Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
19/11.6YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: ESCUSA
FIGURA PÚBLICA
SUCESSÃO NO CARGO DE VEREADOR
Data do Acordão: 02/09/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA FIGUEIRA DA FOZ – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: INDEFERIDA
Legislação Nacional: ARTIGO 43º CPP
Sumário: 1. O motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, há-de resultar da valoração objectiva das concretas circunstâncias invocadas, a partir do senso e experiência do homem médio pressuposto pelo direito.

2. O facto do arguido ser figura pública profusamente conhecida, e ter sucedido no cargo de vereador de Câmara Municipal, mãe da requerente, não constituem, para um observador comum e desinteressado, motivos de desconfiança na capacidade do juiz em se manter fiel à imparcialidade que o seu estatuto lhe impõe.

Decisão Texto Integral: I. MF…, Juíza de Direito, actualmente colocada como auxiliar no Tribunal Judicial da FGF..., deduziu, ao abrigo do disposto no art. 43.º, n.ºs 1 e 4 do Código de Processo Penal (doravante designado apenas por CP), escusa nos autos de instrução registados sob o n.º 932/08.8TAFIG, do 2.º Juízo daquele Tribunal, invocando, para o efeito, os seguintes (transcritos) fundamentos:
- Corre termos no 2.º Juízo do Tribunal Judicial da FGF... uns autos de instrução registados sob o n.º 932/08.8TAFIG, no âmbito do qual foram deduzidas, além do mais, acusações particulares pelos assistentes “FI…, S.A.”, J... e A... contra os arguidos P..., T... e L..., pela prática dos crimes de injúria, p. e p. pelo art. 181.º, n.º 1 e art. 183.º, n.º 1, al. a) e b) do CP, de difamação, p. e p. pelo art. 180.º, n.º 1 e art. 182.º, n.ºs 1, als. a) e b), do CP, e de um crime de ofensa a pessoa colectiva, p. e p. pelo art. 187.º, n.º 1 e art. 183.º, n.º 1, als. a) e b), do CP;

- Tal acusação não veio, porém, a ser acompanhada pelo Ministério Público, conforme decorre do teor do despacho proferido a fls. 685 e 686 dos referidos autos;

- Inconformado com o teor das acusações particulares deduzidas, veio o arguido T... requerer a abertura da instrução, nos termos e com os fundamentos constantes do requerimento de fls. 726 a 730, que ora se dá por integralmente reproduzido;

- Por despacho proferido a fls. 754 e 755, datado de 03-12-2010, foi admitido tal requerimento e declarada aberta a fase da instrução, tendo ainda sido designada data para realização das diligências instrutórias requeridas e consideradas pertinentes;

- Ora, por força de redistribuição de serviço em vigor desde 4 de Janeiro de 2011 (cfr. teor do despacho exarado pelo Exmo. Sr. Juiz Conselheiro Vice Presidente do Conselho Superior da Magistratura datado de 22-12-2010 e informação anexa de que se junta cópia), foram-me afectos todos os actos que competem ao juiz de instrução e bem ainda a tramitação da totalidade dos processos de instrução já distribuídos ou a distribuir ao 2.º Juízo, no qual se incluem os epigrafados autos;

- Sucede, porém, que antes da minha primeira intervenção processual no âmbito de tais autos, e no momento em que procedia ao estudo do processo com vista à preparação da realização das diligências instrutórias designadas, pude perceber que o arguido T…, figura pública profusamente conhecida, sucedeu no cargo de vereador da Câmara Municipal do PTO... a MJ…, mãe da ora signatária;

- Na verdade, MJ…, foi eleita vereadora à Câmara Municipal do PTO..., pelo Partido X..., para 2 mandatos consecutivos, que terminaram em Dezembro de 2001. Durante esses mandatos foi responsável pela Habitação e Acção Social e Presidente da Fundação para o Desenvolvimento do Vale de ZZZ..., entre outras competências. O ora arguido e requerente da abertura da instrução T..., viria a ser eleito vereador do Partido Y..., nas eleições subsequentes (2002-2005), tendo-lhe sido confiadas, entre outras competências, justamente o pelouro de Habitação e Acção Social e a presidência da Fundação para o Desenvolvimento do Vale de ZZZ...

