação judicial deduzida contra a decisão administrativa o arguido cingiu a sua defesa à alegação de que a carta de condução de que é portador o habilitava a conduzir veículos como os dos autos e não invocou qualquer dado factual relativo à questão agora em análise que o tribunal a quo tivesse deixado de investigar quando devia tê-lo feito por aquele a suscitar.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 4.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório
1. Por decisão da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), proferida em 10 de Julho de 2015, foi aplicada ao arguido AA, pela prática de uma contra-ordenação prevista e punida pelos artigos 123.º, n.º 3, 138.º e 146.º, alínea p), todos do Código da Estrada, condenado na coima de 750,00 € (setecentos e cinquenta euros) e ainda na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 (sessenta) dias.
Inconformado, o arguido interpôs impugnação judicial da referida decisão administrativa para o Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – Juízo Local Criminal da Figueira da Foz.
Realizou-se audiência de julgamento e foi proferida sentença, em 18 de Janeiro de 2018, que julgou improcedente a impugnação judicial, confirmando, na íntegra, a decisão administrativa recorrida.
2. O arguido, uma vez mais inconformado, interpôs o presente recurso em que formula as seguintes conclusões (transcrição):
Conclusão Um. Errou o douto Tribunal recorrido, ao não dar como provado que o Arguido não estava certo se poderia ou não conduzir o tractor e o reboque;
Conclusão Dois. Deve ser alterada a matéria de facto dada como provada, aditando-se-lhe um ponto nº 6, com a seguinte redacção:
6. O Arguido, no momento da prática dos factos não estava certo se poderia ou não conduzir o tractor e o reboque que pertencem ao seu sogro”.
Conclusão Três. Como consequência da alteração da matéria de facto dada como provada, deve a sentença em crise ser revogada e mandado o processo baixar à 1ª instância para proferimento de nova sentença.
Conclusão Quatro. O douto Tribunal recorrido não levou à matéria dada como provada o facto antes descrito;
E
O douto Tribunal da Relação não pode, em consequência, apurar se houve, ou não, actos de arrependimento e cotejar a responsabilidade do Arguido com a passagem do tempo (als. c) e d), do nº 2, do art. 72º, do CP);
Conclusão Cinco. O douto Tribunal da Relação de Coimbra está, pois, facticamente impedido de determinar a concreta responsabilidade do Arguido e de apurar as circunstâncias atenuantes, para fixar pena, tendo tal determinação e apuramento serem efectuados pelo douto Tribunal recorrido;
Conclusão Seis. Pelo que não deve ser proferido Acórdão substitutivo da sentença em crise, por o douto Tribunal da Relação de Coimbra, não ter elementos para aferir o grau de censurabilidade do erro do Arguido, uma vez que a sentença em crise é absolutamente omissa quanto a essa matéria;
Conclusão Sete. Deve a sentença em crise ser revogada e mandado o processo baixar à 1ª instância para proferimento de nova sentença”.

3. O Digno Magistrado do Ministério Público apresentou resposta ao recurso na qual pugna pela sua improcedência e manutenção da decisão recorrida, concluindo nos seguintes termos (transcrição):
“1. No processo contra-ordenacional, o Tribunal da Relação conhece exclusivamente de direito.
2. Sucede que, no caso específico, compulsadas as conclusões da peça processual do arguido – desde logo, as sintetizadas sob os pontos 1 a 6 –, está-se perante um claro recurso sobre a matéria de facto, no qual o mesmo verte, em suma, a sua discordância quanto ao elenco dos factos dados como provados para estribar a decisão condenatória: mormente, o não se ter dado como provado que, no momento da prática do evento com relevo contra-ordenacional, o arguido não estava certo se poderia ou não conduzir o tractor e o reboque pertencentes a seu sogro.
3. Donde, não pode, por falta de suporte legal, o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra conhecer do recurso interposto, nesta específica parte.
