Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
119/14.0TBCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: LEGITIMIDADE
EXTINÇÃO DE SOCIEDADE
RESPONSABILIDADE
SÓCIO
DÍVIDA
Data do Acordão: 05/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO – CASTELO BRANCO – SECÇÃO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 141º, 142º, 143º, 147º, 156º, 162º E 163º DO CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS; 30º, NºS 1, 2 E 3 DO NCPC.
Sumário: I – De harmonia com o que estabelece o nº 1 do artº 30º do NCPC, o réu é parte legítima “quando tem interesse direto em contradizer”, adiantando o nº 2 do mesmo artigo que o interesse em contradizer se exprime “pelo prejuízo que dessa procedência advenha”. Por seu turno, no nº 3 deste artº 30 consigna-se que “na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.”.
II - Os arts. 162° e 163° do Código das Sociedades Comerciais, distinguem e regulam dois modos diferentes de fazer intervir os sócios em acção instaurada por dívida da sociedade extinta, consoante a acção esteja pendente à data da extinção da sociedade ou seja instaurada após a extinção da sociedade.

III- Tratando-se de acção pendente à data da extinção da sociedade, a substituição da sociedade pelo conjunto dos sócios, representados pelos liquidatários, é imediata e feita no próprio processo, sem necessidade de qualquer justificação e sem necessidade de recorrer ao incidente de habilitação (art. 162° do CSC).

IV- Tratando-se de acção a instaurar após a extinção da sociedade por dívida não paga nem acautelada no acto da liquidação, terá que ser proposta contra a generalidade dos sócios, também representados pelos liquidatários, e considerando que cada sócio apenas responde até ao montante que recebeu na partilha (art. 163°, n° 1, do CSC), o demandante terá que justificar, na petição inicial, que, aquando do encerramento da liquidação, a extinta sociedade possuía bens e/ou valores e que esses bens e/ou valores foram distribuídos pelos sócios demandados.

V - Só tem direito ao reembolso do activo restante quem for sócio na data da partilha ou o titular do direito, se tiver sido alienado o direito ao saldo de liquidação.

VI - E se de acordo com o que estabelece o artº 163º, nas acções que, encerrada a liquidação e extinta a sociedade, foram interpostas para cobrança do passivo social não satisfeito ou acautelado, os antigos sócios respondem apenas até ao montante que receberam na partilha, afigura-se que só quem, à data da partilha, tenha a qualidade de sócio, pode responder nos termos do preceito em análise.

VII - Significa isto que “antigo sócio”, para efeitos do disposto no artº 163º do CSC, não é todo aquele que tenha tido essa qualidade ao longo da vida da sociedade, mas apenas quem a possua na ocasião da partilha, sendo que, mesmo neste caso, em princípio, só responderá pelo passivo superveniente se houver recebido aquando da partilha e, nesse caso, ainda, apenas até ao montante que recebeu.

VIII - A jurisprudência, maioritariamente, bem como alguma doutrina, tem entendido que compete ao demandante, nas acções a que se reporta o artº 163º do CSC, a alegação e prova (artº 342º, nº 1 do Código Civil) de que, “aquando do encerramento da liquidação, a extinta sociedade possuía bens e/ou valores e que esses bens e/ou valores foram distribuídos pelos sócios demandados”.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - a) – R…[1], veio instaurar, em 20 de Janeiro de 2014, no Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, acção declarativa, com processo comum, contra A…, “na qualidade de ex-sócio gerente da sociedade comercial “J…, Lda.” pessoa colectiva n.º …, com a matrícula já cancelada” pedindo a condenação do Réu:

- A reconhecer que vendeu à Autora, na qualidade de ex-sócio gerente da empresa “J…, Lda.”, um lote de terreno com área inferior ao contratado e estipulado na escritura de compra e venda;

- A responsabilizar-se pelas eventuais consequências do processo de contra-ordenação n.º … que corre contra a Autora nos serviços do município de Castelo Branco, indemnizando-a pelos custos da eventual demolição do telheiro que refere ou custeando todas as multas e coimas que a ela venham a ser aplicadas em consequência da legalização desse telheiro;

- A pagar uma indemnização não inferior a € 5000,00 por danos não patrimoniais e uma indemnização por danos patrimoniais, esta a liquidar em execução de sentença, uma vez que ainda não são conhecidos, em toda a sua extensão, os prejuízos que o Réu causou e continua a causar à Autora.

