Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
340/08.0PAPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
PROVA DO DOLO
UTILIZAÇÃO DE MENOR NA MENDICIDADE
Data do Acordão: 07/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (INSTÂNCIA LOCAL DE POMBAL– SECÇÃO CRIMINAL – JUIZ 2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.410.º E 412.º DO CPP; ARTS. 14.º E 296.º DO CP
Sumário: I - Não basta à procedência da impugnação e, portanto, para a modificação da decisão de facto, que as provas produzidas permitam uma decisão diversa da proferida pelo tribunal.
II - Salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção [o que, com frequência, é ignorado pelos recorrentes], e por isso, não é suficiente para a pretendida modificação da decisão de facto que as provas especificadas pelo recorrente permitam um decisão diferente da proferida pelo tribunal, sendo imprescindível, para tal efeito, que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida.

III - A inobservância do ónus de especificação previsto no art. 412º, nºs 3, b) e c) e 4 do C. Processo Penal, inviabiliza a modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto, pela via da impugnação ampla da matéria de facto.

IV - Existe erro notório na apreciação da prova quando o tribunal a valora contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª, Edição, 2000, Editorial Verbo, pág. 341).

V - Quando não existe confissão, a prova do dolo tem que ser feita por inferência isto é, terá que resultar da conjugação da prova de factos objectivos – em particular, dos que integram o tipo objectivo de ilícito – com as regras de normalidade e da experiência comum.

VI - O crime de utilização de menor na mendicidade, previsto no art. 296.º do C. Penal (redacção da Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro), tem como elementos constitutivos do respectivo tipo:

[Tipo objectivo]

- A utilização de menor ou pessoa psiquicamente incapaz, na mendicidade;

[Tipo subjectivo]

- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto com consciência da sua censurabilidade [bastando para o efeito o dolo eventual, ainda que dificilmente configurável em situações que não as da prática da conduta por omissão].

VII - Podendo admitir-se que o conceito de mendicidade tenha implícita a ideia de actividade, de conjunto de actos direccionados de forma organizada à obtenção de um fim e, portanto, de alguma reiteração de conduta, o bem jurídico tutelado pela incriminação impõe que o tipo se tenha por preenchido com um único acto de utilização do menor ou do incapaz na mendicidade.

Decisão Texto Integral:






Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

 

I. RELATÓRIO

            No Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Pombal – Instância Local – Secção Criminal – J2, o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, do arguido A... , com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de utilização de menor na mendicidade, p. e p. pelo art. 296º do C. Penal.

Por sentença de 13 de Novembro de 2015, foi o arguido absolvido da prática do imputado crime.


*

            Inconformado com a decisão, recorreu o Digno Magistrado do Ministério Público, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

            1. A... foi acusado, em processo comum, pela prática de um crime de utilização de menor na mendicidade, p. e p. pelo artigo 296º do Código Penal, acabando por ser absolvido.

2. Na base dessa absolvição esteve, como é admitido na fundamentação da sentença, um único factor – a saber – a falta de reiteração da conduta, isto é, que o arguido tivesse usado a criança por mais do que uma vez na mendicidade/a pedir esmola.

3. Baseando este entendimento na doutrina do Prof. Taipa de Carvalho, explícita no comentário que faz ao artigo 296º do Código Penal na obra "Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II".

4. Entendimento com o qual o Ministério Público não pode, de todo, concordar, daí a interposição do presente recurso.

5. Baseando-se, então, o recurso na questão de saber se o crime previsto no artigo 296º do Código Penal implica uma reiteração de condutas, como exige o Tribunal, ou não, como entende o MP, por parte do agente.

6. A questão não é pacífica, entendendo, por exemplo, o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque que "Não é necessário um período de duração mínimo de actividade, bastando a colocação do menor ou incapaz a pedir".

7. Discordâncias à parte, é unanimemente considerado que o artigo 296º do Código Penal tem como bem jurídico protegido o direito à dignidade, ao desenvolvimento normal, socialmente saudável e responsável da criança e ainda o direito a um tratamento que favoreça a sua integração social, sendo que o que se pune aqui não é a mendicidade em si mesma, mas sim a mera utilização da criança nessa actividade, diminuindo-a enquanto pessoa na sua dignidade.

            8. A Organização Internacional do Trabalho define a mendicidade como um conjunto de actividades através das quais uma pessoa pede dinheiro a um estranho em razão de ser pobre ou de necessitar de doações de caridade para a sua saúde ou por razões religiosas. Porém, há indivíduos e redes de crime organizado que exploram as suas vítimas através da mendicidade forçada, podendo essas vítimas ser, entre outros, crianças, idosos, adultos com deficiências e mulheres grávidas ou com bebés de colo, geralmente em situações de vulnerabilidade, em contextos de exclusão social, pobreza, discriminação, famílias disfuncionais, ou ainda em resultado de processos migratórios desestruturados.

