Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1600/09.9T2AVR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
RESERVA DE PROPRIEDADE
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
CADUCIDADE
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Data do Acordão: 07/05/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.289, 291, 406, 409, 435, 879, 892, 1311 CC, 351, 357, 358, 389 CPC
Sumário: I. Os embargos de terceiro, que o verdadeiro proprietário tenha deduzido contra a entrega do bem, não passam a ser inúteis pelo facto de aquele a quem foi entregue o bem alegar que entretanto vendeu o bem a outrem (para mais se nem sequer alega que lhe transferiu a posse).

II. Actualmente não é unânime o entendimento de que uma providência cautelar se extingue (ou caduca) pelo facto de haver uma decisão no mesmo sentido na acção principal.

III. A pretensão da declaração de propriedade e de restituição do bem não tem de ser intentada contra o possuidor ou detentor do bem e contra aquele que alegadamente lhe tenha vendido o bem, mas apenas contra o possuidor ou detentor do bem.

IV. O terceiro adquirente que está em causa no art. 435º do CC é apenas aquele que esteja numa cadeia de negócios com origem no verdadeiro proprietário.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra os juízes abaixo assinados:

              A Caixa  (…) - instituição financeira de crédito, SA, intentou em 28/01/2009 um providência cautelar contra a D (…), Lda, pedindo a restituição provisória de uma linha de envernizamento, providência que teve êxito, tendo-lhe a linha sido restituída por auto de entrega de 08/09/2009.

              Ao saber disto, a M (…) SA, deduziu, em 28/09/2009, os presentes embargos contra a Caixa e contra a agora Massa Insolvente da D (…), pedindo que os mesmos fossem recebidos com todas as consequências legais, desde logo a suspensão dos termos do procedimento cautelar e a restituição provisória a ela, M (…), da linha em causa, e, a final, julgados provados e procedentes, alegando que a linha lhe pertencia por a ter vendido, em Maio de 2003, com reserva de propriedade, à D (…), que apenas tinha, por isso, a posse do bem em nome da M (…) (na réplica vem a invocar neste sentido o ac. do TRP de 19/05/1981, CJ81, III, págs. 127/128).

              Estes embargos foram recebidos em 25/03/2010, tendo sido ordenada a restituição provisória da posse da linha à M (…)e a suspensão dos termos da providência cautelar.

              Em 17/05/2010, a Caixa veio contestar os embargos impugnando a afirmação da M (…) de que era proprietária da linha, dizendo a Caixa que a linha era sua por a ter comprado, em Outubro de 2005, à D (…) que se intitulou como sua proprietária, desconhecendo a Caixa, sem obrigação de conhecer, a existência – se existir - da reserva da propriedade a favor da M (…) tanto mais que se trata de um bem móvel não sujeito a registo. E acrescenta que em 30/09/2009 vendeu os bens à M (…), juntando a fls. 121 cópia da nota de débito/recibo.

              A M (…)replicou, impugnando, por desconhecimento, o contrato entre a D (…) e a Caixa; refere-se, por outro lado, no art. 6, à alegada venda que a Caixa terá feito a Ma (…), dizendo, entre o mais, que a mesma é ineficaz e inoponível à M (…) proprietária da linha, uma vez que se trata de uma venda de coisa alheia (a non domino) – invoca uma anotação neste sentido de Antunes Varela, ambos publicados na RLJ 122, págs. 246 e 251 a 255 (pontos 5 e 10/12), o ac. do STJ de 11/04/2002 (02B416), e a anotação de Antunes Varela e Pires de Lima, no CC anotado, vol. II, 3ª ed., pág. 189, ao artigo 892 do CC. 

              Entretanto, em Out2009, a Caixa tinha intentado a acção principal contra a D (…), a pedir a condenação desta na entrega definitiva da linha à Caixa, a qual veio a ser julgada procedente por sentença proferida em 19/11/2010, transitada em julgado.

