Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3166/19.2T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO E DE TRABALHO
CUMULAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO CÍVEL E LABORAL
DANO BIOLÓGICO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
FIXAÇÃO DA INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 03/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 483.º; 562.º E 564.º, 2, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 23.º; 47.º E 48.º, 3, C), DA LEI 98/2009, DE 4/9
ARTIGOS 3.º, A) E 9.º, 3, DA PORTARIA 377/2008, DE 26/5
Sumário: 1. - Em caso de acidente simultaneamente de viação e de trabalho, a indemnização, em tribunal do trabalho, do dano patrimonial laboral, com atribuição de pensão anual e vitalícia, não impede a indemnização, na instância cível, do dano biológico na sua autónoma dimensão extralaboral/cível.

2. - Em tal caso, não logrando a indemnização laboral ressarcir a totalidade do dano biológico – na dimensão extralaboral deste –, a reparação pela seguradora de acidentes de viação não se assume como cumulativa/sobreposta (perante a prestada no foro laboral), mas como complementar, de molde a cobrir as diversas dimensões do dano sofrido.

3. - O valor indemnizatório por dano patrimonial futuro, com referência ao denominado dano biológico, sendo indeterminado, deve ser fixado equitativamente, nos termos do disposto no art.º 566.º, n.º 3, do CCiv..

4. - Perante lesado, de 37 anos de idade à data do acidente, já indemnizado pelo dano de índole laboral (pensão anual e vitalícia), cujo défice funcional permanente da integridade físico-psíquica é de 53 pontos, sendo expectável agravamento futuro, suportando repercussão das lesões nas suas atividades desportivas e de lazer de “5/7”, quando antes era uma pessoa saudável, o dano biológico, como dano patrimonial futuro de feição extralaboral, traduz-se, para o resto da existência do lesado, na afetação do o seu viver quotidiano nas suas vertentes recreativa, sexual, social e sentimental, determinando perda de faculdades físicas/funcionais, diminuindo-lhe seriamente o uso do seu corpo e repercutindo-se na sua saúde, mas também, por outro lado, numa posição de inferioridade no confronto com as demais pessoas no mercado de trabalho – se e quando houver de o enfrentar –, é adequado, em equidade, fixar em € 100.000,00 o montante indemnizatório para ressarcir aquele dano.

5. - O quantum da indemnização por danos não patrimoniais deve ser, não irrelevante ou simbólico, mas significativo, visando propiciar compensação quanto ao dano sofrido, com fixação equilibrada e ponderada, de acordo com critérios de equidade, tendo em conta os padrões jurisprudenciais atualizados, de molde a observar o princípio da igualdade.

6. - A equidade, como justiça do caso, mostra-se apta a temperar o rigor de certos resultados de pura subsunção jurídica, na procura da justa composição do litígio, fazendo apelo a dados de razoabilidade, equilíbrio, normalidade, proporção e adequação às circunstâncias concretas.

7. - Provando-se que o lesado padeceu de um quadro de múltiplas dores físicas, suportou múltiplas cirurgias e demorados tratamentos, padecendo de graves limitações no uso do corpo, afetando-lhe seriamente o seu viver quotidiano e determinando perda definitiva de faculdades físicas relevantes, deficiências que se agravarão com a idade, sendo o quantum doloris de grau “6/7” e ficando ainda com diversas cicatrizes, com correspondente dano estético no grau “5/7”, persistindo um quadro de dores frequentes, deixando-o na impossibilidade de praticar atividades desportivas e de laser a que antes se dedicava, com consequente abatimento, tristeza, pessimismo, diminuição de afirmação pessoal, ansiedade, irritabilidade, com difíceis contactos a nível social, revolta e receio quanto ao seu futuro, por efeito de todos os males que sofreu, é adequado, em equidade, fixar em € 90.000,00 o montante indemnizatório para ressarcir tais danos não patrimoniais.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:


***

I – Relatório

AA, com os sinais dos autos,

intentou ação declarativa comum condenatória contra

A..., Companhia de Seguros, S. A.”, também com os sinais dos autos,

pedindo a condenação da R. a pagar-lhe a quantia global de € 245.000,00 – correspondente a € 170.000,00 («a título de compensação pelo dano corporal») e € 80.000,00 («pelos danos não patrimoniais, já sofridos e a sofrer no futuro»), mas com dedução de € 5.000,00 já recebidos – e juros de mora, desde a citação e até integral pagamento, à taxa máxima legalmente devida.

Alegou, para tanto, em síntese, que, em consequência de acidente de viação, de que foi responsável o condutor de veículo automóvel seguro na R., o A. sofreu diversos danos, que identifica e valoriza (os quantificados no petitório), contemplando uma incapacidade funcional permanente de 49 pontos, danos esses que importa reparar integralmente, cabendo a responsabilidade para o efeito àquela R., na vigência de contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel ao tempo do sinistro.

Citada, a R. contestou, aceitando a responsabilidade, mas invocando que o A. não alegou que levava cinto de segurança, pelo que, a provar-se que o não fazia, haverá concorrência de culpa do lesado, sendo, por outro lado, que os valores pedidos são exagerados, para além de ter ocorrido em parte indemnização no âmbito do processo de acidente de trabalho, tendo, assim, o A. optado por essa indemnização dos danos patrimoniais, pelo que a indemnização por dano biológico se encontra já a ser arbitrada pelo processo laboral.

Concluiu por dever o pedido quanto ao dano biológico improceder, devendo o de indemnização por danos morais ser julgado de acordo com a prova e a equidade.

Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, seguido de enunciação do objeto do litígio e dos temas da prova, bem como de apreciação dos requerimentos probatórios, com determinação de produção de prova pericial para avaliação do dano corporal em direito civil.

Na sequência, o A. veio requerer a ampliação do pedido, o que lhe foi admitido:

- quanto ao dano biológico, em 10,99%, passando o respetivo valor indemnizatório para € 188.683,00;

- quanto a danos não patrimoniais, para o montante de € 90.000,00;

- com condenação ainda no cumprimento do disposto no art.º 829.º-A, n.º 4, do CCiv..

A R. veio, por sua vez, requerer a intervenção acessória de BB, viúva/herdeira do condutor do veículo seguro, ... e CC, estes enquanto filhos/herdeiros daquele falecido condutor, o que também foi admitido.

Os Chamados BB e Marcelo deduziram articulado de contestação, a que aderiu o Chamado CC, articulado aquele não admitido por despacho de 13/03/2022 ([1]), cuja decisão foi confirmada por acórdão desta Relação de 28/06/2022 ([2]).

Procedeu-se à audiência final, com produção de provas, após o que foi proferida sentença (datada de 19/10/2022), conhecendo de facto e de direito e julgando a ação parcialmente procedente, assim condenando a R. a pagar ao A.:

“1- € 100.000,00 (já subtraídos os € 5.000,00 adiantados), a título de danos patrimoniais;

2- € 100.000,00, a título de danos não patrimoniais;

3- juros, à taxa legal, sobre cada uma das referidas quantias, desse a data desta decisão e até integral pagamento”;

e absolvendo «a mesma ré de tudo o mais contra ela pedido».

Da sentença, vem o A., inconformado, interpor recurso, apresentando alegação e as seguintes

Conclusões ([3]):

A) QUANTO AOS PRESSUPOSTOS DA FIXAÇÃO DA INDEMNIZAÇÃO DO DANO BIOLÓGICO:

I --- O Apelante tinha 37 anos à data do acidente e tinha e exibia a integridade físico-psíquica correspondente à sua idade, saúde e situação social;

II --- Em consequência do acidente, passou a sofrer diversas incapacidades e limitações que o acompanharão durante o resto dos seus dias, nomeadamente:

a) -- diplopia, fotofobia, hipersensibilidade no olho esquerdo e na região malar esquerda, enoftalmia, disosmia e hipotrofia do braço esquerdo;

b) -- mobilidade reduzida do punho e do cotovelo esquerdo, este com défice da extensão 45º e da flexão até 90º e arco de movimento de 40º;

c) hipostesia da face posterior do braço e do antebraço esquerdos;

d) elevação da hemibacia direita, devido a encurtamento na perna esquerda em cerca de 1,9 cm, o que lhe provoca claudicação na marcha;

e) dificuldade em mastigar os alimentos, à esquerda, por falta de sensibilidade;

f) Impossibilidade de continuar a conduzir um veículo com caixa manual, pelo que se viu obrigado a adquirir um outro com caixa automática;

g) dificuldade em sentar-se, levantar-se, permanecer de pé, de cócoras e ajoelhado, subir e descer escadas ou rampas, vestir-se, despir-se, realizar a sua higiene pessoal, de levar a mão à boca, à orelha e ao ombro e de usar talheres e de

h) locomover-se regularmente dentro do local de trabalho para vigiar a produção, o que o obriga a paragens frequentes, e em pegar em algumas peças produzidos para as submeter a análise de qualidade;

i) incapacidade de, com o braço esquerdo, levantar e transportar pesos, em geral, de pegar na filha ao colo, de enrolamento do quarto dedo da mão direita, de extensão completa da falange distal do terceiro dedo da mão esquerda;

j) incapacidade de dançar e de continuar a praticar os desportos prediletos que sempre tinha praticado (corrida, natação, andebol e futebol) e, ainda, o seu velho hobby de servir à mesa em restaurante de amigos, aos fins de semana;

l) ficou a sofrer de ansiedade, sobretudo, quando revivaliza o acidente, tristeza sem motivo aparente, irritabilidade com repercussões na vida familiar e social, insónias frequentes, pesadelos sobre o acidente, alterações mnésicas, pessimismo, revolta e receio quanto ao seu próprio futuro e, ainda,

m) de dor e desconforto durante o sexo e de muitos outros fenómenos dolorosos, que permanecem apesar das sete intervenções cirúrgicas a que se submeteu e dos inúmeros tratamentos que realizou;

n) ficou com vinte cicatrizes inestéticas (região ciliar esquerda, região infraorbitrária esquerda, pálpebra inferior do olho direito, ombro esquerdo, braço direito, braço esquerdo, antebraço esquerdo, mão direita, perna esquerda e região calcânea, de comprimentos variados e compreendidos entre 1,5 cm e 24 cm;

o) no futuro, é expectável o aparecimento de artrose no joelho esquerdo, a par da artrose da anca, que já foi diagnosticada.

III --- A essas sequelas ficaram a corresponder:

-- um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 53 pontos;

-- um dano estético de 5/7;

-- um quantum doloris de 6/7;

-- um prejuízo sexual de 1/5; e

-- uma repercussão nas atividades desportivas e de lazer de 5/7.

(anteriores números 1 a 19)

B) Confronto com casos análogos

(o juízo e equidade):

IV --- Para ter decidido, como decidiu, o Senhor Juiz a quo valeu-se de dois Acórdãos do STJ, que, todavia, atendendo à natureza, ao número e à profunda gravidade das consequências sofridas pelo Apelante, não cumprem aqui as exigências de Justiça e de Equidade.

V --- Tais exigências teriam sido bem mais satisfeitas se a situação aqui em apreço tivesse sido cotejada com a dos quatro Arestos abaixo elencados:

Acórdãos           Idade do lesado        Esperança de vida     Défice integridade        Indemnização

STJ, de 14/02/2019                             23                                   54                                   10; Quantum Doloris 4/7                      175.000

(C. J., STJ, XXVII, 1º,                                                                                                         Dano estético 4/7

244-245)

STJ, de 19/09/2019                             49                                   28                                   32; Quantum Doloris 5/7                      200.000

(C. J., STJ, XXVII, 3º, 285 )                                                                                                 Dano estético 3/7

                                                                                                                                          Repercussão lazer/desporto 3/7

STJ, de 19/05/2020                             20                                   57                                   55                                                       450.000

(C. J., STJ, XXVIII, 2º, 262)

20 57 55

Rel. Coimbra, de 20/10/2020               35                                   42                                   37                                                       270.000

(C. J., XLV, 4º, 278)

Caso sub judice                  37                          40                          53; Quantum Doloris 6/7                     100.000

                                                                                                       Dano estético 5/7

                                                                                                       Repercussão lazer/desporto 5/7

Prejuízo sexual 1/5

Por isso,

VI --- Crê-se ser manifestamente exíguo o montante arbitrado (€ 100.000) e, antes, justo e equitativo o peticionado (€188.683), que foi reclamado pelo Apelante em sede de ampliação do pedido.

VII – Não deverá esquecer-se que o seguro automóvel não é facultativo, mas obrigatório; que está sujeito a um clausulado quase todo inegociável e prefixado; e que os prémios pagos são muito elevados e permanentemente atualizados,

VIII --- O que justifica que, nos casos em que são condenadas, as Seguradoras deixem de pagar indemnizações miserabilistas, tendo-se em atenção o grau da culpa do lesante e a consabida situação patrimonial elevada delas próprias, já que só assim será conforme à Lei e à Moral, à Justiça e à Equidade.

(anteriores números 21 a 34)

C) Fixação do início do vencimento dos juros de mora:

IX --- A decisão recorrida considerou-se a si mesma como sendo uma “sentença atualizadora”, o que implicaria a aplicação da doutrina do Acórdão Uniformizador nº. 4/2002, reportando o termo inicial da contagem dos juros de mora à data da citação.

X --- Fê-lo, porém, erradamente, por duas razões:

XI --- PRIMEIRA RAZÃO: a ampliação do pedido inicialmente deduzido pelo Apelante deveu-se apenas ao superveniente conhecimento de novos valores trazidos aos autos pelo Instituto Nacional de Medicina Legal, que evidenciaram um sensível agravamento dos efeitos lesivos que lhe advieram do acidente, o que só pode ter o sentido de mera correção da causa de pedir e, consequentemente, daquele pedido inicial.

Essa ampliação do pedido indemnizatório não ficou a dever-se aos mais de três anos de pendência desta ação, não resultou da inflação entretanto surgida (e, aliás, só muito recentemente), nem visou compensar qualquer prejuízo originado pela depreciação monetária: Acórdãos do STJ, de 25/02/2002 (Col. Jur., STJ, X, 2º., págs. 128 e ss, maxime, 134-135), de 13/07/2004 (Pº. 04B2616), de 14/09/2006 (Pº. 06B2634) e de 11/05/2022 (Pº. 33/14.0T8MNC. P1. S1).

XII --- SEGUNDA RAZÃO: a sentença não procedeu a nenhum cálculo de atualização, que dela está completamente ausente, ao contrário do que seria mister que tivesse ocorrido para poder ser considerada como tal: Acórdãos atrás citados.

Limitou-se a afirmar-se como atualizadora pelo simples facto de ter sido feita aquela ampliação do pedido inicial, que, repete-se, tem uma natureza e uma causa muito diferentes.

XIII --- Os juros de mora devem ser contados desde a data da citação, por subsunção à hipótese excecional prevista no nº. 3º. no artigo 805º. do Código Civil.

XIV --- Porque foram violados os artigos 483º., nº. 1º, 496º., nºs. 1º. e 4º., 563º., 566º. 8º., nº. 3º. e 805º., nºs. 1º. e 3º do Código Civil, por um lado; e, por outro, a doutrina do AUJ nº. 4/2002, deverá, nessa parte, ser revogada a douta decisão proferida e substituída por outra, que:

a) fixe a requerida quantia de € 188.683,00 como indemnização do dano biológico/dano patrimonial futuro, sem prejuízo do montante de € 90.000,00 que foi reclamado quanto aos danos não patrimoniais (portanto, que fixe um capital indemnizatório global de 278.683,00); e

b) condene a Apelada no pagamento dos juros de mora, a liquidar à taxa anual de 4% e contados desde a data da citação.

(anteriores números 36 a 48)

Só assim se fará inteira e sã

J U S T I Ç A!”.

Contra-alegou a R., pugnando pela improcedência deste recurso.

