Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
209/13.7TBMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: SEGURO DE GRUPO
Data do Acordão: 03/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – INSTÂNCIA CENTRAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 224.º/1/1ª.ª PARTE E 230º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. O seguro de grupo tem uma estrutura triangular em que o tomador celebra um contrato com o segurador, com vista a que a este adiram os membros de um determinado grupo (ligados ao tomador de seguro por um vínculo e interesse comum: no caso, a obtenção dum crédito hipotecário junto da entidade bancária tomadora do seguro), tornando-se então segurados.

2. Ou seja, no seguro de grupo, não nos encontramos perante um único contrato, mas sim perante uma pluralidade de contratos: de um lado, o celebrado entre o segurador e o tomador; de outro, as várias relações jurídicas contratuais que as adesões e as respectivas aceitações pelo segurador vêm estabelecer entre o segurador e cada um dos segurados.

3. Assim, sendo distintas (do contrato celebrado entre o segurador e o tomador) e várias as relações jurídicas que o segurador estabelece com os aderentes/segurados, não repugna também cindir a relação jurídica estabelecida pela seguradora com cada um dos segurados.

4. Tendo sido dirigida declaração resolutiva apenas ao segurado marido, considerar-se cessada a relação jurídica contratual com ele estabelecida, continuando válida e vigente a relação contratual celebrada com a segurada mulher.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

A... , viúva, residente na Rua (...) , Marinha Grande, intentou a presente ação declarativa, hoje sob a forma de processo comum, contra B...., S.A., com sede na Avenida (...) , em Lisboa, pedindo:

“Que seja declarado válido e eficaz o contrato de seguro do ramo vida titulado pela apólice n.º 000 (...) /certificado n.º 9 (...) ;

Que seja a ré condenada a reconhecer o que vem pedido no número anterior e a pagar à autora o capital seguro contratado, necessário para a amortização do empréstimo concedido à autora e marido, assim como juros de mora sobre o capital seguro, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento.”

Alegou para tal, em síntese, que, em 14/10/2002, a A. e o seu marido, C... , compraram à D... , Lda., pelo preço de € 92.277,60, a fração autónoma designada pela letra "E" (do prédio inscrito na respetiva matriz sob o artigo número 16.339, descrito na Conservatória do Registo Predial da Marinha Grande sob o número 8428, afecto ao regime de propriedade horizontal), correspondente à Quinta Moradia; tendo também intervido na respectiva escritura (que foi de compra e venda e empréstimo com hipoteca), como terceiro outorgante, o G... , na qualidade de mutuante, tendo-se a aqui A. e o seu marido, na qualidade de mutuários, declarado devedores ao G... da importância de € 92.277,60, “que do mesmo Banco  receberam a título de empréstimo e que vai ser aplicada na precedente aquisição", para além de, para garantir o pagamento da quantia mutuada (e bem assim dos respetivos juros e outros acréscimos), haverem constituído hipoteca a favor do G... , sobre a fração autónoma adquirida.

Para além disto, a A. e o marido (tendo-se obrigado, nos termos do contrato de mútuo com hipoteca concedido pelo G... , a contratar um Seguro de Vida) celebraram com a R. B... o contrato de seguro de vida, associado ao crédito habitação, com o certificado nº 9 (...) , titulado pela apólice nº 000 (...) , com início em 10/02/2006, sendo o capital seguro de € 110.600,00, as pessoas seguras a A. e o marido e o beneficiário, em caso de morte das pessoas seguras, o G... ; contrato de seguro em que os prémios teriam periodicidade mensal e cujo pagamento seria efetuado por débito na conta de depósitos à ordem de que a A. e o marido eram titulares com o nº (...) .

Entretanto, no dia 09/05/2010, faleceu o marido da A. (deixando como herdeiros legais a A. e dois filhos, que [os filhos] repudiaram a herança), motivo pelo qual, em meados de Maio de 2010, a A. se deslocou à sucursal do "G... " da Marinha Grande para comunicar o falecimento do marido e acionar o seguro de vida; tendo, “perante as dificuldades apresentadas”, pedido o exemplar das condições gerais e especiais aplicáveis à apólice de seguro de vida, o qual lhe foi remetido, por carta datada de 01/06/2010, pela R. B... , que a informou que “nos termos da legislação em vigor e das condições contratuais aplicáveis, o certificado individual n.º 9 (...) se encontra anulado por falta de pagamento dos prémios com data efeito a 01/09/2008”.

