Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
46/81.6TBTCS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: RECURSO EXTRAORDINÁRIO DE REVISÃO – FALSIDADE DE DEPOIMENTO
Data do Acordão: 11/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA – JUÍZO COMP. GENÉRICA DE TRANCOSO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTº 696º, Nº 1, AL. B) DO NCPC
Sumário:
A falsidade de depoimento, como fundamento do recurso extraordinário de revisão, previsto no art. 696º, nº1, alínea b) do CPC, não tem de estar previamente comprovada por sentença em acção autónoma, podendo averiguar-se na fase rescindente do recurso.
Decisão Texto Integral:
APELAÇÃO Nº 46/81.6TBTCS-A.C1
( 3ª Secção Cível)
Relator -Jorge Arcanjo
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
I – RELATÓRIO
1.1.- J... interpôs (6/3/2018 ) recurso extraordinário de revisão da sentença de 4 de Fevereiro de 1984, transitada em julgado, que, julgando procedente a açcão de investigação de paternidade, declarou filho de J... o menor P..., nascido a 19/10/1980.
Alegou, em resumo, não serem verdadeiros os factos julgados provados na acção de investigação de paternidade, no tocante ao relacionamento com a mãe da criança, porque os factos provados basearam-se nos depoimentos falsos das testemunhas ..., tanto assim que se propõe realizar exame de ADN no INML.
1.2.- Por despacho de 12/3/2018 decidiu-se indeferir liminarmente o recurso de revisão.
Justificou-se assim:
“ Ora, a mera alegação da existência de falsidade de depoimento não permite a interposição do aludido recurso, sendo necessário que essa falsidade seja atestada por uma decisão transitada em julgado.
A este propósito ver Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 14.07.2016, com o processo n.º 241/10.2TVLSB.L1-A.S1, in www.dgsi.pt.
Como vimos, no caso em apreciação o requerente não alegou, nem comprovou, por meio de certidão, a existência de decisão transitada em julgado, impondo-se, por isso, o indeferimento liminar do requerimento apresentado, ao abrigo dos artigos 696.º, alínea b, e 699.º, todos do Código de Processo Civil”
1.3.- Inconformado, o requerente recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:
...
II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1.- O objecto do recurso
A questão submetida a recurso, delimitado pelas conclusões, consiste em saber se existe fundamento para a rejeição liminar do recurso extraordinário de revisão.
2.2. -O mérito do recurso
Considerando que a acção foi instaurada em 21/10/1981, a decisão revidenda proferida em 4/2/1984, o recurso extraordinário de revisão interposto em 6/3/2018, e a decisão recorrida em 12/3/2018, coloca-se, antes de mais, a questão de saber qual a lei aplicável.
É controversa a natureza jurídica do recurso revisão, sendo qualificado como uma verdadeira acção, como autêntico recurso ou como misto de recurso e de acção (cf., sobre as três teorias, Cândida Neves, “ O Recurso de Revisão em Processo Civil”, BMJ 134, pág.281 e segs.).
Para quem adopte a natureza mista, concebe-a como recurso na fase rescindente (em que a interposição faz ressurgir a mesma instância que a decisão transitada encerrara) e de acção declarativa na fase rescisória (instrução, discussão e julgamento da causa) (cf. por ex., A. Reis, Código de Processo Civil, vol. VI, pág.375 ).
Caso se considere tratar-se de uma verdadeira acção, porque instaurada em 2018 aplicar-se-á o novo CPC, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26/6. A entender-se como autêntico recurso, ou a natureza mista (fase rescindente e fase rescisória), aplicar-se-á também o regime actual porque a a decisão recorrida foi proferida na fase rescindente, sendo indiferente a circunstância da acção haver sido proposta em 1981 (cf., por ex., Ac STJ de 21/5/2014 ( proc. nº 44/1999), em www dgsi.pt).
Por conseguinte, qualquer que seja a qualificação, é sempre aqui aplicável o regime do actual Código de Processo Civil.