Também a R., por sua vez, inconformada, interpôs recurso, apresentando motivação e as seguintes

Conclusões ([4]):

«1. - Com o presente recurso a Recorrente impugna a douta Sentença na parte respeitante ao ressarcimento dos danos patrimoniais e ao ressarcimento dos danos não patrimoniais.

2. O presente recurso versa sobre matéria de facto e de direito, pelo que, as presentes obedecerão ao disposto nos artigos 639º e 640º do Código de Processo Civil.

3. O objeto das presentes alegações restringe-se à não consideração de matéria alegada e provada pelas partes que careceria de ser incluída na factualidade dada como provada, à impugnação dos factos provados 36, 39, 49, 50, 55, 60 e facto não provado 16 e, ainda, à atribuição de quantia indemnizatória a título de dano patrimonial e aos valores arbitrados.

De facto:

4. O Mm. º Juiz a quo não elencou nos factos provados, matéria que, à Recorrente, se afigura relevante para a boa decisão da causa e que se mostra alegada e aceite por todos os intervenientes processuais, i.e., a TAS de que era o condutor do veículo seguro na Ré/Recorrente portador aquando do sinistro (cfr. relatório de autópsia), o que determinou, desde logo, o chamamento dos seus herdeiros aos autos, que aceitaram este facto.

5. E, ainda, a indicação dos valores pagos pela congénere Tranquilidade, provados nos autos, cfr. ofícios juntos em 01.06.2021 e 30.09.2022.

6. Factos estes que deveriam ser incluídos nos factos provados, cuja redação supra se propõe e que aqui se reproduz, por celeridade.

Acresce que,

7. Por sua vez, é entendimento da Ré/Recorrente que os factos provados 36, 39, 49, 50, 55 e 60 da P.I. deverão ser dados como não provados por absoluta ausência de prova nesse sentido.

8. Não nos é entendível porque razão o Tribunal a quo entendeu dar maior destaque, como notoriamente fez por via da Decisão recorrida, ao relatório particular junto aos autos pelo A., em detrimento do elaborado pelo INML a pedido do Tribunal.

9. À exceção da eventual necessidade de seguimento em MFR (fisioterapia) o relatório médico de INML não refere a necessidade indicada no facto provado 36, não obstante o relatório particular lhe tenha sido remetido aquando da perícia ao A..

10. Como também não a refere o Relatório Médico elaborado pelo GADAC – Avaliação de Dano Corporal – junto pelo A., e que o Mm. º Juiz parece ter ignorado, por ausência de qualquer referência aos mesmo.

11. Também, tais alegadas necessidades não resultaram provadas por qualquer outro elemento (documental ou testemunhal), pelo que, deveria tal facto sido dado como não provado, o que ora se requer.

12. O mesmo valerá, ipsis verbis, para o facto dado como provado, indicado como sendo o 39º da P.I e para o facto 55 da P.I.. Pois que,

13. O relatório médico de INML não faz alusão a qualquer prejuízo desta natureza, como não o faz o do GADAC, sendo o único a fazê-lo o relatório particular elaborado a pedido do A., o qual, não obstante, foi enviado para a perícia médica do A. e do qual tinha, portanto, o Médico do GML, conhecimento.

14. Ainda assim, não considerou qualquer prejuízo sexual do A, razão pela qual, deverão o factos indicados sob os nºs 39º e 55º serem, igualmente, dados como não provados.

15. Relativamente ao facto insisto sob o nº 49 e ao facto nº 50, importa dá-los como não provados por, segundo a fundamentação da Sentença, a prova de tais ter ocorrido por via do depoimento das testemunhas DD e da testemunha EE.

16. Porém, do depoimento daquelas, nomeadamente do transcrito supra, que ora se reproduz, não resulta qualquer prova nesse sentido, pelo que, deverão tais factos ser dados como não provados.

17. Relativamente ao facto indicado como sendo o 60. da P.I., não obstante se pudessem reconhecer algumas démarches, não existem no processo elementos probatórios suficientes para asseverar, com o rigor necessário, o aí alegado, pelo que, ante a falta de prova cabal, deverá tal facto ser dado como não provado.

18. No que concerne ao facto não provado indicado como 16. da contestação da Ré, deve o mesmo ser dado como, porquanto, resulta à saciedade e é manifesto que o A. optou por ser ressarcido na vertente laboral (acidente de trabalho), razão pela qual intentou a presente ação para ressarcimento dos danos aí não contemplados (que não se aceita, como diremos).

19. Pois que, foi sempre ponto assente nos autos de que o A. não pretenderia sustar a elevada pensão anual e vitalícia que se encontra a receber até que se mostrasse esgotado o capital a atribuir nos presentes autos, como nunca o fez.

20. Aliás, é o próprio A. que, v.g., por requerimento de 19.09.2021, o confessa!

21. Pelo que, é absolutamente cristalino que o A., ao receber (e não as sustar, ainda que posteriormente) as indemnizações da congénere seguradora de acidente de trabalho, optou por ser indemnizado a título de danos patrimoniais no âmbito daquele.

22. É, portanto, uma opção do A., que exerceu, razão pela qual deverá a matéria do facto 16. da contestação da Ré ser julgado como provado, o que ora se requer a V. Exas..

Isto posto, acresce que,

23. Foi entendimento do A., não obstante a sua opção de recebimento dos danos patrimoniais ao abrigo da apólice de acidente de trabalho - cuja congénere a Ré/Recorrente reembolsará – reclamar, por via da presente ação, a incrível quantia de 188.683,00€ a título de dano biológico (em ampliação do pedido), não obstante sem qualquer justificação do caminho percorrido até a alcançar.

24. O acidente dos autos foi simultaneamente de trabalho e de viação e, como é consabido, não podem ser cumuláveis duas indemnizações a título de danos patrimoniais.

25. O A./Recorrido recebeu, e mantém-se a receber, da Seguradora de AT, todas as prestações de índole patrimonial, nada mais tendo, a este título, a receber, nomeadamente, de “dano biológico”, pois que, na esteira, entre muitos outros, do disposto no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01.07.2010, disponível em www.dgsi.pt:

“Não podem ser cumuladas as indemnizações atribuídas ao lesado para ressarcimento do mesmo dano, decorrente de acidente de viação que simultaneamente se configura como acidente de trabalho, tendo ele necessariamente de optar pela que se lhe afigurar mais conveniente, deduzida dos montantes que eventualmente já tenha recebido de uma das seguradoras vinculadas ao pagamento.” (…)

26. Neste conspecto, releva o facto de o A./Recorrido já ter sido indemnizado, até à data de 30 de setembro de 2022, na quantia de 117.515,26€ a título de danos patrimoniais (perdas salariais e de PAV) e de se encontrar a receber uma pensão anual e vitalícia de 15.246,56€ (anualmente atualizável).

27. Esta pensão, calculando a idade do A. à indicada data de 30.09.2022 (informação da Tranquilidade dos últimos pagamentos) - 44 anos - e considerando uma esperança média de vida na ordem dos 77 anos, representará ao A. um pagamento de indemnização a título de dano patrimonial de 503.136,48€ (15.246,56€ x 33 anos), sem considerar as legais e automáticas atualizações das pensões!!

28. Somando ambas as quantias, terá o A. direito, a título de danos patrimoniais, à quantia de 620.651,76€!!

29. Pelo que, entender-se, ainda assim, indemnizar danos patrimoniais, nestes autos, sem se mostrarem sustados os pagamentos ao abrigo do acidente de trabalho, na quantia incrível de 105.000,00€, determinará, como é evidente, um enriquecimento do ora Recorrido, que não poderá colher, para além de uma clara violação do disposto, v.g., no artigo 562º do Código Civil.

Acresce ainda que,

30. A Sentença recorrida não considerou os termos do artigo 9º da Portaria nº 377/2008, de 26 de maio, quando se trate de acidentes simultaneamente de viação e de trabalho, como é o caso, “nos casos em que não haja lugar à indemnização pelos danos previstos na alínea a) do artigo 3.º, é também inacumulável a indemnização por dano biológico com a indemnização por acidente de trabalho” (nº 3) (destaque nosso), pois que, nos casos em que não haja lugar à indemnização por incapacidade permanente absoluta ou incapacidade para a profissão habitual, é inacumulável a indemnização por dano biológico com a indemnização por acidente de trabalho, cfr. artigo 3º, a) e 9º, nº 3 da mencionada Portaria.

Acresce dizer, ainda, que

31. Precisamente pelo facto de ter um “dano biológico”, i.e., uma lesão do direito ao corpo e à saúde, que se traduz em incapacidade funcional, é que foi fixado ao A. um DFP, gerador de danos patrimoniais futuros indemnizáveis, os quais se mostram a ser suportados pela congénere Seguradora de AT..

32. Ou seja, o dano biológico funcionará, digamos, que de forma autónoma na eventualidade de não gerar perda ou redução da capacidade de ganho. Apenas nesses casos.

33. Pois que, estando já a ser processada indemnização decorrente dessa perda/redução, o “dano biológico” não funcionará autónoma e independentemente.

34. Tudo, como, aliás, melhor resulta do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.12.2020, proferido no âmbito do processo nº 8040/15.9 T8GMR.G1.S1, que determinou:

“Não é autonomamente indemnizável o dano biológico do lesado que ficou afetado na sua capacidade laboral quando é indemnizado pelos danos futuros emergentes da perda de capacidade laboral”.

35. Assim, ante o exposto, é entendimento da Ré/Recorrente de que, a título de dano biológico, nenhuma quantia seria devida ao A., a qual deveria ter improcedido.

36. O Tribunal a quo, para justificar injustificável e exageradíssima quantia, refere que a prestação decorrente do acidente de trabalho (sic.) “ignora 30% da incapacidade sofrida pelo lesado; no caso do autor, e arredondando “para baixo”, subsiste 16% (?) da incapacidade para o trabalho que a legislação laboral não repara.”

37. Porém, não foi esta a causa de pedir deduzida pelo A.. Ou seja, o A./Recorrido, em momento algum, configura a presente ação com base nesta equação, i.e., de que a ação de trabalho apenas indemniza em 70%, remanescendo indemnizar os 30% correspondentes, pelo que, não poderá o Tribunal a quo fazê-lo, devendo, por tal, nesta parte, ser a Sentença revogada, fazendo improceder o pedido ilegitimamente deduzido a título de “dano biológico”, o que se requer por via do presente recurso.

38. Quando assim não se entender, o que não se concede e apenas se admite à cautela, a quantia fixada encontra-se absolutamente desajustada, exagerada e injusta, a qual olvida que já estão a ser processados danos morais por tal.

Sem prescindir:

39. Considerando a factualidade dada como provada e não provada (e suas correções por que ora se pugna), resulta que, não obstante as lesões do A., o valor atribuído é exagerado, carecendo se ser corrigido por V. Exas..

40. O A./Recorrido teve acesso atempado a todos os cuidados de saúde, não deixando de obter total acompanhamento, nomeadamente, pela Seguradora de AT, que pela Recorrente será reembolsada.

41. Fixar-se quantia indemnizatória de 100.000,00€ não é ressarcir danos desta natureza com equidade (justiça do caso concreto) nem respeitar a tendência jurisprudencial, v.g., a supra coligida que aqui se reproduz.

42. Tanto que, note-se, nem o A. teve coragem para os peticionar, pois que, a este título, reclamava a quantia de 90.000,00€, o que se mostra violador, ademais, do disposto no artigo 609º do CPC o que se invoca para os devidos efeitos legais.

43. O Tribuna a quo dever-se-ia ter pautado por critérios de equidade, procurando um justo grau de “compensação” e não atribuindo valores absolutamente discricionários e que apenas se entendem (não entendem!) por serem dirigidos a entidade seguradora.

Isto posto,

44. A Sentença proferida pelo Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 562.º e 566.º, n.º 2, ambos do Código Civil, o artigo 609º do Código de Processo Civil e os mais que V. Exas., doutamente, vierem a considerar.

TERMOS EM QUE,

Com o sempre mui Douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado e, em consequência, revogar-se a Decisão recorrida nos concretos aspetos apontados, i.e., aditando-se à factualidade provada a matéria relevante supra indicada, alegada e aceite pelas partes, mais se alterando a matéria de facto provada e não provada nos sobreditos termos.

Mais deverá revogar-se a Sentença recorrida na parte que entende ser devido ao A./Recorrido danos patrimoniais, para além dos já pagos e a processar por via do acidente de trabalho.

Deverão, ainda, V. Exas. corrigir os exageradíssimos valores indemnizatórios arbitrados, de harmonia com os princípios aduzidos, a título de dano não patrimonial e, na hipótese de improcedência do recurso no antecedente ponto, o que não se concede e apenas admite à cautela, corrigir, igualmente, a quantia indemnizatória fixada a título de danos patrimoniais,

assim se fazendo

JUSTIÇA.».

O A./Recorrido juntou contra-alegação, pugnando pela improcedência deste recurso.


***

Tais recursos foram admitidos como de apelação, a subir imediatamente e com efeito meramente devolutivo, após o que foi ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido o regime fixado.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito recursivo, cumpre apreciar e decidir.


***

II – Âmbito dos recursos

Perante o teor das conclusões formuladas pelas partes recorrentes – as quais definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([5]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.) –, importa saber, em matéria de facto e de direito:

a) Se ocorre erro de julgamento da matéria de facto, com consequentes alterações ao quadro fáctico da sentença, nos moldes pretendidos pela R./Recorrente;

b) Se devem, ou não, ser alterados (no sentido do seu incremento ou da sua diminuição, de acordo com a perspetiva e amplitude de cada um dos Recorrentes) os montantes arbitrados em sede indemnizatória, seja quanto a danos patrimoniais, seja já quanto aos danos não patrimoniais, seja mesmo quanto a juros moratórios.


***

III – Fundamentação

A) Impugnação da decisão relativa à matéria de facto

1. - Começa a R./Recorrente por se insurgir contra a decisão de facto, argumentando, desde logo, que «outros factos há que careceriam de se mostrar vertidos na factualidade provada», assim pugnando pela inclusão ali dos seguintes enunciados fácticos:

- «O condutor do veículo seguro na Ré, FF, conduzia o veículo ..-..-GQ com uma TAS de 1,08 g/l»;

- «B..., S. A., enquanto seguradora de acidente de trabalho e ao abrigo da Apólice ...29 (da ex-Tranquilidade), tem vindo a proceder ao pagamento ao A., nos termos da legislação aplicável, dos danos patrimoniais decorrentes do sinistro, já tendo pago, para além de outras avultadas quantias, até à data de 30.09.2022, a importância de 117.515,26€ a título de danos patrimoniais (perdas salariais e de PAV), mais se encontrando a pagar uma pensão anual e vitalícia (PAV) de 15.246,56€, a qual será anualmente atualizável».

Vejamos.

Quanto à aludida TAS, refere tratar-se de facto alegado pelo A., cuja prova documental juntou (relatório de autópsia), aceite pela Ré/Recorrente, o que determinou o chamamento dos seus herdeiros aos autos, que aceitaram este facto.

Daí que, resultando provado de que o condutor falecido interveniente no acidente, e deste causador, era portador de uma TAS de 1,08 g/l, deverá tal facto ser incluído nos factos provados.

O A./Apelado, em contra-alegação, apenas referiu que «não vê qualquer utilidade em que do douto Acórdão a proferir se faça constar expressamente a taxa de alcoolemia revelada pelo indicado Relatório da autópsia (fls. 174)».

Ora, é certo que o A., em sede de ampliação do pedido – formulada por requerimento datado de 01/09/2021 –, veio invocar a data TAS de 1,08 g/l, juntando certidão do respetivo relatório de autópsia (cfr. fls. 169 e segs. do processo físico).

Tal certidão consta, então, a fls. 172 a 174 do processo físico, tendo sido extraída de autos de inquérito crime, referentes ao óbito de FF, com a menção, no relatório de autópsia, de que:

- foi vítima de acidente de viação no IP 3, no dia 19/01/2016, encontrando-se já cadáver à chegada do INEM;

- as análises toxicológicas efetuadas revelaram a presença de álcool etílico, que reportada à hora da morte era de «1,08 +/- 0,14 g/l».