Ora, segundo a A., até aquela data, nunca a R. havia comunicado quer ao marido da A. quer à própria A. que o contrato de seguro se encontrava “anulado” ou “resolvido”, razão pela qual “a morte do marido da A., em 09/05/2010, se apresentava coberta”; acrescentando ainda: que a falta de pagamento de prémios não determina a resolução automática do contrato, que carece de ser comunicada; que “não bastaria a declaração de resolução dirigida ao falecido marido da autora”, sendo “imprescindível que tal declaração tivesse também sido dirigida à A. e que tivesse chegado à sua esfera de ação (caso em que se presumia o conhecimento) ou que se provasse o conhecimento, por ela, do teor da declaração diretamente dirigida a ela (dispensando-se nesse caso a prova da recepção da declaração)”; e que “era por conseguinte indispensável que a R. tivesse feito duas comunicações de resolução do contrato de seguro, uma à A. e outra ao marido”.

Contestou a R., reconhecendo a adesão da A. e do marido ao Seguro de Grupo que a R. havia celebrado como o G... ; seguro que, nos termos das suas condições gerais, cessa para cada pessoa segura na data da resolução do contrato, o que, também nos termos das mesmas condições gerais (art. 13.º), pode acontecer por falta de pagamento dos prémios, nos 30 dias posteriores à data do seu vencimento.

Após o que alegou que foi exactamente isto que aconteceu, ou seja, não conseguindo, a partir de setembro de 2008, cobrar o prémio, procedeu, por falta de pagamento dos prémios, à resolução do contrato; enviando, para tal, cartas (a pedir a regularização do premio e a declarar a resolução) ao marido da A. ( C... ), cartas que foram remetidas para a morada que consta do Certificado Individual de Seguro (assumido pelo seu sistema informático, em virtude de a A. e seu falecido marido já constarem, com tal morada, dos registo da R.), que foram recebidas e o seu conteúdo conhecido quer pela A. quer pelo seu marido; acrescentando, ainda, que “sendo a A. apenas segurada e constando do Certificado Individual como entidade pagadora o seu marido, não tinha a A. que ser interpelada para pagar, nem tinha a ré de lhe comunicar a resolução do contrato”.

Referiu também que ignora qual o valor em dívida ao banco mutuante e, bem assim, se existe mora ou se as prestações estão a ser garantidas, sendo que a A. tal não alegou.

E concluiu pela improcedência da acção, em face da resolução do contrato.

Replicou a A., mantendo alegado na PI.

Foi proferido despacho saneador – que declarou a instância totalmente regular, estado em que se mantém – e foram seleccionados os factos assentes e organizada a base instrutória; instruído o processo, foi designado dia para audiência, realizada já à luz do NPCP, após o que a Exma. Juíza proferiu sentença, em que julgou a acção totalmente improcedente e em que, consequentemente, absolveu a R. dos pedidos.

Inconformada com tal decisão, interpôs a A. recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por decisão que revogue/inverta o decidido, julgando procedente a acção.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

1.ª O presente recurso vem interposto da douta Sentença proferida nos Autos, que julgou totalmente improcedente a pretensão da Recorrente. Decisão, com a qual a Recorrente não pode conformar-se.

2.ª Impunha-se ao Tribunal a quo que se debruçasse sobre toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento, bem como os documentos juntos aos autos, pois, certamente, ter-se-ia uma decisão bem diferente.

A) Modificabilidade da decisão de facto:

3.ª A prova produzida em sede de Audiência, em conjugação com a prova documental junta aos Autos, impõe uma decisão diversa da recorrida quanto à matéria de facto considerada assente pelo Tribunal a quo.

4.ª Os poderes de cognição do Tribunal ad quem possibilitam a modificabilidade da decisão recorrida e ora impugnada, uma vez que do processo constam todos os elementos de prova que lhe serviram de base.

4 .1ª Factos provados que não deveriam ter sido:

Alínea c) (…) em virtude de a autora e seu falecido marido já constarem dos registos da ré, com aquela morada, por força de anterior celebração de contrato de seguro associado a crédito à habitação, com a apólice nº000 (...) e certificado individual nº88 (...) 4, com inicio em 14.10.2002 (Facto 20).

Alínea d) A autora e o seu então marido tiveram conhecimento do teor da correspondência referida em 24. a 26., que não foi devolvida à ré (Facto 27).

4.2ª Factos não provados que deveriam ter sido:

Até aquela data, a ré não haja comunicado, para a morada convencionada, ao marido, nem à autora, que o contrato de seguro, identificado supra se encontrava “anulado” ou sem efeito (alínea c).

4.3ª Factos extraídos da prova produzida, que deveriam ser considerados provados.

- O aviso de anulação da apólice foi enviado, por correio simples, para C... , para a morada Rua (...) , Marinha Grande.

- A comunicação da anulação da apólice foi enviada, por correio simples, para C... , para a morada Rua (...) , Marinha Grande.

- Porquanto, a morte do marido da Autora, em 09 de Maio de 2010, apresentava-se coberta por aquele contrato.

B) Modificabilidade/impugnação de direito:

5ª Tendo em conta a matéria de facto provada e que cuja alteração supra se pugna, atentas as razões expostas no antecedente Capítulo II destas Alegações, forçosamente a aplicação do direito aos factos deveria ter sido necessariamente diferente.