Para tanto, alegou, em síntese:

- Ter celebrado, em 13 de Fevereiro de 2004, um contrato de compra e venda, com a sociedade “J…, Ld.ª”, contrato esse incidente sobre um lote de terreno o qual teria cerca de 386,36 m2, sendo que, posteriormente, veio a apurar que o mesmo tinha apenas 355,99 m2.

- Que nesse lote foi construído, pela sociedade, um telheiro com cerca de 20 m2, o qual, apurou posteriormente, teria sido construído em desacordo com o projecto urbanístico objecto de licenciamento camarário.

Terminou alegando que ambas as situações lhe têm causado transtornos - a primeira, porquanto lhe acarretou divergências com a sua vizinhança; o segundo porquanto terá estado na origem de processo contra-ordenacional que corre termos contra si na Câmara Municipal de Castelo Branco - sendo que, mercê disso, para além da condenação do Réu no pagamento de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que invoca, peticiona também a sua condenação nos demais pedidos supra especificados.

b) - O Réu, contestando, além de o fazer por impugnação, defendeu-se por excepção, invocando, entre o mais, a sua ilegitimidade, porquanto, estando a ser demandado por factos imputados à sociedade “J…, Lda.”, “na qualidade de ex-sócio gerente” dessa sociedade, o certo é que, como se verifica da Inscrição nº 2 constante do documento nº 4 junto com a P.I., “transmitiu a sua quota a um dos sócios em 30. DEZ/2005 e fez cessar as suas funções de sócio gerente, assumidas em 19.MAI/1999 por renúncia em 30.NOV/2005 e a elas não mais retomando”, pelo que, “aquando da dissolução da sociedade, já havia o R. cedido a sua quota”, facto esse que o isenta de qualquer responsabilidade civil imputável à sociedade comercial “J…, Lda.”.

c) - Respondendo à matéria excepcionada, veio a Autora dizer, entre o mais, que a demanda do Réu se justificava atendendo a que a presente acção «...tem por base uma transação alcançada no Processo … que correu termos no 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Castelo Branco, cuja cópia da audiência de julgamento já foi junta na Petição Inicial, e aqui se torna a juntar, onde consta que “ autora e réus desistem dos pedidos (…) sem prejuízo de a autora poder vir a propor uma acção (…) contra todas outras entidades, nomeadamente o loteador, vendedor do lote e outras”, sendo certo que, embora na acta n.º 13, de dissolução e liquidação da referida sociedade, entretanto extinta, o sócio A… se tenha responsabilizado pelas dívidas da empresa ainda não exigíveis à data, o aqui Réu é, porém, o único ex-sócio gerente vivo, do vendedor do lote de terrenos - a referida sociedade “J…, Lda”».

d) - No âmbito da audiência prévia que teve lugar no dia 24/10/2014, a Mma. Juiz da Instância local - Secção Cível - J2, da Comarca de Castelo Branco, julgando procedente a excepção dilatória da ilegitimidade do Réu A…, absolveu-o da instância.

II - A Autora recorreu desta decisão - recurso esse que veio a ser recebido como apelação, com subida imediata e efeito meramente devolutivo - oferecendo, a findar a respectiva alegação, as seguintes conclusões:

...

O Apelado, respondendo, terminou a sua alegação pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

III - Em face do disposto nos art.ºs 635º, nºs 3 e 4, 639º, nº 1, ambos do novo Código de Processo Civil - doravante designado pela sigla NCPC[2], para o distinguir do código pretérito, que se designará como CPC -, o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608º, n.º 2, “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do mesmo diploma legal.

Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que o Tribunal pode ou não abordar, consoante a utilidade que veja nisso (Cfr., entre outros, no domínio da legislação pretérita correspondente, Acórdão do STJ de 13/9/2007, proc. n.º 07B2113 e Acórdão do STJ de 8/11/2007, proc. n.º 07B3586 [3]).

Deste modo, a questão a solucionar é a de saber se o aludido A… tem, enquanto ex-sócio da já extinta sociedade comercial “J…, Lda.”, legitimidade para ser demandado nos termos peticionados pela Autora.