9. Também no contexto da Diretiva 2011/36/EU, de 5 de Abril de 2011 Relativa à Prevenção e Luta Contra o Tráfico de Seres Humanos e à Proteção das suas Vítimas, "a mendicidade forçada deverá ser entendida como uma forma de trabalho ou serviços forçados, tal como definidos na Convenção N.º 29 da OIT de 1930 sobre o Trabalho Forçado ou Obrigatório".

10. Tendo de se considerar estas realidades como algo também inerente à punição e protecção da criança que é feita pelo artigo 296º do Código Penal, porque são realidades que gravitam frequentemente em volta dos actores e fenómeno em causa.

11. Incumbindo aos Estados, de acordo com os artigos 32º e 36º da Convenção sobre os Direitos da Criança, dar às crianças o direito de serem protegidas contra a exploração económica ou a sujeição a trabalhos perigosos ou capazes de comprometer a sua educação, prejudicar a sua saúde ou o seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral ou social, isto é, proteger a criança contra todas as formas de exploração prejudiciais a qualquer aspecto do seu bem-estar.

12. Assim, sempre que uma criança se mostre explorada desse modo, que inclui a sua colocação a pedir esmola/na mendicidade, encontra-se em perigo, nos termos do artigo 3.º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo.

13. Ora, através de uma leitura atenta do tipo previsto no artigo 296º do Código Penal, não se alcança uma exigibilidade de reiteração de condutas, não se fazendo ali referência a reiteração, ao número de vezes da conduta, dias, semanas, "tempo relativamente longo", entre outros.

14. Caso o legislador exigisse uma reiteração de condutas, certamente tê-lo-ia dito, à semelhança do que fez com outros ilícitos típicos (como por exemplo o crime de subtracção de menor e o crime de perseguição), significando que se o legislador não usou essa técnica neste âmbito foi porque expressamente não o quis fazer.

15. Por outro lado, exigências de reiteração de condutas e de tempo introduzem inevitavelmente aleatoriedade, muito pouco consentânea com a clareza que se quer numa norma que pune criminalmente determinados comportamentos.

16. Na verdade, fazer apelo a conceitos como "tempo relativamente longo", vários dias ou semanas, equivale a um vazio e a completa incerteza, ficando assim o preenchimento do tipo dependente de algo que não é minimamente claro ou certo.

17. Ficando o destinatário da norma sem saber quantas condutas são necessárias para cometer o crime e tendo necessariamente de colocar várias questões para saber se, afinal, a colocação de uma criança a pedir é punida criminalmente – mais do que duas condutas? três? quatro? mas quatro seguidas? dentro de uma semana é suficiente? o que é o "tempo relativamente longo"? Se passar um prazo relativamente curto ou longo entre umas acções e outras terá de se reiniciar a contagem das condutas para termos o crime preenchido?

18. Somos da opinião que o acto de mendigar se esgota numa única actividade, o que tem apoio, desde logo, na visão que cada um de nós tem sobre essas actividades e na própria definição de mendicidade como "o acto de mendigar" e "mendigar" como pedir por esmola, solicitar, rogar, suplicar; pedir esmolas, ser mendigo.

19. Considerando necessariamente qualquer pessoa que vê uma criança nas condições em que foi provado na sentença, que aquela está a mendigar, mesmo não sabendo se é a primeira ou centésima vez que o faz, afigurando-se-nos artificial o entendimento de que terão de existir vários actos de mendigar para haver mendigagem.

20. Sendo assim, a actividade punida pode-se prolongar no tempo ou esgotar-se num só acto, sendo que o adulto, para efeitos de angariação de proveitos económicos (dinheiro ou géneros), instrumentaliza e/ou se aproveita da criança, não fazendo sentido exigir reiteração de condutas num âmbito de utilização de criança, por exemplo, em trabalhos forçados, maus-tratos, exploração sexual, entre outros, sendo que em todos estes tipos se protege (tal como aqui) a dignidade da criança.

21. Se é esse o bem jurídico protegido – e quanto a isso não pode haver dúvidas – é então desprovido de sentido e claramente inconsequente exigir uma reiteração de condutas naquilo que se torna, com o entendimento adoptado pelo Tribunal, algo pernicioso e um benefício ao infractor.

22. Já que, concluindo-se necessariamente que é indigno para a criança ser usada, uma vez que seja, na mendicidade por parte de um adulto, torna-se altamente contraditório e incongruente alegar que um determinado tipo de ilícito defende a dignidade da criança, mas o direito penal só intervém se o bem jurídico for violado várias vezes (mas quantas vezes?!), assim desprotegendo a criança a esse nível.

