Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
627/16.9T8CVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: ACÇÃO DE PREFERÊNCIA
CADUCIDADE
ELEMENTOS ESSENCIAIS DA ALIENAÇÃO
ABUSO DE DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
Data do Acordão: 06/26/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - COVILHÃ - JL CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 334, 416, 874, 879, 885, 1409, 1410 CC
Sumário:
1. - No âmbito da ação de preferência de comproprietário (art.º 1410.º, n.º 1, do CCiv.), os “elementos essenciais da alienação” traduzem-se no projeto de alienação e cláusulas do respetivo contrato, mormente a referente ao preço (seu montante e tempo/condições de pagamento), elemento essencial de qualquer negócio transmissivo oneroso (cfr., quanto à compra e venda, os art.ºs 874.º, 879.º, n.º 1, al.ª c), e 885.º, todos do CCiv.).
2. - Cabe ao comproprietário alienante um dever de informação sobre tais elementos essenciais da alienação, cujo cumprimento não se presume, e não ao titular do direito de preferência um ónus ou dever de se informar em caso de inobservância daquele dever do alienante (art.ºs 1409.º, n.ºs 1 e 2, e 416.º, ambos do CCiv.).
3. - O abuso do direito, na modalidade do venire contra factum proprium, pressupõe a existência de dois comportamentos, gravemente contraditórios entre si, do mesmo sujeito de direitos, em termos tais que o exercício de um direito redunde, em concreto, em flagrante e intolerável injustiça para outrem.
4. - Não incorre em abuso do direito de ação o comproprietário que, depois de ter instaurado execução hipotecária contra os seus devedores, vem instaurar, superado o quadro executivo, ação de preferência, ainda que contra as mesmas pessoas e com coincidência de bens, ao abrigo do disposto no art.º 1410.º do CCiv., posto que se limita a, sucessivamente e sem excesso, exercer direitos diversos que lhe assistem, mediante mecanismos processuais compatíveis que a lei lhe faculta.
Decisão Texto Integral:
Apelação n.º 627/16.9T8CVL.C1
2.ª Secção - Cível

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:
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I – Relatório
A (…) e mulher, M (…), com os sinais dos autos,
deduziram ação declarativa condenatória (() Intentada em 13/05/2016 (cfr. fls. 20 v.º dos autos em suporte de papel). ) com processo comum contra
1.º C (…) e
2.ª – M (…), também com os sinais dos autos,
pedindo que sejam substituídos no lugar da 2.ª R., M (…), na titularidade da quota-parte dos três prédios rústicos em causa, melhor identificados na petição inicial, condenando-se os RR. a assim reconhecer e ordenando-se o cancelamento dos registos por aquela efetuados.
Para tanto, alegaram, em síntese, que:
- os AA. são proprietários de 4/5 dos prédios rústicos aludidos, sendo que o 1.º R., C (…), era proprietário de 1/5 dos mesmos;
- por contrato de compra e venda, celebrado em 02/04/2013, aquele 1.º R. declarou vender à 2.ª R., que declarou comprar-lhe, a sua proporção de 1/5 nesses prédios, pelo preço de € 3.596,09, sem, porém, dar conhecimento aos AA., por escrito ou por qualquer outro modo, de tal venda, não tendo sido dada oportunidade a estes de preferirem na aquisição;
- assistindo aos AA. o direito de preferência na aquisição daquela quota-parte dos prédios, a 2.ª R., por sua vez, não era titular de qualquer direito de preferência;
- os AA. tiveram conhecimento da venda entre os RR. aquando do registo de transmissão a seu favor de um crédito, sendo que apenas tiveram conhecimento dos elementos essenciais do negócio em 10/12/2015, quando a 2.ª R. juntou cópia do contrato de compra e venda a autos de embargo de executado que correram termos sob o n.º 71/14.2TBCVL-B (em que era embargante aquela R. e embargados os ora AA.).