IV - A) – Na sentença consignou-se que resultava dos autos a seguinte factualidade relevante:

- “entre a sociedade J…, Ld.ª, representada por aqueles que, à data, eram os seus sócios gerentes - o ora Réu e A… -, outorgou, juntamente com a Autora, em 13 de Fevereiro de 2004, contrato de compra e venda incidente sobre o imóvel melhor id. nos autos.”;

- “a matrícula da sociedade J…, Ld.ª mostra-se cancelada, sendo certo que o ora Réu cessou as suas funções enquanto gerente daquela em 30 de Novembro de 2005, facto que consta do respectivo registo sob o Av. 1 - Of. 1 da Ap. 16/20051230.”;

- “o ora Réu transmitiu a sua quota sobre a sociedade J…, Ld.ª, facto que consta do respectivo registo pela Insc. 2 - Ap. 16/20051230.”;

- “A partir de tal data (30 de Novembro de 2005) assumiu a gerência da sociedade, J...”.

B) - Do documento de fls. 93 e 94 junto pela Autora e não impugnado pelo Réu - Acta nº 13, de 30/09/2009, respeitante à deliberação “sobre a dissolução e liquidação da sociedade, de acordo com o disposto pelo artigo 141° e 145° do Código das Sociedades Comerciais” - consta, entre o mais, o seguinte:  

             “Aberta a reunião e iniciados os trabalhos, os sócios presentes consideraram necessária a dissolução da sociedade, pelo que deliberaram proceder ao encerramento da actividade e promover e requerer de imediato a dissolução da sociedade, responsabilizando-se o sócio A… pela sua liquidação, tendo as respectivas contas sido aprovadas em 30 de Setembro de dois mil e nove, todo o activo da sociedade sido esgotado no pagamento do passivo, não havendo assim qualquer activo ou passivo a liquidar, dando-a assim como liquidada.

O sócio A…, responsabilizando-se pelas dívidas da sociedade, nomeadamente fiscais, ainda não exigíveis à data, atribuindo-se-lhe também poderes para receber créditos fiscais da sociedade, pagáveis em data posterior.”.

V - De harmonia com o que estabelece o nº 1 do artº 30º do NCPC, o réu é parte legítima “quando tem interesse direto em contradizer”, adiantando o nº 2 do mesmo artigo que o interesse em contradizer se exprime “pelo prejuízo que dessa procedência advenha”. Por seu turno, no nº 3 deste artº 30 consigna-se que “na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.”.

Na decisão ora objecto de apreciação, entendeu-se, essencialmente, o que se consignou nos trechos da mesma que ora se transcrevem:

«... a Autora demanda o Réu na qualidade de ex-sócio gerente de uma sociedade que, presentemente, se mostra liquidada e dissolvida.

A causa de pedir teria que, necessariamente, contemplar a factualidade de cuja análise se retirariam os fundamentos dos pedidos formulados, sendo que ter-se-ia que constatar se os mesmos diriam, numa primeira análise, respeito à sociedade e não propriamente a uma qualquer actuação do Réu a título pessoal. Com efeito, o mesmo é demandado na qualidade de ex-sócio gerente pelo que apenas poderá ser demandado por factos que se reportem à actuação da sociedade enquanto tal - daí que a sua posição processual, tal como configurada pela Autora, surja enquanto representação da sociedade e não a título pessoal.

Em causa não estão, pois, comportamentos adoptados pelo Réu a título pessoal, porquanto tal acarretaria a sua responsabilidade tout court e não na sua qualidade de ex-sócio gerente, ou pelo menos, não exclusivamente.

 (...) saliente-se que o Código das Sociedades Comerciais prevê, em caso de dissolução e liquidação da sociedade, que haja ainda possibilidade de demandar os antigos sócios pelo passivo social não satisfeito ou acautelado aquando da liquidação da mesma (vide, designadamente, o disposto no artigo 163.º do id. diploma legal).

Porém, sublinhe-se o disposto no n.º 1 do artigo 163.º do Código das Sociedades Comerciais nos termos do qual encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado até ao montante que receberam na partilha, sem prejuízo do disposto quanto a sócios de responsabilidade ilimitada.

Tal preceito legal é essencial para delimitar o conceito de legitimidade processual - e, designadamente, para aferir da legitimidade do Réu para ser demandado e estar em juízo - muito embora comporte ainda uma dimensão substantiva que não pode ser ignorada.