O recurso extraordinário de revisão comporta duas fases:
A fase rescindente em que o tribunal aprecia os fundamentos do recurso, de modo a poder decidir se a decisão já transitada em julgado deve ou não ser rescindida. Portanto, o seu objectivo é revogar a decisão;
A fase rescisória, uma vez considerado procedente o recurso e, portanto, destruída a decisão objecto do recurso, vai-se retomar, em princípio, o processo, de forma a obter-se uma decisão que substitua a rescindida. Aqui ocorre uma renovação da instância, segundo a maioria da doutrina. O seu objectivo é produzir uma nova decisão em substituição da decisão revogada.
A decisão recorrida (despacho liminar) rejeitou o recurso de revisão com a justificação de não se verificarem os requisitos legais, por ser necessário que a falsidade do depoimento seja atestada por uma decisão transitada em julgado, comprovada com o requerimento de interposição de recurso.
O fundamento alegado pelo recorrente para a revisão é o previsto no art.696º, b) CPC - “A decisão transitada em julgado só pode ser objecto de revisão quando se verifique a falsidade do documento ou acto judicial, de depoimento ou das declarações de peritos ou árbitros, que possam, em qualquer dos casos, ter determinado a decisão a rever, não tendo a matéria sido objecto de discussão no processo em que foi proferida”.
O art.696º, nº1, b) CPC exige verificação cumulativa dos seguintes requisitos: A alegação da falsidade; a alegação de que a sentença cuja revisão se pede tenha sido determinada por essa falsidade, ou seja, que o acto falso tenha “determinado a decisão a rever”(nexo de causalidade adequada) e a alegação de que a falsidade não tenha sido discutida no processo em que foi proferida a sentença.
O fundamento da alínea b) respeita à chamada “formação do material instrutório” e a partir da redacção introduzida pelo DL nº38/2003, de 24/8, ao art.771, b) anterior CPC deixou de ser exigível expressamente a apreciação prévia em acção autónoma do vício.
Com efeito, no anterior CPC (redacção anterior ao DL nº 38/2003, de 8/3), preceituava o art.771 nº1 b) que a decisão transitada em julgado só pode ser objecto de revisão “ Quando se apresente sentença já transitada que tenha verificado a falsidade de documento ou acto judicial, de depoimento ou das declarações de peritos, que possam em qualquer dos casos ter determinado a decisão a rever. A falsidade de documento ou acto judicial não é, todavia, fundamento de revisão, se a matéria tiver ido discutida no processo em que foi proferida a decisão a rever“.
Em conformidade, o art.773 CPC dispunha que o requerimento de recurso devia ser instruído com a certidão da sentença.
Com o DL nº 38/2003 o art.771 passou a ter a seguinte redacção - “A decisão transitada em julgado só pode ser objecto de revisão quando se verifique a falsidade de documento ou acto judicial, de depoimento ou das declarações de peritos, que possam em qualquer dos casos ter determinado a decisão a rever. A falsidade de documento ou acto judicial não é, todavia, fundamento de revisão se a matéria tiver sido discutida no processo em que foi proferida a decisão a rever”.
E esta redacção passou integralmente para o actual art. 696 alínea b) do CPC.
Coloca-se a questão de saber se, não obstante a alteração legislativa, continua a ser indispensável a comprovação prévia da falsidade em acção autónoma, e sobre a qual existem duas orientações:
a). Uma no sentido de que continua a exigir-se a prévia comprovação através de sentença que julgue verificada a falsidade (cf., por ex., Ac STJ de 14/6/2016 (proc. nº 241/10), Ac RG de 20/10/2016 (proc. nº 978/06), disponíveis em www dgsi.pt)
Argumenta-se, em síntese, que só se pode concluir, verificar (“se verifique a falsidade…”) que se está perante depoimentos falsos através de prévia acção que a comprove, pelo que “ A falsidade, como fundamento do recurso, no caso de depoimentos de testemunhas e/ou peritos, tem de já estar verificada no local próprio, o que significa que a montante terá de ter existido um processo cível ou criminal, onde aquela tenha sido demonstrada, o que implica a existência de uma sentença transitada em julgado nesse sentido e que entre os depoimentos e a decisão a rever haja uma relação de causa e efeito“(cf. citado Ac. STJ de 14/6/2016).
b) . Outra no sentido da desnecessidade da comprovação da falsidade em acção autónoma (cf., por ex., Ac STJ de 13/12/2017 (proc. nº 178/04), Ac RL de 16/7/2017 (proc. nº 2178/04), ambos em www dgsi.pt).