Assim sendo, perante a força probatória daquele documento, cujo teor não foi posto em causa, e por se tratar de factualidade com relevância para a decisão da causa, deve aditar-se ao factualismo provado, de acordo com a pretensão da Recorrente/impugnante, que:

“Das análises toxicológicas efetuadas ao cadáver de FF, mencionadas no respetivo relatório de autópsia, resultou a deteção da presença de álcool etílico, que reportada à hora da morte era de «1,08 +/- 0,14 g/l»”.

Procede, pois, nesta parte a impugnação.

Quanto à pretendida inclusão de factualidade referente aos pagamentos efetuados pela seguradora de acidentes de trabalho, por danos patrimoniais decorrentes do sinistro, tratando-se de evento caraterizado simultaneamente como acidente de viação e de trabalho, invoca a impugnante os «ofícios juntos em 01.06.2021 e 30.09.2022», isto é, a documentação de fls. 162 e segs. e 272 e seg. do processo físico.

Ora, de fls. 163 consta informação, datada de 01/06/2021, da «C..., S. A.» sobre os pagamentos efetuados ao sinistrado AA, com o seguinte teor:

- pagamentos efetuados a título de pensão anual e vitalícia – € 60.601,87 [sendo que se encontrava, então (ano de 2021), a pagar pensão anual e vitalícia no valor de € 15.095,60];

- pagamentos efetuados a título de transportes – € 60,15;

- pagamentos efetuados a título de despesas médicas – € 328,45;

- pagamentos efetuados a título de farmácia – € 84,50;

- pagamentos efetuados a título de custas de parte – € 408,00;

- pagamentos efetuados a título de juros – € 3.160,26;

- pagamentos efetuados a título de perda salarial – € 37.386,13;

- pagamentos efetuados a título de próteses – € 551,00.

E de fls. 273 consta informação, datada de 30/09/2022, da mesma «C..., S. A.» sobre os pagamentos efetuados ao aludido sinistrado, a partir de 01/06/2021, com o seguinte teor:

- pagamentos efetuados a título de pensão anual e vitalícia – € 19.527,26 [sendo que, em 2022, «se encontra a pagar pensão anual e vitalícia, no valor de 15.246,56€»];

- pagamentos efetuados a título de despesas médicas – € 353,60.

Compulsado o processo físico, retira-se que esta informação/documentação não foi posta em causa pelas partes.

Na sua contra-alegação recursiva, o A. defende ser desnecessária a adição da factualidade pretendida, tendo em conta o que já consta da factualidade provada e, bem assim que, a formulação/redação pretendida não é rigorosa, podendo inculcar a ideia de que a seguradora de acidentes de trabalho tem vindo a indemnizar todos os danos patrimoniais decorrentes do acidente.

Da factualidade provada já consta que «B..., S.A., enquanto seguradora de acidente de trabalho e ao abrigo da Apólice ...29 (da ex-Tranquilidade), tem vindo a proceder ao pagamento ao A., nos termos da legislação aplicável, dos danos patrimoniais decorrentes do sinistro.».

Ora, vista até esta formulação genérica – quanto, de forma indiferenciada, aos «danos patrimoniais decorrentes do sinistro» –, afigura-se-nos adequado proceder à especificação, no quadro de facto dado como provado, dos montantes efetivamente pagos e o título a que tal ocorreu.

Por isso, aditar-se-á um novo facto – complementar – ao quadro dos factos julgados provados, com o seguinte teor:

«A seguradora de acidentes de trabalho procedeu, concretamente, aos seguintes pagamentos ao A., até 01/06/2021:

- a título de pensão anual e vitalícia – € 60.601,87 [sendo que se encontrava, no ano de 2021, a pagar pensão anual e vitalícia no valor de € 15.095,60];

- a título de transportes – € 60,15;

- a título de despesas médicas – € 328,45;

- a título de farmácia – € 84,50;

- a título de custas de parte – € 408,00;

- a título de juros – € 3.160,26;

- pagamentos efetuados a título de perda salarial – € 37.386,13;

- pagamentos efetuados a título de próteses – € 551,00;

E procedeu aos seguintes pagamentos, após 01/06/2021:

- a título de pensão anual e vitalícia – € 19.527,26 [sendo que, em 2022, se encontra a pagar pensão anual e vitalícia, no valor de 15.246,56€];

- a título de despesas médicas – € 353,60».

Com o que procederá, nesta perspetiva, esta vertente da impugnação.

2. - A R./Recorrente considera ainda que os factos provados 36, 39, 49, 50, 55 e 60 da petição deverão ser dados como não provados, por «absoluta ausência de prova nesse sentido» (conclusão 7.ª desta Apelante).

Começando pelo dito ponto/facto 36, esgrime que foi indevidamente desvalorizado o relatório pericial do INML, dando-se maior destaque, na decisão recorrida, ao relatório particular junto pelo A., o que não devia ter ocorrido, sendo que inexistem elementos de prova documental ou testemunhal relevantes a respeito.

A contraparte defende a bondade da decisão recorrida, aduzindo que esta conjugou, de forma adequada, os diversos elementos de prova produzidos nos autos sobre esta factualidade.

É o seguinte o teor dos ditos factos impugnados começando pelo ponto 36:

«36

A médio / longo prazo, o Autor poderá vir a carecer de: — consultas anuais de ortopedia e de oftalmologia; --- medicamentos analgésicos em SOS; — programas de fisioterapia (dois períodos de 15 sessões, cada um); — renovação ocular, de dois em dois anos; --- calçado com compensação no pé esquerdo, devido ao encurtamento do membro inferior; --- correcção cirúrgica de algumas cicatrizes.

(…)

39

Ficou, ainda, a sofrer de um prejuízo sexual de “1/5”.

(…)

49

Nos últimos meses de gravidez da esposa e nos doze imediatos ao nascimento da filha do casal, ocorrido em Maio seguinte, viu-se impedido de colaborar com ela nas lides domésticas e de a acompanhar a consultas médicas, às compras do enxoval da bebé.

50

Durante mais de um ano, não pôde pegar na filha ao colo, embalá-la, dar-lhe banho, vesti-la, passeá-la, como gostaria de ter podido fazer.

(…)

55

Passou a sentir limitações na actividade sexual, principalmente por via das dores que sente quando mantém o corpo em determinadas posições idade e procriação (alínea d));

(…)

60

Despendeu muitas dezenas de horas a correr para Hospitais e consultas médicas de várias especialidades (mais de 20), a realizar exames (só radiografias foram mais de 200) e sessões de fisioterapia (num total de 283, à razão de uma/duas horas, cada uma), farmácias, Tribunal de Trabalho e Seguradora, bem como a solicitar e obter a documentação atinente.».

O Tribunal recorrido apresentou a seguinte justificação da convicção positiva:

«Os ferimentos sofridos e o processo de prestação de socorros e de tratamentos a que o autor foi submetido resulta do teor dos documentos emanados pelas instituições onde foi o mesmo recebido. As lesões sofridas, bem como as respectivas sequelas, e a(s) incapacidade(s) de que ficou o autor a padecer, são as apuradas pelo exame realizado pelo Instituto de Medicina Legal e ainda, em pormenor, ao relatório, prévio à peritagem efectuada no âmbito deste, junto ao processo e elaborado pelo médico que assistiu o autor e que depôs em audiência. Referiu o mesmo, com análise pormenorizada, que o relatório de peritagem, efectuado pelo Instituto Nacional de Medicina Legal, apenas se distingue do seu em duas situações: no agravamento da perda do olfacto, situação que, compreensivelmente, veio a piorar com o decurso do tempo; e na caracterização de algumas sequelas mas, neste caso, unicamente por via de distintos prismas de observação e diagnóstico, que não das incapacidades correspondentes.

Estando, assim, a situação de saúde do autor suficientemente descrita por especialistas, pouco haveria a acrescentar, à face do teor dos relatórios em causa, mas importa ainda salientar alguns elementos concretizadores e ou explicativos. Amigo de infância do autor e com conhecimentos técnicos que lhe advêm da sua profissão de técnico de emergência hospitalar, GG conta que, logo que foi avisado, pela cônjuge do autor, do acidente por este sofrido, (…). Quanto ao momento presente, esclareceu que o autor tenta ser divertido na mesma, mas “tem momentos de agitação e de irritabilidade” que não aconteciam, além de que, definitivamente, terminaram todos os desportos, que fazia, futebol, basket, vólei de praia e bicicleta, e que, em casa, há dificuldades, mesmo nas tarefas pequenas. Também o colega de trabalho HH viu o estado em que ficaram os veículos e as pessoas após o embate, e explicou que olhou para o seu colega e que o viu consciente, mas em tal estado que não o reconheceu. Mais constatou que, após o seu regresso ao trabalho, tinha ostensivas dificuldades no seu desempenho. Por fim, DD, Eng.º cerâmica e colega de trabalho, que ia ao lado do autor aquando do acidente, e que pouco sofreu, verificou que “ele ficou bastante diferente, com muitas lesões, e graves”. Constatou pessoalmente a dificuldade em apoiar a mulher que estava grávida então, bem como que quando ele fez anos, nunca pegou na filha, pois que não era capaz, e que, pelas mesmas razões, nunca o viu com a filha ao colo, nem quando ela tinha meses, nem até aos três anos.

Coordenadora técnica, a desempenhar funções próximo da vereação da cultura daquele órgão autárquico, a EE, casada com o autor, coube a espinhosa missão de, na presença do mesmo, relatar como tem sido a vida de ambos e da filha comum após o acidente, com especial incidência na diferença indiscutivelmente existente entre o caso concreto e as esperanças que a ambos assaltavam aos sete meses de gravidez. “Fisicamente, muito limitado”, ainda hoje. Explicou que estão juntos há 21 anos, e que a filha foi absolutamente desejada após todo este tempo de comunhão de vida, para explicar, sem grande nexo linguístico mas com toda a expressividade e emoção que o assunto encerra, que “qualquer pai gostaria, nessas condições, de poder fazer o que qualquer pai gostaria”. Ainda hoje o braço não faz o movimento todo. Deixou de fazer desporto e de fazer restauração aos fins de semana. Mudaram para um carro com mudanças automáticas, por necessidade. O autor perdeu alegria, “nota-se que é uma pessoa muito mais preocupada, muito mais cismada”. Sem, evidentemente, poder afirmar a diferença, a prestação do autor, em depoimento de parte, foi exemplificativa de todo o cisma e das características reservadas e sentidas que os diversos depoentes aqui trouxeram.».

Ora, apreciando, cabe dizer que a prova pericial é a produzida, sob contraditório, no quadro dos autos, isto é, a perícia para avaliação do dano corporal em direito civil, realizada pelo INML, cujo relatório consta de fls. 136 e segs., com conclusões e a fls. 144 v.º e seg. do processo físico.

No mais, foram juntos aos autos relatórios hospitalares/médicos, que constituem prova documental (cfr. fls. 18 v.º a 21, 21 v.º e segs., 26), bem como relatório do perito médico ao serviço da R. (fls. 26 v.º a 28 v.º), relatório de perícia de avaliação do dano corporal em direito do trabalho, realizada pelo INML, mas no âmbito de autos de natureza laboral (fls. 29 a 34 v.º), em que intervinha, por consequência, a seguradora de acidentes de trabalho.

Assim sendo, é àquela prova técnica/pericial, a produzida, sob integral contraditório, no âmbito destes autos – perícia para avaliação do dano corporal em direito civil, realizada pelo INML, que teve em conta os outros relatórios, informações e meios/exames complementares de diagnóstico –, que haverá de conferir-se prevalência para estabelecimento da base fáctica desta causa cível.

Ora, visto o respetivo relatório de perícia, que consta de fls. 136 e segs. (com conclusões e a fls. 144 v.º e seg.) do processo físico, constata-se que o mesmo não reconhece que, a médio/longo prazo, o A. poderá vir a carecer de consultas anuais de ortopedia e de oftalmologia; medicamentos analgésicos em SOS; renovação ocular, de dois em dois anos; calçado com compensação no pé esquerdo, devido ao encurtamento do membro inferior; correcção cirúrgica de algumas cicatrizes (ponto/facto 36).

O que ali se refere, em conclusão, quanto a ajudas permanentes necessárias, e, por isso, se dará como provado ([6]) – em substituição daquele ponto/facto 36 –, é que:

«O A. carecerá de adequado seguimento pela especialidade de medicina física e de reabilitação, com programas regulares de reabilitação fisiátrica».

Donde que proceda em parte esta parcela da impugnação da R./Recorrente.

É certo, por outro lado, que o dito relatório pericial do INML não faz qualquer referência específica a um prejuízo sexual de “1/5” (facto 39), mas apenas a um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 53 pontos, razão pela qual é a este défice que haverá de atender-se, na sua repercussão sobre a vida da pessoa lesada.

Assim, sendo prevalecente a força probatória de tal prova pericial – como já visto –, e não aludindo a mesma a tal específico prejuízo sexual, haverá o ponto/facto 39 de ser transposto para o quadro fáctico não provado, com eliminação do âmbito dos factos provados, no que procede a impugnação empreendida.

Defende a impugnante que as mesmas razões valem quanto ao facto 55, a dever, por isso, ser julgado como não provado.

E, efetivamente, do dito relatório pericial – que se sobrepõe, em termos de avaliação do dano corporal em direito civil, a outras provas, designadamente de cariz documental ou testemunhal, ou a relatórios técnicos produzidos sem adequado contraditório – não resulta que o A. passou a sentir limitações na atividade sexual, principalmente por via das dores que sente quando mantém o corpo em determinadas posições idade e procriação.

Donde que também este ponto fáctico haja, pela mesma razão, de ser transposto para a factualidade não provada.

Já relativamente aos impugnados pontos 49 e 50, esgrime a Recorrente que os depoimentos das testemunhas DD e EE, que a sentença invoca para fundar a sua convicção positiva, nada testemunharam nesse sentido.

Ora, estando em causa factualidade referente ao tempo de gravidez da esposa do A. e à impossibilidade deste de colaborar com ela nas lides domésticas e de a acompanhar (a consultas médicas e às compras do enxoval da bebé), bem como, após tal gravidez, de pegar na filha ao colo, embalá-la, dar-lhe banho, vesti-la, passeá-la, constata-se que a prova em que se baseou a sentença foi, se bem se interpreta, aquela prova testemunhal a que alude a impugnante.

A esta cabia, tratando-se de prova pessoal – como tal, objeto de gravação áudio –, cumprir o ónus a que alude o art.º 640.º, n.º 2, al.ª a), do NCPCiv., que estabelece, imperativamente, incumbir ao recorrente – «sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte» – «indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso».

Ora, em sede de motivação do recurso, a Apelante apenas procede à transcrição de excertos da gravação do depoimento testemunhal de DD, de onde pode extrair-se as correspondentes passagens da gravação, omitindo semelhante esforço quanto à testemunha EE, em relação à qual nada diz quanto à dita indicação das passagens da gravação em que se funda o seu recurso (cfr. fls. 309 e v.º do processo físico, correspondente à pág. 8 e v.º da alegação recursiva).

E, no correspondente acervo conclusivo, nada mais se adianta (cfr. conclusões 15.ª e 16.ª), termos em que ocorre incumprimento do dito ónus legal quanto a uma das testemunhas em que se funda a convicção da 1.ª instância, com a consequência de ter de ser rejeitada esta parte da impugnação, permanecendo intocados os mencionados factos/pontos 49 e 50.

Passando ao impugnado ponto 60, apenas adianta a impugnante, genericamente, que não existem no processo elementos probatórios suficientes para asseverar, com o rigor necessário, o ali vertido (cfr. motivação do recurso e conclusão 17.ª da Apelante).

