Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
421/13.9TBOHP.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
IMÓVEL
ACESSÃO INDUSTRIAL
EDIFÍCIO
AQUISIÇÃO
USUCAPIÃO
PROPRIEDADE HORIZONTAL
PARTE DE EDIFÍCIO
Data do Acordão: 04/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – OLIVEIRA DO HOSPITAL – INST. LOCAL. J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 1287º, 1288º E 1344º DO C. CIVIL.
Sumário: I – Em face do regime geral do direito de propriedade sobre imóveis, qualquer edifício incorporado no solo só pode ser objecto de um único direito de domínio, o qual abrangerá toda a construção, o solo em que esta assenta e os terrenos que lhe servem de logradouro, como se infere das regras sobre acessão industrial imobiliária e do disposto no art.º 1344º do C. Civil, numa manifestação do princípio da especiali­dade ou da individualização que rege os direitos reais, na vertente segundo a qual, incidindo o direito de propriedade sobre a totalidade das coisas que cons­tituem o seu objecto, não podem as suas partes integrantes ou componentes serem objecto de direito de propriedade de titular diferente, sendo o destino jurídico da coisa unitário.

II - O regime da propriedade horizontal constitui uma das excepções a este princípio, uma vez que permite que sobre o mesmo edifício de estrutura unitária se constituam distintos direitos de propriedade, com diferentes titulares, que incidem sobre fracções independentes desse prédio - art.º 1414º e seg. do C. Civil.

III - Daí que, tendo em consideração, por um lado, as limitações impostas pelo princípio da individualização e, por outro lado, o regime excepcional da propriedade horizontal, os tribunais têm vindo a afirmar que a posse, em termos de direito de propriedade, de parte de um prédio não sujeito ao regime da propriedade horizontal, não pode determinar a aquisição por usucapião dessa parte, sem a prévia ou, pelo menos, simultânea constituição do imóvel em propriedade horizontal, a qual pode ocorrer por usucapião.

IV - Embora se admita que em determinados casos a simples posse de parte de um prédio possa conduzir à constituição indirecta da propriedade horizontal sobre todo o edifício, por usucapião, para que tal suceda é necessário demonstrar que dessa situação possessória resultou a divisão do prédio em fracções autónomas que sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública e que cumpram os requisitos para a aprovação de tal divisão pela entidade pública competente.

V - Não se encontrando demonstrada uma prévia ou pelo menos simultânea constituição da propriedade horizontal do edifício em causa, a posse de parte desse edifício não pode determinar a aquisição por usucapião dessa parte, uma vez que não são susceptíveis de um domínio autónomo partes componentes de uma coisa.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

A Autora intentou a presente acção declarativa de condenação contra o Réu, pe­ticionando que seja reconhecida como dona e legitima possuidora do prédio descrito no artigo 1º da petição inicial e o Réu condenado a abster-se de praticar actos que ofendam o seu direito e a retirar a porta colocada na abertura de acesso à loja existente no referido prédio.

Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese:

- A Autora adquiriu o direito de propriedade sobre o prédio urbano descrito na CRP sob o nº... por compra efectuada em 28.04.1986.

- Desde então tem cuidado de tal prédio, habitando-o, guardando os seus perten­ces nas lojas, à vista de toda a gente, sem que haja oposição, na convicção de exercer direito próprio, pelo que, acaso não existisse título sempre teria adquirido o direito de propriedade por usucapião.

- O Réu, em meados de Maio de 2011, mudou a porta da loja, sita no rés-do-chão do prédio e à direita deste, quando nos posicionamos de frente para as lojas e retirou os pertences da Autora que aí se encontravam.

- A loja ocupada pelo Réu foi outrora utilizada pelo avô do Réu e pelos arrenda­tários do prédio urbano pertencente ao Réu, porquanto era uma loja de porta aberta que não era utilizada pelos proprietários do prédio da Autora por não fazerem uso do mesmo, sendo que tal utilização era feita por mera tolerância.

O Réu contestou, alegando:

- É dono e legítimo possuidor do prédio urbano descrito na CRP sob o n. ..., do qual faz parte a loja em causa nos autos, a qual deita directamente para o logradouro do seu prédio.

- Não obstante a mesma estar situada ao nível do rés-do-chão do prédio da Au­tora, sobre a qual o Réu e os seus ante possuidores, por si e através de arrendatários seus, desde pelo menos 1970 exerceram actos de posse, à vista de toda a gente, sem qualquer oposição, e na convicção de exercerem um direito próprio e que não lesavam direitos de ninguém, pelo que adquiriu o direito de propriedade sobre a referida loja, por usucapião.

