Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
173/14.5GBCLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: RECURSO
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
ACUSAÇÃO
COMUNICAÇÃO AO ARGUIDO
Data do Acordão: 02/16/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DAS CALDAS DA RAINHA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 358.º, 359.º E 424.º, DO CPP; ART. 69.º DO CP; ART. 11.º DO CE
Sumário: I - Se da discussão da causa resultarem factos relevantes para a sua decisão, designadamente para a questão da culpabilidade, os mesmos devem ser comunicados ao arguido, para seguidamente poderem ser integrados na sentença.

II - Quer na situação de alteração não substancial dos factos, quer na de alteração substancial dos factos, o arguido tem o “direito a ser ouvido”, no sentido de lhe dever ser dada oportunidade efetiva de discutir e tomar posição sobre decisões relativas a essas questões, particularmente as tomadas contra ele.

III - Se da alteração não substancial dos factos não resulta de iniciativa do tribunal de recurso, mas da posição de outros sujeitos processuais no recurso, designadamente do Ministério Público, já a necessidade dessa notificação não tem lugar.

IV - O dever de comunicação no tribunal de recurso, previsto no n.º 3 do art.424.º do CPP, não se verifica quando a alteração resulta da posição do Ministério Público expressa nas conclusões do recurso por si interposto, pois sendo o recurso notificado ao arguido para lhe responder, a alteração é já dele conhecida.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

     Relatório

Pela Comarca de Leiria – Instância Local de Caldas da Rainha, Secção Criminal – J1, sob acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento, em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, o arguido

A... , motorista, filho de (...) e de (...) , natural de (...) , Caldas da Rainha, nascido a 13.01.1965, residente na (...) Salir de Matos,

imputando-se-lhe a prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punível pelos artigos 137.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, por referência aos artigos 11º, 12º, 46º, 47º, nº 1, al. d) e 56º, nº 3, al. c) do Código da Estrada.

Realizada a audiência de julgamento – no decurso da qual foi comunicada uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 358º, nº 1 do Código de Processo Penal – o Tribunal Singular, por sentença proferida a 4 de julho de 2016, decidiu julgar a acusação parcialmente procedente e, em consequência:

a) Condenar o arguido A... , pela prática, como autor material de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art.137.º, n.º 1 do Código Penal, por referência aos artigos 11º, 12º, 46º, 47º, nº 1, al. d) e 56º, nº 3, al. c) do Código da Estrada, na pena de 9 (nove) meses de prisão;

b) Suspender a sua execução pelo período de um ano; e

c) Absolver o arguido da pena acessória de inibição de conduzir, nos termos do art.69.º, n.º 1, al. b), do Código Penal.

Inconformado com a douta sentença dela interpôs recurso o Ministério Público, concluindo a sua motivação do modo seguinte:

A) Consideramos que devem ser aditados à matéria de facto provada os seguintes factos:

- O arguido estacionou o veículo, por si conduzido, na faixa contrária ao seu sentido de marcha, ou seja, em “contra-mão”

- o arguido realizou a manobra de marcha atrás na faixa contrária ao seu sentido de marcha, ou seja, em “contra mão”.

B) Tais factos resultam claros dos depoimentos das seguintes testemunhas:

- B... , ao minuto 3:20

   C... , ao minuto 3:18

   D... , ao minuto 1:33 a 2:20

C) Assim, e porquanto a condução em faixa contrária à do sentido de marcha é susceptível de fazer o condutor [incorrer] na prática da contra-ordenação prevista no artigo do 11° do Código da Estrada, entendo que tal facto assume relevância, não necessariamente para a dinâmica do acidente, mas para apreciação da conduta do arguido, da forma como este (des)respeita as regras estradais; podendo ter especial importância no doseamento ao caso concreto, da pena de inibição de conduzir veículos como motor.

D) A parte da sentença que absolveu o arguido da pena de inibição de conduzir veículos a motor aplicou lei que não está actualmente em vigor, pelo que é manifestamente ilegal.

E) Foi aplicada a redacção anterior do artigo 69° do C.P., introduzida pela Lei 77 /2001 de 13/07.

Os factos em causa, imputados ao arguido, ocorreram em 16.05.2014, pelo que será versão actual do artigo 69° do C.P. que deverá ser aplicada ao caso concreto.

F) De acordo com esta redacção, a pena de inibição de veículos a motor deve ser automaticamente aplicada quando o arguido seja condenado pela prática do crime de Homicídio praticado no exercício da condução.