Estando em causa o tempo despendido e as deslocações necessárias para consultas médicas, exames, tratamentos (sessões de fisioterapia), farmácias, e outras, o Tribunal a quo fundou-se, desde logo, segundo se depreende, na prova documental adquirida para os autos, ao enfatizar que o processo de prestação de socorros e de tratamentos a que o A. foi submetido resulta do teor dos documentos emanados pelas instituições onde foi o mesmo recebido, conjugado com o depoimento da testemunha EE, casada com o A., já que se refere ter esta relatado como tem sido a vida de ambos e da filha comum após o acidente, e, outrossim, os dados da lógica e da experiência comum, perante o tipo de lesões/ferimentos suportados e a necessidade de se submeter a deslocações para consultas médicas, exames, tratamentos, bem como aquisição de medicamentos, o que também se depreende, de algum modo, da descrição a que se procedeu no corpo do relatório de perícia do INML (quanto a reiterados tratamentos e exames).

Assim, considera-se suficientemente fundamentada, apesar do seu pendor algo genérico, a convicção da 1.ª instância quanto a este facto.

Por isso, cabia à impugnante, salvo o devido respeito, proceder à sua própria análise crítica da prova com vista a mostrar que o Tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento.

Porém, como visto, a R./Recorrente limita-se a invocar a «inexistência de elementos probatórios suficientes» e, assim, a «falta de prova cabal», o que não basta, sem entrar na prova em concreto, para demonstrar tal erro do julgador, posto dever o recorrente especificar os concretos meios probatórios que, uma vez criticamente analisados, impunham decisão diversa [art.º 640.º, n.º 1, al.ª b), do NCPCiv.].

Termos em que nada se impõe alterar nesta parte (cfr. art.º 662.º, n.º 1, do NCPCiv.).

3. - Passando ao facto, dado como não provado, indicado como 16 da contestação, que a R. pretende seja julgado como provado, é o seguinte o respetivo teor:

«16

O Autor, ao receber as indemnizações pagas pela Seguradoras Unidas, optou por ser indemnizado a título de danos patrimoniais no âmbito do acidente de trabalho.».

O Tribunal recorrido – embora chamando a atenção para uma dimensão predominante de «matéria jurídica» – apresentou a seguinte fundamentação da convicção:

«Sem prejuízo das relações de exclusão entre as indemnizações por acidente de viação e por acidente de trabalho, ao nível do facto, repito, nada permite fazer crer que o autor tenha exercido uma opção, com o significado de alternatividade, que possa fazer o julgador concluir que ele expressa ou tacitamente tenha querido renunciar ao que possa vir a receber, a título de indemnização, quer pela secção cível quer pela secção laboral do tribunal da comarca .... Ainda que nada permite concluir, liminarmente e ao nível da matéria de facto, que o processo de acidente de trabalho tenha decidido que a seguradora laboral indemnizasse o (aqui e ali) autor por todos os danos patrimoniais por ele sofridos, pois que a jurisdição laboral só profere decisões – e a seguradora de acidentes de trabalho mais ainda – relativas aos danos indemnizáveis pela respectiva legislação; que, repito, ao nível da matéria de facto, nada permite concluir que sejam todos os de natureza patrimonial.».

Ora, em primeiro lugar cabe dizer que, efetivamente, se trata aqui de matéria essencialmente de direito, a qual deve ocupar o Tribunal, por isso, em sede de fundamentação jurídica da decisão.

A dimensão fáctica teria de resultar de alguma declaração ou tomada de posição do A. no sentido pretendido pela R., isto é, de que, cabalmente, aquele «optou por ser indemnizado a título de danos patrimoniais no âmbito do acidente de trabalho.» (de forma esgotante).

Ora, nesta dimensão fáctica, cabia à R. mostrar quais as concretas provas que exigiam um julgamento no sentido por si propugnado.

Porém, a impugnante não incida qualquer prova concreta, antes esgrimindo ser manifesto que uma tal opção foi exercida, pois ao receber as indemnizações da seguradora de acidentes de trabalho escolheu/optou ser indemnizado a título de danos patrimoniais no âmbito laboral.

Ao assim laborar, a Recorrente extrai uma conclusão jurídica do comportamento do A., conclusão essa que não tem cabimento no âmbito da decisão de facto, antes devendo a matéria ser apreciada no plano da fundamentação de direito.

E quanto ao plano fáctico remanescente, reitera-se que a Recorrente não invoca qualquer meio de prova fundante de um juízo positivo quanto a ter o A. exteriorizado declaração ou tomada de posição no sentido pretendido pela R., isto é, de ter declaradamente relegado a indemnização por todos os danos patrimoniais para o âmbito laboral.

Em suma, nada a alterar neste particular, devendo a questão de direito ser objeto de apreciação na sede própria (a da fundamentação jurídica da decisão), sabido, ademais, constarem agora da factualidade provada as quantias prestadas pela seguradora de acidentes de trabalho no âmbito do sinistro laboral.

B) Matéria de facto

1. - Após a operada sindicância pela Relação, é a seguinte a factualidade provada a atender ([7]):

«petição

1

No dia 16/01/2016, pelas 18h 12m, o Autor conduzia o seu veículo ligeiro de passageiros, da marca ..., modelo ... e com a matrícula ..-LA-.., ao km 77,600 do Itinerário Principal nº. 3, no sentido nascente-poente (...), num local designado por ..., da freguesia ..., do concelho ..., desta comarca,

2

O que fazia, na companhia de uma colega de trabalho, a não mais do que 55 Km/h, ambos regressando a casa no fim de um dia de trabalho.

3

Não circulava nenhum veículo atrás do A. e, cerca de 15 m à sua frente, apenas transitava um veículo, que nunca chegou a ser identificado.

4

Não chovia, mas o pavimento encontrava-se molhado.

5

Havia visibilidade em todas as direcções, embora estivesse já a anoitecer, e o A. levava ligadas as luzes de cruzamento (médios), de modo a sinalizar a sua presença.

6

O aludido local é praticamente plano e, no sentido em que o A. progredia, com uma ligeira curva à direita e uma pequena subida e, portanto, as correspondentes curva à esquerda e descida no sentido contrário.

7

Esses dois sentidos de trânsito encontravam-se divididos e separados por balizas flexíveis (vulgo, pilaretes), havendo uma dupla faixa de trânsito com a largura aproximada de 4,5 m no sentido poente-nascente e uma só faixa no sentido contrário, tipo “corredor”, em que circulava o autor.

8

Nas referidas condições de lugar e de tempo, o A. apercebeu-se de que o veículo que seguia à sua frente guinou para a direita, em direcção à berma da estrada,

9

Logrando desse modo, mas in extremis, evitar a colisão frontal com um outro veículo, ..., de matrícula ..-..-GQ, conduzido por FF, no sentido oposto (...).

10

Transitando na faixa mais à esquerda das duas existentes naquele seu sentido de marcha, a uma velocidade não inferior a 100 km, era já lusco-fusco e sem atenção ao trânsito.

11

Subitamente, saiu daquela faixa mais à esquerda da sua mão de trânsito, derrubou os pilaretes separadores das duas faixas de rodagem e invadiu a faixa contrária.

12

O aqui demandante, que não pôde ver aquele veículo devido à interposição do que seguia à sua frente e, sem tempo e não teve hipótese de efectuar uma qualquer manobra de recurso com vista a evitar o acidente.

13

Foi surpreendido pelo aparecimento do citado ... que, com violência, embateu na parte da frente e lateral esquerda do veículo do A.

14

O condutor do ... teve morte imediata e declarada no local.

15

O veículo conduzido pelo demandante foi projectado vários metros, rodopiou e acabou virado ao contrário do seu sentido de marcha e imobilizado em cima dos rails de protecção situados à sua direita, ficando o autor encarcerado durante cerca de duas horas e com lesões físicas, sobretudo, em todo o lado esquerdo do corpo (cabeça e membros).

16

Os dois veículos ficaram completamente inutilizados, em situação de perda total.

17

Sob o nº. 20/16.... e pela Secção Única do DIAP (Mº. Pº./..., desta comarca) correu um Inquérito dirigido contra os dois condutores intervenientes no acidente, sendo que, na parte tocante ao aqui A., se consignou expressamente no despacho de arquivamento, datado de 03/05/2016: “ … apurou-se que o veículo conduzido pela vítima, FF, …, numa zona em que a estrada configura uma pequena curva, à esquerda, saiu da sua mão de trânsito … invadindo a hemi-faixa contrária, onde seguia o veículo conduzido por AA, assim ocorrendo o embate frontal entre os dois veículos.” ……….. “…não se apurou que, perante a inopinada manobra da vítima o suspeito AA pudesse ter efectuado qualquer manobra de salvamento para evitar o embate. …, de salvamento para evitar o embate. …, face às circunstâncias que rodearam o acidente em apreço, é possível concluir que não era, com razoabilidade, exigível ao suspeito AA que evitasse a colisão do veículo que conduzia com o veículo conduzido pela vítima.” E: “ Ao invés, ponderados todos os elementos de prova recolhidos, urge admitir que foi a própria vítima quem negligenciou o seu ato de condução, colocando-se numa posição que lhe tirou a vida”.

19

O Autor sofreu lesões em todo o corpo, sobretudo no lado esquerdo, na cabeça e nos membros superior e inferior.

20

Elaborado pelo Dr. II em 10/03/2019, clínico que o seguiu, relatou este facultativo que o Autor sofreu: --- “fractura exposta do úmero esquerdo com paralisia do nervo radial”; --- “fractura luxação de Monteggia à esquerda com cominação do oleocrânio”; --- ”fractura cominutiva da diáfise do fémur esquerdo”; --- ”fractura do prato tibial externo esquerdo”; --- ”fractura do rádio distal direito”; --- ”rotura do extensor dedo anelar” da mão direita; --- ”TCE discreta hemorragia subaracnoideia occipital e temporal inferior à esquerda”; --- ”fractura da órbita esquerda atingindo o pavimento medial e lateral”; --- ”fractura dos ossos próprios do nariz”; --- “fractura do 2º. metatarsiano” do pé esquerdo; e --- fractura do dente 26.

21

Em menos de catorze meses após o acidente, o A. teve necessidade de sujeitar-se a um total de sete intervenções cirúrgicas, das especialidades de Cirurgia Reconstrutiva Plástica e Maxilo-Facial e Ortopedia, a saber: I — em 03/02/2016, no Centro Hospitalar ..., um conjunto de quatro cirurgias sucessivas, num só dia, para os seguintes fins: - à cabeça: osteossíntese com malha de titânio de fractura para correcção do afundamento dos ossos da face; - ao braço esquerdo: osteossíntese com placa e parafusos do úmero, osteossíntese do rádio e cerclage do epicôndilo e olecrânio; - à perna esquerda: encavilhamento centromedular de fractura da diáfase do fémur e osteossíntese dos pratos tibiais; - à mão direita (tendão extensor do quarto dedo); II — em 08/03/2016, na ...-Hospital ..., para reconstrução dos extensores do terceiro e do quarto dedos da mão direita; III — em 08/05/2016, ainda na ...-Hospital ..., para neurólise do nervo radial esquerdo; IV — em 07/03/2017, na Casa de Saúde ..., no ..., para remoção de parafusos distais do fémur esquerdo.

22

Ao todo, teve 70 dias de internamento hospitalar, dos quais os primeiros três na unidade de cuidados intensivos.

23

Recebeu duas transfusões de sangue, aquando daquelas primeiras quatro intervenções sucessivas.

24

Entre 24/03/2016 e 08/05/2016, não pôde dispensar o auxílio de uma terceira pessoa para todos os actos da sua vida pessoal e apenas pôde deslocar-se de cadeira de rodas.

25

Depois, passou a usar também bengalas canadianas, como auxiliar da marcha.

26

Fez mais de 20 (vinte) consultas de especialidades médicas diferentes;

27

A partir de 17/03/2016, realizou um total de 283 sessões de fisioterapia;

28

Em Janeiro de 2017, fez dinamização do encavilhamento femural.

29

O Autor teve: — 135 dias de défice funcional temporário total; — 365 dias de défice funcional temporário parcial; --- 494 dias de repercussão temporária na actividade profissional total.

30

Só retomou o trabalho em 27/05/2017 e teve alta definitiva em 02/06/2017, data da consolidação médico-legal das lesões sofridas.

31

O Autor ficou com numerosas e diversificadas sequelas lesionais, funcionais e situacionais:

32

Sequelas lesionais (alterações permanentes na estrutura anatómica ou funcional): --- afundamento da órbita esquerda (enoftalmia); --- discreto desvio do eixo do nariz de concavidade direita; --- hipotrofia do braço esquerdo; --- mobilidade reduzida do cotovelo esquerdo, com défice da extensão 45º e da flexão até 90º e com arco de movimento de 40º; --- hipostesia da face posterior do braço e do antebraço esquerdos; --- ligeira elevação da hemibacia direita; --- encurtamento da perna esquerda, em cerca de 1,9 cm; --- amiotrofia da coxa, de 1 cm e incipiente artrose da anca; e --- ligeiro aluimento da abóbada plantar e hipotrofia muscular da região medial do pé esquerdo;

33

Sequelas funcionais e situacionais (alterações das suas capacidades físicas e mentais ou impossibilidade ou dificuldade de participar na vida em sociedade, realizando a totalidade dos actos que lhe são necessários ou simplesmente lúdicos e que, até então e com toda a liberdade, sempre realizou), nomeadamente, em matéria de: a) --- postura, deslocamentos e: - edema do tornozelo esquerdo;

- dificuldade em mastigar os alimentos, à esquerda, por falta de sensibilidade, o que lhe provoca acumulação de restos de comida; - claudicação na marcha; - dificuldade na condução automóvel (deixou de poder conduzir veículos com caixa manual e viu-se forçado a comprar um com caixa automática); -- dificuldade em sentar-se, levantar-se, subir e descer escadas ou rampas; - dificuldade em vestir-se, despir-se e realizar a sua higiene pessoal; - dificuldade em locomover-se regularmente dentro do local de trabalho para vigiar a produção (obrigando-o a paragens frequentes) e em pegar em algumas peças produzidas para a análise de qualidade; - incapacidade de dançar, de correr e, ao fim de algum tempo, de permanecer de pé, de cócoras e ajoelhado; - incapacidade de, com o braço esquerdo, levantar e transportar pesos, em geral; - incapacidade de pegar na filha ao colo; - incapacidade de praticar os desportos que sempre praticou e eram da sua especial predilecção (corrida, natação, andebol e futebol);

- incapacidade de continuar a praticar um velho hobby de fins de semana (ajudar a servir à mesa em restaurante de amigos); e - incapacidade de frequentar locais de lazer, em que haja anormais níveis de ruído. b) --- manipulação e preensão: - limitação dolorosa da mobilidade do punho direito, sobretudo, nos movimentos rápidos; - défice de flexão do quarto dedo da mão direita, que impede o enrolamento; - limitação da mobilidade do punho e do cotovelo esquerdo, por défice de extensão (que, v. g., dificulta levar a mão à boca, à orelha e ao ombro); - diminuição da força de preensão e extensão da mão esquerda, mais acentuada no 4º e no 5º dedos (que, v. g., dificulta o uso de talheres e/ou provoca constantes quedas de objectos); - impossibilidade de fazer a extensão completa da falange distal do terceiro dedo da mão esquerda; e - alteração sensitiva (formigueiro e choques eléctricos) na tabaqueira anatómica e dorso do primeiro espaço da mão esquerda. c) --- cognição e afectividade: - ansiedade, sobretudo, quando revivaliza o acidente; - tristeza, sem motivo aparente; - irritabilidade, com repercussões na vida familiar e social; - insónias frequentes, pesadelos sobre o acidente e alterações mnésicas; d) --- sexualidade e procriação: dor e desconforto em algumas situações e posições.

e) --- fenómenos dolorosos: - cefaleias frequentes; - dor ocular, à esquerda; - dor na compressão toráxica;

- dor no ombro e no cotovelos esquerdos; - dor nos punhos direito e esquerdo; - dorso-lombalgias frequentes; - dor constante na anca, com limitação acentuada das rotações, da adução e da abdução, bem como na coxa e no joelho esquerdos; - dor na região inguinal esquerda; - dor na perna e região plantar até ao segundo dedo do pé, agravada no apoio plantar com a marcha, à esquerda; e

- hipersensibilidade no território do nervo cubital ao nível da mão, com impossibilidade de enrolar completamente o terceiro dedo. f) --- outras queixas: - diplopia nos movimentos extremos dos olhos;

- fotofobia e hipersensibilidade no olho esquerdo ; - hipersensibilidade na região malar esquerda;

- hipostesia na mucosa gengival e nos dentes do maxilar superior esquerdo; - desvio discreto do eixo do nariz, de concavidade direita; - diminuição acentuada do olfacto; e - hipotrofia muscular acentuada nos músculos do braço esquerdo, sobretudo, do tricípite braquial. g) --- cicatrizes inestéticas (total de vinte):

- na cabeça (uma, de 4 cm, na região ciliar esquerda; outra, de 2,5 cm na região infraorbitrária esquerda; e outra, de 1,5 cm, na pálpebra inferior do olho esquerdo); - no ombro esquerdo (decorrente de abordagem cirúrgica); - no membro superior direito (de 9,5 cm, na face volar distal do antebraço); - no membro superior esquerdo (uma, de 20 cm de comprimento por 7 mm de largura, na face ântero-lateral do braço; outra, de 3 cm, nacarada, no terço médio da face posterior do braço; outra ainda, de 5 cm, no terço proximal do antebraço; e uma última, de 24 cm, do terço distal até ao terço proximal do antebraço);

- na mão direita (de 5 cm, na face dorsal do quarto metacarpo); - no membro inferior esquerdo (oito, na face lateral da coxa esquerda, sendo uma, de 7 cm; três com cerca de 1,5 cm, cada uma; e mais quatro, com 1 cm,

cada uma; e uma, na face anterior, de 3 cm de comprimento por 1 cm de largura); e - na região calcaneana (de 3 cm de comprimento por 1 cm da largura).