6ª No que concerne à subsunção do direito aos factos, o nosso dissídio dirige-se, exclusivamente, ao entendimento de que a declaração de resolução do contrato de seguro chegaram ao conhecimento do destinatário e, ainda, da Autora e, como tal tornou-se eficaz. Importa analisar se a Ré B... provou os elementos constitutivos da resolução do contrato de seguro do ramo vida constante dos Autos? Salvo o devido respeito, que é muito, entendemos que não.

7ª No caso em apreço e de acordo com os factos provados, estamos perante um contrato de seguro de grupo contributivo, na modalidade de seguro de vida de crédito à habitação, que garantia o pagamento do capital devido ao Banco G... – tomador de seguro e beneficiário – por via de concessão de crédito à habitação à Autora e seu marido (mútuo) – aderentes/pessoas seguras - estando garantidos pela Ré Seguradora os riscos de morte ou de invalidez dos mutuários, a liquidação à mutuante do montante em dívida, do capital e dos juros vencidos.

8ª O interesse da Autora e seu marido (pessoas seguras/aderentes) na celebração do contrato foi o de assegurar o pagamento do montante da dívida em caso de morte ou invalidez de algum deles ou, de ambos.

9ª Daqui se extrai que não obstante o Banco G... ser o principal beneficiário do seguro, a Autora e seu marido enquanto aderentes e pessoas seguradas também se incluem nesta categoria (beneficiários) uma vez que, em caso de morte (risco seguro), podem exigir à Seguradora o pagamento da dívida mutuada (existente), ainda que a favor do Banco , porquanto com a satisfação/pagamento da dívida cessa a sua obrigação do pagamento do capital mutuado.

10ª Esta relação contratual configura um contrato de adesão, no respeitante às relações estabelecidas com as pessoas seguras (Autora e falecido marido), na medida em que integra cláusulas contratuais gerais, pré-estabelecidas, que foram aceites na totalidade, sem discussão ou negociação, aceitação específica e individualizada.

11ª Como se colhe dos ensinamentos de Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª edição (Reimpressão da 7.ª edição - 1997), Almedina, pág. 121, nota 2: “A resolução do contrato, quando a obrigação do faltoso se integre num contrato bilateral, não é um efeito da mora», emergindo para o credor tão-somente «quando a mora se converta, por qualquer das vias já apontadas [e, de entre estas, justamente, a notificação admonitória a que aludimos], em não cumprimento definitivo da obrigação”.

12ª Por isso, a simples falta de pagamento de prémio de contrato de seguro de vida não confere só por si à Seguradora o direito de resolução do contrato, o qual depende ainda da conversão da mora em incumprimento definitivo, designadamente mediante notificação admonitória nos termos do Artigo 808 do Código Civil (cfr. Acórdão do STJ, de 20/5/2010, relator Paulo Sá, in www.dgsi.pt).

13ª Para que os efeitos jurídicos da declaração negocial se produzam, é necessário, não só que a mesma seja efectuada de acordo com a forma prescrita ou convencionada, se for esse o caso (Artigo 219º do Código Civil), mas também que a declaração adquira eficácia ou perfeição.

14ª No caso da declaração de resolução contratual, não restam dúvidas de que se trata de declaração receptícia na medida em que tem um destinatário, sendo eficaz logo que entrem na esfera de poder do declaratário em termos que lhe permitam tomar conhecimento da mesma, ou quando o destinatário toma de facto conhecimento da mesma (Artigo 224º, nº 1, do Código Civil).

15ª Sobressai dos presentes Autos que a Ré B... provou o envio do aviso de anulação da apólice e da comunicação da anulação da apólice, ambas as comunicações por correio simples. Mais tendo provado que tal envio foi feito para a morada Rua (...) , Marinha Grande – morada que consta da escritura pública de compra e venda e empréstimo com hipoteca, em 14 Outubro de 2002.

16ª Na proposta de adesão, datada de 12 Dezembro 2005, a Autora e o então marido indicaram como morada a Rua x(...) , na Marinha Grande. O que traduz a designação de um individualizado domicílio electivo, estipulado, por escrito, pelas partes, para efeito do contrato de seguro celebrado, nos termos admitidos pelo Artigo 84.° do Código Civil.

17ª Nesta evidência, a morada convencionada haverá, sempre, de prevalecer, pois resulta da vontade expressa de ambas as partes. O que, in casu, não se verificou.

18ª Invocada a resolução, isto é, os respectivos factos integradores, em defesa, por via da excepção, a título de factos extintivos do direito, como é o nosso caso, competia à Ré a prova dos mesmos, nos termos do disposto nº Artigo 342º, nº 2, do Código Civil.