              Em 10/02/2011 foi então proferido despacho, declarando, ao abrigo do art. 287º/e) do CPC extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, com os seguintes fundamentos:
         “Os embargos de terceiro visavam, essencialmente, neutralizar os efeitos da providência cautelar de entrega judicial.
         Todavia, conforme decorre dos elementos fácticos acima enunciados, quando foi decretada a restituição provisória da posse da linha à M (…) e determinada a suspensão dos termos do procedimento cautelar, já tinha ocorrido a entrega judicial daquele equipamento à Caixa e esta já o teria vendido a terceiro, segundo alega e a M (…) não impugna.
         Com o trânsito em julgado da decisão proferida nos autos principais, a providência cautelar extinguiu-se e, como tal, os presentes embargos de terceiro perderam a sua utilidade.
         Ademais, alegando a Caixa que, entretanto, vendeu a linha a terceiro, facto que a M (…) não impugna, apenas contrapondo que estamos perante venda de coisa alheia – à semelhança do que sucede com a primeira venda, efectuada pela D (…) à Caixa –, que é ineficaz e inoponível à M (…), terá a questão que ser discutida em acção movida também contra a terceira adquirente, a mencionada Ma (…).
         Assim, revela-se inútil do prosseguimento dos presentes autos.

              A M (…) recorre deste despacho, para que seja revogado e substituído por outro que ordene o prosseguimento dos ulteriores termos dos embargos de terceiro (seguindo-se o ritualismo do processo ordinário de declaração nos termos do art. 357º/1 do CPC) com conclusões que serão apreciadas abaixo e que têm a ver com o seguinte: os embargos de terceiro não visavam, essencialmente, neutralizar os efeitos da providência cautelar de entrega judicial; não se verifica a hipótese da inutilidade superveniente da lide; a providência cautelar não se extingue com o trânsito em julgado da decisão proferida nos autos principais e os embargos continuam a ter interesse para a embargante; a M (…) impugnou a venda e o documento que a titularia; a Caixa não invocou a transferência da posse para a Ma (…) pelo que não há razão para se dizer que é necessário demandar esta; não se verifica uma situação de litisconsórcio necessário passivo.

              As embargadas não contra-alegaram.

                                                                 *

              Questões que cumpre solucionar: se os embargos se tornaram supervenientemente inúteis com o fundamento do facto invocado no despacho recorrido (venda, pela embargada Caixa, do bem à Ma (…)).

                                                                 *

              Dos factos:

              Os factos que estão provados são os que constam dos parágrafos que antecedem, tendo sido alterado, neste acórdão, o facto que se refere à réplica da M (…), pois que o despacho recorrido colocava no facto a interpretação que faz da réplica (dizendo que a M (…) não impugna a venda nem o aludido documento), e no parágrafo correspondente que consta acima o que se faz é só resumir a posição da M (…), sem nele incluir a qualificação jurídica da réplica desta.