Os RR. contestaram separadamente (concluindo ambos pela improcedência da ação):
- excecionando, ambos, a ilegitimidade dos AA., por se encontrarem desacompanhados de outro comproprietário (que o era ao tempo da alienação em causa);
- bem como a caducidade do direito dos AA., uma vez que estes registaram a seu favor uma transmissão de crédito em 09/04/2013, pelo que, ao efetuarem tal registo, tomaram conhecimento da aquisição de 1/5 registada a favor da 2.ª R.;
- em 23/01/2014 os AA. adquiriram mais 1/5 dos prédios em discussão e voltaram a inscrever no registo tal aquisição e em 15/01/2014 instauraram ação executiva contra a aqui 2.ª R. (Proc. n.º 71/14.2TBCVL), demonstrando no requerimento executivo ter conhecimento que aquela havia adquirido ao aqui 1.º R. 1/5 dos referidos prédios rústicos;
- assim, conhecida a transmissão, pelos AA., em 09/04/2013 ou, pelo menos, em 15/01/2014, ocorre caducidade, pelo decurso do prazo para o exercício do direito de preferência.
A 2.ª R. deduziu ainda reconvenção, âmbito em que pediu a condenação dos AA./Reconvindos a pagarem-lhe, além do valor depositado a título de preço, a quantia de € 2.500,00, alegando, para o efeito, ter despendido em documentação para a efetivação da alienação € 1.000,00 e em deslocações aos prédios não menos de € 1.500,00.
Os AA., em resposta, concluíram pela improcedência da matéria de exceção deduzida – alegando, quanto à exceção de caducidade, que, se podiam ter tido conhecimento da venda à 2.ª R. aquando dos aludidos registos, certo é que do registo não constam todos os elementos essenciais do negócio, designadamente, o preço da venda, pelo que apenas tiveram conhecimento de todos esses elementos aquando da junção pela 2.ª R. do contrato de compra e venda aos autos de embargo de executado, no dia 10/12/2015 –, bem como da matéria reconvencional, impugnando os factos alegados nesse âmbito e pugnando pela improcedência do respetivo pedido.
Dispensada a audiência prévia, saneado o processo, com decisão de improcedência da exceção de ilegitimidade processual ativa (() Já o conhecimento da exceção de caducidade foi relegado para final.) e admissão da reconvenção, e definidos o objeto do litígio e os temas da prova, prosseguiram os autos para julgamento.
Realizada a audiência final, com produção de provas, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
«Em face do exposto:
1 - Julgo a presente acção procedente e, em consequência, decido:
a) Reconhecer o direito de preferência de A (…) e M (…) na compra de 1/5 dos prédios identificados no ponto 1) da matéria de facto provada, condenando-se os réus a tal reconhecerem;
b) Substituir e colocar A (…) e M (…) na posição da ré compradora M (…) nessa compra e venda, nela passando aqueles a ocupar a posição desta, devendo àqueles ser atribuído o direito de propriedade de 1/5 dos prédios identificados no ponto 1) da matéria de facto provada;
c) Ordenar o cancelamento de todos os registos de aquisição de propriedade de 1/5 dos prédios identificados no ponto 1) da matéria de facto provada, inscrita a favor de M (…)
d) Condenar a ré M (…) a entregar aos autores A (…) e M (…) 1/5 dos prédios identificados no ponto 1) da matéria de facto provada, abstendo-se de praticar quaisquer actos que perturbem a posse e propriedade daqueles.
2 – Julgo a reconvenção totalmente improcedente e, em consequência, decido absolver os autores do pedido reconvencional.» (destaques subtraídos).
Inconformado com tal decisão, vem o 1.º R., C (…) interpor o presente recurso, apresentando alegação, culminada nas seguintes
Conclusões (() Que se deixam transcritas, com destaques retirados.)
(…)
A contraparte não contra-alegou.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, tendo neste Tribunal ad quem sido mantidos o regime e o efeito fixados.
Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.
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II – Âmbito do Recurso
Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso, nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil atualmente em vigor (doravante NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 –, constata-se que o thema decidendum consiste em saber se, contrariamente ao decidido, não assiste aos AA. o pretendido direito de preferência, para o que terá de saber-se:
a) Se ocorre caducidade do direito;
b) Caso assim não se entenda, se ocorre abuso do direito, na modalidade do venire contra factum proprium.