23. Tendo em conta, como se referiu, que por detrás da incriminação terá de estar a protecção contra o perigo de utilização, não rara, da criança face a redes de exploração sexual, laboral, tráfico de seres humanos, entre outros, muitas vezes pelos próprios familiares.

24. Relevando a reiteração, assim, quanto a nós, apenas para agravação da pena a aplicar.

25. Não sendo natural nem apreensível a forma como o Tribunal interpreta o crime em apreço, jogando essa interpretação mal com os objectivos legais, apenas não condenado o arguido por não se ter provado que este utilizou por mais do que uma vez a criança na mendicidade, provando-se que o dinheiro apreendido ao arguido tinha sido entregue pela filha.

26. O Tribunal efectuou uma errada interpretação da norma incriminadora, tendo a decisão absolutória violado o disposto no artigo 296º do CP.

27. Deve, em consequência, ser a decisão final ser revogada e substituída por outra que, dando como provados os factos em causa, dê também como provado que "O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, que utilizou a sua filha menor de idade para praticar a mendicidade, actuando com o propósito de daí retirar benefício económico, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida criminalmente".

28. Condenando, a final, o arguido numa pena pela prática do crime em questão.

Contudo, V. Exas. farão JUSTIÇA.


*

            O arguido respondeu ao recurso, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

            1 – O crime de utilização de menor na mendicidade consuma-se com a prática reiterada do acto de mendigar.

            2 – Não se encontrando provada a reiteração da conduta punível e prevista pelo artigo 296º do Código Penal, o Arguido foi e bem absolvido da prática do mencionado crime.

            Nestes termos e nos melhores de Direito deve o recurso em apreço ser julgado improcedente.

Só assim se decidindo se fará a costumada Justiça!


*

Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, afirmando que, ao considerarem-se provados os factos levados aos pontos 1 a 5 da factualidade provada constante da sentença, só era possível a conclusão de que o arguido, no dia ali referido, utilizou a filha menor na prática da mendicidade, assim incorrendo no cometimento do crime imputado, constituindo erro notório na apreciação da prova e, eventualmente, contradição insanável, ter-se considerado não provados os factos relativos ao tipo subjectivo do crime, com o consequente reenvio, caso se entenda não ser possível decidir, alegando que a redacção dada ao art. 296º do C. Penal pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, ao substituir a expressão, explorar menor, por, utilizar menor, afastou qualquer exigência de reiteração de conduta para se bastar com uma actuação isolada, e concluiu pela procedência do recurso.

*

            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

 

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


*

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            II. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo Digno Magistrado recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

            - O erro de julgamento;

            - O tipo do crime de utilização de menor na mendicidade, e a relevância da reiteração da conduta;

            - A tipicidade da conduta e suas consequências.

 

            Oficiosamente, apesar de invocados pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto no parecer emitido, haverá que conhecer da existência dos vícios previstos nas alíneas b) e c) do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal.


*

            Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta da sentença. Assim:

            A) Nela foram considerados provados os seguintes factos:

“ (…).

1. No dia 27 de Novembro de 2008, pelas 18 horas, na Avenida Heróis do Ultramar, junto ao supermercado Ulmar, em Pombal, pela Polícia de Segurança Pública de Pombal, foi interceptado o arguido, o qual se encontrava sentado no passeio, simulando uma deficiência numa perna, tendo junto de si um cartaz com a seguinte inscrição: “O ISTRANGEIRO COM MUITA FOME NÃO TEI CASA E ESTOU A DRUMIR TENHO TRES FILHOS DELES ESTÃO COM MUITA FOME POR FAVOR PRESISO DE AJUDA E NÃO POSSO TRABALHAR UMA PORQUE TENHO PERNA DE FERRO”.

2. A alguns metros do arguido encontrava-se a sua filha menor, B... , nascida no dia 06.02.1995, passaporte nº (...) , tendo junto de si um cartaz com a seguinte inscrição “SUO UM ESTRANGEIRO POR FAVOR NA RUA A DRUMIR COM TRÊS IRMÃOS COM MUITA FOME E COM O MEU PAI DUENTE”, ao lado tinha a quantia de € 1,50, a qual foi apreendida.

3. Por sua vez ao arguido foi apreendida a quantia de € 17,22, a qual lhe tinha sido entregue pela sua filha.

4. O arguido é primário face ao Certificado de Registo Criminal junto aos autos.

5. O arguido reside com a esposa, dois filhos e uma filha, fazendo também parte do agregado uma nora e neta, nascida há pouco tempo. Todos os elementos do agregado familiar se dedicam à mendicidade, perto de instituições bancárias e supermercados, na cidade da Figueira da Foz.