Com efeito, do citado preceito legal resulta que ainda que a sociedade tenha sido liquidada e dissolvida, no caso de se apurar a responsabilidade pelo passivo superveniente, terão que ser demandados, em sua representação, os seus antigos sócios.

Contudo, cumpre apurar qual a abrangência do conceito de antigos sócios - e a interpretação do próprio preceito legal, em concatenação com o disposto nos artigos 156.º e 159.º, ambos do Código das Sociedades Comerciais.

Anote-se que, da leitura dos aludidos preceitos legais resulta que em caso de liquidação da sociedade, os bens que compõem o seu activo, após satisfação dos encargos e obrigações daquela, serão partilhados entre os seus sócios, sendo que tal partilha terá que ter em atenção as entradas de cada um (vide o citado artigo 156.º do Código das Sociedades Comerciais).

Significa o exposto que se a responsabilidade dos sócios perante terceiros, em representação da sociedade liquidada e dissolvida, se afere e tem como limite tudo quanto receberam na sua partilha (sem prejuízo de situações existirem em que a partilha não se concretiza por inexistência de bens no activo da sociedade), então forçoso se torna concluir que apenas poderão ser demandados aqueles sócios que ainda o eram à data da partilha e dissolução da sociedade.

No caso dos autos, de facto, o Réu foi sócio e gerente da sociedade e, nessa qualidade, outorgou o contrato de compra e venda em causa nos autos.

Todavia, não só cedeu a sua quota na sociedade, como renunciou à gerência da mesma - tudo alguns anos antes da sua dissolução e liquidação.

Por outra banda, não se apura que o Réu tenha assinado uma qualquer declaração a assumir pessoalmente a responsabilidade por qualquer dos factos que constituem a causa de pedir nos presentes autos - situação em que teria que ter sido demandado a título pessoal e não em representação da sociedade dissolvida.

Entender de forma diversa a abrangência do citado artigo 163.º do Código das Sociedades Comerciais imprimiria uma dose de incerteza no trato jurídico - nomeadamente em sede societária - em que os antigos sócios de uma sociedade posteriormente liquidada e dissolvida poderiam, a qualquer momento, ser demandados por factos ocorridos na vida societária, pela simples razão de, em determinado lapso temporal, terem sido sócios e/ou assumido cargos societários.

Retornando ao caso dos autos, sem prejuízo de o Réu ter sido sócio gerente a data da outorga da escritura de compra e venda do imóvel id. nos autos, tal não acarreta, sem mais, a sua responsabilização pelos prejuízos invocados pela Autora - desde logo, por carecer de legitimidade para o efeito.

Efectivamente, tendo o mesmo cedido as suas quotas e renunciado à gerência da sociedade, em data prévia à liquidação e dissolução da mesma, apenas poderiam ser demandados aqueles que, à data (da liquidação e dissolução), eram ainda os seus sócios e/ou gerentes.

Destarte, pelos expostos fundamentos de facto e de Direito, forçoso se torna concluir pela ilegitimidade do Réu - na medida em que os factos, tal como configurados na causa de pedir, se reportam à actuação da sociedade J…, Ldª, como também à luz do expressamente plasmado nos citados artigos 156.º e 159.º, ambos do Código das Sociedades Comerciais.».

Vejamos.

Sustenta a Apelante, como já o havia feito na resposta às excepções invocadas na contestação, que a presente acção “tem por base uma transação alcançada no Processo … que correu termos no 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Castelo Branco, cuja cópia da audiência de julgamento já foi junta na Petição Inicial...”.

Sucede que, em nosso entender, nos termos em que a Autora apresentou o litígio e a sua pretensão, essa transacção - que apenas para efeitos de raciocínio se vai ponderar, pois que, nem ela, nem nada que respeita aos referidos autos nºs …, se encontra devidamente certificado - tendo sido efectuada num processo em que também era autora, sendo Réus J… e M…, não foi aqui erigida como fundamento dos pedidos formulados na petição inicial.