                                                                  I              

              Diz a M (…) que:
         “Os embargos de terceiro deduzidos pela M (…) em 29/09/2009 não tiveram, nem podiam ter, função preventiva, uma vez que a diligência de entrega à Caixa já se tinha realizado em 09/09/2009, como consta dos autos.
         A entrega judicial à Caixa da linha foi o facto que concretizou a ofensa do direito de propriedade da M (…) e que motivou a dedução dos presentes embargos, por esse direito de propriedade ser incompatível com tal entrega.
         Consubstanciada a ofensa com a dita entrega, esta não podia provocar, nem naturalmente provocou, a inutilidade superveniente da lide destes embargos de terceiro deduzidos apenas em 29/09/2009, como é de notória evidência.
         Aliás, quando em 25/03/2010 foi (i) proferido despacho de recebimento dos embargos, (ii) determinada a restituição provisória de posse daquela linha de envernizamento à embargante e (iii) ordenada a notificação das embargadas para contestarem, tal entrega judicial já se tinha realizado há cerca de sete meses e não obstou à prolação da decisão nem lhe retirou utilidade. Por outro lado,
         Os embargos de terceiro deduzidos pela M (…) tiveram como causa de pedir o seu direito de propriedade sobre a linha, direito esse alegadamente preexistente à ordenada entrega dessa linha de envernizamento à Caixa e comprovadamente incompatível com ela, daí a pertinência dos embargos – art. 351º/1 do CPC.
         Ora, recebidos os embargos de terceiro (para além dos efeitos previstos no art. 356º do CPC), “são notificadas para contestar as partes primitivas, seguindo-se os termos do processo ordinário ou sumário de declaração, conforme o valor” (art. 357º/1, CPC).
         Assim, em consonância com a teleologia da reforma processual de 1995, segue-se a discussão e a decisão do direito de fundo, que culmina no caso julgado material produzido pela sentença de mérito proferida nos embargos quanto à existência e titularidade do direito de propriedade invocado pela embargante M (…) (art. 358º, CPC), isto “porque nem as garantias das partes, nem a complexidade da tramitação são inferiores, nos embargos de terceiro, às da acção declarativa com processo comum em que se aprecia o direito de fundo”, no caso o direito de propriedade da M (…) sobre a referida linha de envernizamento, tudo na óptica de economia processual – ac. do TRE de 25/11/2004, CJ2004, V, págs. 242/245, e Lebre de Freitas e outros, CPC, anotado, 1999, vol. 1º, pág. 628.
         Por conseguinte, carece de fundamento a afirmação de que “Os embargos de terceiro visavam, essencialmente, neutralizar os efeitos da providência cautelar de entrega judicial”, uma vez que está invocado o direito de propriedade da embargante sobre o equipamento objecto de entrega a outrem, sem seu conhecimento nem consentimento.”

              A primeira parte desta argumentação da recorrente pressupõe a identificação da afirmação do despacho recorrido, na parte em que fala da neutralização dos efeitos da providência, com o entendimento de que se está perante embargos preventivos. Mas não há razões para considerar que o despacho qualificou os presentes embargos como preventivos, apenas com base na expressão “neutralizar os efeitos”, para mais no contexto em que o despacho recorrido a utilizou.

              Apesar disto, o resto da argumentação da recorrente é perfeitamente pertinente, como aliás o revelam as citações feitas: os presentes embargos, repressivos, que não se fundavam apenas na invocação da posse do bem pela M (…), não visavam “apenas” neutralizar os efeitos da providência, visavam também, necessariamente, e para além do mais, a declaração de propriedade do bem em causa nestes autos com trânsito em julgado (arts. 357/2 e 358, ambos do CPC).

                                                                 II

              Diz depois a M (…):
         “Ensinam os autores citados (idem ibidem, pp 512) que a inutilidade superveniente da lide ocorre “quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor (...) encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida (...), por [nesse caso] já ter sido atingido por outro meio.” Contudo, o direito de propriedade da M (…) sobre a linha de envernizamento continua ofendido e violado pela diligência da sua entrega à Caixa, que a não restituiu ainda à legítima proprietária, sem que a esta se lhe possa opor a decisão proferida nos autos principais, mesmo que transitada em julgado, pois M (…) não foi neles parte – art. 671º/1, CPC.”

              E também aqui a recorrente tem razão (com excepção da qualificação da M (…) como legítima proprietária pois que isso ainda não está decidido). Visto que o fim dos embargos não era apenas o invocado na decisão recorrida, falece a razão invocada para a inutilidade da lide. E se esta visava, também, para além do mais, a declaração de propriedade do bem, é evidente que a instância não se tornou inútil quanto a esta questão.

              Aliás, ver-se-á mais abaixo, a questão principal que o despacho recorrido levanta é a da eventual ilegitimidade passiva das embargadas, por preterição de litisconsórcio necessário, para discutirem a questão da propriedade e restituição, o que só por si demonstra que estes embargos não se tornaram inúteis, já que a falta do pressuposto em causa não tem a ver com a perda da utilidade da acção, mas sim com o facto de ela não poder produzir todo o efeito útil que visa.