34

Às sequelas descritas ficou a corresponder um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 53 pontos.

35

No futuro, é expectável o aparecimento de artrose no joelho esquerdo, a par da artrose da anca já diagnosticada.

36

«O A. carecerá de adequado seguimento pela especialidade de medicina física e de reabilitação, com programas regulares de reabilitação fisiátrica» [ALTERADO].

37

O dano estético de que ficou a padecer é do grau “5/7”.

38

Considerando as lesões sofridas, os tratamentos médicos e cirúrgicos a que teve de submeter-se, bem como a respectiva duração, o quantum doloris deve ser fixado em “6/7”.

39

[ELIMINADO]

40

A repercussão das lesões sofridas nas suas actividades desportivas e de lazer deve ser quantificada em “5/7”.

43

O autor tinha 37 anos à data do acidente.

44

Era uma pessoa que tinha exibia a integridade físico-psíquica correspondente à sua idade, saúde e situação social, e passou a sofrer as agruras de se ver afectado por diversas incapacidades que o acompanharão durante o resto dos seus dias e para os quais em nada contribuiu.

45

Mostrando-se por vezes abatido, triste, pessimista, com diminuição de afirmação pessoal (em relação às actividades que deixou de poder desenvolver), ansioso, irritável, com difíceis contactos a nível social, revoltado e receoso quanto ao seu próprio futuro, por efeito de todos os males que sofreu.

48

A seguir ao acidente, o A. ficou impossibilitado de levantar e transportar pesos com o braço esquerdo.

49

Nos últimos meses de gravidez da esposa e nos doze imediatos ao nascimento da filha do casal, ocorrido em Maio seguinte, viu-se impedido de colaborar com ela nas lides domésticas e de a acompanhar a consultas médicas, às compras do enxoval da bebé.

50

Durante mais de um ano, não pôde pegar na filha ao colo, embalá-la, dar-lhe banho, vesti-la, passeá-la, como gostaria de ter podido fazer.

51

Deixou de praticar os seus desportos habituais (corrida, natação, andebol e futebol), de ajudar a servir à mesa em restaurante de amigos (o que fazia por mera distração, aos fins-de-semana).

55

[ELIMINADO]

56

Sofreu intensas dores logo a seguir ao acidente e durante as cerca de duas horas em que permaneceu encarcerado no veículo, mas sempre consciente.

57

Ainda hoje tem dores frequentes, embora algo mitigadas e de intensidade variável, mas que não mais o abandonarão, mesmo depois de realizadas as intervenções cirúrgicas e cumpridos os tratamentos médicos que se lhe seguiram, em processo de convalescença.

60

Despendeu muitas dezenas de horas a correr para Hospitais e consultas médicas de várias especialidades (mais de 20), a realizar exames (só radiografias foram mais de 200) e sessões de fisioterapia (num total de 283, à razão de uma/duas horas, cada uma), farmácias, Tribunal de Trabalho e Seguradora, bem como a solicitar e obter a documentação atinente.

62

O que lhe tem trazido preocupações, desgostos, contrariedades, receios, mal-estar, desconforto e sacrifícios.

69

A Demandada sempre reconheceu responsabilidade quanto às consequências do acidente.

70

Pagou ao A. o valor dos salvados do seu veículo e o valor das roupas e de outros bens de uso pessoal que ele trazia consigo na altura do acidente.

71

Pagou-lhe ainda a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros).

72

O que disse fazer a título de “adiantamento por conta da indemnização final”.

87

Por contrato de seguro titulado pela apólice nº. ...06, o malogrado FF havia transferido para a Ré a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação provocados pelo veículo que conduzia,

contestação

2

3

O autor trazia, devidamente colocado, o cinto de segurança.

5

B..., S.A., enquanto seguradora de acidente de trabalho e ao abrigo da Apólice ...29 (da ex-Tranquilidade), tem vindo a proceder ao pagamento ao A., nos termos da legislação aplicável, dos danos patrimoniais decorrentes do sinistro.».

- «A seguradora de acidentes de trabalho procedeu, concretamente, aos seguintes pagamentos ao A., até 01/06/2021:

- a título de pensão anual e vitalícia – € 60.601,87 [sendo que se encontrava, no ano de 2021, a pagar pensão anual e vitalícia no valor de € 15.095,60];

- a título de transportes – € 60,15;

- a título de despesas médicas – € 328,45;

- a título de farmácia – € 84,50;

- a título de custas de parte – € 408,00;

- a título de juros – € 3.160,26;

- pagamentos efetuados a título de perda salarial – € 37.386,13;

- pagamentos efetuados a título de próteses – € 551,00;

E procedeu aos seguintes pagamentos, após 01/06/2021:

- a título de pensão anual e vitalícia – € 19.527,26 [sendo que, em 2022, se encontra a pagar pensão anual e vitalícia, no valor de 15.246,56€];

- a título de despesas médicas – € 353,60» [ADITADO - 1].

- “Das análises toxicológicas efetuadas ao cadáver de FF, mencionadas no respetivo relatório de autópsia, resultou a deteção da presença de álcool etílico, que reportada à hora da morte era de «1,08 +/- 0,14 g/l»” [ADITADO - 2].

2. - E resulta não provado:

«petição

36

(…) não poderá vir a dispensar

44

(…) extremamente alegre, optimista, dinâmica, empenhada e com um futuro promissor

45

Tornando-se (…) a nível familiar (…).

49

(…) e de tudo o mais que se mostrou necessário e é normal nessas circunstâncias.

51

Deixou (…) dançar, de frequentar discotecas e outros locais de lazer em que haja anormais níveis de ruído, etc.

55

Ficou impossibilitado de desenvolver actividade sexual e de procriação.

61

Vive ainda hoje no terror permanente de, no futuro, sobrevirem novas consequências que, nomeadamente, lhe venham a impossibilitar ou restringir uma mudança de profissão ou o exercício, o desenvolvimento e a conversão da actual, com os inevitáveis efeitos da perda de oportunidades laborais e do seu reflexo patrimonial.

contestação

2

3

O autor não trazia, devidamente colocado, o cinto de segurança.

16

O Autor, ao receber as indemnizações pagas pela Seguradoras Unidas, optou por ser indemnizado a título de danos patrimoniais no âmbito do acidente de trabalho.».

- «O A. ficou, ainda, a sofrer de um prejuízo sexual de “1/5”» [ADITADO].

- «Passou a sentir limitações na actividade sexual, principalmente por via das dores que sente quando mantém o corpo em determinadas posições idade e procriação (alínea d))» [ADITADO].

                                                 ***

C) Substância jurídica dos recursos

1. - Da indemnização pelo dano futuro, incluindo o dano biológico

O A./Recorrente pede o montante indemnizatório de € 188.683,00 (resultante de ampliação do pedido), com referência ao dano biológico sofrido, por considerar manifestamente exíguo o montante arbitrado a esse título na sentença (alude a € 100.000,00).

A contraparte, também Apelante, pugna, ao invés, pelo afastamento (total) dessa parcela indemnizatória, por os danos patrimoniais terem sido objeto de indemnização – a seu ver, integral – no âmbito do processo de acidente de trabalho, uma vez que se trata de acidente simultaneamente de viação e de trabalho.

Argumenta, assim, a R. que, à luz da Portaria n.º 377/2008, de 26-05 [art.ºs 3.º, al.ª a), e 9.º, n.º 3], e do aresto do Supremo Tribunal de Justiça (doravante, STJ) de 10/12/2020 – Proc. 8040/15.9T8GMR.G1.S1 –, “Não é autonomamente indemnizável o dano biológico do lesado que ficou afetado na sua capacidade laboral quando é indemnizado pelos danos futuros emergentes da perda de capacidade laboral”.

Na sentença foi entendido, quanto a tal dano biológico – em caso de acidente simultaneamente de trabalho e de viação, «em que as indemnizações a atribuir ao lesado, em sede laboral e em sede cível, não são cumuláveis, mas sim complementares até ao ressarcimento da totalidade do dano» –, seguindo jurisprudência dos Tribunais superiores, que:

«O montante obtido pelo lesado no foro laboral não repara o mesmo prejuízo que é pressuposto e medida da indemnização por si pretendida nesta acção. O ressarcimento concedido com base na incapacidade parcial permanente não obsta à indemnização do dano biológico: o lesado não peticiona, nesta acção, a indemnização do dano da incapacidade profissional».

E mais adiante:

«Depois de, no art.º 23º da Lei nº 98/2009 de 4 de Setembro, estabelecer que “o direito à reparação compreende (…) prestações em espécie e em dinheiro”, o monumento legislativo define – ou seja, coloca fins, delimita, restringe – no seu art.º 47º, as “modalidades” destas prestações; de seguida, e não obstante, a alínea c) do nº 3 do art.º 48º atesta que, em situações como a que ocorreu com o aqui autor, ele faz jus a uma “pensão anual e vitalícia correspondente a 70 % da redução sofrida na capacidade geral de ganho“. Que o mesmo é dizer: a legislação relativa aos acidentes de trabalho, encontrando-se o lesado – ali designado por “sinistrado” – com uma incapacidade parcial permanente para o trabalho, atribui-lhe, por via da citada alínea c) do nº 3 do seu art.º 48º, não uma verdadeira indemnização, que repare, em dinheiro, todo o dano por ele sofrido, antes, repito, uma prestação que, assumidamente, ignora 30% da incapacidade sofrida pelo lesado; no caso do autor, e arredondando “para baixo”, subsiste 16% da incapacidade para o trabalho que a legislação laboral não repara. Logo, peticioná-la aqui, ao abrigo do disposto, entre outros, dos art.ºs 483º e 562º do código civil, não constitui, a meu ver, qualquer sobreposição com o que o autor recebe – e continuará, vitaliciamente, a receber – através do processo 256/17.... estas considerações, em meu entender, com o devido respeito, não são evitadas por Portaria. (…).

Esta incapacidade para o trabalho, juntamente com as demais dificuldades por deficiente utilização do corpo e da saúde, poderiam, a meu ver, juntamente com os danos não patrimoniais futuros, integrar uma indemnização a apurar neste processo, enquanto dano biológico, que coexistiria sem quaisquer dificuldades conceptuais, com a pensão a que o autor faz jus a título de acidente de trabalho. Pese embora, para melhor poder apurar os correspondentes montantes, prefiro abordar a questão nas duas vertentes clássicas: danos relativos a incapacidade parcial permanente de 16%, e danos não patrimoniais.».

Ponderando, assim, uma (remanescente) «incapacidade de 16%», sopesada à luz da equidade e na comparação com bitola retirada de critérios jurisprudenciais indemnizatórios considerados aplicados a casos similares, concluiu-se na sentença em crise não poder deixar de atender-se à idade do A., com decorrente prolongamento do dano por lapso de tempo muito significativo, a reclamar a quantia indemnizatória, assim arbitrada, de € 105.000,00, sem contar com os «danos unicamente não patrimoniais», a serem objeto de indemnização autónoma.

Que dizer?

Dir-se-á que é fora dúvida, desde logo, que a indemnização deve reparar integralmente o dano sofrido (cfr. art.º 562.º do CCiv.), nas suas diversas vertentes, de molde a nem permitir um empobrecimento nem um (injustificado) enriquecimento do lesado, termos em que, sendo a indemnização dos diversos danos emergentes de um mesmo evento danoso atribuída em duas diferentes sedes judiciais – como no caso de acidente simultaneamente de viação e de trabalho, com reparação no tribunal cível e na jurisdição laboral –, as reparações, daí resultantes, só podem ser complementares entre si, sem sobreposição/cumulação, o que afasta, em qualquer caso, uma dupla indemnização de um mesmo dano/prejuízo (o que, a ocorrer, seria injusto e prejudicial para o obrigado à reparação).

No caso, resulta apurado que o A./lesado, com 37 anos de idade ao tempo do acidente, ficou a padecer, por força das sequelas descritas, de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 53 pontos, sendo, no futuro, expectável o aparecimento de artrose no joelho esquerdo, a par da artrose da anca já diagnosticada.

Por isso, a repercussão das lesões sofridas nas suas atividades desportivas e de lazer ascende a “5/7”, sendo que era uma pessoa que tinha a integridade físico-psíquica correspondente à sua idade, saúde e situação social, e passou a ver-se afetado por diversas incapacidades que o acompanharão durante o resto dos seus dias.

A seguradora de acidentes de trabalho tem vindo a proceder ao pagamento ao A., nos termos da legislação aplicável, dos danos patrimoniais decorrentes do sinistro, contemplando os seguintes pagamentos:

a) Até 01/06/2021:

- a título de pensão anual e vitalícia – € 60.601,87 [sendo que se encontrava, no ano de 2021, a pagar pensão anual e vitalícia no valor de € 15.095,60];

- a título de transportes – € 60,15;

- a título de despesas médicas – € 328,45;

- a título de farmácia – € 84,50;

- a título de custas de parte – € 408,00;

- a título de juros – € 3.160,26;

- pagamentos efetuados a título de perda salarial – € 37.386,13;

- pagamentos efetuados a título de próteses – € 551,00;

b) Após 01/06/2021:

- a título de pensão anual e vitalícia – € 19.527,26 [sendo que, em 2022, se encontra a pagar pensão anual e vitalícia, no valor de 15.246,56€];

- a título de despesas médicas – € 353,60.

Posto isto, é consabido que tem ocupado os nossos tribunais a questão de saber se o dano biológico – tendo em conta, designadamente, as suas diversas vertentes possíveis, para que ocorra cabal indemnização respetiva, mas sem sobreposição reparatória – deve ser indemnizado como repercutindo-se em sede de dano patrimonial ou, diversamente, de dano não patrimonial, ou mesmo em ambos os domínios e com que amplitude.

Ora, o STJ tem vindo a entender, de forma dominante, que este tipo de dano biológico – sem prejuízo do que adiante se dirá – deve ser valorado como dano patrimonial futuro e, como tal, objeto de indemnização.