19ª Não resulta dos presentes Autos que tal carta chegou ao poder ou ao conhecimento do primitivo Autor. Inexistindo registo da carta enviada, a única prova legalmente admissível no que concerne à factualidade seria a confissão da Autora e do então marido, contudo, não se produziu qualquer prova confessória.

20ª Por outro lado, atenta a matéria alegada – o conteúdo conclusivo de que a sogra da Autora recebeu e entregou, ao filho ou à nora, as cartas da Ré não poderá ser levado em linha de conta na decisão final – a verdade é que (repita-se) não se provaram quaisquer factos de onde se possa concluir pela recepção da carta de resolução ou da mesma tivessem tido conhecimento.

21ª Assim, como decorrência culminar do exposto, não tendo a Ré provado, como lhe competia, por consubstanciar matéria de defesa por excepção, nos termos dos aludidos Artigos 224º e 342º, nº 2, do Código Civil, que a referida declaração chegou ao poder ou ao conhecimento do primitivo Autor, não pode a mesma considerar-se eficaz, verificando-se incumprimento do ónus probatório.

22ª Logo, a adequada valoração jurídica dos factos é no sentido de que o contrato de seguro inicial, não se mostrando resolvido, perdurou válido e eficaz, cobrindo a morte do segurado a 09 Maio de 2010.

23ª Por outro lado, ainda que o destinatário - C... - tivesse recebido a carta de resolução contratual, o que não foi dado como provado, ainda assim, não se lhe podia atribuir a eficácia resolutiva pretendida pela Ré B... à Autora.

24ª O destinatário da mencionada declaração é apenas um – cfr. documentos nºs 2 e 3, juntos com a contestação -, sendo duas as pessoas seguradas, pelo deveriam ter sido ambos alvo de tal notificação.

25ª Ora, era imprescindível que tal declaração tivesse também sido dirigida à Autora, e que tivesse chegado à sua esfera de acção ou que se provasse o conhecimento, por ela, do teor da declaração directamente dirigida a ela [(neste sentido, vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 08 Novembro 2012 (in www.dgsi.pt, processo nº 428/11.0TVLSB.L1-2, Relator Pedro Martins); e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31 Janeiro de 2007 (in www.dgsi.pt, processo nº 06A4485, nº convencional JSTJ000, Relator Faria Antunes)].

26ª Não resulta alegado, nem tão pouco demonstrado que a Ré tenha comunicado à Autora a declaração de resolução. É a própria Ré que reconhece nos Autos que não comunicou directamente à Autora a falta de pagamento dos prémios e a vontade de resolver o contrato.

27ª A circunstância de a Autora ter casado segundo o regime de comunhão geral de bens, de o pagamento dos prémios do seguro constituir um acto de administração ordinária, de formarem um casal unido, e de a obrigação de pagamento desses prémios constituir dívida da responsabilidade da Autora e do seu falecido marido em nada interfere.

28ª A Autora também é parte no articulado contrato de seguro de vida, tendo assumido por via dele direitos e obrigações, como pessoa física e jurídica distinta que é.

29ª Incumbia assim à Ré a prova de ter procedido à resolução válida do contrato, quer pela interpelação admonitória prévia, quer pela remessa a ambos os segurados de tal interpelação, o que não logrou fazer. Não o tendo feito, como lhe incumbia, por falta de prova de resolução contratual válida, não pode deixar de se considerar que a apólice se manteve em vigor, apesar do não pagamento dos prémios, tendo-se por subsistente o contrato de seguro vida celebrado com a Ré B... e eficaz a participação do sinistro (morte) por parte da Autora, respeitante ao falecimento do primeiro segurado, seu marido. Com efeito, impõe-se revogar a decisão proferida.

30ª Permitindo-nos ir mais longe, defendemos que a falta de pagamento dos prémios não legitima a recusa da Seguradora em pagar o capital seguro (tal como não seria legítima a recusa do segurado em pagar o prémio por falta de pagamento de qualquer indemnização por parte da seguradora), daí que se entenda não estar consumada a excepção de não cumprimento do contrato.

31ª Na verdade, se não existe interdependência entre as duas prestações, não pode a falta de cumprimento de uma servir de fundamento para a recusa no cumprimento da outra [(a este propósito, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 06 Novembro 1996 (in www.dgsi.pt, processo nº 004082, Relator Ferreira Girão)].

32ª Por fim, entende o Tribunal a quo que ainda que improcedesse a excepção peremptória arguida pela Ré, a presente Acção estaria votada ao absoluto insucesso. Não se partilha, contudo, do entendimento supra vertido.