                                                                 III

              Continua a recorrente dizendo que:
         “O procedimento cautelar extingue-se e, quando decretada, a providência caduca, tão só nos casos previstos no art. 389º/1, CPC, e nenhum desses factos extintivos ocorreu no presente caso, a avaliar pelo decidido.”

              Isto tem a ver com a afirmação do despacho recorrido de que “com o trânsito em julgado da decisão proferida nos autos principais, a providência cautelar extinguiu-se e, como tal, os presentes embargos de terceiro perderam a sua utilidade.”

              De novo tem razão a recorrente, já que com o trânsito em julgado da decisão da acção principal, dando razão àquele que foi o requerente da providência, a providência não se extingue. Nem o despacho recorrido invoca qualquer norma que fale na extinção da providência nesse caso, nem a norma do art. 389 do CPC inclui tal situação como uma das que dá origem à caducidade da providência. O que se pode dizer é que o efeito útil da providência é consumido, absorvido, consolidado ou ratificado material-mente pela decisão [ou melhor, pela execução da decisão] procedente da ac-ção principal. Mas isto nada tem a ver com a extinção da providência, muito pelo contrário.

              Como diz Rui Pinto, A questão de mérito na tutela cautelar, a obrigação genérica de não ingerência e os limites da responsabilidade civil, Coimbra Editora, Maio de 2009, págs. 700 e 701:
         “a acção plena/antecipatória, está, ao contrário do que se pensa, ao serviço da providência cautelar, enquanto fase meramente confirmatória ou infirmatória desta. […] Procedimentalmente, os “efeitos da tutela cautelar concedida antes da providência do pedido são ratificados ex post pela retroactividade da decisão” final [Luiso…]. Neste nosso sentido parece ir o ac. do STJ de 02/12/1993 [084480 da base de dados do ITIJ – acrescento deste acórdão] ao defender que a “medida provisória que se pretende deverá, pela procedência eventual da acção, consolidar-se definitivamente por efeito da decisão visada a definir na acção principal”. E daí que, de instrumentalidade apenas se deva falar no sentido de “instrumentalidade material entre os meios de tutela preventiva por dano e os meios de realização do direito” (628). 

              E antes (pág. 700):
         “diversamente sucede sempre que a acção principal vier a ser improcedente. A improcedência significa o não reconhecimento da existência do direito que alegadamente corria perigo […]. Inevita-velmente a providência cautelar extinguir-se-á retroactivamente, pois toda a actuação cometida ao abrigo da providência está desprovida de fundamento jurídico, é nula.”

              É certo, no entanto, que a visão do despacho recorrido está de acordo com o entendimento tradicional da questão que é o do que:
         “quando a sentença é conforme à decisão cautelar” “fica esgotada a necessidade de permanência da providência cautelar, pois a sua função é a salvaguarda do efeito útil da acção. A cautela seria, dada esta pretensa função, intrinsecamente provisória, não podendo regular indefinidamente o litígio, ao contrário da decisão em via de tutela plena. Caducaria, por conseguinte, com o trânsito em julgado”

              Visão tradicional refutada pelo autor citado, por assentar em pressupostos teóricos que põe em crise (págs. 698/699).

              Seja como for, o que de novo importa é que como o objecto dos embargos era, como já foi dito, também a questão do direito de propriedade do bem (para além da restituição do mesmo), não se vê qual a ligação que possa haver entre a eventual extinção, ou melhor, caducidade da providência (segundo o entendimento tradicional) e a inutilidade dos embargos para discussão da questão da propriedade e restituição.

              Compreende-se, assim, que a recorrente conclua:
         “Por conseguinte, não se verifica qualquer inutilidade superveniente da lide destes embargos de terceiro, já que o direito de propriedade que a M (…) neles fez valer não obteve satisfação por outro meio, continuando os embargos, por isso e atenta a sua actual configuração, a ter utilidade.”