- No ano de 2011 mandou colocar uma porta na entrada da loja em questão para evitar actos abusivos por parte da Autora, retirando uma porta de madeira que a Autora, no ano de 2009, colocou em substituição da anterior.

Conclui pela improcedência da acção.

A Autora apresentou resposta, concluindo como na p. inicial.

Na audiência prévia foi requerido pela Autora a rectificação do pedido de reco­nhecimento do seu direito de propriedade, devendo ser reconhecido que o prédio pertencente à Autora tem a composição referida no artigo 3º da petição inicial, isto é, que do mesmo faz parte a loja em causa nos autos.

Subsidiariamente requereu a ampliação de tal pedido de molde a abranger a refe­rida loja.

Por despacho proferido a 10.03.2014 foi deferido o referido pedido de rectifica­ção da Autora.

Veio a ser proferida sentença que julgou a acção nos seguintes termos:

Pelo exposto julgo a acção parcialmente procedente, por provada, e em consequência:

1 Declaro a Autora A... como dona e legítima possuidora do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... e inscrito na matriz com o artigo ..., sito na Rua do ..., o qual é composto por dois andares, sendo primeiro andar destinado à habitação e o rés-do-chão é constituído por uma divisão, vulgo loja (sita à esquerda do prédio vindo de identificar quando nos posicionados de frente para as lojas), destinada a arrumos.

2 Condeno o Réu a reconhecer o direito de propriedade e posse da Autora sobre o prédio descrito em 1.

3 Julgo procedente por provada a excepção de usucapião alegada pelo Réu R... fundada na usucapião do direito de propriedade quanto à divisão, vulgo loja, sita no rés-do-chão do prédio identificado em 1, à direita do prédio quando nos posicionados de frente para as lojas.

4 Absolvo o Réu do demais peticionado.

A Autora interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:

...

O Réu apresentou resposta, defendendo a confirmação da decisão proferida.

1. Impugnação da matéria de facto

Do recurso interposto pela Autora resulta a sua discordância quanto ao julga­mento que foi feito da matéria de facto, revelando a mesma nas suas conclusões essa sua discordância.

Dispõe o art.º 640º do Novo C. P. Civil:

1 — Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 — No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o se­guinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 — O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636º.

Da leitura das alegações do recurso interposto resulta manifesta a discor­dância da Autora quanto ao julgamento da matéria de facto julgada provada, sem no entanto constarem especificados os concretos pontos de facto que considera incor­rectamente julgados não dando, desse modo, satisfação à exigência contida no n.º 1, a), do artigo acima transcrito.

A recorrente limita-se a fazer constar nas conclusões matéria que nos per­mite concluir que pretende ver modificada a decisão da matéria de facto, fazendo apelo a depoimentos testemunhais, não afirmando, concreta e explicitamente em que baseia a impugnação da matéria de facto; não identificando qualquer facto que pretende que seja julgado provado ou não provado; que parte concreta do depoimento de alguma testemunha seja valorada diferentemente por referência ao valor probatório de outro testemunho ou documento.

Não indica, a Recorrentes, em momento algum das suas conclusões os concretos pontos de facto que com a reapreciação da prova produzida pretendem que sejam alterados, não dando assim cumprimento ao ónus imposto pelo art.º 640º, n.º 1, a), do C. P. Civil.

Assim, considerando que as alegações da Recorrentes não dão satis­fação às mencionadas exigências legais, nos termos expostos, rejeita-se o recurso no que se refere à impugnação da decisão que fixou a matéria de facto provada.

2. Do objecto do recurso

Considerando o acima decidido e que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente cumpre apreciar se o Réu adquiriu por usucapião o direito de propriedade sobre a loja que se encontra à direita quando nos posicionamos de frente para o prédio pertencente à Autora?

2. Os factos

Os factos provados são:

...

O direito aplicável

A Autora em 1986 comprou um prédio urbano com rés-do-chão e primeiro andar, sendo o rés-do-chão constituído por duas lojas.

A aquisição deste prédio encontra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial a favor da Autora, pelo que se presume que esta é a única titular do respectivo direito de propriedade, nos termos do art.º 7º do Código de Registo Predial.

