Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
680/09.1T2AVR-G.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ GUERRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
CRÉDITOS LABORAIS
FUNDO DE GARANTIA SALARIAL
SUB-ROGAÇÃO
Data do Acordão: 03/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CBA AVEIRO J COM
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.593 CC, 336, 380 CT, 175, 182 CIRE, LEI Nº 35/2004 DE 29/7
Sumário: 1. Nas situações em que Fundo de Garantia Salarial não paga a totalidade dos créditos dos trabalhadores a parte remanescente continua na esfera jurídica destes, beneficiando ambos dos mesmos privilégios creditórios.

2. Na fase dos pagamentos, devem ambos ser colocados no mesmo patamar, isto é, no mapa de rateio final do processo de insolvência contemplado no Art. 182º do CIRE devem ambos nele ser incluídos e contemplados, paritária e proporcionalmente, caso tal se revele necessário.

Decisão Texto Integral: Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra

          I- RELATÓRIO

         1. Nos autos de insolvência em que foi declarada insolvente F (…) S.A. veio o FUNDO DE GARANTIA SALARIAL deduzir incidente de habilitação, com vista a prosseguir nos autos sub-rogado nos direitos e privilégios creditórios de cada trabalhador, na medida do pagamento efectuado.

        

         2. Sem oposição, veio o requerente FUNDO DE GARANTIA SALARIAL a ser julgado habilitado para intervir e prosseguir nos referidos autos de insolvência, designadamente, em sede de pagamentos, em substituição dos trabalhadores:

         -A (…) até ao montante de € 8.100,00,

         -J (…), até ao montante de € 8.100,00,

         -V (…), até ao montante de € 5.801,68,

         -J (..), até ao montante de € 3.000,00,

         -M (…), até ao montante de € 8.100,00,

         -D (…) até ao montante de € 8.100,00,

         -A (…), até ao montante de € 8.100,00,

         -M (…), até ao montante de € 3.600,00,

         -M (…), até ao montante de € 8.100,00,

         -C (…), até ao montante de € 2.812,50,

         -J (…), até ao montante de € 8.100,00,

         -R (…), até ao montante de € 1.912,50,

         -V (…), até ao montante de € 4.877,93,

         -R (…), até ao montante de € 3.900,00,

         -A (…), até ao montante de € 8.100,00,

         -M (…), até ao montante de € 8.100,00,

         -A (…), até ao montante de € 2.362,50,

         -J (…), até ao montante de € 3.955,92,

         -M (…), até ao montante de € 8.100,00,

         -A (…), até ao montante de € 8.100,00.

         3. Na mesma decisão em que se julgou habilitado o FUNDO DE GARANTIA SALARIAL nos termos que se deixaram expostos, veio também a ser decidido que os créditos por ele adquiridos por sub-rogação (e que pela via da habilitação processual pretende aquele exercer nos referidos autos de insolvência) são pagos imediatamente a seguir  aos créditos laborais, por se entender que, no caso de insolvência do devedor, aquilo que for afecto ao pagamento do crédito global destina-se em primeiro lugar ao credor primitivo e só o excedente, se o houver, aproveita ao sub-rogado, mais se adiantando que o montante dos créditos graduados permanece igual e que apenas parte dos mesmos serão a distribuir também pelo Fundo de Garantia Salarial e não só pelos trabalhadores a quem aquele efectuou os pagamentos cujo reembolso reclama agora ao devedor nos autos.

 

         4. Inconformado com o assim decidido veio o FUNDO DE GARANTIA SALARIAL, interpor recurso rematando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:

         1ª. Vem o presente recurso interposto da douta Sentença de fls. e ss., proferido nos autos de Habilitação de adquirente ou cessionário supra identificados, na parte em que determina que os créditos adquiridos pelo ora apelante, e objecto do presente incidente de habilitação, são pagos imediatamente a seguir aos créditos laborais, por força do disposto no art. 593º n.° 2, do Código Civil.

         2ª. O ora apelante não se conforma nem adere ao entendimento plasmado na douta sentença relativamente à posição em que devem ser graduados os créditos do Fundo de Garantia Salarial.

         3ª. Isto porque, de harmonia com o art. 322.°, da Lei n.° 35/2004,o Fundo de Garantia Salarial fica sub-rogado nos direitos de crédito e respectivas garantias, nomeadamente, nos privilégios creditórios dos trabalhadores, na medida dos pagamentos efectuados acrescidos dos juros de mora vincendos.