6. O arguido efectuou pedido para beneficiar de Rendimento Social de Inserção, a 28 de Agosto e 16 de Setembro do corrente ano, tendo ambos sido indeferidos. 

            7. O arguido tenta manter uma postura discreta em meio social e a PSP não tem conhecimento da existência de outros processos, nem os serviços de reinserção social possuem outra informação relevante.

            (…)”.

B) Nela foram considerados não provados os seguintes factos:

“ (…).

- O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, utilizou a sua filha menor de idade para praticar a mendicidade, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

- A quantia que se encontrava na posse da menor tinha como destino a compra de um gelado e resultou da mendicidade praticada.

(…)”.

C) E a seguinte motivação de facto:

“ (…).

O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica do conjunto da prova produzida na audiência de julgamento e, nomeadamente:

A testemunha C..., chefe da PSP de Pombal, que estava de serviço de patrulha, na data dos factos; confirmou de forma convincente os factos, explicando que repararam na criança com cartaz, tendo o arguido afirmado que era sua filha; foram à esquadra elaborar o expediente, tendo o arguido e filha sido identificados através da exibição de passaporte; também pode confirmar que o arguido já constava na base de dados da polícia por situações idênticas; apreenderam os cartazes e dinheiro.

A testemunha D... , agente da PSP de Pombal, que estava de patrulha, juntamente com a anterior testemunha; referiu que naquela data já conhecia o arguido, tendo visto que não tinha qualquer deficiência; a menor entregava o dinheiro que recebia ao pai, tendo dito que era este que geria o dinheiro; apreenderam o dinheiro e os cartazes. A identificação foi feita através de passaporte, sendo que o arguido tinha na sua posse o passaporte da menor. 

            As testemunhas E... e F... que depuseram de forma convincente, afirmando que conhecem o arguido, há cerca de 5 anos, por este se encontrar à porta do mercado, a pedir; nunca o viram com os filhos; a primeira testemunha referiu ainda que como tem um estabelecimento comercial no mercado da Figueira da Foz, muitas vezes guardava bens que lhe eram entregues por outras pessoas para dar ao arguido, sendo que este os recolhia ao final do dia; por ambas as testemunhas foi referido que auxiliam o arguido, nomeadamente, com géneros alimentícios quando lhe era pedido por ele.

Ajudou ainda a formar a convicção do Tribunal o teor de fls. 2-3, fls. 4-7, e Certificado de Registo Criminal de fls. 235.

Quanto às condições pessoais do arguido com base na informação social elaborada pela DGRSP, e testemunhas de defesa.

Quanto aos factos não provados pela ausência de prova quanto a eles, e prova do contrário. Além do que não ficou demonstrado que o arguido, além do dia em causa nestes autos, tivesse utilizado a sua filha em situações idênticas – para além do que foi dito pelos agentes da PSP de o arguido estar inscrito na base de dados da polícia, por situações idênticas, mas que manifestamente é insuficiente para concluir pela reiteração da sua conduta. Por outro lado, pelas testemunhas de defesa foi dito de forma peremptória que o arguido é visto a pedir esmola, em vários sítios da cidade da Figueira da Foz, mas nunca o viram com os filhos.

(…)”.


*

            Do erro de julgamento

            1. Depois de longa argumentação, terminada com várias conclusões, sobre o conteúdo do tipo objectivo do crime de utilização de menor na mendicidade, previsto no art. 296º do C. Penal, de cuja prática foi o arguido destes autos absolvido, na derradeira conclusão 27, o Digno Magistrado do Ministério Público e ora recorrente formulou a pretensão de que a sentença recorrida fosse revogada e substituída por outra que considerasse também provado que «O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, que utilizou a sua filha menor de idade para praticar a mendicidade, actuando com o propósito de daí retirar benefício económico, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida criminalmente.».

            No corpo da motivação, integralmente focado na problemática da correcta interpretação da norma incriminadora e portanto, da correcta definição do tipo legal do crime em referência, nada mais se adiantou sobre a correcta ou incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto.

            Os factos que o Digno Magistrado do Ministério Público recorrente pretende que se considerem provados correspondem, quase que integralmente, ao primeiro parágrafo dos factos não provados que constam da sentença recorrida, excepção feita ao segmento, «(…)actuando com o propósito de daí retirar benefício económico(…)». São pois estes os factos que considera incorrectamente julgados e portanto, objecto de erro de julgamento.