33ª Atravessando todo o Código Processo Civil e disperso por várias normas, o princípio do dispositivo encontra no Artigo 3º a sua consagração inequívoca. Manifesta-se, além do mais, através da consagração do ónus de iniciativa processual e de conformação do objecto do processo, através da enunciação do pedido que delimita objectivamente o âmbito decisório do tribunal, nos termos do Artigo 609º, nº 1 (cfr. sobre a matéria Miguel Mesquita, “A flexibilização do princípio do pedido à luz do moderno CPC”, na RLJ, ano 143º, págs. 134 e segs.).

34ª Sem embargo de eventuais modificações, a necessidade de formulação do pedido é concretizada no Artigo 552º, nº 1, al. e), cumprindo aos Artigos 609º e 615º, nº 1, alínea e), respectivamente, a função de delimitação do poder decisório do Tribunal e o sancionamento da sua violação. Ou seja, o Tribunal está impedido de se sobrepor à vontade manifestada pelo autor, sob pena de nulidade da sentença, por excesso de pronúncia.

35ª Contudo, tal como ocorre com outros preceitos do Código Processo Civil, também o Artigo 609º, nº 1, carece de um esforço interpretativo, contando, além do mais, com os contributos de diversos Assentos e Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal Justiça.

36ª Entre tais arestos, destaca-se o Assento nº 4/95, in D.R. de 17-5, ao admitir que numa acção em que seja deduzida uma pretensão fundada num contrato cuja nulidade seja oficiosamente decretada o réu seja condenado a restituir o que tenha recebido no âmbito desse contrato, por aplicação do Artigo 289º do Código Civil, desde que do processo constem os factos suficientes.

37ª Outro importante elemento auxiliar da interpretação emerge do ACUJ nº 3/01, in D.R., I Série-A, de 9-2, que firmou a jurisprudência segundo a qual numa acção de impugnação pauliana em que tenha sido erradamente formulado o pedido de declaração de nulidade ou de anulação do acto jurídico impugnado o juiz deve corrigir oficiosamente esse erro e declarar a ineficácia que emerge do direito substantivo.

38ª Assim, embora não possa questionar-se que, em regra, é ao Autor que cabe a iniciativa processual e a delimitação da providência requerida, a solução do caso concreto exige que se pondere o que dimana de arestos com a solenidade e com o valor persuasivo inerentes aos mencionados acórdãos de uniformização de jurisprudência.

39ª Na integração do caso não podem ainda descurar-se os objectivos apontados pelas sucessivas reformas processuais, designadamente quando delas emerge a sobreposição de aspectos de ordem material a outros de ordem formal, ou a necessidade de atribuir ao processo a necessária eficácia que permita alcançar uma efectiva e célere resolução de litígios.

40ª Importa ponderar também o que emana da doutrina que, fazendo coro com os referidos objectivos, aponta para a flexibilização do princípio do pedido, como é defendido por Miguel Mesquita, em anotação a um aresto sobre direitos reais, na RLJ, ano 143º, págs. 134 e segs. intitulada precisamente “A flexibilização do princípio do pedido à luz do moderno CPC”.

41ª Assim, se é verdade que a sentença deve inserir-se no âmbito do pedido, não podendo o juiz condenar (rectius apreciar) nem em quantidade superior, nem em objecto diverso do que se pedir, tal não dispensa um esforço suplementar que permita apreender realmente o âmbito objectivo do pedido que foi formulado na presente acção.

42ª Alegou a Autora, na sua petição inicial, que no contrato de seguro foi acordado que os beneficiários do seguro seriam, pelo capital em dívida, o G... S.A. e, em caso de morte, os herdeiros legais.

43ª Resulta explícito da pretensão da Autora, o seu claro e inequívoco objectivo de querer amortizar o capital em dívida junto do Banco G... , tanto mais quando remete para os termos contratados pelas Partes em sede de contrato de seguro. Mais, da factualidade alegada pela Autora, a obrigação que a mesma pretende ver cumprida pela Ré é o pagamento da quantia mutuada.

44ª Sendo assim, atento o regime que emerge do direito substantivo, não se compreenderia que na situação como à dos presentes Autos, fosse negada a possibilidade de se cumprir a obrigação de pagamento do capital mutuado junto do Banco. Tanto mais quando a improcedência de tal pretensão teria gravosas consequências.

45ª Ora, o Juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (Artigo 5.º, n.º 3 do Código Processo Civil). Esta norma visa facultar ao Juiz os meios necessários para produzir uma decisão de mérito que atinja, tanto quanto possível, o ideal da justiça material.

46ª O contrato de seguro de vida constitui, por isso, muitas vezes na prática bancária, condição para a realização de um empréstimo para habitação, tendo por finalidade, por parte do segurado, a de prevenir o risco de ocorrência do acontecimento – morte – que lhe não permita ou que dificulte aos seus herdeiros o pagamento das prestações em dívida.

47ª Daí que, o que está em causa nos presentes Autos é a reparação do capital mutuado.