A Autora propôs a presente acção de reivindicação, nos termos do art.º 1311º do C. Civil, pretendendo que o Réu seja condenado a abster-se da prática de actos que obstaculizem o uso por parte da Autora de uma das lojas acima referidas (a que se encontra à direita quando nos posicionamos de frente para as lojas), e a retirar a porta que o Réu colocou nessa loja e que impede a Autora de aceder à mesma.

O Réu contestou, excepcionando que havia adquirido o direito de proprie­dade sobre essa loja, por usucapião [1].

A decisão recorrida julgou parcialmente procedente a acção, reconhecendo o direito de propriedade da Autora sobre o prédio reivindicado, mas “desanexado” da loja em discussão, uma vez que considerou que sobre essa loja existia uma situação possessória “usucapível”, em moldes semelhantes aos do exercício de uma proprie­dade horizontal, que, permitindo ao Réu requerer a constituição desse direito, por sentença, era suficiente para obstar à procedência do pedido de reivindicação.

Com efeito, o Réu logrou provar que, por si e seus antecessores, actuou por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, relativamente a essa loja, em termos e pelo tempo necessário à sua aquisição, por usucapião, nos termos do art.º 1296º do C. Civil.

Na verdade, provou-se o seguinte:

- Os prédios urbanos da Autora e do Réu são fisicamente autónomos e dis­tintos entre si, existindo entre os dois um espaço aberto.

- O prédio do Réu é composto por casa de habitação, com três andares e uma área descoberta, com cerca de 8 m2, sito na parte posterior da casa de habitação, ao nível do rés-do-chão.

- Na parede do alçado posterior do prédio do Réu existe uma porta que deita directamente para a área descoberta referida, a qual, por sua vez, comunica com a loja em discussão na presente acção.

- A comunicação para a referida loja é feita através de uma única porta, para a qual se acede através da área descoberta.

- A área descoberta desenvolve-se a partir da porta da loja até à porta existente na parede do alçado posterior do prédio do Réu, existindo nessa ligação um desnível formado por três degraus.

- A loja foi outrora utilizada para colocação de lenhas pelo avô do Réu, António Dinis e pelos arrendatários do prédio urbano actualmente pertencente ao Réu.

- O prédio do Réu (à excepção do rés do chão), a loja e a área descoberta foram sendo dados de arrendamento pelos antecessores do Réu desde, pelo menos, 1970 até 2005, proporcionando aos arrendatários, a quem cobraram as rendas, o gozo de todas as utilidades do arrendado, sem que alguma vez disso fossem impedidos.

- Os arrendatários utilizaram a loja para arrumo de batatas, utensílios, fer­ramentas para uso agrícola e outros pertences do prédio do Réu, de forma ininter­rupta.

- Por volta do ano de 1995, o pai do Réu, G..., forrou as paredes e tecto da loja com esferovite, revestindo-as com madeira aglomerada e cimentou o chão com cimento colorido a vermelho.

- E mandou aplicar uma camada de brita e cimento na área descoberta.

- Na referida área descoberta os arrendatários colocavam bancos de ma­deira, onde repousavam, uma pequena tabela de basquetebol fixa à parede, estendais de roupa.

- E utilizavam-na como único lugar de acesso entre a casa e a loja.

- As águas provenientes da cozinha do prédio do Réu eram escoadas para a referida área descoberta, no tempo em que não existia no local água canalizada e esgotos públicos e no tempo em que o piso era térreo.

- As águas pluviais provenientes da cobertura do prédio do Réu foram sempre recebidas na referida área, através de uma caleira, em chapa zincada.

- Os factos acima referidos foram sendo praticados pelo Réu e os seus ante possuidores à vista de toda a gente, nomeadamente dos moradores vizinhos, incluindo da Autora, sem qualquer conflito até Maio de 2011, sem interrupção no tempo, na convicção de exercerem um direito próprio e de não lesarem direitos de ninguém.

 A decisão da matéria de facto considerada provada não foi objecto de im­pugnação válida pela Autora, nos termos do art.º 640º do C. Civil, pelo que a mesma se encontra assente, não sendo passível de discussão neste recurso.

Resta, pois, saber se, constituindo a loja em causa uma parte componente do prédio pertencente à Autora, ela é uma “coisa” que pode ser objecto de um direito de propriedade distinto do direito de propriedade que tem por objecto a parte restante do prédio do qual é titular a Autora.