G) Assim, sendo claramente, este o caso dos autos, deverá o arguido ser condenado, também, na pena prevista pelo artigo 69° do C.P., declarando-se nula a sentença ora recorrida, nesta parte.

H) Decidindo-se pela aplicação da pena de inibição de conduzir veículos a motor, entendemos que esta deverá ser graduada nos termos gerais, previstos pelo 40° e 71° do CP e, considerando-se:

- o elevado grau de culpa do arguido;

- a gravidade das consequências do seu acto;

- o total desrespeito pelas normas estradais;

- a elevada prevenção geral que os crimes rodoviários impõem, atenta a elevada taxa de sinistralidade rodoviária;

I) Pelo exposto, devem ser aditados à matéria de facto provada os factos referidos e declarada parcialmente nula a sentença recorrida, na parte em que absolveu o arguido da pena de inibição de conduzir, sendo esta parte substituída pela sua condenação na pena referida, por período não inferior a um ano.

   O arguido A... não respondeu ao recurso.

   O Ex.mo Procurador-geral adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que deve ser dado provimento ao recurso do Ministério Público, alterando-se a matéria de facto conforme alegado e ordenar que o arguido seja condenado na pena acessória de proibição de conduzir nos termos do art.69.º, n.º1, al. a), do Código Penal.

Dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do C.P.P., não houve resposta.

   Colhidos os vistos, cumpre decidir.

     Fundamentação

   A matéria de facto apurada e respetiva motivação constantes da sentença recorrida é a seguinte:

   Factos provados

1. No dia 16 de Abril de 2014, pelas 10:30, na Rua S. Sebastião, na Fanadia, o arguido fez manobra de marcha atrás com o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula CS... , afecto ao transporte de botijas de gás.

2. Durante essa manobra o arguido atropelou o peão E... , de 98 anos de idade, o qual atravessava a via por trás do veículo.

3. Esse atropelamento provocou no peão as seguintes lesões toraco-abdominais: infiltração hemorrágica bilateral da grelha costal, fractura ao nível do 3º arco costal, múltiplas fracturas de todos os arcos costais à direita, fracturas dos 3º, 4º e 5º arcos costais nos segmentos anteriores e posteriores, infiltrações hemorrágicas na região suprapíbica, fractura cominutiva pélvica (asas dos ilíacos, ísquios e pubes), bacia instável com cislhamento multidireccional com lesão dos ligamentos sacroilíacos e abertura da síntese púbica com extensa hemorragia associada, tendo aquele morrido no local.

4. O veículo conduzido pelo arguido transportava à retaguarda várias botijas de gás, acondicionadas de modo que retirava visibilidade ao espelho retrovisor interior.

5. O recurso aos espelhos retrovisores exteriores era insuficiente para o arguido ver o que se passava à retaguarda do veículo.

6. O arguido estava acompanhado por um colega, a quem não pediu para ajudar na realização da manobra.

7. Momentos antes do sucedido o arguido viu o peão a caminhar no passeio e apercebeu-se de crianças a brincar num jardim nas imediações do local onde se encontrava.

8. Era habitual o arguido realizar a manobra naquele local, sempre que se deslocava à Fanadia para distribuir gás.

9. O arguido sabia que por estar dentro de uma localidade, conduzir um veículo com carga perigosa e não ter visibilidade para a retaguarda do veículo deveria adoptar maior cuidado na manobra que realizava, se necessário pedindo ajuda ao seu colega.

10. Sabia ainda que nas imediações se encontravam crianças e também o próprio peão, o que aumentava ainda mais os riscos da sua manobra.

11. Ainda assim o arguido persistiu em fazer marcha atrás sem saber se o podia fazer em segurança, confiando que por ser habitual realizá-la naquele local e do mesmo modo se sairia bem uma vez mais.

12. Ao assim agir omitiu os deveres de cuidado básicos que se lhe impunham, estavam ao seu alcance e teriam sido suficientes para evitar o sucedido.

Mais se provou

13. Antes de engatar a marcha atrás, e com isso accionar o sistema de aviso de realização de tal manobra, o arguido deixou o veículo descair para a traseira cerca de 1 metro.

14. O arguido aufere um vencimento de € 700,00 mensais.

15. Reside em casa da companheira, sem encargos com a habitação para além dos decorrentes de consumos de água, electricidade e gás, no valor de cerca de € 160,00 mensais.