Assim, já em Ac. de 12/09/2006, relatado pelo Cons. Moreira Camilo ([8]), a questão era abordada pela seguinte forma:

«(…) a incapacidade permanente que a afecta repercutir-se-á, residualmente, em diminuição da condição e capacidade física, da resistência, da capacidade de certos esforços e correspondente necessidade de um esforço suplementar para obtenção do mesmo resultado, em suma, numa deficiente ou imperfeita capacidade de utilização do corpo no desenvolvimento das actividades humanas em geral e maior penosidade das laborais (…).

É, pois, esta incapacidade física para a execução de tarefas do círculo da vida não especificamente associado à actividade profissional que integra o dano a indemnizar.

Trata-se, sem dúvida, de um dano de natureza patrimonial que, reflectindo-se, embora em grau indeterminável, na actividade laboral, na medida em que se manifesta pelas sobreditas limitações, revela aptidão para, designadamente, poder retardar ou impedir progressões profissionais ou conduzir a reforma antecipada, tudo com as inerentes quebras de rendimento no futuro.

3. Concordamos com a recorrente quando diz que estamos perante uma incapacidade funcional que constitui um dano patrimonial passível de indemnização específica, a ser enquadrado na categoria de dano patrimonial futuro.».

No mesmo sentido – sem preocupações de exaustividade –, os seguintes arestos:

- Ac. STJ, de 23/04/2009, Proc. 292/04.6TBVNC.S1 (Cons. Salvador da Costa), em www.dgsi.pt:

«2. A indemnização por dano patrimonial futuro deve corresponder à quantificação da vantagem que, segundo o curso normal das coisas ou de harmonia com as circunstâncias especiais do caso, o lesado teria obtido não fora a acção e ou a omissão lesiva em causa.

3. A mera afectação da pessoa do ponto de vista funcional, isto é, sem se traduzir em perda de rendimento de trabalho, releva para efeitos indemnizatórios, como dano biológico, patrimonial, porque determinante de consequências negativas a nível da actividade geral do lesado.» (sumário do Ac.);

- Ac. STJ, de 14/09/2010, Proc. 797/05.1TBSTS.P1 (Cons. Ferreira de Almeida), em www.dgsi.pt:

«IV. Na tarefa de quantificação da indemnização por danos patrimoniais futuros (IPP), de carácter previsível, impõe a lei a utilização da teoria da diferença e da equidade como critérios indemnizatórios.

V. O dano patrimonial futuro mais típico traduz-se, no caso de uma advinda incapacidade permanente parcial (IPP), na perda ou diminuição da capacidade de trabalho ou na perda ou diminuição da capacidade de ganho, sem prejuízo da sua autónoma valoração como dano de natureza não patrimonial.

VI. Há que distinguir entre incapacidade fisiológica ou funcional, por um lado, vulgarmente designada por «deficiência» (vulgo «handicap») e a incapacidade para o trabalho ou incapacidade laboral por outro. Isto apesar de uma e outra serem igualmente dignas de valorização e consequente indemnização, não obstante a chamada teoria da diferença se ajustar mais facilmente às situações em que a lesão sofrida haja sido causa de uma efectiva privação da capacidade de ganho.

VII. Na incapacidade funcional ou fisiológica, a repercussão negativa da respectiva IPP (danos patrimoniais futuros) centra-se (sobretudo) na diminuição da condição física, resistência e capacidade de esforços por parte do lesado, o que se traduz numa deficiente ou imperfeita capacidade de utilização do corpo no desenvolvimento das actividades pessoais, em geral, e numa consequente, e igualmente previsível, maior penosidade, dispêndio e desgaste físico na execução regular das tarefas normais a seu cargo - agravamento da penosidade (de carácter fisiológico).

VIII. O lesado tem direito a ser indemnizado por IPP resultante de acidente de viação – prove-se ou não que, em consequência dessa incapacidade, haja resultado diminuição dos seus proventos do trabalho. Trata-se de indemnizar, «a se», o dano corporal sofrido, quantificado por referência ao índice 100 - integridade psicossomática plena -, que não particularmente qualquer perda efectiva de rendimento ou de concreta privação da capacidade de angariação de réditos.» (sumário do Ac.);

- Ac. STJ, de 07/06/2011, Proc. 160/2002.P1.S1 (Cons. Granja da Fonseca), em www.dgsi.pt:

«I - O dano futuro previsível mais típico prende-se com os casos de perda ou diminuição da capacidade de trabalho e da perda ou diminuição da capacidade de ganho, perda esta caracterizada como efeito danoso, de natureza temporária ou definitiva, que resulta para o ofendido do facto de ter sofrido uma dada lesão, impeditiva da sua obtenção normal de determinados proventos certos (…) como paga do seu trabalho.

II - Porém, a incapacidade funcional, ainda que não impeça o lesado de continuar a trabalhar e ainda que dela não resulte perda de vencimento, reveste a natureza de um dano patrimonial, já que a força do trabalho do homem, porque lhe propicia fonte de rendimentos, é um bem patrimonial, sendo certo que essa incapacidade obriga o lesado a um maior esforço para manter o nível de rendimentos auferidos antes da lesão.

III - Assim, para ser atribuída indemnização pelo dano patrimonial futuro (IPP) não é necessário que a incapacidade determine perda ou diminuição de rendimentos.

IV - Essa incapacidade reflecte-se na impossibilidade de uma vida normal, com reflexos em toda a capacidade, podendo configurar-se como uma incapacidade permanente que deve ser indemnizada.

V - Basta a alegação dessa incapacidade para, uma vez demonstrada, servir de fundamento ao pedido de indemnização pelo dano patrimonial futuro, cujo valor, por ser indeterminado, deve ser fixado equitativamente, nos termos do preceituado no art. 566.º, n.º 3, do CC..» (sumário do Ac.);

- Ac. STJ, de 07/06/2011, Proc. 3042/06.9TBPNF.P1.S1 (Cons. Lopes do Rego), em www.dgsi.pt:

«1.Ao arbitrar-se indemnização pelo dano patrimonial futuro deve ter-se em consideração, não apenas a parcela de rendimentos salariais directa e imediatamente perdidos em função do nível de incapacidade laboral do lesado, calculados através das tabelas financeiras correntemente utilizadas, mas também o dano biológico sofrido por lesado ainda jovem, (consubstanciado em IGP de 29,5%, sujeita a evolução desfavorável, convergindo para o valor de 39,5%), com relevantes limitações funcionais, redutoras das possibilidades de progressão ou reconversão profissional futura, implicando um esforço acrescido no exercício da actividade e gerando uma irremediável perda de oportunidades na evolução previsível da respectiva carreira profissional, alicerçada em curriculum profissional sólido e capacidades pessoais já amplamente reveladas.» (sumário do Ac.) ([9]);

- Ac. STJ, de 21/03/2013, Proc. 565/10.9TBPVL.S1 (Cons. Salazar Casanova), em www.dgsi.pt:

«I - O dano biológico, dano corporal lesivo da saúde, está na origem de outros danos (danos-consequência) designadamente aqueles que se traduzem na perda total ou parcial da capacidade de trabalho.

II - Constitui dano patrimonial a perda de capacidade de trabalho permanente geral de 15 pontos que impõe ao lesado esforços acrescidos no desempenho da sua profissão a justificar, nos termos do art. 564.º, n.º 2 do CC, indemnização correspondente ao acrescido custo do trabalho que o lesado doravante tem de suportar para desempenhar as suas funções laborais.

III - Este dano é distinto do dano não patrimonial (art. 496.º do CC) que se reconduz à dor, ao desgosto, ao sofrimento de uma pessoa que se sente diminuída fisicamente para toda a vida.» (sumário do Ac.);

- Ac. STJ, de 11/04/2013, Proc. 201/07.0TBBGC.P1.S1 (Cons. António Piçarra), em www.dgsi.pt:

«I - O lesado que fica a padecer de IPP – sendo a força de trabalho um bem patrimonial que propicia rendimentos – tem direito a indemnização por danos futuros, danos estes a que a lei manda expressamente atender, desde que sejam previsíveis.

II - A incapacidade permanente constitui, de per si, um dano patrimonial, quer acarrete para o lesado uma diminuição efectiva do seu ganho laboral (presente ou previsivelmente futuro), quer lhe implique apenas um esforço acrescido para manter os mesmos níveis dos seus proventos profissionais (actuais ou previsivelmente futuros).

(…)

IV - Enquanto a indemnização ressarcitória, típica do dano patrimonial, colmata uma lacuna de conteúdo económico existente no património do lesado, a reparação que ocorre relativamente ao dano não patrimonial encontra o património do lesado intacto, mas aumenta-o para que, com tal aumento, este possa encontrar uma compensação para a dor e restabelecer o equilíbrio na esfera incomensurável da felicidade humana.» (sumário do Ac.);

- Ac. STJ, de 02/12/2013, Proc. 1110/07.9TVLSB.L1.S1 (Cons. Garcia Calejo), em www.dgsi.pt:

«III - O dano biológico é um prejuízo que se repercute nas potencialidades e qualidade de vida do lesado, afectando-lhe o seu viver quotidiano na sua vertente laboral, recreativa, sexual, social e sentimental. É um dano que determina perda das faculdades físicas e até intelectuais em termos de futuro, deficiências que se agravarão com a idade do ofendido. Em termos profissionais conduz este dano o lesado a uma posição de inferioridade no confronto com as demais pessoas no mercado de trabalho, exigindo-lhe um maior esforço para o desenvolvimento da sua laboração.

IV - O dano biológico é indemnizável per si, independentemente de se verificarem, ou não, as consequências em termos de diminuição de proventos por parte do lesado.» (sumário do Ac.);

- Ac. STJ, de 18/12/2013, Proc. 3186/08.2TBVCT.G1.S1 (Cons. Fonseca Ramos), em www.dgsi.pt:

«IV - No caso dos autos, do ponto de vista da actividade profissional da Autora, docente profissional, com 40 anos ao tempo do acidente, auferindo o vencimento mensal base de € 1748,16, pese embora a incapacidade permanente geral de 11 pontos que a afecta, incapacidade compatível com as actividades habituais, mas implicando esforços suplementares, o facto das sequelas não implicarem a perda de rendimentos laborais, importa que sejam consideradas como dano patrimonial futuro, dano biológico, já que a afectação da sua potencialidade física e psicológica determina uma irreversível perda de faculdades físicas e intelectuais que a idade agravará.

V - O que está em causa é, pois, o dano biológico na perspectiva de dano patrimonial, que implica que se atenda às repercussões que a lesão causa à pessoa lesada; tal dano assume um cariz dinâmico compreendendo vários factores, sejam actividades laborais, recreativas, sexuais, sociais ou sentimentais.» (sumário do Ac.) ([10]);

- Ac. STJ, de 20/11/2014, Proc. 5572/05.0TVLSB.L1.S1 (Cons. Maria dos Prazeres Beleza), em www.dgsi.pt:

«– Como se disse já no acórdão deste Supremo Tribunal de 31 de Março de 2012 (www.dgsi.pt, 1145/07.1TVLSB.L1.S), na linha dos acórdãos de 20 de Janeiro de 2010 (www.dgsi.pt, proc. nº 203/99.9TBVRL.P1.S1) ou de 20 de Maio de 2010 (www.dgsi.pt, proc. nº 103/2002.L1.S1), “É sabido que a limitação funcional, ou dano biológico, em que se traduz esta incapacidade é apta a provocar no lesado danos de natureza patrimonial e de natureza não patrimonial. No que aos primeiros respeita, o Supremo Tribunal de Justiça já por diversas vezes frisou que «os danos futuros decorrentes de uma lesão física “não [se] reduzem à redução da sua capacidade de trabalho, já que, antes do mais, se traduzem numa lesão do direito fundamental do lesado à saúde e à integridade física; (…) por isso mesmo, não pode ser arbitrada uma indemnização que apenas tenha em conta aquela redução (…)” (cfr. também os acórdãos deste Supremo Tribunal de 28 de Outubro de 1999, proc. nº 99B717, e de 25 de Junho de 2002, proc. nº 02A1321, disponíveis em www.dgsi.pt).»acórdão de 30 de Outubro de 2008 (www.dgsi.pt, proc. nº 07B2978) – e a perda de rendimento que dela resulte, ou a necessidade de um acréscimo de esforço para a evitar (cfr. o acórdão de 20 de Outubro de 2011 (www.dgsi.pt, proc. Nº 428/07.5TBFAF.G1-S1) A lesão que a incapacidade revela pode, naturalmente, causar danos patrimoniais que se não traduzem em perda de ganho (…)”» ([11]).

Concorda-se, assim, com esta jurisprudência do STJ, pelo que é nesta perspetiva que deve ser encarada a indemnização deste dano.

Entendemos, pois, que a indemnização fixada no processo de acidente de trabalho apenas repara o dano (patrimonial) laboral, o qual fica, assim, arrumado.

Mas resta a vertente remanescente do dano biológico, na sua projeção para o futuro, isto é, toda a vida restante do lesado. Esta ver-se-á prejudicada pelo dano corporal/funcional com que o A. se defrontará para o resto da vida, fora do plano laboral, isto, nas mais diversas facetas da sua vida pessoal, familiar e social em tudo o que fica à margem da sua prestação laboral.

Como enfatizado na jurisprudência citada, os danos futuros decorrentes de uma lesão física não se reduzem à redução da capacidade de trabalho do lesado, antes se traduzindo, mais amplamente, numa lesão do direito fundamental à saúde e à integridade física, não podendo ser arbitrada uma indemnização que apenas tenha em conta aquela redução de âmbito laboral.

Importa, então, a afetação da potencialidade física e psicológica da pessoa, a determinar uma irreversível perda de faculdades físicas e intelectuais que a idade agravará, estando em causa as repercussões que a lesão causa à pessoa lesada, compreendendo vários fatores, incluindo atividades recreativas, sexuais, sociais ou sentimentais, sabido que a vida da pessoa não se reduz ao plano laboral e, mesmo neste, que o lesado, se tiver de enfrentar no futuro o mercado laboral, ali se apresentará funcionalmente diminuído e, por isso, com menores possibilidades de responder às exigências de concorrência por um emprego.

Assim, se a reparação pelo dano especificamente laboral já se mostra definida no processo por acidente de trabalho – o que impede que volte a ser reparada, na instância cível –, resta a vertente do dano biológico que afeta a vida extralaboral do lesado, a dever ser agora objeto de reparação, por não o ter sido antes, termos em que urge concluir (com tudo o respeito devido) que no foro laboral, se foi já reparado o dano/perda laboral, não foi, porém, reparado integralmente o dano patrimonial sofrido, nesta outra vertente do dano biológico (reportada ao dito dano/vertente extralaboral).

Assim sendo, importa agora proceder à respetiva reparação – do dano biológico como dano patrimonial futuro de feição extralaboral ([12]).

Desde logo, deve dizer-se – citando o aludido Ac. STJ, de 20/11/2014, Proc. 5572/05.0TVLSB.L1.S1 – que, “Como repetidamente tem observado o Supremo Tribunal de Justiça, o critério fundamental para a determinação judicial das indemnizações é fixado pelo Código Civil. Os critérios seguidos pela Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio, com ou sem as alterações introduzidas pela Portaria nº 679/2009, de 25 de Junho, (…) destinam-se expressamente a um âmbito de aplicação extra-judicial e, se podem ser ponderados pelo julgador, não se sobrepõem àquele (cfr., por todos, o acórdão de 7 de Julho de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 205/07.3GTLRA.C1)” ([13]).

A 1.ª instância, recorrendo à equidade – em cujo âmbito ponderou a pertinente factualidade provada –, fixou o dito montante indemnizatório de € 100.000,00 (já com a redução de € 5.000,00), enquanto a R./Apelante pugna pela não atribuição de indemnização ou, assim não se entendendo, pelo enorme exagero do arbitrado.