                                                                IV

              Continua a recorrente:
         “Na decisão recorrida invoca-se a alegação da Caixa de que vendeu a referida linha à M (…)em 30/09/2009, juntando cópia da nota de débito/recibo, uma e outra consideradas não impugnadas pela M (…) , mas sem razão.
         É que, tratando-se de venda a non domino, a mesma é ineficaz e inoponível à embargante, é res inter alios acta, ou seja é coisa nenhuma para a M (…). Ora, isso mesmo foi expressamente afirmado pela M (…)quer no requerimento apresentado em 15/05/2010 (ref. 4601729), quer nos arts. 2º a 6º da réplica.
         De resto, a expressão e o tempo verbal utilizados no art. 6º da réplica (a alegada venda que a Caixa terá feito a M (…)) ilustram suficientemente a dúvida e o desconhecimento da M (…) quanto a essa alegada venda, para, em conjugação com o restante teor dessa peça processual, dever ser considerada impugnada a alegação da embargada.
         Com efeito, não se tratava de facto pessoal ou de que a apelante devesse ter conhecimento, pelo que a dúvida suscitada equivale a impugnação, como se prevê no art. 490º/3, aplicável ex vi art. 505º, ambos do CPC, por um lado, e, por outro, porque tal alegação da embargada se mostra contrariada pelo conjunto da réplica.
         E quanto à nota de débito/recibo, como documento particular que é e porque a sua autoria não foi imputada à M (…), faz prova do débito/recibo entre a Caixa e a Ma (…) e não mais do que isso, face ao disposto no artigo 406º/2, do Código Civil, mas relacionado com uma alegada e pretensa venda que quanto à M (…) é coisa nenhuma, como se disse e repete.
         De resto, tal documento (nota de débito/recibo) nem sequer é a forma normal, usual e legal de instrumentalizar e titular uma venda entre comerciantes, que, como se pode ver pelo artigo 476º do Código Comercial, é uma factura.”

              De novo tem razão a recorrente, como resulta já do relatório deste acórdão e do parágrafo dedicado aos factos, pois que a referência à alegada venda que terá sido feita, corresponde, naturalmente, não se tratando de facto pessoal da M (…), à afirmação de que não se sabe se determinado facto é real pelo que equivale a impugnação (art. 490º/3 do CPC, parte final).

              Para além disso, a M (…), ao referir-se a tal contrato, admitiu-o apenas em termos hipotéticos (terá feito…) apenas para a poder impugnar de direito (art. 487/2 do CPC), ou seja, para dizer que, existindo, não poderia produzir o efeito jurídico pretendido pela Caixa, por ser ineficaz e inoponível à M (…). Pelo que, é precisamente a venda que é pressuposta pelo despacho recorrido como não impugnada, que foi expressamente impugnada pela M (…) porque para ela não existe como venda válida, mesmo que exista – a existir - um contrato dito de “venda”.

                                                                 V

              Continua a M (…):
         “Daquela alegada venda não resulta que a linha de envernizamento em causa e propriedade da M (…) não esteja em poder da Caixa, como parece depreender-se ser pressuposição da decisão recorrida.
         É que, não foi alegado que essa linha tenha sido entregue a Ma (…), ou seja que a Caixa não a tenha em seu poder por ter cumprido a obrigação da alínea b) do art. 879º do CC.
         De facto, nem nos requerimentos da Caixa de 13/05/2010 (ref. 4592397) e 31/05/2010 (ref. 4718348), nem na sua contestação (art. 35º) foi alegado ter sido entregue a Ma (…) a dita linha de envernizamento.
         Ora, a alegada pretensa venda, a ter existido (?), não provoca, ipso iure, esse efeito, como resulta da citada alínea b) do art. 879º do CC, para que se possa concluir pela inutilidade superveniente destes embargos de terceiro.”

              Pode-se ver esta questão deste modo:

              A Ma (…), alegando ser proprietária do bem pode reivindicá-lo (ou embargar, alegando ser proprietária e pedindo a restituição) de qualquer pessoa (arts. 1311 do CC e 351 do CPC), mas tem de o fazer contra quem esteja na posse do bem.