         4ª. Decorre expressamente deste preceito, e ainda do estatuído no art. 593º n.°1 do Código Civil, que o privilégio dos créditos que o FGS adquire, nos termos do supra citado regime, por força dos pagamentos que efectua aos trabalhadores, é o privilégio que tais créditos possuíam quando na esfera jurídica destes credores originários.

         5ª. Assim, na graduação a fazer em insolvência em que se verifique o concurso de tais créditos, deverão os créditos do FGS e os créditos salariais dos trabalhadores, porque igualmente privilegiados, ser graduados a par, procedendo-se a rateio entre eles caso tal se revele necessário.

         6ª. Defende a douta sentença ora sub judice que por força do disposto no art. 593º n.° 2, do Código Civil, a lei dá prevalência ao credor primitivo, presumindo que, se este consente num pagamento parcial, quererá todavia ser preferido ao terceiro com relação à parte do crédito de que continua titular, ideia esta plasmada no brocado latino “nemo contra se subrogasse censetur”.

         7ª. Importa referir que o art. 593º n° 2, do Código Civil, consignando que “no caso de satisfação parcial, a sub-rogação não prejudica os direitos do credor ou do seu cessionário, quando outra coisa não for estipulada’, sendo esta entendida no sentido de que o credor só terá preferência quando da sub-rogação derive prejuízo para ele, o que não acontece quando o credor recebeu do sub-rogado uma parte do seu crédito e não fica, com a sub-rogação e concorrência do sub-rogado, em pior situação do que a que teria se não se tivesse verificado o pagamento por terceiro”

         8ª. Neste sentido, vide o Parecer do Conselho Consultivo da PGR de 07/11/1991 (“in” BMJ n°415, pág. 55 e ss.) relatado pelo Sr. Cons. Lucas Coelho.
         9ª. Como nos ensina Vaz Serra (in “Cessão de créditos ou de outros direitos”, Boletim do Ministério da Justiça, número especial, 1955, págs. 5 e ss.), não sendo o autor favorável à regra
nemo contra se subrogasse censetur, reconhece-se-lhe alguma utilidade que obsta à sua total eliminação, admitindo que ela se justifica em casos em que o credor poderia ser prejudicado com a sub-rogação, ficando, por via desta e da concorrência com o sub-rogado, em pior’ situação do que a que teria se não se tivesse verificado o pagamento por terceiro.

         10ª. Pelo exposto, a legitimidade da dita preferência existe nas situações de cumprimento parcial em que, por via da sub-rogação parcial e da concorrência do sub-rogado, o credor originário fique prejudicado, ou seja, fique em pior situação do que aquela que teria se não tivesse ocorrido essa sub-rogação, sendo que nas demais situações deverá haver um tratamento paritário de sub-rogado e credor originário.

         11ª. Neste sentido, e com a fundamentação que tomamos a liberdade de supra transcrever, decidiu o Acórdão do Tribunal da Relação do Coimbra, datado de 22-03-2011, proferido no âmbito do processo n.° 480/08.6TBCTB-E.C1, e em que foi relator o Exmo. Juiz Desembargador Dr. Falcão de Magalhães, in www.dgsi.pt.

         12ª. Refere o douto acórdão, que “tendo o FGS pago a parte que, segundo a lei lhe competia pagar ao trabalhador, nos termos dos citados preceitos farts. 318.° e ss., da Lei n. ° 35/2004], cumprindo, assim, plenamente, a sua obrigação, não parece que se possa concluir pela existência de uma situação similar à do cumprimento parcial, inexistíndo, por outro lado, afigura-se, prejuízo dos credores originários, no sentido que se acima se veio a definir, pois que tais credores, em função da sub-rogação e da concorrência com o sub-rogado, não ficam em pior situação do que aquela em que estariam se a sub-rogação não ocorresse”.

         13ª. Pelo que supra ficou exposto, entende o ora apelante, a par do douto Acórdão supra citado, que os seus créditos deverão ser graduados em paridade com os créditos laborais, procedendo-se a rateio entre eles caso tal se revele necessário.

         14ª. Nestes termos, e ao ter decidido como decidiu, a Douta Sentença recorrida fez uma incorrecta interpretação do art. 593.°, n.° 2, do Código Civil.

         Termina o recorrente FGS pugnando pela revogação da sentença e pela substituição desta por outra que se coadune com a pretensão exposta.      

         5. Não foram apresentadas contra-alegações.       

Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.