16. O arguido não tem filhos menores, ou outros dependentes.

17. Não tem encargos.

18. O arguido tem o 9º ano de escolaridade.

19. O arguido é tido como funcionário cumpridor e empenhado, bem como um condutor habitualmente cuidadoso e cumpridor das normas de segurança.

20. Em 07.06.2016, nada consta do CRC do arguido.           

Factos Não Provados

Inexistem.

Motivação

A convicção do tribunal foi formada com base, não apenas nos depoimentos que foram

concretamente prestados, mas também como resultado da sua conjugação lógica com os demais elementos probatórios, mormente documentais, que mereceram a confiança do tribunal, e com as regras da experiência comum e da normalidade social.

O arguido quis prestar declarações e apresentou a sua versão do acidente de uma forma franca e sincera. Afirmou que depois de descarregar as bilhas de gás que havia transportado, o seu colega que ficara no exterior do veículo fechou os taipais da viatura e entrou na mesma, que já se encontrava a trabalhar, e lhe disse que não havia ninguém por perto, iniciando então a manobra, após o que ocorreu o atropelamento, para o qual foi alertado pelos gritos das crianças e pessoas que viram o sucedido, parando, de imediato o veículo, e chamando o 112 para prestar assistência ao sinistrado.

Em rigor, não se pode dizer que as demais testemunhas ouvidas, designadamente B... , filho do falecido E... e C... , colega do arguido e tripulante do veículo por aquele conduzido, fossem testemunhas presenciais na medida em que, embora se encontrassem nas proximidades, e no local do acidente no caso da segunda testemunha referida, não viram o momento em que ocorreu o atropelamento.

Com efeito, nas declarações por si prestadas, B... referiu apenas que se encontrava a alguma distância do local onde se deu o acidente, aguardando o regresso do ofendido, o qual havia saído para fazer um pequeno passeio a pé como fazia regularmente.

Sabia que o mesmo se encontrava perto da igreja, pois que o tinha visto subir a rua  nessa direcção e caminhar pelas traseiras daquela, devendo surgir na estrada junto ao local onde se encontrava o arguido com o veículo carregado com as bilhas de gás. Confirmou também a existência de crianças e jovens uns metros mais acima, que por ali brincavam e andavam de bicicleta. Diz ter sido alertado para a ocorrência do acidente por transeuntes que começaram a gritar e que o chamaram ao local, para onde se dirigiu de imediato, onde à sua chegada já o veículo se encontrava imobilizado e o ofendido caído por terra, debaixo do mesmo, inanimado.

C... , colega do arguido, que o acompanhou no exercício da respectiva actividade tinha como função auxiliar o arguido no carregamento e descarregamento das bilhas de gás, confirmou o estado de acondicionamento das referidas bilhas no veículo, bem como as repercussões do mesmo na visibilidade, as quis confirmou estarem assim reduzidas.

Mais confirmou a versão relatada pelo arguido quanto ao facto de ter sido a testemunha a pessoa que fechou os taipais do veículo e, dando a volta pela respectiva parte traseira, entrou no mesmo, referindo que, nessa altura, ali não se encontrava ninguém.

Referiu também que, o local em causa tem uma ligeira inclinação descendente no sentido da parte traseira do veículo e que o motorista deixou descair o veículo cerca de um metro antes de engatar a marcha atrás, o que faz accionar os apitos que indicam a realização de tal manobra.

D... , militar da GNR responsável pelo relatório elaborado pelo NICAV da GNR, confirmou o teor do respectivo relatório e respectivas conclusões, confirmando as circunstâncias de tempo e lugar descritas na acusação bem como a configuração e características do local onde ocorreu o acidente.

O Tribunal atendeu ainda ao depoimento de Paulo Jorge Beco Marques, o qual sendo amigo do arguido e sua entidade empregadora há cerca de sete anos, depôs acerca das condições de segurança observadas pela respectiva empresa e pelo arguido, em particular, tendo ainda abonado a seu favor, referindo que aquele é um motorista habitualmente cuidadoso e empenhado.

Os depoimentos supra referidos foram ainda articulados com o teor dos documentos juntos aos autos, designadamente do auto de notícia de fls. a fls. 2 a 6 e da participação de acidente de fls. 9 a 14 e aditamento de fls. 28 e 29; da verificação do óbito de fls. 7 e do relatório de autópsia de fls. 166 a 170; da informação de fls. 87; dos autos de exame directo ao local de fls. 99 a 101, 102 a 108 e 118, das fotos de fls. 134 a 150 e croquis de fls. 152.