Sucede que o legislador, tendo concebido o recurso de facto como um remédio para sanar o que tem por excepcional no julgamento feito pela 1ª instância, o erro na definição do facto, mais do que atribuir ao recorrente – porque interveniente processual que se considera afectado pela decisão recorrida – exige-lhe a precisa indicação do erro ou dos erros que entende terem sido cometidos pelo julgador e devem ser reparados pela via recursória, estabelecendo, para este efeito, regras precisas.

Assim, e nos termos do art. 412º, nºs 3 e 4 do C. Processo Penal, que prevêem a regulamentação essencial do recurso de facto ou, preferindo-se, da impugnação ampla da matéria de facto, sobre o recorrente recai o ónus de uma tripla especificação, a saber: a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; a especificação das provas que devem ser renovadas [esta, nos termos do art. 430º, nº 1 do C. Processo Penal, apenas quando se verificarem os vícios da sentença e existam razões para crer que a renovação permitirá evitar o reenvio], acrescendo, relativamente às concretas provas, que quando tenham sido gravadas, as duas últimas especificações devem ser feitas por referência ao consignado na acta, com a concreta indicação das passagens em que se funda a impugnação, e devendo todas estas especificações constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas (cfr. art. 417º, nº 3 do C. Processo Penal).

 Note-se, por outro lado, que não basta à procedência da impugnação e, portanto, para a modificação da decisão de facto, que as provas produzidas permitam uma decisão diversa da proferida pelo tribunal. Este decide, salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção [o que, com frequência, é ignorado pelos recorrentes], e por isso, não é suficiente para a pretendida modificação da decisão de facto que as provas especificadas pelo recorrente permitam um decisão diferente da proferida pelo tribunal, sendo imprescindível, para tal efeito, que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida. E a demonstração desta imposição recai igualmente sobre o recorrente, que deve relacionar o conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 1135).

Deu o Digno Magistrado do Ministério Público recorrente cumprimento a este ónus? A resposta é, necessariamente, negativa.

Com efeito, se pode aceitar-se que a especificação dos factos impugnados foi feita, tendo por objecto, como se disse, os levados ao primeiro parágrafo dos factos não provados da sentença recorrida, certamente que a especificação das concretas provas que impõe decisão diversa da proferida pelo tribunal a quo não se mostra feita. Por outro lado, nem no corpo da motivação, nem nas conclusões formuladas, é invocada a existência de vícios da decisão e especificadas as provas que devam ser renovadas.

Em suma, a inobservância do ónus de especificação previsto no art. 412º, nºs 3, b) e c) e 4 do C. Processo Penal, inviabiliza a modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto, pela via da impugnação ampla da matéria de facto.  


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            Dos vícios da decisão

            2. Uma outra forma de sindicar a matéria de facto está prevista, essencialmente, no art. 410º, nº 2 do C. Processo Penal, que regula o regime dos vícios da decisão ou da revista alargada, como é comummente designado.

            Aqui, contrariamente ao que sucede com a impugnação ampla da matéria de facto, o tribunal de recurso não conhece da matéria de facto [no sentido da reapreciação da prova], limitando a sua actuação à detecção dos vícios que a sentença evidencia e, não podendo saná-los, determina o reenvio do processo para novo julgamento. 

Os vícios da decisão – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova – previstos, por esta ordem, nas três alíneas do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal e cujo conhecimento é oficioso (cfr. Acórdão nº 7/95, de 19 de Outubro, DR, I-A, de 28 de Dezembro de 1995), constituem defeitos estruturais da decisão penal, razão pela qual a lei exige que a sua demonstração resulte do respectivo texto por si só, ou em conjugação com as regras da experiência comum, o que vale dizer, estar interditado o recurso a outros elementos, ainda que constem do processo. 

2.1. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, como referimos já, entende estar verificado o vício do erro notório na apreciação da prova. Vejamos se assim é.

Existe erro notório na apreciação da prova quando o tribunal a valora contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª, Edição, 2000, Editorial Verbo, pág. 341). Dito de outro modo, trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, 2007, Rei dos Livros, pág. 74) ou dar-se como não provado o que não pode ter deixado de ter acontecido.

Revertendo para a questão sub judice, temos que o tribunal a quo considerou como não provados os factos constantes da acusação, integrantes do tipo subjectivo do crime imputado ao arguido isto é, do dolo.

O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto com consciência da sua censurabilidade, em qualquer das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal, é sempre um facto da vida interior do agente, um facto subjectivo, não directamente apreensível por terceiro. Por isso, a sua demonstração probatória, sobretudo, quando não existe confissão, não pode ser feita directamente, designadamente, através de prova testemunhal. Nestes casos, a prova do dolo tem que ser feita por inferência isto é, terá que resultar da conjugação da prova de factos objectivos – em particular, dos que integram o tipo objectivo de ilícito – com as regras de normalidade e da experiência comum.