Em face do regime geral do direito de propriedade sobre imóveis, qualquer edifício incorporado no solo só pode ser objecto de um único direito de domínio, o qual abrangerá toda a construção, o solo em que esta assenta e os terrenos que lhe servem de logradouro, como se infere das regras sobre acessão industrial imobiliária e do disposto no art.º 1344º do C. Civil [2], numa manifestação do princípio da especiali­dade ou da individualização que rege os direitos reais, na vertente segundo a qual, incidindo o direito de propriedade sobre a totalidade das coisas que cons­tituem o seu objecto, não podem as suas partes integrantes ou componentes serem objecto de direito de propriedade de titular diferente, sendo o destino jurídico da coisa unitário [3].

O regime da propriedade horizontal constitui uma das excepções a este princípio, uma vez que permite que sobre o mesmo edifício de estrutura unitária se constituam distintos direitos de propriedade, com diferentes titulares, que incidem sobre fracções independentes desse prédio - art.º 1414º e seg. do C. Civil.

Daí que, tendo em consideração, por um lado, as limitações impostas pelo princípio da individualização e, por outro lado, o regime excepcional da propriedade horizontal, os tribunais têm vindo a afirmar que a posse, em termos de direito de propriedade, de parte de um prédio não sujeito ao regime da propriedade horizontal, não pode determinar a aquisição por usucapião dessa parte, sem a prévia ou, pelo menos, simultânea constituição do imóvel em propriedade horizontal [4], a qual pode ocorrer por usucapião.

Na verdade, o Código Civil de 1966, no seu art.º 1417º, veio a admitir, inovatoriamente, que uma das formas de constituição da propriedade horizontal fosse uma situação possessória correspondente a esse direito específico com as característi­cas e pelo tempo necessário à sua aquisição por usucapião.

Esta solução, que não constava do Anteprojecto elaborado por Pires de Lima [5], nem da redacção resultante das revisões ministeriais [6], acabou por ser introduzida no Projecto do Código Civil, provavelmente por sugestão de Tavarela Lobo que sustentou que não obstante a natureza muito peculiar da propriedade horizontal – mista de propriedade singular e condomínio – parece nada se opor, decisivamente, à sua constituição por usucapião e neste sentido se vem pronunciando parte importante da doutrina e da jurisprudência estrangeiras [7].

A constituição da propriedade horizontal, por usucapião, resulta directa­mente da situação possessória correspondente ao exercício de um direito de proprie­dade sobre fracção autónoma de um edifício em propriedade horizontal e de um direito de compropriedade sobre as partes comuns e da sua invocação pelo possuidor - art.º 1287º e 1288º do C. Civil -, tendo a sentença que a venha a reconhecer eficácia meramente declarativa [8].

A posse correspondente ao exercício deste direito de propriedade especí­fico deve revelar as particularidades deste direito real, devendo os possuidores do prédio em questão agir como se este estivesse constituído sob o regime da proprie­dade horizontal.

Como escreveu Rui Vieira Miller [9]:

Há que distinguir, porém, o usucapião como forma de constituição da propriedade horizontal, do usucapião como meio de adquirir o direito de proprie­dade sobre a fracção autónoma de um prédio já sujeito a tal regime, situações que divergem relativamente ao conteúdo da respectiva posse.

Assim, no primeiro caso são todos os condóminos que têm de actuar sobre o prédio, por eles parcelado em fracções susceptíveis de corresponderem às exigên­cias da sua utilização em regime de propriedade horizontal, como se efectivamente este regime estivesse regularmente constituído, usando, pois, cada um a sua fracção autónoma com exclusão dos demais e fruindo todos, como comproprietários, mas com as limitações inerentes a essa especial forma de compropriedade as partes comuns do prédio, todos contribuindo também, na proporção de valor das suas fracções, ou apenas aqueles que de tais coisas se servem, para as despesas com a conservação e fruição das partes comuns que alguns utilizem exclusivamente, todos ainda se constituindo em assembleia para administrarem as partes comuns através de um administrador que nesta elegerem, todos enfim, actuando pela mesma forma que actuariam como se fossem co-titulares de um direito de propriedade horizontal regularmente constituído sobre o prédio.

Embora se admita que em determinados casos a simples posse de parte de um prédio possa conduzir à constituição indirecta da propriedade horizontal sobre todo o edifício, por usucapião [10], para que tal suceda é necessário demonstrar que dessa situação possessória resultou a divisão do prédio em fracções autónomas que sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública e que cumpram os requisitos para a aprovação de tal divisão pela entidade pública competente [11].