              O despacho recorrido estará implicitamente a dizer, na perspectiva da M (…) que como o bem está na posse da Ma (…), por o ter recebido por contrato celebrado com a Caixa, a M (…) teria que discutir a questão também com a Ma (…), já que a Ma (..) poderá invocar um título, derivado da Caixa, que legitima a sua posse da coisa.

              Como o despacho recorrido não diz porque é que a questão também tem que ser discutida com a Ma (…) o que é o mesmo que falar em litisconsórcio necessário, esta construção jurídica feita pela M (…) é uma das construções possíveis para a justificação de tal necessidade.

              Só que se for esta a justificação do despacho recorrido, a recorrente tem razão, pois que a Caixa na contestação não alega ter entregue a coisa, pelo que a posse não se pode dizer ter sido transferida para a Ma (…) [arts. 879/c) e 1263/b), ambos do CC] e se não se pode falar na posse desta, não tem sentido invocar a necessidade desta estar na acção.

                                                                VI

              Para além disso, ainda fica por justificar a posição teórica implícita no despacho recorrido: a acção em que se pretenda discutir a propriedade e a posse do bem, tem que ser proposta contra o possuidor (no caso a Ma (…)) e a pessoa que alegadamente lhe terá vendido o bem (a Caixa)?    

              Não é assim e não há doutrina nenhuma a defender a necessidade de litisconsórcio necessário passivo na acção de reivindicação. A legitimidade passiva da acção de reivindicação pertence apenas ao possuidor ou detentor da coisa (art. 1311º/1 do CC).

                                                                VII

              Então poderia o despacho recorrido dizer, tal como de facto também pode ser lido implicitamente no mesmo: mas tem que ser proposta contra o possuidor (a Ma (…)) e não contra o alegado vendedor (Caixa), pelo que a acção intentada contra este, que já não é o possuidor, perde utilidade.

              Mas, primeiro, isto demonstra, desde logo, que o despacho recorrido está a invocar duas justificações que se acabam por revelar contraditórias, pois que, afinal, a inutilidade derivaria de se ter intentado a acção contra C quando deveria ter sido intentada contra D, e não de se dever intentar a acção contra C e D.

              Depois, porque se o proprietário intenta a acção contra C e, antes da citação (como seria o caso dos autos – se fosse depois, colocava-se em jogo o disposto no art. 271 do CPC), C “transfere” a posse da coisa para D, a acção não perde interesse para o proprietário pois que poderá deixar definido, entre ele e C que C não era proprietário da coisa e que não a podia ter vendido e transferido a posse para D, o que lhe poderá servir para base de uma eventual acção de indemnização pela prática do facto ilícito da venda de bem que era dele e não de C.

              Por fim, e volta-se ao início, pressupõe-se que a Ma (…) é possuidora, o que, como já foi visto, não poderá ser o caso (por nada ter sido alegado a esse respeito). Como a Caixa só alega ter vendido o bem, se perder o litígio, ficará definido que a propriedade pertence à M (…) e esta poderá pedir-lhe a sua restituição (porque nada nestes autos diz que a posse não esteja com a Caixa…).

                                                               VIII

              Diz por fim a recorrente:
         “Ainda que a Caixa não tenha em seu poder essa linha, o que se continua a ignorar, subsiste a utilidade dos presentes embargos de terceiro.
         De facto, invocado como causa de pedir o direito de propriedade da M (…)sobre a linha, a procedência dos embargos terá como consequência a revogação da sua entrega à Caixa e a sua condenação a restituí-la à posse da M (…), tal como está formulado o pedido.
         Assim, por via destes embargos a M (…) poderá vir a dispor de título executivo para entrega de coisa certa, convertível em execução para pagamento de quantia certa se vier a ser caso disso, nos termos dos artigos 46º, 1, a), e 931º, CPC.
         Por isso, a utilidade dos embargos não se revela inútil, nem “terá a questão que ser discutida em acção movida também contra a terceira adquirente, a mencionada Ma (…) como se afirma na decisão recorrida, já que não se está perante litisconsórcio necessário para que a decisão dos embargos produza o seu efeito útil normal.”