Sinteticamente, dir-se-á, que a Autora, sendo proprietária de imóvel que comprou em 13/02/2004 à sociedade comercial por quotas “J…, Lda.” e a que corresponde o lote nº 30, veio litigar no referido processo nº … com os proprietários do lote n.º 28 do mesmo loteamento, por divergências com os mesmos quanto às extremas desses lotes, terminando essa acção com a referida transacção (depois homologada), de 24/10/2013, de onde ficou a constar:

“1° Autora e réus desistem dos pedidos constantes da p.i. e da reconvenção, sem prejuízo de a autora poder vir a propor uma acção contra todos os proprietários dos lotes 14 a 43 do loteamento de que faz parte o seu lote, bem como contra outras entidades, nomeadamente o loteador, o vendedor do lote e outras, com vista à reivindicação da área do seu lote constante da escritura de compra e venda.

2º Os réus pagarão à autora o montante de €250,00 a efectuar por transferência bancária para o NIB que a autora fornecerá à mandatária dos réus, transferência essa a realizar no prazo de 8 dias a contar da data da indicação do NIB.

3º As custas e suportar em partes iguais.”.

E foi nesse mesmo processo, segundo o alega a Autora, que veio a saber, por peritagem aí efectuada, que a área do seu prédio é de 355,99 m2, em lugar dos 386,36 m2 que foram considerados na escritura de compra e venda outorgada entre ela e a referida sociedade vendedora.

Ora, já se vê que os pedidos aqui formulados pela Autora prendem-se com a responsabilidade que a mesma imputa à sociedade vendedora do prédio em questão pela diferença entre as apontadas áreas do mesmo, pela existência, nele, de uma construção (telheiro) erigida pela referida sociedade, sem respeito pelo licenciado e que deu azo a que a ela, Autora, fosse instaurado um procedimento de contra-ordenação, bem assim com os danos (patrimoniais e não patrimoniais) de valor estimado superior a € 5.000,00, que alega respeitarem a prejuízos que o “Réu causou e continua a causar” (sic) a ela, ora Autora, pedidos estes, que, no entanto, claramente não emergem da aludida transacção.

Por outro lado, adianta-se já, também não é a mencionada transacção hábil, “per se”, a conferir ao aludido A…, legitimidade para ser demandado na presente acção.

A legitimidade do Réu, arrimou-a a Autora, no articulado inicial, não em qualquer transacção efectuada noutro processo, mas antes na circunstância daquele ser “... agora o único ex-sócio-gerente vivo da referida sociedade comercial J…, Lda, sócio-gerente ao tempo da compra da Autora, sendo que, como já referido, a sociedade comercial se encontra com a matrícula cancelada, por dissolução (inscrição 6 - AP. 27/20091030)”.

Aliás, não fora a anacrónica imputação ao réu, na petição inicial, dos prejuízos que alicerçam o pedido de indemnização, por circunstancialismos que aí se afirmam como tendo sido originados pela sociedade extinta, estaria esse articulado da Autora em total sintonia com o que veio alegar na resposta às excepções, ao afirmar, revelando desse modo, inequivocamente, a razão de ser da demanda do Réu:

 “...a acção cível é colocada contra o, aqui, Réu, o único ex-sócio gerente vivo, do vendedor do lote de terrenos, na qualidade de ex-sócio gerente da “J…, Lda”, empresa, entretanto, extinta.” (artº 2º);

 “...uma vez que todos os sócios e liquidatários já faleceram, o Réu é, assim, demandado de acordo com o n.º 5 do artigo 163.º do CSC...” (artº 4º).

Esclarece-se no Acórdão da Relação do Porto de 28/04/2009 (Apelação nº 1886/06.0YYPRT-D.P1)[4]: “I- Os arts. 162.° e 163.° do Código das Sociedades Comerciais, distinguem e regulam dois modos diferentes de fazer intervir os sócios em acção instaurada por dívida da sociedade extinta, consoante a acção esteja pendente à data da extinção da sociedade ou seja instaurada após a extinção da sociedade.

II- Tratando-se de acção pendente à data da extinção da sociedade, a substituição da sociedade pelo conjunto dos sócios, representados pelos liquidatários, é imediata e feita no próprio processo, sem necessidade de qualquer justificação e sem necessidade de recorrer ao incidente de habilitação art. 162.° do CSC).