4. O recorrente, ainda que de forma não expressamente concretizada, ao afirmar, na respectiva conclusão 6.ª, que o Tribunal da Relação de Coimbra não tem elementos para aferir o grau de censurabilidade do arguido, uma vez que a sentença é absolutamente omissa nessa matéria, está a invocar, ao menos de forma tácita, o suposto vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada (previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. a), do CPP).
5. Os vícios previstos no n.º 2 do art. 410.º do Código de Processo Penal – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, e o erro notório na apreciação da prova – têm de resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo admissível o recurso a elementos àquela estranhos, como por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento, para os fundamentar
6. Ora, lido o texto da sentença recorrida, «maxime» o facto dado como provado no ponto 2 [«Com a conduta descrita, o arguido revelou desatenção e irreflectida inobservância das normas de direito rodoviário, actuando com manifesta falta de cuidado e prudência que o trânsito de veículos aconselha e no momento se lhe impunha, actuando de forma livre e consciente, bem sabendo que a conduta descrita nos autos é proibida e sancionada pela lei contra-ordenacional»], não se descortina que se esteja diante do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, pois que a facticidade assente ancora de forma bastante o preenchimento da contra-ordenação imputada a título de negligência e, bem assim, a medida da coima e da sanção acessória aplicadas ao recorrente, razão pela qual tal arguição deverá improceder”.

4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto apôs visto na intervenção a que alude o artigo 416.° do CPP.
5. Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre agora decidir.
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II – Fundamentação
1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 2 do CPP, ex vi artigo 41.º, n.º 1 do RGCO Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, que institui o ilícito de mera ordenação social e respectivo processo (doravante RGCO, como indicado no texto), alterado pelos seguintes diplomas: Decreto-Lei n.º 356/89, de 17 de Outubro, Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de Dezembro, e Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro. , que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar Na doutrina, cf. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113. Na jurisprudência, cf., entre muitos, os Acórdãos do STJ de 25-06-1998, in BMJ 478, pág.242; de 03-02-1999, in BMJ 484, pág.271; de 28-04-1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193. , sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso Cf. Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 7/95, de 19-10-1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28-12-1995.

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Por sua vez, conforme decorre do preceituado no artigo 75.º, n.º 2 do RGCO, em sede contra-ordenacional como a presente a Relação apenas conhece da matéria de direito, sem prejuízo de eventual alteração da decisão do tribunal recorrido nos termos do n.º 2 do citado normativo. Contudo, mesmo limitado à matéria de direito, o tribunal de recurso conhece oficiosamente dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2 do CPP (cf. Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 7/95).
Assim, atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência da recorrente com a decisão impugnada, e o que acima se expôs, delimitando o que a esta Relação é permitido conhecer em sede contra-ordenacional, as questões a apreciar são as seguintes:
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência do recorrente com a decisão impugnada, e o que a esta Relação é permitido conhecer em sede contra-ordenacional, conforme estipulado pelo citado artigo 75.º, n.º 2 do RGCO, as questões a apreciar são as seguintes:
a) Erro notório na apreciação da prova – artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP.
b) Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP.
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2. A decisão recorrida.
2.1. Na sentença proferida na 1.ª instância foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):
“1. No dia 26-01-2015, pelas 16:45, na Rua -------, o arguido AA conduzia o tractor agrícola de matrícula ---. Tal veículo fazia conjunto com o reboque de matrícula ---, sendo que ambos (o conjunto) excedem 6000kg, mais precisamente, o mencionado tractor agrícola tem 3525 kg de tara e 5225 kg de peso máximo rebocável e o reboque tem 2200 kg de tara e 8000 kg de peso bruto.
2. Com a conduta descrita o arguido revelou desatenção e irreflectida inobservância das normas de direito rodoviário, actuando com manifesta falta de cuidado e prudência que o trânsito de veículos aconselha e no momento se lhe impunham.
3. agindo de forma livre e consciente, bem sabendo que a conduta descrita nos autos é proibida e sancionada pela lei contra-ordenacional.