Os factos referentes às condições pessoais e económicas do arguido apuraram-se com base nas declarações do arguido, que depôs sobre tal matéria de forma credível.

Por fim, a ausência de antecedentes resultou do teor do certificado de registo criminal junto aos autos a fls. 260.                                                                                   *

                                                              *

                                          

O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação. (Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96   e de 24-3-1999   e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.

Como bem esclarecem os Cons. Simas Santos e Leal-Henriques, «Se o recorrente não retoma nas conclusões, as questões que suscitou na motivação, o tribunal superior, como vem entendendo o STJ, só conhece das questões resumidas nas conclusões, por aplicação do disposto no art. 684.º, n.º3 do CPC. [art.635.º, n.º 4 do Novo C.P.C.]» (in Código de Processo Penal anotado, 2.ª edição, Vol. II, pág. 801).  

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do Ministério Público as questões a decidir são as seguintes:

- se deve ser aditado à matéria de facto que «o arguido estacionou o veículo, por si conduzido, na faixa contrária ao seu sentido de marcha, ou seja, em “contra-mão”» e que «o arguido realizou a manobra de marcha atrás na faixa contrária ao seu sentido de marcha, ou seja, em “contra mão”.»; e 

- se o arguido deve ser condenado em pena de inibição da faculdade de conduzir, no termos do art.69.º, n.º1, alínea a), do C.P., e por período não inferior a um ano.

*

   1.ª Questão: do aditamento de factos à matéria de facto provada.

O Ministério Público sustenta que o Tribunal a quo andou bem ao comunicar ao arguido A... , durante a audiência de julgamento e face à prova aí produzida, que foi possivel apurar que «Antes de engatar a marcha atrás, e com isso acionar o sistema de aviso de realização de tal manobra, o arguido deixou o veículo descair para a traseira cerca de 1 metro.», e, ainda, que o aditamento constituiria uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, nos termos e para os efeitos do art.358.º, n.º1 do Código de Processo Penal.

Tal factualidade foi aditada, e bem, aos factos dados como provados da sentença, constituindo o seu ponto n.º 13.

Porém, o Tribunal a quo deveria ter considerado ainda que resultou evidente da prova produzida em julgamento, que «O arguido estacionou o veículo, por si conduzido, na faixa contrária ao seu sentido de marcha, ou seja, em “contra-mão” », e que « o arguido realizou a manobra de marcha atrás na faixa contrária ao seu sentido de marcha, ou seja, em “contra mão”.».

Tais factos resultam claros dos depoimentos das testemunhas B... , C... e D... , conforme passagens da gravação para que se remete.

A condução em faixa contrária à do sentido de marcha é suscetível de fazer o condutor incorrer na praticar a contraordenação prevista no art.11.º do Código da Estrada, pelo que o facto assume relevância, não necessariamente para a dinâmica do acidente, mas para apreciação da conduta do arguido, da forma como este (des)respeita as regras estradais, podendo ter especial importância no doseamento ao caso concreto, da pena de inibição de conduzir veículos como motor.

Vejamos.

Antes de entrarmos diretamente na apreciação da questão impõe-se tecer algumas muito breves considerações sobre a estrutura acusatória do nosso processo penal (art.32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa).

É pela acusação que se define o objeto do processo (thema decidendum), pelo esta deve conter, designadamente, a narração dos factos imputados ao arguido e as disposições legais aplicáveis aos mesmos factos (artigos 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) e 285.º, n.º3, do Código de Processo Penal).

De acordo com o princípio da identidade do objeto do processo, este um corolário do princípio da acusação, o objeto da acusação deve manter-se idêntico, o mesmo, desde aquela até à sentença final.

Pese embora este princípio, por razões de economia processual e no próprio interesse do arguido, a lei permite expressamente ao Juiz que este possa comunicar aos sujeitos processuais, mesmo no decurso da audiência de julgamento, quer uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia (art.358.º do C.P.P.), quer uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia (art.359.º do C.P.P.).

Nos termos do art.358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, « Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.».  

O disposto neste n.º1 «…é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.».

A alteração não substancial dos factos é aquela que, representando embora uma modificação dos factos que constam da acusação ou da pronúncia, não tem por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.

Quer na situação de não alteração substancial dos factos, quer na da alteração substancial dos factos, o arguido tem o “direito a ser ouvido”, no sentido de lhe dever ser dada oportunidade efetiva de discutir e tomar posição sobre decisões relativas a essas questões, particularmente as tomadas contra ele.