III- Tratando-se de acção a instaurar após a extinção da sociedade por dívida não paga nem acautelada no acto da liquidação, terá que ser proposta contra a generalidade dos sócios, também representados pelos liquidatários, e considerando que cada sócio apenas responde até ao montante que recebeu na partilha (art. 163.°, n.° 1, do CSC), o demandante terá que justificar, na petição inicial, que, aquando do encerramento da liquidação, a extinta sociedade possuía bens e/ou valores e que esses bens e/ou valores foram distribuídos pelos sócios demandados.”.

Como escreveu Sara Cristina Trindade Augusto[5] “O legislador consagrou nos arts. 141.º a 143.º as causas pelas quais se dissolvem as sociedades comerciais que são de dois tipos: causas de dissolução imediata que determinam a dissolução automática da sociedade e estão previstas no art. 141.º ou no contrato de sociedade e causas de dissolução diferida que podem ser de natureza administrativa (art. 142.º, n.º 1 e art. 4.º, al. a) a d) do RJPADL) ou de natureza oficiosa (art.143.º e art. 5.º do RJPADL) contudo estas causas, ao contrário das causas de dissolução imediata, não produzem a dissolução automática da sociedade, mas antes a possibilidade da sociedade se dissolver por deliberação dos sócios ou através de procedimento administrativo (art. 1.º a 15.º do RJPADL).”.

Sendo usual, que, deliberada a dissolução da sociedade, se siga a fase de liquidação, com nomeação de liquidatários, e, finda esta fase, a partilha do activo sobrante, pode suceder que, não tendo, a sociedade, dívidas à data da respectiva dissolução, os sócios deliberem proceder de imediato à partilha dos bens sociais (cfr. 147º do Código das Sociedades Comerciais[6]).

E a partilha do activo sobrante, ou restante, rege-se pelo que se dipõe no artº 156º do CSC, que preceitua, entre o mais:

1 - O activo restante, depois de satisfeitos ou acautelados, nos termos do artigo 154.º, os direitos dos credores da sociedade, pode ser partilhado em espécie, se assim estiver previsto no contrato ou se os sócios unanimemente o deliberarem.

2 - O activo restante é destinado em primeiro lugar ao reembolso do montante das entradas efectivamente realizadas; esse montante é a fracção de capital correspondente a cada sócio, sem prejuízo do que dispuser o contrato para o caso de os bens com que o sócio realizou a entrada terem valor superior àquela fracção nominal.

(...)”.

Sobre o que se estabelece neste preceito, diz Sara Cristina Trindade Augusto[7] “Só tem direito ao reembolso do activo restante quem for sócio na data da partilha ou o titular do direito, se tiver sido alienado o direito ao saldo de liquidação”[8].

Por outro lado, dispõe, na parte que ora releva, o artº 163º do CSC - que é o preceito que nos interessa directamente no presente caso, pois que a situação não é a de uma acção pendente à data da dissolução: “1 - Encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam na partilha, sem prejuízo do disposto quanto a sócios de responsabilidade ilimitada.

2 - As acções necessárias para os fins referidos no número anterior podem ser propostas contra a generalidade dos sócios, na pessoa dos liquidatários, que são considerados representantes legais daqueles para este efeito, incluindo a citação; qualquer dos sócios pode intervir como assistente; sem prejuízo das excepções previstas no artigo 341.º do Código de Processo Civil, a sentença proferida relativamente à generalidade dos sócios constitui caso julgado em relação a cada um deles.

3 - O antigo sócio que satisfizer alguma dívida, por força do disposto no n.º 1, tem direito de regresso contra os outros, de maneira a ser respeitada a proporção de cada um nos lucros e nas perdas.

4 - Os liquidatários darão conhecimento da acção a todos os antigos sócios, pela forma mais rápida que lhes for possível, e podem exigir destes adequada provisão para encargos judiciais.

5 - Os liquidatários não podem escusar-se a funções atribuídas neste artigo, sendo essas funções exercidas, quando tenham falecido, pelos últimos gerentes ou administradores ou, no caso de falecimento destes, pelos sócios, por ordem decrescente da sua participação no capital da sociedade.”.

A este propósito diz Sara Cristina Trindade Augusto[9]: «...o legislador consagrou a responsabilidade dos sócios pelo passivo não satisfeito ou acautelado (art. 163.º). Os sócios sucedem na titularidade da relação jurídica, embora como veremos adiante, de âmbito limitado.