Neste âmbito, é verdade que o défice funcional se prolongará por toda a vida do lesado (para além da idade da reforma, não significando esta que se deixe de trabalhar depois dessa idade), sendo que este contava, ao tempo do acidente, 37 anos de idade – apenas –, como referido na sentença.

Tal défice, reportado ao grau de incapacidade descrito, com as decorrestes limitações no uso do corpo, deixando significativa repercussão funcional, como bem ilustrado nos factos provados, deixa o A./lesado seriamente empobrecido/limitado no seu dia a dia, no plano pessoal, familiar e social, tornando-lhe mais difíceis ou impraticáveis diversas tarefas domésticas ou de laser e limitando-lhe seriamente o acesso ao mercado concorrencial de trabalho, caso um dia o haja de enfrentar.

Na verdade, uma limitação/ défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 53 pontos, numa pessoa com 37 anos de idade ao tempo do acidente, é de ter como muito significativa, neste plano, sem esquecer que o expectável agravamento futuro (aparecimento de artrose no joelho esquerdo, a par da artrose da anca), do que é reflexo a elevada repercussão nas atividades desportivas e de lazer, a ascende a “5/7”, quando é sabido que se trata de pessoa que tinha a integridade físico-psíquica correspondente à sua idade, saúde e situação social, havendo múltiplas tarefas, mesmo na vida diária/pessoal, que deixou de poder executar, ou cuja realização se tornou mais penoso, posto que, como é consabido, a vida da pessoa não se esgota na sua atividade profissional.

Assim sendo, tendo em conta que a indemnização agora a fixar já se encontra atualizada ([14]) – e é apreciável o tempo entretanto decorrido, aqui tido como fator de ponderação, posto que o acidente teve lugar já em janeiro de 2016 –, vista a idade do lesado e os reflexos da incapacidade na sua vida extraprofissional – a maior penosidade a que está exposto vai prolongar-se por toda a sua restante vida ativa, previsivelmente por várias décadas, atenta a sua ainda relativa juventude, com repercussões muito significativas no seu dia-a-dia, e adotando a bitola da equidade ([15]), não sendo possível proceder a um cálculo aritmético deste dano ([16]), mas não olvidando o nível reparatório arbitrado já na instância laboral ([17]), parece-nos adequado e conforme aos padrões indemnizatórios jurisprudências presentes, o montante fixado, a final, pelo Tribunal recorrida de € 100.000,00já objeto, como dito, de atualização.

Com efeito, por um lado, haverá de atentar-se em que certas facetas do dano agora invocadas pelo A./Recorrente nas suas conclusões de apelação cabem na categoria específica do dano não patrimonial, objeto de indemnização autónoma, como é o caso das dores e sofrimentos (quantum doloris) e dano estético, o que obriga à respetiva não ponderação no quadro do dano biológico, sob pena de dupla valoração e dupla indemnização, ao que acresce que o montante fixado deve ter-se, como dito, por já atualizado.

Por outro lado, temos vindo a concordar, quanto à equidade, que pode emergir uma dimensão subjetiva inerente a cada julgador, potenciadora de soluções divergentes para casos similares, razão pela qual a aplicação, em concreto, da equidade obriga a especial ponderação, de molde a, numa perspetiva objetivista do juízo equitativo, evitar soluções que, afetando a certeza e segurança do direito, sejam portadoras de injustiça.

Neste âmbito, parece que os tribunais superiores devem adotar um critério prudencial que apenas considere como censurável e suscetível de revogação uma solução que, de forma manifesta e intolerável, exceda certa margem de liberdade decisória que permite considerar como ainda ajustado e razoável um montante indemnizatório situado dentro de determinados limites.

Haverá, pois, de sindicar-se o critério de equidade concretamente aplicado, pelo que, a situar-se a indemnização fixada no quadro de um exercício razoável do juízo de equidade, designadamente à luz da prática jurisprudencial mais recente do STJ e atendendo às diferenças nas circunstâncias pessoais das vítimas, não será caso de revogar a decisão recorrida ([18]).

Nesta perspetiva, e sem quebra do respeito devido, improcedem as conclusões em contrário de ambos os Apelantes ([19]), com a consequente manutenção da decisão recorrida neste aspeto indemnizatório, visto corresponder às exigências da equidade, também em termos de atualização, e do princípio da igualdade em matéria de desejável uniformidade de valores indemnizatórios estabelecidos pela prática judicial.

1.2. - Da indemnização por danos não patrimoniais

Refere a R./Apelante que, fixada a reparação por danos não patrimoniais, novamente com recurso necessário à equidade e de forma atualizada, em € 100.000,00, tal quantia tem de reputar-se de exageradíssima, devendo, por isso, ser objeto de séria redução.

Ora, se é certo que o pedido de indemnização por danos não patrimoniais ascendia – já após ampliação – a € 90.000,00, vista a amplitude de tais danos morais sofridos, tal como resultantes, agora, da factualidade provada, dir-se-á que, mais uma vez, tem de operar aqui – especialmente aqui – o juízo de equidade, de molde a encontrar a justa solução do caso, ressarcindo devidamente o lesado.

E deve começar por dizer-se que, como visto, o valor atribuído excede o originariamente peticionado a este título, tal como excede o pedido ampliado (embora se contenha, claramente, dentro do pedido indemnizatório global e só este, como é sabido, constitua limite para a condenação judicial).

Ora, atentando, como se impõe, na dimensão do dano sofrido agora a ser objeto de valoração, cabe começar por dizer que não se provou que o A.:

- ficou impossibilitado de desenvolver atividade sexual e de procriação;

- vive ainda hoje no terror permanente de, no futuro, sobrevirem novas consequências que, nomeadamente, lhe venham a impossibilitar ou restringir uma mudança de profissão ou o exercício, o desenvolvimento e a conversão da atual, com os inevitáveis efeitos da perda de oportunidades laborais e do seu reflexo patrimonial;

- ficou a sofrer de um prejuízo sexual de “1/5”;

- Passou a sentir limitações na atividade sexual, principalmente por via das dores que sente quando mantém o corpo em determinadas posições idade e procriação.

Mas, por outro lado, é certo – como referido na sentença – que o lesado sofreu dores resultantes dos ferimentos e dos tratamentos, num quantum doloris já de grau “6/7”, ficando ainda com diversas cicatrizes, com correspondente dano estético no grau “5/7”.

Na verdade, prova-se que o A. sofreu:

- múltiplas fraturas ([20]);

- teve necessidade de sujeitar-se a um total de sete intervenções cirúrgicas ([21]);

- teve 70 dias de internamento hospitalar, dos quais os primeiros três na unidade de cuidados intensivos;

- recebeu duas transfusões de sangue, aquando daquelas primeiras quatro intervenções sucessivas;

- entre 24/03/2016 e 08/05/2016, não pôde dispensar o auxílio de uma terceira pessoa para todos os atos da sua vida pessoal e apenas pôde deslocar-se de cadeira de rodas;

- depois, passou a usar também bengalas canadianas, como auxiliar da marcha;

- sujeitou-se a mais de 20 (vinte) consultas de especialidades médicas diferentes;

- realizou um total de 283 sessões de fisioterapia;

- suportou dinamização do encavilhamento femural;

- teve o incómodo de suportar longo período de défice funcional temporário, com 494 dias de repercussão temporária na atividade profissional total;

- só teve alta definitiva em 02/06/2017, data da consolidação médico-legal das lesões sofridas;

- ficou com diversificadas sequelas lesionais, funcionais e situacionais, tais como:

- afundamento da órbita esquerda (enoftalmia); - discreto desvio do eixo do nariz de concavidade direita; - hipotrofia do braço esquerdo; - mobilidade reduzida do cotovelo esquerdo, com défice da extensão 45º e da flexão até 90º e com arco de movimento de 40º; - hipostesia da face posterior do braço e do antebraço esquerdos; - ligeira elevação da hemibacia direita; - encurtamento da perna esquerda, em cerca de 1,9 cm; - amiotrofia da coxa, de 1 cm e incipiente artrose da anca; - ligeiro aluimento da abóbada plantar e hipotrofia muscular da região medial do pé esquerdo;

- edema do tornozelo esquerdo; - dificuldade em mastigar os alimentos, à esquerda, por falta de sensibilidade, o que lhe provoca acumulação de restos de comida; - claudicação na marcha; - dificuldade na condução automóvel (deixou de poder conduzir veículos com caixa manual e viu-se forçado a comprar um com caixa automática); - dificuldade em sentar-se, levantar-se, subir e descer escadas ou rampas; - dificuldade em vestir-se, despir-se e realizar a sua higiene pessoal; - dificuldade em locomover-se regularmente dentro do local de trabalho para vigiar a produção (obrigando-o a paragens frequentes) e em pegar em algumas peças produzidas para a análise de qualidade; - incapacidade de dançar, de correr e, ao fim de algum tempo, de permanecer de pé, de cócoras e ajoelhado; - incapacidade de, com o braço esquerdo, levantar e transportar pesos, em geral; - incapacidade de pegar na filha ao colo; - incapacidade de praticar os desportos que sempre praticou;

- incapacidade de continuar ajudar a servir à mesa em restaurante de amigos; - incapacidade de frequentar locais de lazer, em que haja anormais níveis de ruído;

- limitação dolorosa da mobilidade do punho direito, sobretudo, nos movimentos rápidos; - défice de flexão do quarto dedo da mão direita, que impede o enrolamento; - limitação da mobilidade do punho e do cotovelo esquerdo, por défice de extensão (que, v. g., dificulta levar a mão à boca, à orelha e ao ombro); - diminuição da força de preensão e extensão da mão esquerda, mais acentuada no 4º e no 5º dedos (que, v. g., dificulta o uso de talheres e/ou provoca constantes quedas de objetos); - impossibilidade de fazer a extensão completa da falange distal do terceiro dedo da mão esquerda; - alteração sensitiva (formigueiro e choques elétricos) na tabaqueira anatómica e dorso do primeiro espaço da mão esquerda;

- ansiedade, sobretudo, quando revivaliza o acidente; - tristeza, sem motivo aparente; - irritabilidade, com repercussões na vida familiar e social; - insónias frequentes, pesadelos sobre o acidente e alterações mnésicas;

- cefaleias frequentes; - dor ocular, à esquerda; - dor na compressão toráxica; - dor no ombro e no cotovelos esquerdos; - dor nos punhos direito e esquerdo; - dorso-lombalgias frequentes; - dor constante na anca, com limitação acentuada das rotações, da adução e da abdução, bem como na coxa e no joelho esquerdos; - dor na região inguinal esquerda; - dor na perna e região plantar até ao segundo dedo do pé, agravada no apoio plantar com a marcha, à esquerda; - hipersensibilidade no território do nervo cubital ao nível da mão, com impossibilidade de enrolar completamente o terceiro dedo; - diplopia nos movimentos extremos dos olhos; - fotofobia e hipersensibilidade no olho esquerdo ; - hipersensibilidade na região malar esquerda; - hipostesia na mucosa gengival e nos dentes do maxilar superior esquerdo; - desvio discreto do eixo do nariz, de concavidade direita; - diminuição acentuada do olfacto; - hipotrofia muscular acentuada nos músculos do braço esquerdo, sobretudo, do tricípite braquial;

- cicatrizes inestéticas (total de vinte).

A repercussão das lesões sofridas nas suas actividades desportivas e de lazer deve ser quantificada em “5/7”.

O A. mostra-se por vezes abatido, triste, pessimista, com diminuição de afirmação pessoal (em relação às atividades que deixou de poder desenvolver), ansioso, irritável, com difíceis contactos a nível social, revoltado e receoso quanto ao seu próprio futuro, por efeito de todos os males que sofreu.

A seguir ao acidente, ficou impossibilitado de levantar e transportar pesos com o braço esquerdo, sendo que nos últimos meses de gravidez da esposa e nos doze imediatos ao nascimento da filha do casal, ocorrido em maio seguinte, viu-se impedido de colaborar com ela nas lides domésticas e de a acompanhar a consultas médicas, às compras do enxoval da bebé.

Durante mais de um ano, não pôde pegar na filha ao colo, embalá-la, dar-lhe banho, vesti-la, passeá-la, como gostaria de ter podido fazer.

Deixou de praticar os seus desportos habituais e de ajudar a servir à mesa em restaurante de amigos (o que fazia por mera distração, aos fins-de-semana).

Sofreu intensas dores logo a seguir ao acidente e durante as cerca de duas horas em que permaneceu encarcerado no veículo, mas sempre consciente.

Ainda hoje tem dores frequentes, embora algo mitigadas e de intensidade variável, mas que não mais o abandonarão, mesmo depois de realizadas as intervenções cirúrgicas e cumpridos os tratamentos médicos que se lhe seguiram, em processo de convalescença.

Despendeu muitas dezenas de horas a correr para hospitais e consultas médicas, a realizar exames e sessões de fisioterapia (num total de 283, à razão de uma/duas horas, cada uma) e farmácias, o que tudo lhe tem trazido preocupações, desgostos, contrariedades, receios, mal-estar, desconforto e sacrifícios.

Assim sendo, ficaram significativamente afetadas a saúde e a vida pessoal, social e familiar do A., pelo que, vista a amplitude de tais danos morais sofridos, tal como antes elencados e resultantes da factualidade provada, dir-se-á que, mais uma vez, tem de operar aqui – especialmente aqui – o juízo de equidade, de molde a encontrar a justa solução do caso, ressarcindo devidamente o lesado.

Como é consabido, a indemnização por danos não patrimoniais deve ser, em termos de quantum, não irrelevante ou simbólica, mas significativa, visando propiciar compensação adequada quanto ao dano sofrido, com fixação equilibrada e ponderada, de acordo com critérios de equidade, direcionados para as circunstâncias do caso, sem esquecer os padrões jurisprudenciais indemnizatórios atualizados.

E como alerta Menezes Cordeiro ([22]), com alguma pertinência para o caso, haverá de superar-se – o que vem sendo feito – as “deprimidas cifras obtidas nos tribunais” (no campo indemnizatório), não valendo “a pena dispormos de uma Constituição generosa, de uma rica e cuidada jurisprudência constitucional e de largos desenvolvimentos sobre direitos de personalidade quando, no terreno, direitos fundamentais como a vida valham menos de € 60.000.

A defesa do sistema segurador faz-se combatendo os acidentes e não as indemnizações.” (cfr. p. 901).