Pois bem.

Estando provado que o arguido, no dia 27 de Novembro de 2008, pelas 18h, se encontrava sentado num passeio, na Avenida Heróis do Ultramar, junto a um supermercado, em Pombal, simulando uma deficiência numa perna e ostentando um cartaz onde se lia que era estrangeiro, tenha três filhos, não tinha casa, tinham todos fome, não podia trabalhar porque tinha uma perna de ferro e precisava de ajuda [ponto 1 dos factos provados], que a alguns metros de si se encontrava a sua filha, então, com treze anos de idade, ostentando um cartaz onde se lia que era estrangeira, dormia na rua com três irmãos com fome e o pai doente [ponto 2 dos factos provados], que a menor tinha ao seu lado € 1,50 [ponto 2 dos factos provados], que o arguido tinha em seu poder € 17,22 que lhe tinham sido entregues pela filha [ponto 3 dos factos provados] e que o arguido reside com a mulher, os três filhos, uma nora e uma neta, dedicando-se todos os elementos do agregado familiar à mendicidade [ponto 5 dos factos provados], ditam as regras da experiência comum e do normal acontecer, que o arguido, ao deixar que a sua filha menor se dedicasse, junto de si, e invocando até a sua [do arguido] condição, falsa, de doente, a mendigar, e ao receber desta o produto que ela obteve, mendigando, actuou voluntariamente, sabendo que empregava a filha menor em actos de mendicidade isto é, a pedir esmola, e querendo fazê-lo. E também a consciência da ilicitude do arguido, componente deste elemento subjectivo, a temos por provada, o que, numa outra perspectiva e como adiante melhor se verá, significa entendermos diferentemente os requisitos de preenchimento do tipo de ilícito imputado ao arguido.

A este propósito, e se bem compreendemos a sentença recorrida, a decisão de levar aos factos não provados o dolo do arguido prendeu-se mais com o enquadramento jurídico-penal que da conduta do arguido veio a ser feito, e que conduziu a considerá-la como uma conduta atípica, do que, verdadeiramente, a uma questão de prova do facto subjectivo.

Assim, concluímos que a sentença padece do vício de erro notório na apreciação da prova, no que respeita à decisão de facto na parte relativa ao primeiro parágrafo dos factos não provados que dela constam.

O art. 426º, nº 1 do C. Processo Penal determina o reenvio do processo para novo julgamento se, existindo os vícios da decisão, não for possível decidir a causa. Por sua vez, a alínea a) do art. 431º do mesmo código determina que, sem prejuízo do disposto no art. 410º, a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser modificada, se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base. Ora, porque o meio de prova em questão é prova por inferência, resultante da aplicação de regras da experiência comum [que não implica a produção de prova por declarações em audiência e respectiva documentação], é possível a alteração da decisão e a consequente decisão da causa.

Assim, é eliminado o primeiro parágrafo dos factos não provados da sentença.

É aditado aos factos provados, o ponto 3-A, com a seguinte redacção:

- O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, querendo utilizar a sua filha menor de idade para praticar a mendicidade, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

2.2. Quanto à possibilidade de existência de contradição insanável da fundamentação, que pode traduzir-se numa oposição na matéria de facto provada [v.g., dão-se como provados dois ou mais que dois factos que estão entre si, em oposição sendo, por isso, logicamente incompatíveis], numa oposição entre a matéria de facto provada e a matéria de facto não provada [v.g., dá-se como provado e como não provado o mesmo facto], numa incoerência da fundamentação probatória da matéria de facto [v.g., quando se dá como provado um determinado facto e da motivação da convicção resulta, face à valoração probatória e ao raciocínio dedutivo exposto, que seria outra a decisão de facto correcta], ou ainda numa oposição entre a fundamentação e a decisão [v.g., quando a fundamentação de facto e de direito apontam para uma determinada decisão final, e no dispositivo da sentença consta decisão de sentido inverso], não vemos que ela existisse em qualquer uma destas modalidades, quando referida à prova do elemento subjectivo do tipo, sendo certo que, com a modificação da matéria de facto operada no ponto anterior, temos por certo que não existe já possibilidade da sua verificação.