O art.374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, estabelece que na fundamentação da sentença deve constar, entre outros elementos aí descritos, « …a enumeração dos factos provados e não provados…», que fundamentam a decisão, com indicação e exame critico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.». 

Os factos provados e não provados são os que foram alegados pela acusação e pela defesa e, ainda, os que resultarem da discussão da causa e sejam relevantes para a sua decisão ( art.368.º, n.º 2 do C.P.P.).

Portanto, sejam ou não alegados pela acusação e pela defesa, se da discussão da causa resultarem factos relevantes para a sua decisão, designadamente para a questão da culpabilidade, os mesmos devem ser comunicados ao arguido, para seguidamente poderem ser integrados na sentença.

Porém, existem casos em que a questão da alteração de factos não substanciais ou da qualificação jurídica não se colocou logo na 1.ª instância, nem oficiosamente, nem a requerimento dos sujeitos processuais, mas vem a colocar-se em sede de recurso.

Sendo a alteração não substancial dos factos uma decisão oficiosa do tribunal de recurso, estatui hoje o n.º 3 do art.424.º, do Código de Processo Penal que « Sempre que se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na decisão recorrida ou da respetiva qualificação jurídica não conhecida do arguido, este é notificado para, querendo, se pronunciar no prazo de dez dias.».

Se alteração não substancial dos factos não resulta de iniciativa do tribunal de recurso, mas da posição de outros sujeitos processuais no recurso, designadamente do Ministério Público, já a necessidade dessa notificação não tem lugar.

Ou seja, o dever de comunicação no tribunal de recurso previsto no n.º3, do art.424.º do C.P.P., não se verifica quando a alteração resulta da posição do Ministério Público expressa nas conclusões do recurso por si interposto, pois sendo o recurso notificado ao arguido para lhe responder, a alteração é já é conhecida dele.

Posto isto, no caso em apreciação não é necessário dar cumprimento ao disposto no n.º3, do art.424.º do C.P.P. para se acrescentar à factualidade da acusação dada como provada os factos descritos pelo Ministério Público nas conclusões da motivação, que poderão ter resultado da prova produzida em audiência de julgamento.

É que a factualidade que o Ministério Público pretende acrescentar aos factos da acusação pública, que terá resultado da audiência de julgamento -, consta expressamente das conclusões do recurso por si interposto, pelo que tendo o arguido A... sido notificado para responder ao recurso, a alteração não substancial dos factos aí requerida é já do seu conhecimento.

Quanto ao art.11.º do Código da Estrada, já imputado ao arguido na acusação pública, o mesmo estabelece, como regras gerais, o dever do condutor se abster «…da prática de quaisquer atos que sejam suscetíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança.» ( n.º 2) e de não poder «… pôr em perigo os utilizadores vulneráveis.» ( n.º 3).

Avançando no conhecimento da questão, anotamos que o art.431.º do C.P.P., estatui que, «sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada:

  a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;

  b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do art.412.º; ou

  c) Se tiver havido renovação de prova.».

A situação mais comum de impugnação da matéria de facto é a que respeita à alínea b) do art.431.º do C.P.P. e no caso foi a invocada pelo recorrente.

Esta alínea b) do art.431.º do C.P.P., conjugada com o art.412.º, n.º3 do mesmo Código, impõe ao recorrente, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o dever de especificar:

 « a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

    b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

    c) As provas que devam ser renovadas».

O n.º 4 deste art.412.º, acrescenta que «Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art.364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação.».

O Ministério Público especifica, nas conclusões da motivação, os pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas produzidas oralmente que impõem decisão diversa da recorrida, bem como as concretas passagens em que funda a impugnação, através da indicação da sessão de julgamento em que esses depoimentos constam e localização da passagem na gravação.

O Tribunal da Relação considera, assim, que o recorrente, Ministério Público, deu cumprimento ao estabelecido no art.412.º, n.ºs 3, al. b) e 4 do C.P.P. e julga-se apto a modificar a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo, se concluir pela existência de erro de julgamento.

Num Estado de Direito Democrático o princípio fundamental em matéria de prova, é princípio da livre apreciação da prova.

Este princípio, previsto no art.127.º do Código de Processo Penal, estabelece que “Salvo quando a lei dispuser de modo diferente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”.

As normas da experiência, a que se deve atender na apreciação da prova, são «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto “sub judice”, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade[1].