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III – Fundamentação
A) Matéria de facto
Na 1.ª instância foi considerada – sem controvérsia – a seguinte factualidade como apurada:
«1. Os seguintes prédios encontram-se inscritos, na proporção de 4/5, a favor do autor A (…) casado com M (…) no regime de comunhão de adquiridos:
- Prédio rústico composto por pinhal e mato, com a área de setecentos metros quadrados, sita no …, a confrontar do Norte, Nascente e Poente com … e do Sul com Junta de Freguesia, inscrito na matriz sob o artigo …º, descrito na Conservatória do Registo Predial da … sob o nº …;
- Prédio rústico composto por terra de cultura arvense de sequeiro, lameiro, pastagens, pinhal, eucaliptal, mato, mata mista e instalações agrícolas, com a área de duzentos e setenta e um mil novecentos e cinquenta metros quadrados, sito na …, a confrontar do Norte com …, do Sul com …, e do Nascente e Poente com Caminho, inscrito na matriz sob o artigo …, descrito na Conservatória do Registo Predial da … sob o nº …;
- Prédio rústico composto por cultura arvense, regadio, pinhal, eucaliptal e pastagem, com a área de noventa e seis mil e duzentos metros quadrados, sito no …, a confrontar do Norte com Junta de Freguesia …, do Sul com …, do Nascente com …, e do Poente com …, inscrito na matriz sob o artigo …, descrito na Conservatória do Registo Predial da … sob o nº ….
2. Os prédios identificados em 1) encontravam-se inscritos a favor do réu C (…)na proporção de 1/5.
3. Por documento escrito, denominado de “Contrato de Compra e Venda”, com termo de autenticação, junto a fls. 16 verso e segs dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido, datado de 02/04/2013, o primeiro outorgante C (…), aqui réu, declarou vender à segunda outorgante M (…) aqui ré, 1/5 dos prédios referidos em 1), pelo preço de 3.596,09€.
4. À data referida em 3) os prédios identificados em 1) encontravam-se inscritos, na proporção de 3/5, a favor do autor A (…) casado com M (…) no regime de comunhão de adquiridos.
5. À data referida em 3) a restante proporção de 1/5 dos prédios identificados em 1) encontrava-se inscrita a favor de D (…).
6. A venda aludida em 3) não foi pelos réus dada a conhecer aos autores.
7. Os autores, em 09/04/2013 registaram a seu favor, pela Ap. 177, de 2013/04/09, uma transmissão de crédito garantido com hipoteca sobre os prédios identificados em 1), tendo como sujeito passivo a C (…)
8. Os autores registaram a seu favor, pela Ap.4 de 2014/01/23, 1/5 dos prédios identificados em 1), tendo como causa de aquisição “compra” a D (…).
9. Em 07 de Maio de 2014, o autor A (…) instaurou acção executiva contra a ré M (…) requerendo a cumulação da mesma à execução que já corria termos sob o nº 71/14.2TBCVL e em que era exequente A (…) e executado C (…), tendo declarado, no requerimento executivo, além do mais, o seguinte: “A executada adquiriu em 02/04/2013 ao executado C (…), 1/5 dos prédios rústicos identificados nos autos a que cumula a presente, como tal, adquiriu tal porção onerada pela mencionada fiança, pelo que é a ora executada, conjuntamente com o executado, responsável pelo pagamento ao exequente da quantia de 1.120,00€, acrescida de juros de mora desde, pelo menos, 14/05/2013, data da interpelação do executado para o pagamento”.
10. A presente acção deu entrada em juízo em 13 de Maio de 2016.».
E foi julgado como não provado:
«a) Os autores tomaram conhecimento do preço e das condições em que a venda referida em 3) se realizou em 10/12/2015, quando a ré M (…) juntou cópia do documento referido em 3) aos autos de embargo de executado que correram termos sob o nº 71/14.2TBCVL-B em que era embargante aquela ré e embargado o aqui autor.
b) Os autores tomaram conhecimento dos termos da venda referida em 3) pelo menos em 15/01/2014.
c) Pela outorga do documento referido em 3), respectivo depósito electrónico e certidões prediais, a ré M (…) despendeu cerca de 1.000,00€.
d) A ré M (…), desde a data referida em 3), deslocou-se várias vezes da sua residência em ..., para inspeccionar e visitar os prédios referidos em 1), tendo despendido em combustível e portagens mais de 1.500,00€.».