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            Do tipo do crime de utilização de menor na mendicidade e da relevância da reiteração da conduta

            3. Inicialmente denominado utilização de menores na exploração da mendicidade (art. 284º do C. Penal de 1982), depois denominado exploração de menor na mendicidade (art. 296º do C. Penal, na redacção do Dec. Lei nº 48/95, de 15 de Março), o crime de utilização de menor na mendicidade, previsto no Título IV – Dos Crimes Contra a Vida em Sociedade, Capítulo V – Dos Crimes Contra a Ordem e a Tranquilidade Públicas, Secção I – Dos crimes de antissocialidade perigosa, art. 296º do C. Penal (redacção da Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro), tem como elementos constitutivos do respectivo tipo:

            [Tipo objectivo]

            - A utilização de menor ou pessoa psiquicamente incapaz, na mendicidade; 

[Tipo subjectivo]

- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto com consciência da sua censurabilidade [bastando para o efeito o dolo eventual, ainda que dificilmente configurável em situações que não as da prática da conduta por omissão].

Trata-se de um crime comum – pode ter por agente qualquer pessoa – e de perigo abstracto – pois o perigo não integra o tipo, sendo apenas motivo da proibição.

Este crime não pune a mendicidade, entendida como o acto de mendigar, o acto de pedir por esmola, mas a utilização de menor ou incapaz na prática destes actos isto é, o abuso ilegítimo, contrário à dignidade da criança e/ou do incapaz. Por isso, o bem jurídico tutelado pela incriminação é a dignidade humana da pessoa do menor ou do psiquicamente incapaz, instrumentalizados na mendicidade em proveito do agente (cfr. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 1127 e ss.).

Definindo mendicidade como a prática habitual de actos de solicitação de bens económicos mediante apelo aos sentimentos de generosidade e solidariedade de terceiros, o autor citado entende que, implicando o conceito uma habitualidade, a consumação do crime só se verifica quando houver reiteração do acto de mendigar ao longo de vários dias (ob. cit., pág. 1131 e ss.). A sentença recorrida seguiu este entendimento e, considerando que apenas se provou ter o arguido utilizado a filha menor na mendicidade no dia 27 de Novembro de 2008, concluiu pela insusceptibilidade de demonstração de reiteração de conduta, afastando a tipicidade da conduta.

Diferentemente, Paulo Pinto de Albuquerque, definindo mendicidade de forma aproximada – o acto ou conjunto de actos pelos quais uma pessoa solicita a outra bens económicos para promover o seu sustento, apelando a sentimentos de caridade – entende não ser exigível um período de duração mínima da actividade, sendo bastante a mera colocação do menor ou do incapaz a pedir (Comentário do Código Penal, 3ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 1032).

Para nós, podendo admitir-se que o conceito de mendicidade tenha implícita a ideia de actividade, de conjunto de actos direccionados de forma organizada à obtenção de um fim e, portanto, de alguma reiteração de conduta, o bem jurídico tutelado pela incriminação impõe que o tipo se tenha por preenchido com um único acto de utilização do menor ou do incapaz na mendicidade.

Em todo o caso, face aos factos provados que constam da sentença recorrida, não cremos que a questão chegue a colocar-se. Isto porque, se de acordo com os pontos 1 e 2 dos factos provados, o arguido, na tarde do dia 27 de Novembro de 2008, em Pombal, utilizou a filha menor, B... , na mendicidade, resulta também provado, atento o ponto 5 dos factos provados da sentença, que o arguido e todo o seu agregado familiar, do qual faz parte, obviamente, a filha B... , se dedicam à mendicidade na Figueira da Foz, o que vale dizer que, para além de um concreto acto, está também provado o exercício da mendicidade com carácter de habitualidade. E neste âmbito, cabe referir que está verificada a conduta típica, quer quando o agente se faz acompanhar do menor, quer quando o determina a mendigar.

Em suma, estando provado que o arguido, na tarde do dia 27 de Novembro de 2008, em Pombal, acompanhado da sua filha menor B... , exerciam a mendicidade, actividade esta a que os dois e os restantes membros do agregado familiar se dedicavam, na Figueira da Foz, e que o arguido agido de forma livre, voluntária e consciente, querendo utilizar a filha menor de idade para praticar a mendicidade, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, preenchido está o tipo, objectivo e subjectivo, do crime de utilização de menor na mendicidade, p. e p. pelo art. 296º do C. Penal.


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            Da tipicidade da conduta e suas consequências

4. Tendo o arguido, com a sua apurada conduta – resultante da modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto, por via do presente recurso – preenchido o tipo do crime de utilização de menor na mendicidade, p. e p. pelo art. 296º do C. Penal, cumpre agora determinar a medida concreta da pena.

Vejamos.