Quanto à livre convicção do juiz, ela não se confunde com a apreciação arbitrária ou contrária da prova efetivamente produzida. Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, a convicção do juiz não pode deixar de ser “... uma convicção pessoal -  até porque nela desempenha um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais  -, mas em todo o caso, também ela ( deve ser) uma convicção objetivável e motivável , portanto capaz de impor-se aos outros.”[2] .

Uma vez, porém, que o princípio da livre apreciação da prova tanto vincula o tribunal de 1.ª instância como o tribunal de recurso, e que a reforma do Código de Processo Penal de 1998 deixou inequívoco que se quis assegurar um recurso efetivo da matéria de facto, o Tribunal da Relação, na reapreciação da matéria de facto a que se procede nos termos do art.412.º, n.ºs 3 e 4 do C.P.P., deve proceder a uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão tomada pelo Tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, avaliando se as provas indicadas por este não só permitem, mas impõem, decisão diversa da recorrida.

Se o Tribunal a quo, que beneficiou plenamente da imediação e da oralidade da prova, explicou racionalmente a opção tomada, e o Tribunal da Relação entender que da reapreciação da prova as provas indicadas por este não impõem decisão diversa da recorrida, nos termos do art.127.º do C.P.P., deve manter a decisão recorrida.

O Tribunal da Relação procedeu à audição da gravação dos depoimentos das testemunhas B... , C... e D... e dela resulta que, efetivamente, por as três testemunhas declararam que o veículo conduzido pelo arguido se encontrava estacionado do lado esquerdo da rua, com dois sentidos, aquando do acidente rodoviário em apreciação. 

Do auto de participação e do relatório fotográfico junto de folhas 134 a 150 dos autos, ou seja, da prova documental, resulta indubitável que o arguido A... estacionou o veículo que conduzia numa rua com dois sentidos, na faixa contrária ao seu sentido de marcha, sendo nessa situação de “contramão” que realizou a manobra de marcha atrás.

Esta matéria, por ter algum interesse para a decisão da causa, deveria constar da acusação pública e não consta.

Resultado da prova produzida em audiência de julgamento que o arguido A... estacionou o veículo na faixa contrária ao seu sentido de marcha, sendo nessa situação que realizou a manobra para sair do local, deve esta factualidade ser dada como provada.

Assim, nos termos do art.431.º, al. b) , do C.P.P., decide-se acrescentar à matéria de facto um o ponto n.º 13 -A, com a seguinte redação:

« O arguido estacionou o veículo, por si conduzido, na faixa contrária ao seu sentido de marcha, sendo nessa situação que realizou a manobra referida no ponto n.º1».

Procede, deste modo, a primeira questão.

   2.ª Questão: da pena acessória de proibição de condução.

O Ministério Público defende, seguidamente, que o arguido A... deveria ter sido condenado em pena de inibição da faculdade de conduzir, nos termos do art.69.º do Código Penal, porquanto os factos em causa, imputados ao arguido ocorreram em 16.05.2014, portanto quando já se encontrava em vigor a redação dada ao art.69.º daquele Código, pela Lei n.º 19/2013, de 21 de fevereiro.

Nesta versão do art.69.º do Código Penal, que é a atual, a pena de inibição deve ser aplicada a quem seja condenado pela prática de um crime de homicídio praticado no exercício da condução.

Sendo esta a redação da lei aplicável, é ilegal a absolvição do arguido A... da pena de inibição de conduzir veículos a motor com base na redação do art.69.º do Código Penal que resultava da Lei n.º 77/2001.

Impondo-se a condenação do arguido A... na pena de inibição de conduzir veículos a motor, esta deverá ser graduada nos termos gerais, previstos nos artigos 40.º e 71.º do Código Penal.

Considerando-se o elevado grau de culpa do arguido; a gravidade das consequências do seu ato; o total desrespeito pelas normas estradais; e a elevada prevenção geral que os crimes rodoviários impõem, atenta a elevada taxa de sinistralidade rodoviária, deve aquele ser condenado numa pena de inibição de conduzir veículos a motor por período não inferior a um ano.

Vejamos.

Todas as considerações efetuadas na sentença recorrida, que levaram à absolvição do arguido A... da pena acessória de proibição de condução de veículos com motor, partem do pressuposto da vigência do art.69.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, da redação que lhe foi dada pela Lei n.º 77/2001, de 12 de julho.[3] 

Na vigência da redação dada ao art.69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal pela Lei n.º 77/2001, de 12 de julho, seriam corretas as considerações ali feitas.