3. O arguido não tem averbado no seu registo de condutor contra-ordenações graves ou muito graves.
4. O arguido é portador da carta de condução n.º C----, emitida em 18/02/2011, pelo IMTT de --.
5. Na data, hora e local mencionados em 1. o reboque encontrava-se sem carga”.

2.2. Quanto a factos não provados, consta da sentença recorrida que inexistem factos com relevância para a questão a decidir.
2.3. No que respeita à apreciação crítica da prova, a sentença recorrida apresenta o seguinte teor (transcrição):
“O auto de contra-ordenação faz fé em processo de contra-ordenação, até prova em contrário, quanto aos factos presenciados pela entidade autuante, quando levantado nos termos dos n.os 1 e 2 do art.º 170.º do Código da Estrada. No caso em apreço, verifica-se que os pressupostos daquela disposição legal foram observados.
Ademais, os factos aí constantes foram confirmados em audiência pelos militares GNR1 e GNR2 que depuseram de forma isenta e circunstanciada.
Atendeu-se às declarações do arguido que explicou de que modo foi fiscalizado, garantindo que o reboque estava vazio e que naquele momento não estava certo se poderia ou não conduzir o tractor e o reboque que pertencem ao seu sogro.
Analisou-se ainda a cópia da carta de condução do arguido junta a fls. 17 e 18 (para prova do facto inscrito em 4.) e as cópias dos documentos referentes ao tractor – fls. 19 e 20 – e ao reboque – fls. 21 e 22 (para prova dos elementos referentes aos pesos aludidos em 1.).
No que respeita à ausência de antecedentes contra-ordenacionais, ponderou-se o registo individual de condutor junto a fls. 7.
No que diz respeito ao elemento subjectivo, o Tribunal valorou a globalidade da prova produzida (mormente as declarações do arguido), em conjugação com os elementares juízos de experiência comum e de razoabilidade”.
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Não se consideraram factos da impugnação conclusivos, de direito e sem relevância para o caso dos autos”.

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3. Apreciando.
3.1. Como é sabido, a decisão sobre a matéria de facto é susceptível de ser posta em causa por via da invocação dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2 do CPP.
Tais vícios decisórios devem resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não se estendendo, pois, a outros elementos, nomeadamente que resultem do processo, mas que não façam parte daquela decisão.
Neste contexto, conforme se assinala no Acórdão do STJ de 20-04-2006, o erro notório na apreciação da prova previsto na alínea c) do referido normativo “consiste em o tribunal ter dado como provado ou não provado determinado facto, quando a conclusão deveria manifestamente ter sido a contrária, já por força de uma incongruência lógica, já por ofender princípios ou leis formulados cientificamente, nomeadamente das ciências da natureza e das ciências físicas, ou contrariar princípios gerais da experiência comum das pessoas, já por se ter violado ou postergado um princípio ou regra fundamental em matéria de prova. Existe erro notório na apreciação da prova quando, «pelo menos, a prova em que se baseou a decisão recorrida não poderia fundamentar a decisão do tribunal sobre essa matéria de facto»”. Aresto proferido no processo n.º 06P363 e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>.
Com a invocação do vício de erro notório questiona-se, não o conteúdo da prova em si, nomeadamente do que foi dito no depoimento ou nas declarações prestadas, cujo teor se aceita, mas a utilização que foi dada à referida prova, no sentido de a mesma suportar a demonstração de um determinado facto, na medida em que o tribunal valorizou a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados ou então quando da decisão se extrai de modo óbvio que optou por decidir, na dúvida, contra o arguido.
In casu, o recorrente vem invocar que o tribunal a quo errou ao não dar como provado que aquele não estava certo se poderia ou não conduzir o tractor e o reboque, tal como referiu nas declarações que prestou e que se fez constar na motivação da sentença recorrida.
Sustenta, assim, que a matéria de facto deve ser modificada, aditando-se-lhe um ponto com a seguinte redacção: “6. O Arguido, no momento da prática dos factos não estava certo se poderia ou não conduzir o tractor e o reboque que pertencem ao seu sogro”.
Vejamos, pois.
A questão suscitada pelo recorrente é susceptível de configurar erro notório na apreciação da prova, nos termos acima descritos.