Conforme dispõe o art. 40º, nºs 1 e 2 do C. Penal, prevenção e culpa são os factores a ter em conta na aplicação da pena e determinação da sua medida, reflectindo a primeira a necessidade comunitária da punição do caso concreto e constituindo a segunda, dirigida ao agente do crime, o limite inultrapassável da pena (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, pág. 214 e ss.). A pena concreta resultará então da medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos requerida pelo caso concreto – tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada [prevenção geral positiva ou de integração] –, temperada, quando possível, pela necessidade de reintegração social do agente [prevenção especial positiva de socialização] e, em qualquer caso, com respeito pelo limite inultrapassável da medida da culpa. Por isso que, toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, 2ª Reimpressão, 2012, pág. 84).

 

Muito frequentemente a determinação da pena, em sentido amplo, passa pela operação de escolha da pena, o que sucede, designadamente, quando o crime é punido, em alternativa, com pena privativa e com pena não privativa da liberdade e na escolha das penas de substituição.

Para a primeira situação, o critério de escolha da pena encontra-se fixado no art. 70º do C. Penal segundo o qual, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Para a segunda situação, decorre dos arts. 70º, 45º, nº 1, 50º, nº 1, 58º, nº 1 e 60º, nº 2 do C. Penal, que o tribunal deve dar preferência a pena de substituição não privativa da liberdade desde que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação, ela assegure as finalidades preventivas assinaladas no art. 40º do mesmo código (cfr. Maria João Antunes, Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 1ª Edição, 2013, pág. 70).

Escolhida a pena, há que determinar a sua medida concreta, em função, como vimos, da culpa e das exigências de prevenção (art. 71º, nº 1 do C. Penal), havendo que considerar que a moldura penal abstracta de cada crime é fixada pelo legislador, tendo em conta todas as formas e graus de cometimento do facto típico, fazendo corresponder aos de menor gravidade o limite mínimo da pena e aos de maior gravidade o limite máximo da pena. Por isso, tendo em conta tais limites, o tribunal deve atender a todas as circunstâncias que, não sendo típicas, depuserem a favor e contra o agente do crime, havendo, entre outras, que ponderar o grau de ilicitude do facto, o seu modo de execução, a gravidade das suas consequências, a grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados no cometimento do crime, a motivação do agente, as condições pessoais e económicas do agente, a conduta anterior e posterior ao facto, e a falta de preparação do agente para manter uma conduta lícita (art. 71º, nº 2 do C. Penal).

5. O crime de utilização de menor na mendicidade é punível com pena de prisão até três anos.

É mediano o grau de ilicitude dos factos e não são graves as suas consequências.

A recorrente agiu com dolo intenso e persistente, revelador de alguma energia criminosa.

São medianas as exigências de prevenção geral.

Não se fazem sentir as exigências de prevenção especial, dada a inexistência de antecedentes criminais.

O arguido está inserido familiarmente, não exerce actividade profissional regular, e é modesta a sua situação económica.

Por outro lado, o tempo já decorrido – mais de sete anos sobre a prática dos factos – e a circunstância de a então menor ter já atingido a maioridade, o que afasta, quanto a ela, o perigo de repetição da conduta, terão necessário reflexo na necessidade da pena.

Assim, tudo ponderado, consideramos adequada às circunstâncias do caso e perfeitamente suportada pela culpa do arguido, a pena de 5 meses de prisão.

Nos termos do disposto no art. 43º, nº 1 do C. Penal, substitui-se aquela pena de prisão pela pena de 150 dias de multa.

Atenta a situação económica e financeira do arguido – dedica-se à mendicidade –, o número de membros do seu agregado familiar – exercendo todos a mesma actividade – e sendo facto notório a existência de necessidades básicas a satisfazer, entre elas, alimentação, vestuário e saúde, considerando critério legal estabelecido no art. 47º, nº 2 do C. Penal, fixa-se o quantitativo diário da pena de multa em € 5. 


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            III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso e, em consequência, decidem:

A) Modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto:

1. Eliminando o primeiro parágrafo dos factos não provados.

2. Aditando aos factos provados, o ponto 3-A, com a seguinte redacção:

- O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, querendo utilizar a sua filha menor de idade para praticar a mendicidade, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

            B) Revogar a sentença recorrida na parte em que absolveu o arguido A... da prática de um crime de utilização de menor na mendicidade, p. e p. pelo art. 296º do C. Penal.

C) Condenar o arguido A... , pela prática de um crime de utilização de menor na mendicidade, p. e p. pelo art. 296º do C. Penal, na pena de 5 (cinco) meses de prisão, substituída por 150 (cento e cinquenta) dias de multa á taxa diária de € 5 (cinco euros), perfazendo a multa global de € 750 (setecentos e cinquenta euros).


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Recurso sem tributação.

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Coimbra, 6 de Junho de 2016


(Heitor Vasques Osório – relator)


(Fernando Chaves – adjunto)