II – ÂMBITO DO RECURSO

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso ( Arts. 684º, nº 3, 685º-A e 660º, nº 2, do CPC ), a única a questão que importa decidir é a de saber se no mapa de rateio final do processo de insolvência devem ser incluídos e contemplados, paritaria e proporcionalmente, tanto o crédito do Fundo de Garantia Salarial (credor sub-rogado) como a parte dos créditos dos trabalhadores não pagos pelo Fundo de Garantia Salarial (a parte remanescente).

III – FUNDAMENTAÇÃO

A) De Facto

         A factualidade a considerar consta do relatório supra.

         B) De Direito

         A questão essencial que vem colocada no presente recurso é, como se deixou já dito, a de saber se no mapa de rateio final do processo de insolvência relativo à sociedade F (…), S.A, contemplado no art. 182.º do CIRE, se devem incluir a parte dos créditos dos trabalhadores não pagos pelo “Fundo de Garantia Salarial” (a parte remanescente), individualizando-se cada um dos créditos em função do que o FGS pagou, devendo os seus créditos não pagos (remanescente) serem atendidos preferencialmente em relação aqueloutro crédito global daquele FGS, como se entendeu na decisão recorrida, ou então, se devem contemplar, paritaria e proporcionalmente, ambos esses credores (os credores originários/trabalhadores e o FGS (credor sub-rogado), como pretende o recorrente.

         Nos termos do Art. 336º do Cód. do Trabalho (na versão da Lei 7/2009), “o pagamento de créditos de trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, que não possam ser pagos pelo empregador por motivo de insolvência ou de situação económica difícil, é assegurado pelo Fundo de Garantia Salarial, nos termos previstos em legislação específica”.

         O Art. 380º do mesmo Cód. do Trabalho, na versão anterior dispunha que “A garantia do pagamento dos créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador que não possam ser pagos pelo empregador por motivo de insolvência ou de situação económica difícil é assumida e suportada pelo Fundo de Garantia Salarial nos termos previstos em legislação especial”.

         A regulamentação prevista foi feita pelos Arts. 317º a 323º da Lei 35/2004, de 29 de Julho, que ainda se mantém em vigor (cfr. alínea o) do nº. 6, do artº. 12º, da Lei 7/2009).

         É, pois, com base em tal contexto legal que nos casos de declaração de insolvência o FGS assegura o pagamento dos créditos dos trabalhadores, embora não na totalidade, pois, de acordo com o disposto no Art. 319º Nº1 da citada Lei 35/2004, tal só acontece em relação aos salários que se tenham vencido nos seis meses que antecedem a data da propositura da acção.

         O Art. 322º da citada Lei 35/2004, de 29.07, dispõe que “ O Fundo de Garantia Salarial fica sub-rogado nos direitos de crédito e respectivas garantias, nomeadamente privilégios creditórios dos trabalhadores, na medida dos pagamentos efectuados acrescidos dos juros de mora vincendos “.

         De acordo com os ensinamentos do Prof. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, vol. II, 4ª. edição, pág. 324, a sub-rogação é uma forma de transmissão de créditos, definindo-se, como sendo “a substituição do credor, na titularidade do direito a uma prestação fungível, pelo terceiro que cumpre em lugar do devedor ou que faculta a este os meios necessários ao cumprimento”.

         Dispõe o Art. 593º do C. Civil:

         “ 1. O sub-rogado adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam.

         2. No caso da satisfação parcial, a sub-rogação não prejudica os direitos do credor ou do seu cessionário, quando outra coisa não for estipulada.

         3. Havendo vários sub-rogados, ainda que em momentos sucessivos, por satisfações parciais do crédito, nenhum deles tem preferência sobre os demais “.

         Da conjugação de tal preceituado legal com o disposto no Art. 322º da citada Lei 35/2004, resulta que se  o Fundo de Garantia Salarial não paga aos trabalhadores a totalidade dos créditos, o remanescente, que permanece na titularidade deles, continua a beneficiar dos privilégios creditórios que antes beneficiava, restringindo-se o âmbito destes privilégios, no que ao Fundo respeita, à “medida dos pagamentos efectuados”, pois, apenas neste fica o Fundo sub-rogado.

         Daqui resulta que o FGS pode, na medida em que satisfez os créditos dos trabalhadores, reclamá-los perante a massa insolvente.