              Tudo isto já acabou de ser visto, numa outra perspectiva, mas justifica-se que a recorrente coloque agora a questão de outra forma, porque o despacho recorrido não justifica a afirmação da necessidade da acção ser também intentada contra a Ma (…).

              Ou seja, estas considerações da recorrente levantam, agora, a necessidade de ver de uma outra forma a mesma questão da posse ou da justificação da decisão recorrida.

              A decisão recorrida entende que para que a M (…)obtenha uma decisão que lhe permita ter título executivo para a entrega do bem (é este o efeito útil normal da pretensão de declaração de propriedade e de restituição do bem deduzida nos embargos em que se alegue a propriedade do bem), teria que intentar uma acção contra a Caixa e a Ma (…), terceira adquirente. Não diz porquê.

              Já se viu um dos caminhos possíveis.

              Passa agora a ver-se um outro, fazendo a reconstrução da tese que estará na base do despacho recorrido, aparentemente desenvolvida a partir da tese apresentada, em termos muito vagos, pela Caixa no artigo 51 da sua contestação: “não pode a M (…)vir exigir a restituição da posse, por não poder opor à Caixa, terceira de boa fé, o alegado incumprimento por parte da D (…)”.

              A tese subjacente ao despacho recorrido será então esta: a M (…) alega ser proprietária do bem, por o ter vendido com reserva de propriedade a favor da D (…). Como esta não cumpriu a sua obrigação, a M (…)resolveu o contrato e quer a restituição do bem. Mas entretanto a Caixa adquiriu o bem e transmitiu-o a terceiro – um sub-adquirente - que o tem na sua posse. Ora, se as coisas forem assim, o terceiro poderá recusar a restituição (art. 435/1 do CC). Para se discutir isto seria necessária uma acção contra a Caixa e a Ma (…).

              Mas também por aqui o despacho recorrido não tem razão.

              Repare-se desde logo que, se as coisas forem como alegado, a M (…) nunca vendeu o bem. O contrato que celebrou foi um contrato de compra e venda com reserva de propriedade. A propriedade do bem, por isso, não deixou de pertencer à M (…) (art. 409/1 do CC).

              E esta cláusula de reserva de propriedade é oponível a terceiros (no caso à Caixa e à M (…)), como resulta do nº. 2 do art. 409 do CC, como explicam Antunes Varela e Pires de Lima (CC anotado, vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, 1982, pág. 357, anotação 3 ao art. 409): “Tratando-se de coisa móvel não sujeita a registo, o pacto vale em relação a terceiro, sem necessidade de qualquer formalidade especial, uma vez que não vigora, quanto às próprias coisas móveis, o princípio segundo o qual a posse vale título”.

              Não se trata pois de uma venda do bem com transferência da propriedade para a D (…). Por isso, esta não era proprietária do bem e não o podia transferir para a Caixa (art. 892 do CC). Esta não é, nem nunca foi, por isso, proprietária do bem e por isso não o pode ter transferido para a Ma (…).

               Em consequência não se está perante a hipótese da regra do art. 435/1 do CC que está implícita na defesa da Caixa e no despacho recorrido  pois que ela tem como pressuposto estar-se perante um adquirente de um bem.

              Dito de outro modo, a regra do art. 435º/1 do CC, tal com as dos arts. 289º/2 e 291 do CC, pressupõe que na origem da cadeia de negócios esteja um verdadeiro proprietário (neste sentido, para o caso do art. 291 do CC, veja-se Maria Clara Sottomayor, Invalidade e Registo, A Protecção do Terceiro Adquirente de Boa Fé, Almedina, Teses de Doutoramento, Junho de 2010, por exemplo nas págs. 481, na nota 1333, págs. 329 e 330, págs. 881 a 884 e conclusão 30, pág. 923), o que não é o caso da Dias & Silva.   