Quanto à prática jurisprudencial, podem ter-se em conta, entre outros, os seguintes arestos do STJ (todos em www.dgsi.pt), como ponto de referência e salvaguardando as diferenças e especificidades de cada caso concreto:

- Ac. de 07/09/2020, Proc. 5466/15.1T8GMR.G1.S1 (Cons. José Rainho):

«Não se mostra excessivamente valorado em € 60.000,00 o dano não patrimonial que atingiu o lesado em acidente de viação, perante o seguinte quadro nuclear: - Tinha 34 anos; - Sofreu esmagamento dos membros inferiores, com amputação traumática do membro inferior esquerdo e com amputação do membro inferior direito abaixo do joelho, - Sofreu várias fraturas; - Sofreu várias intervenções cirúrgicas e internamentos hospitalares; - Sofreu um período de défice funcional temporário total de 180 dias; um período de défice funcional temporário parcial de 503 dias; um período de repercussão temporária na atividade profissional total de 682 dias; - Ficou afetado de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 67 pontos, impeditivo do exercício da atividade profissional habitual (embora compatível com o exercício de outras profissões da sua área de preparação técnico-profissional); - Padeceu de dores de grau 6 numa escala de gravidade crescente de 1 a 7 graus; - Sofreu dano estético permanente de grau 5, numa escala de gravidade crescente de 1 a 7 pontos; - Está afetado de uma limitação permanente nas atividades desportivas e de lazer de grau 4, numa escala de gravidade crescente de 1 a 7 pontos; - Está afetado sexualmente num grau de 4, numa escala de gravidade crescente de 1 a 7 pontos; - Está relativamente limitado na sua independência e nas suas atividades da vida diária e doméstica; - Foi sujeito a dolorosos tratamentos e ainda padece de dores; - Ficou triste, nervoso e melancólico, com dificuldade em dormir e descansar, sendo agora uma pessoa amargurada, angustiada e abatida, sentindo profundamente as sequelas do acidente; - Está obrigado a fazer uso de próteses nos membros inferiores»;

- Ac. de 19/10/2021, Proc. 7098/16.8T8PRT.P1.S1 (Cons. Manuel Capelo):

«Respeita igualmente os imperativos de equidade uma indemnização por danos morais no montante de € 125 000,00, de acordo com a jurisprudência e seu sentido evolutivo, que atende à circunstância de o autor, pessoa saudável, ter passado a necessitar durante toda a sua vida do auxílio de terceira pessoa para determinadas tarefas; sentir vergonha de si mesmo nas suas relações com outros, nomeadamente por força da afectação da sua actividade sexual fixável no grau 3/7; alterações do sono, instabilidade emocional, diminuição das capacidades de memória e raciocínio, síndroma pós-traumático, perda da libido. E num quadro de dores permanentes que exigem consulta da dor quantificáveis no grau 6/7; com dano estético permanente do grau 5/7 e perda de capacidade e interesse por actividades que anteriormente lhe davam prazer fixável no grau 4/7.»;

- Ac. STJ de 06/12/2022, Proc. 2517/16.6T8AVR.P1.S1 (Cons. Manuel Aguiar Pereira):

«Afigura-se ajustada e equitativa a atribuição de uma indemnização de € 30 000,00 para reparação de danos de natureza não patrimonial sofridos por uma mulher de trinta e sete anos de idade que passou a registar após o facto ilícito, e por causa dele, um défice de 11 pontos de eficiência funcional de integridade físico-psíquica por sintomatologia ansiosa e depressiva reactiva ao acontecimento, sem sequelas físicas definitivas, por agravamento de impacto moderado de anterior quadro psiquiátrico.»;

- Ac. STJ de 21/06/2022, Proc. 1991/15.2T8PTM.E1.S1 (Cons. António Magalhães):

«Num caso em que o lesado ficou com um défice funcional permanente de 39 pontos, teve  um quantum doloris de 5 numa escala de 7, um dano estético relevante (3 em 7), consequências permanentes na sua atividade sexual (fixado em 3 numa escala de 7), na repercussão nas actividades desportivas e de lazer (2 em 7), no relacionamento social com familiares e amigos, se sente menorizado em resultado da sua situação de incapacidade para o trabalho e se encontra reformado por invalidez, tendo o acidente ocorrido quando tinha apenas 30 anos de idade, a tudo acrescendo a circunstância de continuar a necessitar de medicamentos, consultas e tratamentos no futuro, é ajustada a indemnização de  85.000,00 € por danos não patrimoniais, que foi atribuída pela Relação»;

- Ac. STJ de 08/11/2022, Proc. 2133/16.2T8CTB.C1.S1 (Cons. António Magalhães):

«Tendo sido atribuído ao lesado um quantum doloris de 6 numa escala de 7, um dano estético relevante de 4 em 7 e repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer de 6 em 7 pontos - uma vez que, quanto a este índice, ficou privado de continuar a praticar o motociclismo, o que fazia com regularidade, participando em diversas provas, incluindo federadas e, ainda, impossibilitado de praticar desportos que também fazia, como bicicleta BTT, esqui na neve e esqui aquático, tendo ficado, ainda, condicionado no exercício da actividade desportiva de mergulho, que também praticava- a tudo acrescendo a circunstância de ter sido submetido a cinco intervenções cirúrgicas, com um pós-operatório prolongado (com uma  repercussão temporária na actividade profissional total de 870 dias), de continuar a necessitar de medicamentos, consultas e tratamentos no futuro e de continuar padecer de dores,  afigura-se ajustada a indemnização de  € 70.000 por danos não patrimoniais que foi atribuída pela Relação.».

Tudo ponderado, vista a dimensão deste dano não patrimonial suportado, não se vê que o juízo de equidade imponha a fixação de uma indemnização acima do montante peticionado a este título, de € 90.000,00, devendo atender-se à valoração/quantificação que a parte faz do seu próprio dano.

Mas também não se vê que, perante a apurada amplitude do dano e os parâmetros seguidos, no campo da equidade, pela jurisprudência atual dos tribunais superiores, deva reduzir-se a reparação para valor inferior àqueles € 90.000,00, tanto mais que, também aqui, o montante indemnizatório já se mostra atualizado, pelo que os juros de mora só são devidos a contar da decisão condenatória.

Improcedem, pois, no mais, as conclusões em contrário da R./Apelante, com a consequente fixação da reparação por danos não patrimoniais, em alteração da sentença, naquele montante atualizado de € 90.000,00.

Em suma, apenas se altera a indemnização pelo dano não patrimonial, mantendo-se, pois, no mais, a decisão em crise, termos em que procede em parte a apelação da R. e improcede a apelação do A..

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(…)

***
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação, na parcial procedência da apelação da R. e improcedência da apelação do A., em:
a) Alterar a decisão recorrida quanto ao montante parcelar indemnizatório pelos danos não patrimoniais, diminuindo a respetiva indemnização para o montante de € 90.000,00 (noventa mil euros), a que acrescem juros moratórios nos moldes fixados na sentença;
b) Mantendo no mais a sentença apelada.

Custas da ação e do recurso da R./Apelante, por esta e pelo A./Apelado, na proporção do respetivo decaimento, dependente de simples cálculo aritmético (art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.).

Custas da apelação do A., a suportar por este, ante o seu decaimento.

 

Coimbra, 14/03/2023

Escrito e revisto pelo relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Vítor Amaral (relator)

Luís Cravo

Fernando Monteiro





([1]) Com ref. 90180052, como consta de fls. 243 do processo físico.
([2]) Cfr. apenso «A», de recurso em separado.
([3]) Aqui objeto de transcrição, com destaques retirados.
([4]) Cujo teor se deixa transcrito, com destaques retirados.
([5]) Excetuando questões de conhecimento oficioso, não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([6]) No âmbito da força probatória da dita prova técnica/pericial, produzida nos autos, com integral sujeição ao princípio do contraditório, sobrepondo-se, por isso, a outras provas não coincidentes e dotadas de menor força probatória/credibilidade.
([7]) Exarou-se na decisão recorrida que os factos, «para facilidade de escrutínio, se listam com referência aos números que originariamente lhes foram atribuídos, nos articulados das partes».
([8]) Proc. 06A2145, disponível em www.dgsi.pt.
([9]) No mesmo sentido, do mesmo Relator, o Ac. STJ, de 11/12/2012, Proc. 40/08.1TBMMV.C1.S1, também em www.dgsi.pt, em cujo sumário pode ler-se: «São de considerar como danos diferentes o que decorre da perda de rendimentos salariais, associado ao grau de incapacidade laboral fixado no processo de acidente de trabalho e compensado pela atribuição de certo capital de remição, e o dano biológico decorrente das sequelas incapacitantes do lesado que – embora não determinem perda de rendimento laboral – envolvem restrições acentuadas à capacidade do sinistrado, implicando esforços acrescidos, quer para a realização das tarefas profissionais, quer para as actividades da vida pessoal e corrente.».

([10]) No mesmo sentido, do mesmo Relator, o Ac. STJ, de 19/05/2009, Proc. 298/06.0TBSJM.S1, também em www.dgsi.pt, em cujo sumário pode ler-se: «I) - Se a actividade profissional da Autora, pese embora a incapacidade permanente que a afecta em consequência das lesões provocadas pelo acidente de viação de que foi vítima, não implicou a perda de rendimentos laborais, porquanto ao tempo do sinistro estava aposentada da sua profissão de funcionária pública, o que há a considerar como dano patrimonial futuro é o dano biológico, já que a afectação da sua potencialidade física determina uma irreversível perda de faculdades físicas e intelectuais que a idade agravará. II) - Havendo dano biológico importa atender às repercussões que as lesões causaram à pessoa lesada; tal dano assume um cariz dinâmico compreendendo vários factores, sejam actividades laborais, recreativas, sexuais, ou sociais. III) - A incapacidade parcial permanente, afectando ou não, a actividade laboral, representa, em si mesmo, um dano patrimonial futuro, nunca podendo reduzir-se à categoria de meros danos não patrimoniais.».

([11]) No mesmo sentido, da mesma Relatora, o Ac. STJ, de 20/10/2011, Proc. 428/07.5TBFAF.G1.S1, também em www.dgsi.pt, em cujo sumário pode ler-se: «1. Para efeitos de indemnização, devem ter-se em conta os danos futuros, desde que previsíveis (nº 2 do artigo 564º do Código Civil), sejam danos emergentes, sejam lucros cessantes (nº 1 do mesmo preceito); e o respectivo cálculo deve ter como critério primeiro a equidade, nos casos em que, como tipicamente sucede com os danos futuros, não é possível averiguar o seu “valor exacto” (nº 3 do artigo 566º do mesmo Código). 2. Os danos futuros decorrentes de uma lesão física não [se] reduzem à redução da sua capacidade de trabalho, já que, antes do mais, se traduzem numa lesão do direito fundamental. 3. Uma incapacidade permanente geral, compatível com o exercício da actividade profissional habitual mas exigindo esforços suplementares para a desenvolver, é causa de danos patrimoniais futuros, indemnizáveis nos termos dos artigos 562º e segs., do Código Civil, maxime dos artigos 564º e 566º;».
([12]) Veja-se, neste sentido, o recente Ac. STJ de 31/01/2023, Proc. 795/20.5T8LRA.C1.S1 (Cons. Manuel Aguiar Pereira), em www.dgsi.pt, em cujo sumário pode ler-se: «I. Do facto de o lesado em acidente simultaneamente de viação e de trabalho ter recebido a indemnização por acidente de trabalho acordada com a seguradora responsável pela reparação do sinistro no respectivo processo laboral não resulta que não possa haver lugar a indemnização pelos danos patrimoniais futuros decorrentes do dano biológico sofrido, se as sequelas definitivas do acidente forem de molde a fazer prever a sua ocorrência».
([13]) Assim, na sede processual/judicial, aquela ou outras portarias, não podem sobrepor-se, na fixação indemnizatória por acidente de viação, às normas aplicáveis do CCiv., sendo estas últimas que prevalecem, a final (em derradeira análise), na regulação jurídica de tal matéria.
([14]) Atualização operada na sentença nesta vertente, tendo em consideração o critério indicado no Ac. de Uniformização de Jurisprudência (do STJ), de 09/05/2002, Proc. 01A1508 (Cons. Garcia Marques), disponível em www.dgsi.pt, que procedeu à seguinte linha de uniformização: “Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação”.
([15]) Nas palavras do Ac. STJ, de 04/04/2002, Proc. 02B205 (Cons. Neves Ribeiro), in www.dgsi.pt, “A equidade que atravessa todo o juízo valorativo para o calculo possível de um dano que corresponde, afinal, à situação virtual da diferença entre o antes e o depois da verificação do evento (artigo 562.º) – a equidade, dizíamos – e para que assuma verdadeiramente essa natureza de justiça do caso, na conhecida definição aristotélica, tem de funcionar nos dois sentidos, como é disso afloramento o que diz o artigo 494.º, do Código Civil. Deve tratar-se igual o que é igual; e diferente o que é diferente!”. E como também já explicitado na jurisprudência, citando doutrina autorizada, «“a equidade é a resposta àquelas perguntas em que está em causa o que é justo ou o que é mais justo. E funciona em casos muito restritos, algumas vezes para colmatar as incertezas do material probatório; noutras para corrigir as arestas de uma pura subsunção legal, quando encarada em abstracto… A equidade, exactamente entendida, não traduz uma intenção distinta da intenção jurídica, é antes um elemento essencial da jurisdicidade… A equidade é, pois, a expressão da justiça num dado caso concreto… não equivale ao arbítrio; é mesmo a sua negação… é uma justiça de proporção, de adequação às circunstâncias, de equilíbrio. Quando se faz apelo a critérios de equidade, pretende-se somente encontrar aquilo que, no caso concreto, pode ser a solução mais justa; a equidade está assim limitada sempre pelos imperativos da justiça real (a justiça ajustada às circunstâncias), em oposição à justiça meramente formal” (Dário Martins de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, 2.ª ed., págs. 103/105)» – cfr. Ac. Rel. Lisboa, de 29/06/2006, Proc. 4860/2006-6 (Rel. Carlos Valverde), in www.dgsi.pt.
([16]) Cujo valor indemnizatório, sendo indeterminado, deve ser fixado equitativamente, nos termos do disposto no art.º 566.º, n.º 3, do CCiv..
([17]) Obviamente, nada mostra que o lesado, ao procurar – como procurou – a indemnização do dano patrimonial laboral, na sede judicial própria, tenha querido desistir/abdicar da reparação do dano patrimonial extralaboral, o qual pede na instância cível, «renúncia» que só o poderia prejudicar e beneficiar, por seu lado, a seguradora de acidentes de viação.
([18]) Cfr., neste sentido, entre outros, o Ac. TRE, de 22/10/2015, Proc. 378/10.8TBGLG.E1 (Rel. Mário Mendes Serrano), em www.dgsi.pt.
([19]) De referir, quanto à argumentação do A., que já se encontra definido o regime reparatório do dano patrimonial laboral, horizonte em que haverá de atender-se ao montante anual arbitrado e aos dados atuais sobre a previsível esperança média de vida e de obtenção da reforma, termos em que, visto o montante de pensão anual e vitalícia (grosso modo, quantia anual superior a € 15.000,00), multiplicado por cerca de 30 anos (o A. tinha 37 à data do acidente), obtém-se facilmente valor superior a € 450.000,00. A este valor contingente – obviamente, faseado no tempo e dependente do efetivo tempo de vida futura do lesado – adicionar-se-á, complementarmente, o montante da indemnização pelo dano biológico, na remanescente vertente cível, assim se obtendo a reparação integral (em montante que se reputa significativo) do dano patrimonial global sofrido (este também de dimensão significativa).
([20]) Assim: - “fractura exposta do úmero esquerdo com paralisia do nervo radial”; - “fractura luxação de Monteggia à esquerda com cominação do oleocrânio”; - ”fractura cominutiva da diáfise do fémur esquerdo”; - ”fractura do prato tibial externo esquerdo”; - ”fractura do rádio distal direito”; - ”rotura do extensor dedo anelar” da mão direita; - ”TCE discreta hemorragia subaracnoideia occipital e temporal inferior à esquerda”; - ”fractura da órbita esquerda atingindo o pavimento medial e lateral”; - ”fractura dos ossos próprios do nariz”; - “fractura do 2º. metatarsiano” do pé esquerdo; - fractura do dente 26.
([21]) Como provado, das especialidades de Cirurgia Reconstrutiva Plástica e Maxilo-Facial e Ortopedia: I - em 03/02/2016, no Centro Hospitalar ..., um conjunto de quatro cirurgias sucessivas, num só dia, para os seguintes fins: - à cabeça: osteossíntese com malha de titânio de fratura para correção do afundamento dos ossos da face; - ao braço esquerdo: osteossíntese com placa e parafusos do úmero, osteossíntese do rádio e cerclage do epicôndilo e olecrânio; - à perna esquerda: encavilhamento centromedular de fractura da diáfase do fémur e osteossíntese dos pratos tibiais; - à mão direita (tendão extensor do quarto dedo); II - em 08/03/2016, na ...-Hospital ..., para reconstrução dos extensores do terceiro e do quarto dedos da mão direita; III - em 08/05/2016, ainda na ...-Hospital ..., para neurólise do nervo radial esquerdo; IV - em 07/03/2017, na Casa de Saúde ..., no ..., para remoção de parafusos distais do fémur esquerdo.
([22]) Em Direito dos Seguros, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, ps. 896 a 901.