48ª Na verdade, haja ou não excedente de capital seguro, é legítimo ao beneficiário e/ou ao herdeiro da pessoa segura, ver a situação do imóvel solucionada, desde logo, com a extinção da obrigação garantida e da hipoteca constituída sobre o imóvel, por forma a poder dispor do mesmo da forma que melhor entender. Aliás, essa é uma das funções preenchidas pelo contrato de seguro Vida, estabelecido não só a favor da entidade mutuante como também dos beneficiários ali indicados e/ou herdeiros da pessoa segura.

49ª Tentar retirar essa prerrogativa à aqui Autora é, salvo o devido respeito, violar as suas legítimas expectativas e, bem assim defraudar os seus interesses.

50ª Ora, tomando de empréstimo as palavras de Miguel Mesquita (in em anotação a um aresto sobre direitos reais, na RLJ, ano 143º, págs. 134 e segs. intitulada precisamente “A flexibilização do princípio do pedido à luz do moderno CPC), em torno da necessidade de compreender o princípio do dispositivo de um modo mais flexível, ajustado à realidade social e aos avanços que se têm sentido também no processo civil, se acaso a Relação tivesse adoptado a mesma “postura rígida e inflexível relativamente ao pedido, bem ao estilo oitocentista”, acabaria por absolver os RR. do pedido, “decisão que seria, sem dúvida alguma, do imediato agrado dos RR., mas que redundaria numa vitória de Pirro.

51ª Como refere o mesmo Autor (cfr. pág. 150), “o interesse público da boa administração da justiça nem sempre coincide com os interesses egoístas das partes, fazendo, pois, todo o sentido, num processo moderno, a intervenção do juiz destinada a alcançar a efectividade das sentenças”. Desiderato que, com muita razoabilidade e bom senso, foi conseguido pela Relação quando, reconhecendo para o muro uma situação de compropriedade, concluiu que se deveria pôr um esclarecedor ponto final no conflito.

52ª O que significa dizer que o princípio do dispositivo será encarado como disposição das partes ao material fático, desapegado dos pedidos, que tem uma análise particular e não será objecto de deleito (neste sentido, vide Miguel Mesquita, in “A flexibilização do princípio do pedido à luz do moderno Processo Civil”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Coimbra Editora, 2013, p. 135).

53ª Nesta medida, estando à disposição do Tribunal ad quem toda a factualidade probatória é legítima a conclusão da susceptibilidade de conferir à Autora o direito à procedência da sua pretensão, que mais não é do que “amortização do capital mutuado”.

54ª Assim, entende-se que apenas se fará Justiça com a total procedência do pedido inicialmente formulado pela Autora.

55ª Concluindo, atendendo à reanálise dos documentos juntos aos Autos, bem como dos depoimentos prestados, mormente os cuja transcrição consta supra, sob pena de se cometer uma profunda injustiça, deverão Vossas Excelências reformular a matéria dada como provada e – subsumindo-a ao Direito – considerar o contrato de seguro válido e eficaz, cobrindo a morte do segurado a 09 Maio 2010 e, bem assim concluir pela total procedência do pedido formulado pela Autora.

A R. respondeu, sustentando, em síntese, que não violou a sentença recorrida as normas processuais e substantivas referidas pela A., pelo que deve ser mantida nos seus precisos termos.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

1.ª) – Com o recurso interposto pela a./recte./ da sentença que absolve a r. do pedido, pretende a a. seja:

a) – modificada a decisão da matéria de facto, de modo a dar como provados factos dados como não provados e a dar como provados os que não o foram e a elencar factos novos a dar como provados;

b) – em matéria de direito, a revogação da decisão recorrida por entender que a resolução do contrato operada pela r. não resultou provada e, bem assim, por discordar da fundamentação da sentença relativamente à deficiente fundamentação do pedido e que concluiu, também por aí, pela sua improcedência;

2.ª) – Salvo melhor entendimento, deve conhecer-se, em primeiro lugar, desta improcedência do pedido ante a sua má fundamentação, pois, a falecer aqui a pretensão da a. e a manter-se, como entendemos dever ocorrer, a improcedência da acção por esta banda, fica prejudicado o conhecimento das questões suscitadas pela a. em a) e b) antecedentes;

3.ª) – Entende a a. que o Tribunal a quo esteve mal quando não corrigiu oficiosamente o erro do âmbito do pedido, porquanto resultava claro e inequívoco que o objectivo da a. era amortizar o capital em dívida, ao banco, o que, no seu entender, o Tribunal bem podia – e devia – ter retirado a partir do momento em que o pedido se cinge ao pagamento para si própria da quantia em dívida;

4.ª) – Ora, importa ter presente que, contrariamente o que sucede com a ineptidão da petição inicial, por falta ou ininteligibilidade da causa de pedir ou do pedido, se não for sanado, constitui nulidade absoluta e conduz à absolvição da instância, que motiva o Juiz ao convite para aperfeiçoá-lo, aqui não estamos perante tal circunstancia;