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B) Substância do recurso
1. - Da caducidade do direito de preferência
O Apelante, no âmago da sua alegação recursória quanto à matéria da ação, começa por imputar ao Tribunal recorrido violação do disposto no art.º 1410.º do CCiv., concluindo (() V. conclusão 10.ª.), ante as circunstâncias do caso, por dever considerar-se caducado o direito que os AA./Recorridos pretendem exercer (direito de preferência na aquisição de fração indivisa de três prédios rústicos, com fundamento em situação de compropriedade, perante a operada venda pelo 1.º R. à 2.ª R.).
Vejamos, então, em ponderação crítica, a fundamentação da decisão em crise.
Ali se exarou, neste âmbito, que a ação de preferência (a que alude o art.º 1410.º do CCiv., quanto, pois, ao comproprietário) “deverá ser intentada, sob pena de caducidade, no prazo de seis meses, a contar da data em que o titular do direito de preferência tenha tido conhecimento dos elementos essenciais da alienação efectuada a terceiro” (cfr. fls. 141 dos autos em suporte de papel).
E, efetivamente, como é consabido, aquele art.º 1410.º, no seu n.º 1, é expresso na referência ao direito de preferência entre comproprietários, com a consequente necessidade de se dar conhecimento da transmissão do direito de compropriedade aos demais comproprietários, o que obriga à informação quanto aos “elementos essenciais da alienação”, pois que somente a partir da data em que o preferente tiver conhecimento desses elementos essenciais do negócio transmissivo começa a correr o prazo de caducidade de seis meses para instauração da ação de preferência.
Acresce que o art.º 416.º do CCiv., regulando sobre o “conhecimento do preferente” (embora no quadro das preferências de fonte convencional, sendo a dos autos de fonte legal), estabelece que o obrigado deve comunicar ao titular do direito o projeto de venda e as cláusulas do respetivo contrato.
Assim, os ditos “elementos essenciais da alienação” traduzem-se em tais projeto de alienação e cláusulas do respetivo contrato, mormente a referente ao preço (seu montante e tempo/condições do respetivo pagamento), elemento essencial de qualquer negócio transmissivo (cfr., quanto à compra e venda, o disposto nos art.ºs 874.º, 879.º, n.º 1, al.ª c), e 885.º, todos do CCiv.).
Com efeito, como referem Pires de Lima e Antunes Varela (() Cfr. Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª ed. revista, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, ps. 371 a 373.), sendo a preferência de perspetivar como um “verdadeiro direito real de aquisição”, com o atual CCiv. o prazo para o exercício do respetivo direito deixou de contar-se, como antes, a partir do conhecimento da venda pelo preferente, para passar a contar-se a partir dos ditos “elementos essenciais da alienação”, assim clarificando aqueles Ilustres Autores que não basta “que o preferente saiba que a alienação se realizou: é preciso que conheça os elementos essenciais do contrato realizado”, isto é, “todos os factores do negócio capazes de influir decisivamente na formação da vontade de preferir ou não, todos os elementos reais do contrato que pudessem ter influência num sentido ou noutro”, mormente, “em posição destacada, o preço, bem como as condições do seu pagamento”.
Assim também foi entendido na sentença recorrida, onde se expendeu, quanto ao caso concreto:
«(…) os autores tiveram conhecimento da existência da venda efectuada pelo 1º réu à 2ª ré e da data da mesma aquando do registo da transmissão do crédito e aquando da aquisição de 1/5 dos prédios objecto de venda a D (…), em virtude de tais actos, registados, serem posteriores à alienação do 1º réu à 2ª ré.
Sendo que também resulta claro que todos esses actos são anteriores à instauração da acção executiva pelo aqui autor marido à aqui ré M (…).
Contudo, conforme supra exposto, o prazo de seis meses apenas se inicia com o conhecimento, pelos autores, de todos os elementos essenciais da alienação a terceiro, designadamente, o preço, condições de pagamento e todas as estipulações particulares relevantes para a decisão do exercício de preferência.