Ora, neste processo, apenas se alegou e provou a posse do Réu sobre parte determinada do edifício adquirido pela Autora, não se tendo alegado e consequente­mente demonstrado que dessa posse tenha resultado uma divisão do prédio que satisfaça aquelas exigências, existindo uma realidade possessória típica de um regime de propriedade horizontal.

Não se encontrando demonstrada uma prévia ou pelo menos simultânea constituição da propriedade horizontal do edifício em causa, a posse de parte desse edifício, não pode determinar a aquisição por usucapião dessa parte, uma vez que, como já vimos, não são susceptíveis de um domínio autónomo partes componentes de uma coisa.

Assim sendo, não se mostrando ilidida a presunção registral da aquisição do direito de propriedade da Autora sobre todo o prédio, deve a acção de reivindica­ção proceder totalmente, condenando-se o Réu a abster-se de, por si ou por outras pessoas ofender, por qualquer forma esse direito de propriedade e a retirar a porta colocada pelo Réu na abertura de acesso à loja, nos termos do artigo 1311º do C. Civil.

Deve, por isso, o recurso proceder, revogando-se a decisão recorrida.

Decisão

Nestes termos, decide-se:

a) julgar procedente o recurso;

b) revogar a decisão recorrida;

e, em sua substituição,

c) julgar procedente a acção proposta pela Autora;

e, em consequência,

d) reconhecer a Autora como titular do direito de propriedade do prédio urbano, inscrito na matriz com o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira do Hospital sob o n.º ..., a favor da Autora A..., sito na Rua do ..., composto por casa de habitação com dois andares, com a área coberta de 42 m2, a confrontar ...;

e) condenar o Réu a abster-se de, por si ou por outras pessoas, ofender, por qualquer forma esse direito de propriedade;

f) condenar o Réu a retirar a porta que colocou na abertura de acesso à loja situada à direita quando nos posicionamos de frente para o prédio referido em d).

Custas da acção e do recurso pelo Réu.

Coimbra, 7 de Abril de 2016.

Relatora: Sílvia Pires

Adjuntos: Maria Domingas Simões

 Jaime Ferreira

[1] Sobre a eficácia desta defesa na acção de reivindicação, Alberto dos Reis, nas Actas da Comissão Revisora do Código de Processo Civil, na R.O.A., n.º 5, vol. 1-2, pág. 271, e no Código de Processo Civil anotado, vol. III, pág. 88, e Manuel Salvador, em Elementos da reivindicação, pág. 189-191, ed. de 1958.

[2] Henrique Mesquita, em Direitos reais, pág. 270, dos sumários policopiados das lições ao curso de 1966-1967.

[3] Sobre este princípio, Orlando de Carvalho, em Direito das coisas, pág. 163 e seg., ed. de 2012, da Coimbra Editora.

[4] Acórdãos, acessíveis em www.dgsi.pt, da Relação de Évora de 14.6.2007, relatado por Fernando Bento, e da Relação de Lisboa de 31.5.2012, relatado por Pedro Martins.

[5] Publicado no B.M.J. n.º 123, pág. 271.

[6] Podem consultar-se as redacções resultantes das revisões ministeriais em Rodrigues Bastos, Direito das coisas segundo o Código Civil de 1966, vol. II, pág. 189-190.

[7] Em Temas jurídicos – Discussão e soluções no novo Código Civil, separata da R.D.E.S., Ano XVI, n.º 1-4, pág. 77.

[8] Henrique Mesquita, em A propriedade horizontal no Código Civil Português, em RDES, Ano XXIII, n.º 1-2-3-4, pág. 90, nota 31, Pires de Lima e Antunes Varela, em Código Civil anotado, vol. III, pág. 403-404, 2.ª ed., Coimbra Editora, e Armindo Ribeiro Mendes, em A propriedade horizontal no Código Civil de 1966, na ROA, Ano 30, pág. 59.

[9] Em A propriedade horizontal no Código Civil, pág. 96-97, 3.ª ed., Almedina.

[10] Armindo Ribeiro Mendes, ob. cit., pág. 58-59, e Menezes Leitão, em Direitos Reais, pág. 314, ed.  2009, Almedina.

[11] Os tribunais têm vindo a exigir para a constituição da propriedade horizontal, por sentença, a junção de certificação pelas Câmaras Municipais das condições administrativas necessárias para a constituição da propriedade horizontal – vid. Acórdãos da Relação de Lisboa, de 17.12.2009, relatado por Bruto da Costa, e da Relação de Coimbra de 23.10.2012, relatado por Freitas Neto.