- Considerando o exercício político de tal cargo, nomeadamente por uma pessoa que me é próxima e com vínculo familiar directo, nas mesmas áreas que viriam a ser assumidas, posteriormente, pelo referido arguido e requerente da instrução, tratando-se de pessoas com filiações partidárias distintas, e que o processo judicial em que ora sou chamada a decidir é pautado por uma vincada componente política, e que, por isso, foi amplamente divulgado pelos órgãos de comunicação social, tudo conjugado, poderá dar azo a futuras conjecturas públicas e interpretações distorcidas, no sentido de falta de independência e isenção na tomada da decisão que por mim viesse a ser adoptada, quer esta fosse no sentido da pronúncia, quer o inverso.

- É, assim, a exponente do entendimento que tais factos podem tomar, em concreto, a sua intervenção suspeita, e gerar desconfiança aos olhos do cidadão médio sobre a sua imparcialidade e rectidão de avaliação, julgamento e decisão, sendo pertinente, in casu, invocar o aforismo que “à mulher de César não basta sê-lo, é preciso parecê-lo”, mesmo que para a signatária os fundamentos atrás expostos não impeçam que estejam garantidas, íntima e subjectivamente, essa imparcialidade e o distanciamento que é exigível ao exercício das suas funções.

Pelo exposto, e ao abrigo do disposto no art. 43.º e ss. do Código de Processo Penal, requer a V. Ex.ª se digne dispensar a impetrante de intervir no sobredito processo, em qualquer fase em que o mesmo se encontre.


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II. Resultam dos autos as seguintes ocorrências processuais relevantes para a decisão do presente incidente:
A) No âmbito do inquérito n.º 932/08.8TAFIG, os assistentes FI…, S.A. e J..., deduziram, ao abrigo do disposto pelo artigo 285.º do CPP, acusação particular contra P..., T... e L..., com base nos factos descritos a fls. 13/34 deste incidente, imputando aos arguidos a prática dos crimes de injúria, p. e p. pelo art. 181.º, n.º 1 e art. 183.º, n.º 1, al. a) e b) do CP, de difamação, p. e p. pelo art. 180.º, n.º 1 e art. 182.º, n.ºs 1, als. a) e b), do CP, e de um crime de ofensa a pessoa colectiva, p. e p. pelo art. 187.º, n.º 1 e art. 183.º, n.º 1, als. a) e b), do CP;
B) No domínio do mesmos autos de inquérito, também A... formulou acusação particular contra os arguidos individualizados em A), imputando-lhes a prática, em co-autoria de material e em concurso real, de três crimes de difamação agravada com publicidade, p. e p. pela conjugação dos artigos 180.º e 183.º, n.º 1, alíneas a) e b), do CP (cfr. fls. 45/53 v.º) do presente incidente;
C) Os factos descritos numa e noutra das acusações particulares supra referidas ocorreram na área territorial da Comarca da FGF..., estão relacionados com uma reunião/manifestação pública ocorrida em 31-05-2008, convocada pelos arguidos, por si e em representação do denominado “Movimento de Defesa do Desenvolvimento Sustentável do VG...”, e põem em causa, essencialmente, em traços largos, o processo que determinou a edificação de um empreendimento imobiliário no referido VG... pela assistente “FI…, S.A.”;
D) Segundo as referidas acusações, os assistentes J... e A... são administradores da sociedade, também assistente, “FI…, S.A.”;
E) Por requerimento apresentado em 18-02-2010, o arguido T… requereu a abertura da instrução, nos termos de fls. 58/62, tendo em vista a prolação de despacho de não pronúncia;
F) Por despacho proferido em 03-09-2010, foi declarada aberta a fase da instrução e determinada a inquirição da testemunha B... (cfr. fls. 64 destes autos);
G) Por força de redistribuição de serviço em vigor desde 04-01-2011 (cfr. despacho exarado pelo Exmo. Sr. Juiz Conselheiro Vice Presidente do Conselho Superior da Magistratura datado de 22-12-2010), foram afectos à Sr.ª Juíza requerente todos os actos que competem ao Juiz de Instrução e bem ainda a tramitação da totalidade dos processos de instrução já então distribuídos ou a distribuir ao 2.º Juízo do Tribunal Judicial da FGF..., no qual se inclui o processo em causa, n.º 932/08.8TAFIG (cfr. documentos a fls. 65/69);
H) A requerente é filha de MJ… (cfr. documento certificado a fls. 70);
I) MJ… foi eleita vereadora à Câmara Municipal do PTO..., pelas listas do Partido X..., para 2 mandatos consecutivos, que findaram em Dezembro de 2001;
J) Durante esses mandatos, a vereadora MJ… foi responsável pela Habitação e Acção Social e Presidente da Fundação para o Desenvolvimento do Vale de ZZZ....
K) Por sua vez, o arguido e requerente da abertura da instrução, T..., foi eleito vereador, pelas listas do Partido Y…, nas eleições subsequentes (2002-2005), tendo-lhe sido confiadas, inter alia, justamente o pelouro de Habitação de Acção Social e a Presidência da referida Fundação para o Desenvolvimento do Vale de ZZZ....
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Estatui o art. 43.º, n.ºs 1 e 4 do CPP:
«1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir um motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