5.ª) – O pedido da a. é inteligível; O que não está é bem formulado ante a causa de pedir, ou melhor, a proceder o pedido nos termos em que está formulado, o Tribunal estaria a condenar a r. num pagamento que não é devido, o que, como decerto se reconhece, lhe está inteiramente vedado;

6.ª) – A pretensão da a., a ver declarada procedente a amortização do empréstimo, ou seja, o pagamento directo, para si, do capital em dívida, quando, na verdade, no contrato celebrado com a R., este é o beneficiário irrevogável do mesmo, só havendo lugar à indemnização para a a. em caso de eventual remanescente, não pode proceder;

7.ª) - Não cabe, por isso, ao Tribunal – e, muito menos, a este Tribunal de recurso – ainda que ao abrigo do principio do dispositivo e da célere resolução dos litígios, a que a a. apela, relevar tal circunstancia, sendo que não há contradição entre a causa de pedir e o pedido – que só se verifica quando exista nexo lógico entre ambos -, estando vedado declarar procedente um pedido quando o mesmo não pode ser alicerçado na causa de pedir;

8.ª) –Veja-se, antes do mais, que estamos perante um contrato de seguro de vida coligado com o contrato de mútuo, destinando-se a garantir o pagamento do empréstimo contraído pelo mutuário, junto do banco, intervindo a r., enquanto entidade seguradora, e ficando obrigada a pagar ao banco o capital mutuado, no caso do mutuário segurado falecer antes do termo do contrato;

9.ª) – Vale isto por dizer que a r., na hipótese de morte da pessoa segura/mutuário, de quem a a. é viúva, compromete-se a pagar ao banco, ou seja, a indemnização não se destina à a., mas antes à instituição bancária, entidade esta que não é estranha ao benefício, mas uma das partes contratuais, que não está em juízo;

10.ª) – A a. não chamou e nem fez intervir o banco nesta acção, por opção, o qual, repita-se, sendo o tomador do seguro e sendo entidade distinta do segurado, tem interesse na causa;

11.ª) – É abundante a jurisprudência que defende que em acção em que se discute o incumprimento de seguros de vida, a entidade bancária beneficiária irrevogável e prioritária do capital de seguros de vida outorgados para garantia do pagamento do capital de contratos de mútuo em dívida à data da ocorrência do risco coberto é litisconsorte necessária com os herdeiros legais do segurado falecido, porquanto estes são beneficiários do (eventual) remanescente dos capitais seguros;

12.ª) - A proceder o pedido da a., estaríamos a inibir o banco, a favor de quem a seguradora se obriga a efectuar a prestação, pagando as importâncias seguras, de receber o capital mutuado, determinando que o pagamento fosse efectuado em nome próprio da a., ao arrepio dos termos do contrato, não sendo legítimo defender, como o faz a a., que o Tribunal deveria ter entendido que a a. iria cumprir a sua obrigação e entregar o capital ao banco, que nem sequer é parte nos autos, tanto mais que a a. é apenas beneficiários do (eventual) remanescente dos capitais seguros, o que se desconhece, pois só o banco, no caso em concreto, pode determinar qual o capital em dívida e se há ou não lugar a eventual remanescente;

13.ª) – Jamais poderia o Tribunal julgar procedente o pedido nos termos em que é formulado, diligenciando para que a a. entregásse a quantia junto do banco, sob pena de flagrante ilegalidade;

14.ª) – O que equivale a dizer que o pedido de pagamento, a si própria (para a a.), da quantia mutuada não pode alicerçar o pedido, em especial, quando o banco, beneficiário irrevogável e prioritário do capital de seguros de vida outorgados para garantia do pagamento do capital de contratos de mútuo em dívida à data da ocorrência do risco coberto não é parte na acção;

15.ª) – E não competia ao Tribunal corrigir tal pedido pelas razões já aduzidas;

16.ª) – Na hipótese de não proceder esta argumentação, ainda assim, não merece qualquer reparo a fundamentação de facto e nem a mesma merece ser alterada;

17.ª) - Resultou provado – e bem - que, por falta de pagamento dos prémios, a r. procedeu à resolução do contrato, e, logo, a cobertura de morte não se encontra válida, não sendo, portanto, exigível à r. qualquer pagamento pela garantia de tal cobertura, improcedendo o pedido de indemnização;

18.ª) – Resultou ainda provado que a partir de Setembro de 2008, não foi possível efectuar a cobrança dos prémios de seguro do Certificado em apreço através do NIB fornecido na proposta de adesão pelo que esta apólice veio a ser anulada, por falta de pagamento de prémios, com data efeito de anulação de 01.09.2008, sem prejuízo dos avisos dos prémios de cobrança que foram remetidos para a morada que consta de documentos juntos pela a.. (Cfr. doc. n.º 4);

19.ª) – Em 19.09.2008 foi enviado em nome do Sr. C... , falecido segurado e enquanto titular da conta para onde era feita a cobrança dos prémios, um aviso de cobrança, dando conta da impossibilidade de pagamento através do NIB por aquele indicado pela menção por parte do banco de “C.destinatária n/movimentável”, e fixando um prazo para a regularização, SEM que, contudo, tenham sido regularizados tais pagamentos.