Os liquidatários são representantes legais dos sócios nas acções de responsabilidade pelo passivo superveniente e não podem renunciar às suas funções (arts. 163.º, n.º 2 e n.º 5). Contudo, em caso de morte ou incapacidade seguir-se-á a ordem estabelecida no n.º 5 para se apurar os representantes da sociedade.

Os antigos sócios são responsáveis pelo passivo da sociedade mas o art. 163.º, n.º 1 estabelece como limite o montante que receberam na partilha, salvo o disposto quanto aos sócios de responsabilidade ilimitada. Estes sócios além de responderem pelo valor das suas entradas, responde pelas obrigações sociais (cfr. art. 175.º) portanto estes sócios podem ser responsabilizados para além do que receberam na partilha.

A lei estabeleceu como limite da responsabilidade dos sócios o montante que cada um recebeu na partilha. Ainda que a lei tenha protegido os credores por estabelecer a responsabilidade dos sócios pelo passivo social, ao impor como limite o montante que os sócios receberam na partilha, verifica-se que, se dívida dos credores for superior ao valor que os sócios receberam na partilha, parte dela ficará por satisfazer.

(...)

”O credor pode demandar apenas um ou alguns dos sócios (art. 163.º, n.º 1) ou, de acordo com o n.º 2, podem as acções ser propostas contra a generalidade dos sócios, representados pelo liquidatário 107. Os liquidatários devem dar conhecimento da acção aos antigos sócios (art. 163.º, n.º 4). Se os liquidatários actuam como representantes da generalidade dos sócios, considera-se que, para estes efeitos esta generalidade é dotada de personalidade judiciária, podendo, de acordo com o art. 5.º do CPCiv. ser parte em acções 108. Confere-se a personalidade judiciária da generalidade dos sócios, na medida em que, qualquer sócio pode intervir constituindo-se assistente atendendo o seu interesse jurídico (art. 163.º, n.º2 e art. 335.º CPCiv.).”».

Ora, se é certo que, como diz Sara Trindade Augusto “Só tem direito ao reembolso do activo restante quem for sócio na data da partilha ou o titular do direito, se tiver sido alienado o direito ao saldo de liquidação”, e se de acordo com o que estabelece o artº 163º, nas acções que, encerrada a liquidação e extinta a sociedade, foram interpostas para cobrança do passivo social não satisfeito ou acautelado, os antigos sócios respondem apenas até ao montante que receberam na partilha, afigura-se que só quem, à data da partilha, tenha a qualidade de sócio, pode responder nos termos do preceito em análise.

Significa isto que “antigo sócio”, para efeitos do disposto no artº 163º do CSC, não é todo aquele que tenha tido essa qualidade ao longo da vida da sociedade, mas apenas quem a possua na ocasião da partilha, sendo que, mesmo neste caso, em princípio, só responderá pelo passivo superveniente se houver recebido aquando da partilha e, nesse caso, ainda, apenas até ao montante que recebeu.

A jurisprudência, maioritariamente, bem como alguma doutrina, tem entendido que compete ao demandante, nas acções a que se reporta o artº 163º do CSC, a alegação e prova (artº 342.º, n.º 1 do Código Civil) de que, “aquando do encerramento da liquidação, a extinta sociedade possuía bens e/ou valores e que esses bens e/ou valores foram distribuídos pelos sócios demandados”[10].

Em face do incumprimento desse ónus, vê-se bem que a acção estaria votada a destino pior do que a mera absolvição da instância do Réu.

Contudo, alheando-nos do plano substantivo, até porque sempre a proibição da “reformatio in pejus” (artº 635, nº 5, do NCPC) nos impediria de ir para lá da decretada absolvição da instância, tem de se atentar que, no caso, ocorrendo em 2009 a dissolução, liquidação e cancelamento da matrícula da sociedade “J…, Lda.”, o Réu deixou de ser sócio (e gerente) desta em 2005, pelo que importa concluir que, não se encontrando na categoria das pessoas que, nos termos do referido artº 163º invocado pela Autora, devem ser demandadas pelo credor da sociedade extinta, não cabe, ao Réu, mesmo nos termos em que a Autora configura a relação jurídica controvertida, a titularidade passiva dessa relação, carecendo de interesse em contradizer e, assim, de legitimidade para ser demandado.