(....)
4. O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos n.º 1 e 2».
Por sua vez, prescreve o art. 45.º, n.º 1, al. a) do citado diploma que «o requerimento de escusa deve ser apresentado, juntamente com os elementos em que fundamenta, perante o tribunal imediatamente superior».
No âmbito da jurisdição penal, o legislador, escrupuloso no respeito pelos direitos dos arguidos, consagrou, como princípio inalienável, constitucionalmente consagrado (cfr. art. 32.º, n.º 9 da CRP), o do juiz natural, pressupondo tal princípio que intervém no processo o juiz que o deva segundo as regras de competência legalmente estabelecidas para o efeito.
Contudo, perante a possibilidade de ocorrência, em concreto, de efeitos perversos do princípio do juiz natural, estabeleceu o sistema o seu afastamento em casos-limite, ou seja, unicamente quando se evidenciem outros princípios ou regras que o ponham em causa, como sucede, a título de exemplo, quando o juiz natural não oferece garantias de imparcialidade e isenção no exercício dos seus munus.
Subjacente ao instituto da recusa, encontra-se a premente necessidade de preservar até ao possível a dignidade profissional do magistrado visado e, igualmente, por decorrência lógica, a imagem da justiça, em geral, no significado que a envolve e deve revesti-la, constituindo uma garantia essencial para o cidadão que, inserido num estado de direito democrático como o nosso, submeta a um tribunal a apreciação da sua causa.
Como decorre do teor literal do supra citado art. 43.º, n.º 1 do CPP, o juiz pode ser recusado ou pedir escusa quando a sua intervenção correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
Analisada a imparcialidade do juiz nas diferentes perspectivas observadas do mundo exterior, surpreendem-se, complementarmente, dois modos distintos de a abordar e compreender. No plano subjectivo, a imparcialidade tem a ver com a posição pessoal do juiz, o que ele pensa no seu foro íntimo perante um determinado acontecimento da vida real e se internamente tem algum motivo para o favorecimento de certo sujeito processual em detrimento de outro. No ponto de vista subjectivo, impõe-se, em regra, a demonstração da predisposição do julgador para favorecer ou desfavorecer um interessado na decisão e, por isso, presume-se a imparcialidade até prova em contrário.