Com efeito, a afirmação feita pelo arguido em sede de declarações que prestou em audiência de julgamento consta da motivação da sentença recorrida (“Atendeu-se às declarações do arguido que explicou de que modo foi fiscalizado, garantindo que o reboque estava vazio e que naquele momento não estava certo se poderia ou não conduzir o tractor e o reboque que pertencem ao seu sogro”) e o que, no fundo, aquele pretende no recurso é que se atribua relevância ao que consta do texto da decisão impugnada, mais concretamente ao apontado trecho da motivação que se refere ao teor das suas declarações.
Pretendendo ainda o recorrente que tal “facto” produza efeitos ao nível do elemento subjectivo com que actuou ao praticar a infracção em análise, sustentando que dele se retira que, no momento em que conduzia o tractor com o reboque, não sabia se estava a cometer um ilícito, pelo que incorreu em erro sobre a ilicitude da sua conduta, o qual, ainda que censurável, deveria levar a que a sanção aplicável lhe fosse especialmente atenuada.
Em matéria contra-ordenacional o erro sobre a ilicitude vem regulado no artigo 9.º do RGCO, cuja redacção é similar à do artigo 17.º do Código Penal: “1. Age sem culpa quem actua sem consciência da ilicitude do facto, se o erro não lhe for censurável. 2. Se o erro lhe for censurável, a coima pode ser especialmente atenuada”.
No essencial, o preceito tem em vista as situações em que o agente actua convicto de que a sua conduta não é proibida.
Tal como sucede no artigo 8.º, n.º 2 do RGCO, os casos de erro previstos em ambos os normativos respeitam a condutas dolosas: o erro nos termos do 8.º, n.º 2 exclui o dolo, mas fica ressalvada a punibilidade da negligência; o erro contemplado no artigo 9.º não exclui o dolo, mas leva a que se considere haver falta de consciência da ilicitude, o que afasta a culpa quando o erro não for censurável (n.º 1) e, sendo censurável, pode levar à atenuação especial da coima (n.º 2).
Ora, na decisão recorrida o tribunal a quo deu como provada factualidade que consubstancia negligência [“Com a conduta descrita o arguido revelou desatenção e irreflectida inobservância das normas de direito rodoviário, actuando com manifesta falta de cuidado e prudência que o trânsito de veículos aconselha e no momento se lhe impunham”], sendo que no contexto de uma actuação negligente o erro invocado no recurso não é susceptível de exercer qualquer efeito ao nível da exclusão ou afastamento da respectiva punibilidade, mostrando-se, pois, irrelevante considerar a afirmação do arguido “naquele momento não estava certo se poderia ou não conduzir o tractor e o reboque que pertencem ao seu sogro”, para os fins pretendidos.
Acresce que em termos do sentido que à luz das regras da experiência comum é normal e expectável atribuir à afirmação não estava certo se poderia ou não conduzir, o assim declarado não corresponde a que o arguido desconhecesse a proibição infringida que levou ao cometimento da contra-ordenação dos autos, antes aponta para uma atitude de descuido ou desatenção que caracteriza a negligência (não estava certo se poderia ou não conduzir, mas ainda assim conduziu, violando o dever objectivo de cuidado que sobre impende enquanto condutor de um veículo).
Daí que, acertadamente, ao valorar tais declarações e a globalidade da prova produzida, em conjugação com os elementares juízos de experiência comum e de razoabilidade, o tribunal a quo tenha concluído pela demostração do elemento subjectivo próprio da negligência, nos termos atrás indicados.
Temos, assim, que da análise do texto da decisão recorrida, em conjugação com as regras da experiência comum, não se detecta qualquer erro ostensivo que evidencie o desacerto da opção tomada quanto à matéria que o julgador considerou provada.
Na fundamentação quanto à matéria de facto dada como assente, acima transcrita (cf. 2.3.), o tribunal a quo, ainda que sucintamente, explanou de forma objectiva e racional a valoração que efectuou, identificando a prova testemunhal e documental que relevou na formação da sua convicção e indicando os aspectos de tal prova que conjugadamente o levaram a concluir no sentido de considerar demonstrada a apontada factualidade questionada no recurso.