Mas com a entrada em vigor da nova redação dada à al. a), n.º1 do art.69.º do Código Penal, pela Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro, que ocorreu em 21 de março de 2013, a fundamentação de direito passou a estar errada.

O art.69.º do Código Penal, com as alterações nele introduzidas pela Lei n.º 19/2013, passou a estabelecer, no que aqui importa, o seguinte:

« 1 - É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido:

      a) Por crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário e por crimes previstos nos artigos 291.º e 292.º».

Esta sanção inibitória tem natureza de pena acessória, como resulta claramente do texto do art.69.º, do Código Penal, da sua inserção sistemática e do elemento histórico (Actas da Comissão de Revisão do Código Penal, n.ºs 5, 8, 10 e 41), traduzindo-se numa censura adicional pelo crime praticado. 

No dizer do Prof. Figueiredo Dias esta pena acessória está ligada a “um efeito de prevenção geral de intimidação, que não terá em si nada de ilegítimo porque só pode funcionar dentro do limite da culpa.”.[4]

Sendo pacífico que o arguido A... praticou, em autoria material, um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art.137.º, n.º 1 do Código Penal, por referência aos artigos 11.º, 12.º, 46.º, 47.º, n.º 1, al. d) e 56.º, n.º 3, al. c) do Código da Estrada, e que os factos tiveram lugar na vigência da atual redação da al. a), n.º1, do art.69.º do Código Penal, impõe-se aplicar ao arguido uma pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor.

Muito embora distintas nos seus pressupostos, quer a pena principal, quer a acessória, assentam num juízo de censura global pelo crime praticado e daí que para a determinação da medida concreta de uma e outra se imponha o recurso aos critérios estabelecidos no art.71.º do Código Penal.

Nos termos do art.71.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo o Tribunal a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor ou contra ele.

O facto punível não se esgota com a ação ilícita-típica, necessário se tornando sempre que a conduta seja culposa, “ isto é, que o facto possa ser pessoalmente censurado ao agente , por aquele se revelar expressão de uma atitude interna pessoal juridicamente desaprovada e pela qual ele tem por isso de responder perante as exigências do dever-ser sócio-comunitário.”[5].

A culpa negligente exprime-se uma atitude interna de descuido ou leviandade perante o Direito e as suas normas

O requisito de que sejam levadas em conta, na determinação da medida concreta da pena, as exigências de prevenção, remete-nos para a realização in casu das finalidades da pena.

De acordo com o art.40.º, n.º1, do Código Penal, a aplicação de penas (e de medidas de segurança) visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

O objetivo último das penas é a proteção, o mais eficaz possível, dos bens jurídicos fundamentais.

Esta proteção implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, servindo primordialmente para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração).

A prevenção geral radica no significado que a “gravidade do facto” assume perante a comunidade, isto é, no significado que a violação de determinados bens jurídico penais tem para a comunidade e visa satisfazer as exigências de proteção desses bens na medida do necessário para assegurar a estabilização das expectativas na validade do direito.

É a prevenção geral positiva que fornece uma moldura de prevenção dentro de cujos limites podem e devem atuar considerações de prevenção especial.

A reintegração do agente na sociedade está ligada à prevenção especial ou individual, isto é , à ideia de que a pena é um instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do agente , com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes, que reincida.

As circunstâncias gerais enunciadas exemplificativamente no n.º2 do art.71.º do Código Penal, são, no ensinamento do Prof. Figueiredo Dias, elementos relevantes para a culpa e para a prevenção e, «…por isso, devem ser consideradas uno actu para efeitos do art.72.º-1[atual art.71.º]; são numa palavra, fatores relevantes para a medida da pena por força do critério geral aplicável.».

Para o mesmo autor, esses fatores podem dividir-se em “Fatores relativos à execução do facto”, “Fatores relativos à personalidade do agente” e “Fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto”. [6]

Podemos agrupar, nas alíneas a), b), c) e e), parte final, do n.º 2 do art.71.º, do Código Penal, os fatores relativos à execução do facto; nas alíneas d) e f), os fatores relativos à personalidade do agente; e na alínea e), os fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto. 

Por respeito à eminente dignidade da pessoa a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa (art.40.º, n.º 2 do C.P.) , designadamente por razões de prevenção.