Ora, da diversa documentação junta aos autos – designadamente, das descrições prediais dos prédios em causa nestes autos das quais consta o registo da referida transmissão de crédito e da aquisição de 1/5 dos prédios pelos autores a D (…) e do requerimento executivo apresentado pelo aqui autora contra a aqui ré M (…) – não é possível concluir que os autores tiveram conhecimento de todos os elementos essenciais do negócio nesses momentos, indicados pelos réus (transmissão do crédito e aquisição de 1/5 dos prédios a D (…)), uma vez que tais elementos essenciais do negócio não constam nem resultam daquela documentação.
Assim, é forçoso concluir, que os autores tiveram conhecimento da existência da venda efectuada pelo 1º réu à 2ª ré nos momentos indicados pelos réus (aquando do registo da transmissão do crédito e aquando da aquisição de 1/5 dos prédios objecto de venda a D (…)).
Tal facto foi, aliás, reconhecido pelos próprios autores.
Ao invés, não nos é possível concluir – como pretendem os réus – que os autores tenham tido conhecimento de todos os elementos essenciais do negócio nesses momentos.
Ora, era ao réu transmitente que cabia provar o decurso do prazo (…), isto é, demonstrar que há mais de seis meses que o titular do direito de preferência teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação.
O que os réus não lograram provar.
(…)
Cumpre atentar que, como resulta da matéria de facto provada, os réus não deram conhecimento aos autores dos elementos essenciais da alienação.
Ora, não podendo confundir-se o momento em que os autores terão tomado conhecimento da alienação efectuada, com a comunicação a que alude o artigo 416.º, n.º 1 do Código Civil, ainda que os autores não tenham logrado provar a data em que tiveram efectivo conhecimento dos elementos essenciais do negócio, o direito de preferência dos autores, a existir, não caducou pelo não exercício do direito no prazo legal, pois, com a falta de comunicação, não chegou a nascer a obrigação de exercitar esse direito.
Isto é, tendo resultado demonstrado que os réus não deram conhecimento aos autores dos elementos essenciais da alienação, o direito daqueles de preferir (…) nunca poderia ter caducado.» (cfr. fls. 141 v.º e seg. dos autos em suporte de papel).
Ora, vem provado – sem qualquer impugnação do Recorrente, que se conformou, invariavelmente, com todo o factualismo julgado apurado, tal como com o julgado não provado – que a venda em causa, ocorrida em 02/04/2013, não foi dada a conhecer pelos RR. aos AA. (factos provados 3 e 6).
Assim, se não foi dada a conhecer a venda realizada, também não foi prestada, obviamente, informação sobre os ditos elementos essenciais do contrato transmissivo, incluindo o preço convencionado.
Restava aos AA., como preferentes, a eventualidade de apurarem, por si próprios, a existência da alienação e dos seus ditos elementos essenciais.
Ora, não prova o Recorrente, enquanto alegante e beneficiário da exceção de caducidade (cfr. art.º 342.º, n.º 2, do CCiv.), que os AA. tenham obtido conhecimento de tais elementos essenciais – mormente, do preço fixado e respetivas condições de pagamento – há mais de seis meses por referência à data de instauração da ação (esta intentada em 13/05/2016) (() Cfr. também os factos não provados das al.ªs a) e b) do quadro fáctico da causa.).
Pode concluir-se que os AA. tiveram conhecimento da venda anteriormente àquele prazo de seis meses (cfr. factos provados 7 a 9), mas nada demonstra, ante o que vem provado, que tiveram então também conhecimento dos elementos essenciais da transmissão realizada, mormente do respetivo preço, conhecimento este que, manifestamente, não é de presumir, antes cabendo aos demandados, como dito, em matéria de exceção por si invocada, o ónus probatória da respetiva factualidade de suporte, ónus a que não lograram corresponder (não podendo colher, assim, o expendido nas conclusões 5.ª e 6.ª do Apelante).
E nem se diga que impendia sobre os AA., enquanto preferentes e conhecedores de que ocorrera transmissão, um ónus ou dever de obtenção de informação detalhada quanto às condições clausuladas da venda, mormente o preço, posto que tal corresponderia à inversão dos deveres de informação na relação entre comproprietários.