Argumenta-se com o elemento literal e a evolução histórica, com base na alteração legislativa.
Como se explicitou no citado Ac STJ:
“Realmente, segundo pensamos, a aceitação da proposta interpretativa formulada neste recurso sobre a aludida norma do art. 696º b), quanto às exigências para a demonstração da falsidade de depoimentos, desrespeitaria as regras impostas pelo art. 9º do CC, porque, por um lado, não colheria na respectiva letra um mínimo de correspondência verbal e, por outro lado, contornaria os aspectos de ordem histórica e racional envolvidos, afrontando o pensamento legislativo, por desconsiderar o modo como este foi sendo consagrado nos sucessivos diplomas sobre a lei adjectiva”. Por isso, a interpretação de que não obstante a alteração legislativa de 2003, o legislador continuaria a consagrar a exigência de uma sentença transitada em julgado para atestar a alegação da existência da falsidade de depoimentos - “ está para além do significado provável da lei, por ser incompatível com sua letra, perante o diferente tratamento que esta, actualmente, oferece para tal requisito.”
Daqui resulta que a falsidade pode ser averiguada na fase rescindente, embora de forma cautelosa, como pertinentemente se enfatizou no citado Ac STJ de 13/12/2017, dado o balanceamento dos interesses da justiça e da segurança:
“É claro que no recurso de revisão baseado na falsidade de depoimento é necessário alegar tal falsidade, a matéria de facto para que o depoimento foi considerado e, ainda, a relevância desta matéria para a alteração da decisão recorrida. E, como é consensual, a falsidade que constitui requisito do recurso de revisão não corresponde a uma qualquer divergência entre depoimentos, antes pressupõe que o seu teor tenha sido dolosamente produzido pelos respectivos emitentes contra a realidade por eles conhecida, ou seja, que os mesmos com ele tenham pretendido influir no resultado da acção e, efectivamente, determinado a decisão a rever. Acresce que também não se justifica a revisão da decisão transitada se se apurar que a materialidade invocada no recurso de revisão já fora invocada no decurso da acção, onde só não foi considerada em virtude de deficiente desempenho da parte interessada, o mesmo é dizer, da sua imperfeita percepção do princípio da auto-responsabilidade processual”.
Considerando a alteração legislativa introduzida pelo DL nº 28/2003, a interpretação literal do art.696 nº1 b) CPC, a evolução histórica, adere-se, pela maior consistência, à tese de que não é necessária a comprovação da falsidade do depoimento em acção autónoma, pelo que não havia fundamento para rejeitar liminarmente, sem mais, o requerimento de interposição de recurso extraordinário de revisão.
Note-se que já quanto ao fundamento alegado da alínea c) do art.696 CPC a realização de exame não equivale a documento superveniente, tanto mais que se exige a sua junção com o requerimento de interposição.
A responsabilidade tributária:
Para efeitos da responsabilidade pelas custas (art.527 CPC) os recursos são considerados processos autónomos, sendo que as custas envolvem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (art.529 nº1 CPC).
Não havendo parte vencida, o pagamento das custas só se justificaria pelo princípio do proveito, mas porque já foi paga a taxa de justiça (impulso processual) e não havendo encargos ou custas de parte, não são aqui devidas custas.
2.3. Síntese conclusiva
A falsidade de depoimento, como fundamento do recurso extraordinário de revisão, previsto no art. 696 nº1 alínea b) do CPC, não tem de estar previamente comprovada por sentença em acção autónoma, podendo averiguar-se na fase rescindente do recurso.
III – DECISÃO
Pelo exposto, decidem:
1)
Julgar procedente a apelação e revogar o despacho recorrido.
2)
Sem custas.
Coimbra, 6 de Novembro de 2018.
( Jorge Arcanjo )
( Teresa Albuquerque )
( Manuel Capelo )