No presente caso, temos a considerar, no âmbito dos fatores relativos à execução do facto, um elevado grau de ilicitude do facto, pois o arguido D... efetuou uma manobra de marcha atrás com veículo, que estacionara na via pública em “contramão”, sem que para tal tivesse visibilidade através do espelho retrovisor interior e quando era insuficiente a visibilidade através dos espelhos retrovisores exteriores, pois estes apenas permitiam ver as laterais do veículo, não permitindo ver o que se passava na sua traseira. No momento da realização da manobra, podendo o arguido ter solicitado ao seu colega que o auxiliasse na marcha atrás, não o fez. Provou-se ainda que, antes de engatar a marcha atrás, o que faz acionar o aviso de realização de tal manobra, o arguido deixou descair o veículo cerca de um metro. Antes de iniciar aquela manobra e durante toda a sua realização, o arguido não se assegurou que a via se encontrava livre de veículos e pessoas, como as leis estradais o impunham.

Sendo previsível e evitável o resultado típico, o arguido D... realizou a manobra de marcha atrás, confiando que por ser habitual realizá-la naquele local e do mesmo modo, se sairia bem mais uma vez, não representando assim a morte do peão, E... , pessoa muito idosa, que atravessa a via por trás do veículo. 

As consequências da conduta do arguido A... foram muito gravosas, pois da violação do dever objetivo de cuidado, que resulta do não acatamento das normas do Código da Estrada já citadas, resultou a morte de uma pessoa.

No que respeita aos fatores relativos à personalidade do arguido e aos relativos à sua conduta anterior e posterior ao facto, realçamos as circunstâncias do mesmo se mostrar integrado na família e no trabalho, ser um condutor habitualmente cuidadoso e cumpridor das normas de segurança e não apresentar antecedentes criminais no seu CRC.

Beneficia de uma confissão parcial dos factos - circunstância quase irrelevante uma vez que o arguido não desconhece que face à prova recolhida nos autos a factualidade da acusação se mostrava praticamente feita.

A pena acessória de inibição de conduzir, contendendo com a vida do arguido, incluindo a familiar e a atividade laboral, é um importante meio de salvaguarda da sociedade, de prevenção geral de intimidação e de prevenção especial, tutelada pela lei.

Se as razões de prevenção especial são médias, face ao exposto, prementes são as exigências de prevenção geral, pois o crime de homicídio negligente encontra-se massificado, sendo quase praticado diariamente nas nossas estradas, com dramáticas consequências,  designadamente para os peões.

A culpa, enquanto juízo de censura dirigido ao arguido pelo facto de, nas circunstâncias concretas, não ter previsto e evitado a morte do peão, quando tinha capacidade para que tal não acontecesse, é mediana.

Sendo o limite mínimo e máximo da pena acessória aplicável ao arguido de 3 meses a 3 anos, consideramos que, à pena de 9 meses de prisão, suspensa na execução, aplicada ao arguido pela prática de um crime de homicídio por negligência, devem acrescer 14 (catorze) meses de pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, nos termos do art.69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal.

Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e revogando parcialmente a douta sentença, decide-se alterar a matéria de facto nos termos atrás citados e condenar o arguido A... , nos termos do art.69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º19/2013, de 21 de Fevereiro, na pena acessória 14 (catorze) meses de proibição de conduzir veículos com motor.

O título de condução deverá ser entregue pelo arguido A... na secretaria do tribunal ou em qualquer posto policial, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da presente decisão (art.69.º, n.º3 do Código Penal), sob a cominação de não o fazendo cometer o crime de desobediência, p. e p. pelo art.348.º, n.º1, alínea b), do Código Penal. 

Sem tributação.

                                                              *

(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.). 

                                                                 *

Coimbra, 16 de fevereiro de 2017

(Orlando Gonçalves – relator)

(Inácio Monteiro – adjunto)

[1] Cf. Prof. Cavaleiro de Ferreira , in “Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág.300.  
[2] Cf. Prof. Figueiredo Dias , “Direito Processual Penal”, 1º Vol., Coimbra Ed., 1974, páginas 203 a 205.
[3] Anotamos aqui que pese embora na acusação seja referida a apena acessória a que alude a al.a), do n.º1 do art.69.º do Código Penal, o Tribunal a quo decidiu, no dispositivo da sentença, absolver o arguido da pena acessória prevista na al.b), do mesmo preceito.

[4]  “Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime”, Notícias Editorial , § 205.  

[5]  Prof. Fig. Dias, in “Temas básicos da doutrina penal”, Coimbra Ed., pág. 230. 
[6]  “As consequências jurídicas do crime”, Aequitas – Editorial Notícias, pág. 210 e 245 e seguintes.