Improcede, por conseguinte, a primeira questão suscitada no recurso.
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3.2. Diz ainda o recorrente que esta Relação está facticamente impedida de determinar a sua concreta responsabilidade e de apurar as circunstâncias atenuantes para fixar a sanção a aplicar, no que respeita a actos de arrependimento e à relevância da passagem do tempo, tendo em vista as circunstâncias atenuativas previstas nas alíneas c) e d) do Código Penal.
Pois bem.
Conforme foi referido em 3.1., os vícios decisórios elencados nas alíneas a), b) e c) do artigo 410.º, n.º 2 do CPP devem resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não podendo, pois, estender-se a outros elementos, nomeadamente que resultem do processo, mas que não façam parte da decisão.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, prevista na alínea a) do supra normativo, tem lugar quando a factualidade dada como provada na decisão se revela insuficiente para fundamentar a solução de direito alcançada e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto que, sendo relevante para a decisão final, podia e devia ter investigado. Cf. Simas Santos e Leal-Henriques, op. cit., pág.74.
Tal lacuna de factos deve resultar da própria decisão recorrida, mediante a aferição interna que apenas atende ao que nela consta, e não se confunde, pois, com a eventual falta de provas que pudessem sustentar a demonstração da factualidade que ali foi dada como apurada.
Neste contexto, conforme se sublinha no Acórdão do STJ de 25-05-2009 Aresto proferido no processo n.º 58/07.1PRLSB.S1 e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>. , a insuficiência como vício susceptível de determinar o reenvio para novo julgamento pressupõe a impossibilidade de permitir uma qualquer decisão segundo as várias soluções plausíveis para a questão, não podendo ser assimilada à não suficiência dos factos provados para a decisão proferida e posta em causa, pelo que se os factos provados permitem uma decisão, embora diversa da que foi tomada, não existe insuficiência nos termos apontados mas, eventualmente, se for o caso, erro de julgamento e de integração da factualidade provada.
No caso sub judice, conforme se alcança do teor da sentença recorrida, o tribunal a quo indagou e levou em consideração os factos relevantes para a decisão que proferiu. Para além da factualidade que preenche os elementos objectivos e subjectivos da infracção imputada nos autos, resulta dos pontos 1, 3, 4 e 5 da sentença recorrida que o tribunal a quo levou ainda à matéria provada: todos os valores relevantes para efeitos da determinação da massa máxima do conjunto que constituía o veículo em questão (ponto 1); a circunstância de o respectivo reboque se encontrar sem carga, na ocasião da ocorrência (ponto 5); a ausência de antecedentes contra-ordenacionais (ponto 3); e a data a partir da qual o arguido é portador de carta de condução (18-02-2011 – ponto 4).
Verifica-se, assim, que para a decisão proferida não era necessário (nem exigível) o apuramento de qualquer outro elemento, sendo certo que na impugnação judicial deduzida contra a decisão administrativa o arguido cingiu a sua defesa à alegação de que a carta de condução de que é portador o habilitava a conduzir veículos como os dos autos (tractor e reboque com a massa máxima constante do ponto 1 da sentença recorrida) e não invocou qualquer dado factual relativo à questão agora em análise que o tribunal a quo tivesse deixado de investigar quando devia tê-lo feito por aquele a suscitar.
Temos, pois, que a ilação jurídica que o tribunal a quo retirou dos factos provados mostra-se, pois, suficientemente sustentada nestes, sem que ocorra qualquer omissão que releve para efeitos do preceituado no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP, em função do que o vício de insuficiência da matéria de facto invocado no recurso deve improceder.
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Em suma, não merece censura a decisão recorrida, que assim deve ser mantida.
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III – Decisão
Por todo o exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 3 UC.

Coimbra, 24 de Abril de 2018
(O presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pela primeira signatária – artigo 94.º, n.º 2 do CPP)

Helena Bolieiro (relatora)

Brízida Martins (adjunto)