Diz a Apelante: “Foi o mesmo tribunal, que já sabia da extinção da empresa vendedora do prédio urbano, que lhe criou a expectativa de alcançar justiça, não naquele processo mas noutro a intentar por esta, e que lhe impede agora de tentar alcançá-la, o que constitui uma derrogação do princípio da proteção da confiança legitima, princípio com consagração constitucional. (...)”.

Para não dizer muito mais quanto a esta alegação da Apelante, que tem a ver com uma transacção ocorrida noutro processo, ficamo-nos por repudiar a existência, no caso dos presentes autos, de denegação de justiça ou de derrogação do princípio da proteção da confiança legítima, recordando que são as partes, com o aconselhamento seus Advogados que decidem fazer ou não as transacções sobre as matérias que estão em litígio judicial, bem como os respectivos termos, quedando-se a responsabilidade do juiz na decisão de homologar ou não tais transacções, conforme entenda que se verificam, ou não, os pressupostos legais exigidos para esse efeito. Em acréscimo não se deixará de fazer notar que, conforme resulta do que acima dissemos, haverá casos em que, mesmo que demandados devidamente os “antigos sócios”, o credor nada receberá, em virtude de aqueles também nada terem recebido na partilha.

Por último, não poderemos desprezar, salvo o devido respeito, a contribuição que a própria autora deu para que se verificasse a situação em que agora se encontra, pois que, em lugar de se certificar, na devida altura, da exactidão da área do imóvel em causa e da legalidade das construções nele existentes, para assim poder responsabilizar ainda a própria sociedade, ou o sócio A… - que, conforme a Acta nº 13, ficou responsável pela liquidação da sociedade e assumiu a responsabilidade das dívidas desta, ainda não exigíveis à data da dissolução -, veio intentar a presente acção passados quase dez anos sobre a data da compra do imóvel à sociedade e cerca de nove anos após a dissolução da mesma.

Não vislumbramos, pois, que tenha havido, por parte do tribunal “a quo” violação, na aplicação que fez das normas infraconstitucionais, de qualquer norma ou princípio constitucional.

VI - Em face de tudo o exposto, Acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em, na improcedência da apelação, manter a decisão recorrida.

Custas a cargo da Apelante, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

Coimbra, 05/05/2015


        (Luiz José Falcão de Magalhães - Relator)

          (Sílvia Maria Pereira Pires)

              (Henrique Ataíde Rosa Antunes)



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[1] Que litiga com o benefício do apoio judiciário.
[2] Aprovado pela Lei n.º 41/2013 de 26 de Junho.
[3] Consultáveis na Internet, em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase, endereço este através do qual poderão ser acedidos todos os Acórdãos do STJ que abaixo se assinalarem sem referência de publicação.
[4] Consultável através do endereço “http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf?OpenDatabase”, tal como todos os Acórdãos dessa Relação que adiante vierem a ser citados sem referência de publicação.
[5] “A Liquidação Societária – Aspectos Teóricos e Práticos” (Dissertação de Mestrado em Direito das Empresas e dos Negócios), Universidade Católica Portuguesa - Centro Regional do Porto – Porto - 2012, pág. 8, consultável também na Internet, em http://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/12067/1/A%20Liquida%C3%A7%C3%A3o%20Societ%C3%A1ria%20-%20Aspectos%20Te%C3%B3ricos%20e%20Pr%C3%A1ticos.pdf.
[6] Doravante CSC.
[7] Obra citada, pág. 31.
[8] O sublinhado é nosso.
[9] Obra citada, págs. 39 e 40.
[10] Citado Acórdão da Relação do Porto, de 28/04/2009; Acórdão do STJ, de 07 de Maio de 2009 (Revista nº 08S3257);Acórdão desta Relação de Coimbra, de 22/03/2011 (Apelação nº 1447/08.0TBVIS-B.C1), consultável, tal como os restantes dessa Relação que vierem a ser citados sem referência de publicação, em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf?OpenDatabase; Acórdão da Relação do Porto, de 2012/09/10 (Apelação nº 2001/05.3TVPRT.P1);Paulo Olavo Cunha, “Direito das Sociedades Comerciais”, 5.ª edição, Almedina, Coimbra, 2012, pág. 950; Contra, Sara Cristina Trindade Augusto, obra citada, pág.41.