         Sendo pacífico o entendimento de que nas situações em que FGS não paga a totalidade dos créditos dos trabalhadores a parte remanescente continua na esfera jurídica destes, com o mesmo âmbito e beneficiando dos mesmos privilégios creditórios, já o mesmo não se verifica a respeito da preferência ou não no pagamento de uns em relação aos outros.

         Na verdade, as divergências em relação a tais situações gravitam à volta da previsão dos nº.s 2 e 3 do citado Art. 593º do C.C., havendo quem defenda que não prejudicando a sub-rogação os direitos do credor, no caso de satisfação parcial do crédito, o remanescente deve ser pago em primeiro lugar, de acordo com o que dispõe o referido nº. 2 do citado Art. 593º – cfr., v.g. Ac. da Rel. do Porto de 14/07/2010, in www.dgsi; enquanto outros entendem que tendo o legislador consagrado um sistema jurídico em que o Fundo entra no lugar do trabalhador, sendo transferidos para aquele todos os direitos que este tinha, na medida em que os tenha satisfeito, deve o Fundo ser pago em primeiro lugar - cfr., v. g. Ac. da Rel. do Porto de 17/02/2009, in www.dgsi.pt, e, uma terceira corrente, seguida por aqueles cujo entendimento vai na defesa de uma posição paritária dos créditos do Fundo e do remanescente dos créditos dos trabalhadores não pago por aquele – cfr., v. g., Ac. do S.T.J. de 20/10/2011, Acs. da Rel. de Guimarães de 27/02/2012 e de 29-05-2012 e Ac. da Rel. de Coimbra de 22/03/2011, todos disponíveis in www.dgsi.pt.

         Como bem resulta explanado no citado Ac. do STJ de 20/10/2011, que aqui seguimos de perto, “o crédito (parcial) dos trabalhadores e o crédito advindo ao FGS (sub-rogado), apesar da sua fragmentação continuam a manter a sua natural interligação, isto é, completam-se mutuamente; e esta sua unitária configuração há-de ser sempre tomada em consideração em todos os momentos jurídico-processuais em que esta especificada circunstância venha a ter relevância jurídico-positiva”. Esta complementaridade entre ambos os créditos faz com que não possa ser exercido o crédito do trabalhador contra o crédito do Fundo, mas também que o crédito deste não possa assumir a preferência sobre o daquele na concretização do seu pagamento.

         E, porque o remanescente dos créditos dos trabalhadores e o crédito do Fundo beneficiam dos mesmos privilégios creditórios, a conclusão lógica a retirar é de que, na fase dos pagamentos, devem ambos ser colocados no mesmo patamar, isto é, no mapa de rateio final do processo de insolvência contemplado no Art. 182º do CIRE, devem ambos nele ser incluídos e contemplados, paritaria e proporcionalmente.

         Além de que, se os dinheiros disponíveis não chegarem para liquidar o crédito dos trabalhadores e o crédito do FGS, haverá que proceder a rateio entre um e outro, de acordo com o disposto no Artº. 175º do CIRE, sendo, pois, levados a rateio em plena igualdade de circunstâncias.

         Assim sendo, há que concluir que assiste razão ao recorrente na pretensão que formula no seu discursivo recursivo, impondo-se, pois, a alteração do decidido pelo tribunal recorrido em conformidade com a pretensão por ele nele deduzida.

         V- SUMÁRIO ( Art. 713º Nº7 C.P.C. )

         1. Nas situações em que Fundo de Garantia Salarial não paga a totalidade dos créditos dos trabalhadores a parte remanescente continua na esfera jurídica destes, beneficiando ambos dos mesmos privilégios creditórios.

         2. Na fase dos pagamentos, devem ambos ser colocados no mesmo patamar, isto é, no mapa de rateio final do processo de insolvência contemplado no Art. 182º do CIRE devem ambos nele ser incluídos e contemplados, paritária e proporcionalmente, caso tal se revele necessário.

         VI- DECISÃO

         Em face de tudo o exposto, julga-se procedente o recurso e revoga-se a decisão recorrida, a qual se substitui por outra na qual se determina que os créditos do Fundo Garantia Salarial e a parte remanescente dos créditos salariais dos trabalhadores não paga por aquele sejam graduados a par uns dos outros, devendo proceder-se a rateio entre eles, na proporção dos respectivos montantes, caso tal se revele necessário.

         Custas a cargo da massa insolvente.  

                                                                 

Maria José Guerra   (Relatora)                                                                           

Albertina Pedroso

Virgílio Mateus