              Mas a A (= M (…)) no caso dos autos, não está incluída na cadeia de negócios. A (= M (…)) não transferiu a propriedade para B (= D (…)). B vendeu a C (= Caixa) sem que antes tivesse adquirido a propriedade da coisa. A nulidade das vendas de B a C e de C a D (= Ma (…)) existe desde sempre e elas são ineficazes desde sempre em relação a A.

              A situação não é: A => B => C => D (significando o => a transferência da propriedade).

              Mas sim: A => B (significando o =>, aqui, apenas um contrato, sem transferência de propriedade) e

              B => C => D (significando o =>, aqui, a venda de coisa alheia).

              Dito ainda de outro modo: em relação à Caixa, a M (…) não está a exercer o direito à restituição da coisa por resolução do contrato (arts. 433º e 289º/1 do CC), mas a exigir a restituição da coisa por ser ela, M (…), a proprietária do bem (art. 1311º do CC) e a Caixa não lhe pode opor a venda que lhe foi feita pela D (…) por se tratar, desde o início, da venda de uma coisa alheia (art. 892 do CC).

              Daí que, por exemplo, Maria Clara Sottomayor, obra citada, pág. 307, quando fala na norma do art. 435º/1 do CC pressuponha a validade do negócio com o qual o terceiro adquiriu o bem (“porque terá querido, então, a lei, na resolução do negócio, que fosse o vendedor a suportar os riscos do incumprimento do contrato e de insolvência do comprador, ficando sem o direito de propriedade do bem, se o comprador, entretanto, já o tiver alienado a um terceiro, através de um negócio válido?).

              Ou, nos termos da anotação de Antunes Varela, citada pela recorrente, as vendas celebradas entre a D (…) e a Caixa e entre esta e a Ma (…) são ineficazes em relação ao verdadeiro proprietário (a M (…)) e por isso não lhe podem ser opostas (RLJ 122, págs. 246 e 251 a 255 (pontos 5 e 10 a 12). A  M (…) não precisa nem pode requerer a declaração de nulidade desses contratos para obter a restituição da coisa.

              E, por isso, não é necessária qualquer acção em que se esteja a discutir a nulidade do contrato com a presença dos dois contraentes.

              Ou, nos termos do acórdão citado pela recorrente, de 11/04/2002 (02B416 da base de dados do ITIJ): I - O verdadeiro proprietário, de uma coisa móvel, penhorada e vendida em processo executivo, pode reivindicá-la de um terceiro, a quem foi adjudicada nesse processo, ou a quem o adjudicatário a transmitir logo após a adjudicação. II - A natureza da propriedade, como direito real tipificado, permite ao seu titular seguir a coisa, independentemente da esfera jurídica em que se encontre.

              Em suma, esta eventual justificação do despacho recorrido, de que a Caixa ou a M (…) podem opor à M (…) a compra que fizeram do bem para recusar a restituição, está também errada.

                                                                 *

              Pelo que, como resulta do que antecede, não se justifica a afirmação da inutilidade superveniente da lide.

                                                                 *

              Sumário:

              I. Os embargos de terceiro que o verdadeiro proprietário tenha deduzido contra a entrega do bem, não passam a ser inúteis pelo facto de aquele a quem foi entregue o bem alegar que entretanto vendeu o bem a outrem (para mais se nem sequer alega que lhe transferiu a posse).

              II. Actualmente não é unânime o entendimento de que uma providência cautelar se extingue (ou caduca) pelo facto de haver uma decisão no mesmo sentido na acção principal.

              III. A pretensão da declaração de propriedade e de restituição do bem não tem de ser intentada contra o possuidor ou detentor do bem e contra aquele que alegadamente lhe tenha vendido o bem, mas apenas contra o possuidor ou detentor do bem.

              IV. O terceiro adquirente que está em causa no art. 435º do CC é apenas aquele que esteja numa cadeia de negócios com origem no verdadeiro proprietário.

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revogando-se o despacho recorrido e determinando-se que se prossigam os ulteriores termos dos embargos.

              Custas pela parte que for vencida a final.

             

              Pedro Martins ( Relator )

              Virgílio Mateus

              António Carvalho Martins