Na verdade, era à parte comproprietária vendedora que cabia facultar a oportuna informação sobre os elementos essenciais da alienação, de molde a que os AA. pudessem, de forma esclarecida, decidir quanto ao exercício, ou não, do seu direito de preferência (antes da venda), não podendo, face à lei vigente, defender-se o contrário, isto é, que era aos AA. que cabia obter a informação que os RR. nunca lhes concederam/prestaram (() Cabe ao comproprietário alienante um dever de informação sobre os “elementos essenciais da alienação”, cujo cumprimento não se pode presumir, e não ao titular do direito de preferência um dever de se informar em caso de inobservância daquele dever do alienante (cfr. art.ºs 1409.º, n.ºs 1 e 2, e 416.º, ambos do CCiv.).).
Perante tal inadimplemento informativo dos obrigados ao dever de informação (a parte ora recorrente), de nada servirá a invocação das regras da “boa-fé e de lisura negocial”, posto que, insiste-se, era ao comproprietário vendedor que cabia o dever de informar e não aos demais comproprietários (os AA.), incumprido aquele dever de outrem (R./Recorrente), o ónus ou o dever de indagar e de se informarem (não podendo proceder, assim, o expendido nas conclusões 7.ª, 8.ª e 10.ª do Apelante, ademais, sem o necessário respaldo fáctico).
Donde, pois, que não se demonstre a exceção da caducidade, a qual, como decidido na sentença, não pode ser acolhida, improcedendo as conclusões do Recorrente em contrário.
2. - Do abuso do direito de ação
Esgrime o Recorrente incorrer a contraparte em abuso do direito, na modalidade do venire contra factum proprium, ao intentar, no âmbito da relação real de compropriedade, a presente ação de preferência.
Defende, para tanto, que, depois de conhecerem a ocorrência da venda e terem optado por executar a compradora, com expressa menção à aquisição pela ali executada (aqui 2.ª R.) da fração de 1/5 dos prédios em questão, responsabilizando-a pelo pagamento da quantia exequenda, o exercício do direito de preferência (nesta ação) configura conduta abusiva, por contraditória (venire…), quando a compradora, por via da instauração da execução, “deu a sua situação jurídica aquisitiva como clarificada e consolidada” (cfr. conclusões 9.ª e 12.ª e segs. da apelação).
Na sentença foi salientado o seguinte:
«(…) não se vislumbra o abuso de direito invocado pelos réus o qual se funda no facto de os aqui autores terem primeiramente instaurado acção executiva contra os aqui réus para executarem contra a ré M (…) a hipoteca que onerava os respectivos bens imóveis e só agora, depois de receberem o valor da hipoteca, é que se serviram do direito de preferência para ficarem com os bens já desonerados.
Assim sendo, alegam os réus que os autores, ao optarem por executar a compradora M (…)criaram a convicção legítima de que não pretendiam exercer o direito de preferência, pelo que ao instaurarem a presente acção litigam em abuso de direito.
(…)
Ora, da matéria de facto provada não é possível retirar qualquer elemento que nos permita entrever um direito exercitado pelos autores em termos clamorosamente ofensivos da justiça.
E isto porque, quer com a instauração da acção executiva, quer com a instauração da presente acção, os autores não pretenderam mais do que exercer os respectivos direitos que lhes assistem, nas condições em que a lei os faculta.
Pelo simples facto dos autores terem desencadeado os meios legais ao seu dispor, não se pode entender que houve abuso de direito.
Da conduta dos autores não se pode inferir que eles actuaram de má-fé, com abuso de direito, nem há motivos para se entender que com a instauração da acção executiva criaram nos réus expectativas e confiança que depois frustraram com a instauração da presente acção.» (cfr. fls. 144 e v.º dos autos em suporte de papel).
Escreveu-se, por sua vez, no Ac. TRC de 04/04/2017 (() Proc. 3753/13.2TJCBR.C1, subscrito pelos aqui Relator e Exm.ºs Adjuntos, disponível em www.dgsi.pt.), seguindo o entendimento dominante da doutrina e da jurisprudência, que:
«No âmbito da fórmula “manifesto excesso” cabe a figura da conduta contraditória – “venire contra factum proprium” – que se inscreve no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara.