Porém, para se afirmar a ausência de qualquer preconceito em relação ao thema decidendum ou às pessoas afectadas pela decisão, não basta a visão subjectiva, sendo também imprescindível, como tem sido realçado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, relativamente à imparcialidade garantida no art. 6.º, § 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, uma apreciação objectiva, alicerçada em garantias bastantes de a intervenção do juiz não gerar qualquer dúvida legítima.
No plano objectivo, em que são relevantes as aparências, que podem afectar, não rigorosamente a boa justiça, mas a compreensão externa sobre a garantia da boa justiça que seja mas também pareça ser, numa fenomenologia de valoração entre o “ser” e o “dever ser” Cfr. Ac. do STJ de 13-04-2005, http://www.dgsi.pt/, proc. 05P1138. , transparecem sobretudo considerações formais (orgânicas e funcionais), ligadas ao desempenho processual pelo juiz de funções ou de prática de actos próprios da competência de outro órgão, mas devendo «ser igualmente consideradas outras posições relativas que possam, por si mesmas e independentemente do plano subjectivo do foro interior do juiz, fazer suscitar dúvidas, receio ou apreensão, razoavelmente fundadas pelo lado relevante das aparências, sobre a imparcialidade do juiz; a construção conceptual da imparcialidade objectiva está em concordância com a concepção moderna da função de julgar e com o reforço, nas sociedades democráticas de direito, da legitimidade interna e externa do juiz». Idem, pág. 4.
O motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, há-de resultar da valoração objectiva das concretas circunstâncias invocadas, a partir do senso e experiência do homem médio pressuposto pelo direito.
«A gravidade e a seriedade do motivo hão-de revelar-se, assim, por modo prospectivo e externo, e de tal sorte que um interessado - ou, mais rigorosamente, um homem médio colocado na posição do destinatário da decisão - possa razoavelmente pensar que a massa crítica das posições relativas do magistrado e da conformação concreta da situação, vista pelo lado do processo (intervenções anteriores), ou pelo lado dos sujeitos (relação de proximidade, quer de estreita confiança com interessados na decisão), seja de molde a suscitar dúvidas ou apreensões quanto à existência de algum prejuízo ou preconceito do juiz sobre a matéria da causa ou sobre a posição do destinatário da decisão». Ibidem, pág. 6.
Revertendo ao caso sub judice, serão de considerar verificados esses pressupostos de excepcionalidade que levam a derrogar o princípio do juiz natural?
É evidente que, no plano objectivo, falece qualquer motivo para a escusa. Na verdade, não se vislumbra nenhum interesse pessoal da peticionante na tramitação da instrução e na prolação, a final, de decisão de pronúncia ou não pronúncia. A própria reconhece que nenhuma circunstância subjectiva afecta a sua imparcialidade.
Existirá, contudo, como a requerente pretende, o risco, do ponto de vista objectivo, de a sua intervenção suscitar sérias reservas sobre a sua imparcialidade?
Os fundamentos invocados para esse risco radicam na relação familiar entre a requerente e a ex-vereadora da Câmara Municipal da Câmara do PTO..., sua mãe, MJ…, a qual desempenhou essas funções, no pelouro da Habitação e Acção Social, em representação do Partido X..., até Dezembro de 2001, tendo sido também Presidente da Fundação para o Desenvolvimento do Vale de ZZZ...; na circunstância de o arguido T…, requerente da instrução, ter desempenhado subsequentemente as mesmas funções de vereação, pelo Partido Y... (período 2002-2005); e no facto de o processo a que nos vimos reportando se caracterizar por uma vincada componente política. Na perspectiva da Sr.ª Juíza, a conjugação de todos estes elementos poderá dar azo a futuras conjecturas públicas e interpretações distorcidas, no sentido de falta de independência e isenção na decisão a proferir.
Contudo, os autos não nos oferecem nenhum dado concreto sobre as motivações de natureza política eventualmente existentes no processo e não reconhecemos qualquer ligação directa e relevante, no domínio em análise, entre as funções autárquicas exercidas, primeiramente, por MJ… e, em seguida, pelo arguido T... e os factos vertidos nas acusações particulares, ocorridos na área da Câmara da FGF....
Assim, os factores invocados, desacompanhados de outros factores, não se mostram suficientes para pôr objectivamente em crise a confiança na peticionante, ou seja, não constituem um motivo suficientemente sério e grave para afastar a Sr.ª Juíza MF… da direcção da instrução e da prolação, a final, da necessária decisão instrutória; em síntese conclusiva, não constituem, para um observador comum e desinteressado, motivos de desconfiança na capacidade do juiz em se manter fiel à imparcialidade que o seu estatuto lhe impõe.
Improcede, pois, o pedido.

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III. Posto o que precede, acordam os Juízes, na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, em negar a escusa pedida pela Sr.ª Juíza MF… .
Sem custas.
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Alberto Mira (RELATOR)
Elisa Sales