O abuso do direito – “como válvula de escape”, que deve ser, só deve funcionar em situações de emergência, para evitar violações chocantes do Direito.
Como escreve o Prof. Menezes Cordeiro, in “Da Boa Fé no Direito Civil” – Colecção Teses, pág.745:
“O venire contra factum proprium” postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo.
O primeiro – o factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo.”» [vide, inter alia, o Ac. STJ de 09/09/2008, Proc. 08A2123 (Cons. Fonseca Ramos), em www.dgsi.pt, enfatizando que a conduta «integradora do “venire” terá, objectivamente, de trair o “investimento de confiança”, importando que os factos demonstrem que o resultado de tal conduta constituiu, in concreto, injustiça»].
Ora, à luz da factualidade provada – só essa importa –, não se vê como o exercício do direito de credor – de natureza obrigacional, mesmo se garantido por hipoteca – na anterior ação executiva, nos moldes em que tomou corpo e já objeto de definição, seja inconciliável com o aludido direito real de aquisição, exercido posteriormente através da ação de preferência ao dispor do comproprietário.
Como dito na sentença, trata-se de direitos diversos, a que a ordem jurídica concede proteção separada, através de mecanismos processuais próprios, pelo que a anterior ação executiva alicerçada em garantia hipotecária não impede a posterior ação de preferência, ainda que com coincidência de sujeitos e de bens.
Com efeito, no âmbito de diversas relações jurídicas, a anterior ação executiva e a atual ação de preferência dão resposta a direitos diversos, embora encabeçados pelos mesmos sujeitos ativos (e com coincidência pelo lado passivo), mais não fazendo os AA. do que, sucessivamente, exercerem os respetivos direitos, que lhes assistem, nas condições em que a lei os faculta.
Donde que não possa ver-se na conduta sucessiva dos AA., interpondo duas diversas ações (uma executiva e outra declarativa, de preferência), tal como apurado, grave contradição, em termos de flagrante e chocante violação da Justiça.
Inexiste, pois, salvo o devido respeito, abuso do direito (de ação), na modalidade do venire ou de intolerável traição do investimento legítimo/atendível de confiança da contraparte.
Em suma, improcede a apelação, sendo de manter, inalterada, a decisão recorrida.
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IV – Sumário (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):
1. - No âmbito da ação de preferência de comproprietário (art.º 1410.º, n.º 1, do CCiv.), os “elementos essenciais da alienação” traduzem-se no projeto de alienação e cláusulas do respetivo contrato, mormente a referente ao preço (seu montante e tempo/condições de pagamento), elemento essencial de qualquer negócio transmissivo oneroso (cfr., quanto à compra e venda, os art.ºs 874.º, 879.º, n.º 1, al.ª c), e 885.º, todos do CCiv.).
2. - Cabe ao comproprietário alienante um dever de informação sobre tais elementos essenciais da alienação, cujo cumprimento não se presume, e não ao titular do direito de preferência um ónus ou dever de se informar em caso de inobservância daquele dever do alienante (art.ºs 1409.º, n.ºs 1 e 2, e 416.º, ambos do CCiv.).
3. - O abuso do direito, na modalidade do venire contra factum proprium, pressupõe a existência de dois comportamentos, gravemente contraditórios entre si, do mesmo sujeito de direitos, em termos tais que o exercício de um direito redunde, em concreto, em flagrante e intolerável injustiça para outrem.
4. - Não incorre em abuso do direito de ação o comproprietário que, depois de ter instaurado execução hipotecária contra os seus devedores, vem instaurar, superado o quadro executivo, ação de preferência, ainda que contra as mesmas pessoas e com coincidência de bens, ao abrigo do disposto no art.º 1410.º do CCiv., posto que se limita a, sucessivamente e sem excesso, exercer direitos diversos que lhe assistem, mediante mecanismos processuais compatíveis que a lei lhe faculta.
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V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo, por isso, a decisão recorrida.
Custas da apelação pelo R./Apelante.

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).
Assinaturas eletrónicas.

Coimbra, 26/06/2018

Vítor Amaral (Relator)
Luís Cravo
Fernando Monteiro