20.ª) - Em 10.10.2008, não restou alternativa à r. senão proceder ao envio do correspondente aviso de anulação da apólice, tendo a comunicação da anulação da apólice sido feita, por carta, datada de 15.11.2008, que foi recebida porque nunca à r. chegou devolvida qualquer dos seus escritos referidos, pelo que esteve bem o Tribunal quando reconheceu que a r. converteu a mora em incumprimento definitivo;

22.º) – Não colhe a argumentação da a. de que a r. lhe deveria ter sido comunicado o incumprimento, pois que, nos termos das condições gerais da apólice de seguro contratada pelo marido da a., temos que o tomador de seguro é a entidade que celebra o contrato com a seguradora e que é responsável pelo pagamento dos prémios, sendo a pessoa segura a que é sujeita aos riscos;

23.ª) – Logo, e sendo a a. apenas segurada, e constando do Certificado Individual como entidade pagadora C... , não tinha a a. que ser interpelada para pagar nem tinha a r. de lhe comunicar a resolução do contrato.

24.ª) - De resto, vir invocar o total desconhecimento dos avisos supra referidos, quando, como a própria a. demostrou, recebe correspondência na morada para onde os mesmos foram enviados, e, bem assim, confessou ser devedora dos prémios de seguro, não deve fundamentar qualquer alteração da matéria de facto dada como provada e não provada, sob pena de flagrante desigualdade;

25.ª) – Aliás, recorde-se que, nesta matéria, vigora a regra da resolução do contrato com base na falta de pagamento dos prémios, pois que, como bem ensina " José Vasques - "Contrato de Seguro", 1999, pág. 251, no caso de falta de pagamento do prémio do seguro de vida será o tomador do seguro avisado de que deverá satisfazer o pagamento no prazo de oito dias ou noutro que se ache convencionado na apólice, prazo findo o qual "o contrato se considerará resolvido sem outra consequência a nível da exigibilidade do pagamento do prémio;

26.ª) – A comunicação enviada pela r. produziu os seus efeitos, nos termos referidos, não se tornando necessário provar que o segurado teve efectivo conhecimento do teor das cartas, pois que o conhecimento presume-se, presunção juris et de jure, não sendo, pois, necessário prová-lo para que a declaração seja eficaz;

27.ª) – Mais ainda: vir a juízo reclamar o pagamento da indemnização, sem que a contraprestação do pagamento dos prémios, a cargo da a., esteja cumprida implica que, em nome da segurança do tráfego jurídico, a proceder o recurso da a., tenha de haver lugar ou à restituição dos prémios pagos e a posterior anulação do contrato ou, considerando-se que o mesmo seja válido, à compensação entre os valores de prémios em dívida e o capital em dívida, tudo acrescido de juros de mora desde a data do seu pagamento;

Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


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II – “Reapreciação” da decisão de facto

Como questão prévia à enunciação dos factos provados, importa – atento o âmbito do recurso – analisar a questão, a propósito da decisão de facto, colocada pela A/apelante a este tribunal.

Efectivamente, em boa verdade, apenas uma questão é colocada.

E estamos naturalmente a referir-nos à questão de saber se a A. e o seu marido tiveram conhecimento do teor da correspondência referida em 24. a 26. (dos factos provados da sentença recorrida); questão esta a que se referem o facto provado 27, o facto não provado b) e, instrumentalmente, o facto provado 20.

Ou seja, o que se refere quanto a dever ser considerado provado que a correspondência referida em 24. a 26. foi enviado por correio simples não chega a ser questão, uma vez que a R./apelada não invoca sequer algo de diverso, pelo que, no lugar próprio, acrescentar-se-á (como provado) tal envio “por correio simples”; e o que se refere quanto a dar-se como provado que, “aquando da morte do marido da Autora, em 09 de Maio de 2010, esta se apresentava coberta por aquele contrato” não chega a ser questão (nesta sede, de reapreciação da decisão de facto), uma vez que isto, no contexto do litígio, não é “facto”, sendo sim a conclusão a que se chegará (ou não) após a discussão jurídica a partir de factos.

Centremo-nos pois sobre a questão de saber se a A. e o seu marido tiveram conhecimento do teor da correspondência referida em 24. a 26.:

Questão esta a que a sentença recorrida respondeu afirmativamente, expendendo para tal “a seguinte linha de raciocínio”:

“ (...)

• Desde sempre, a ré (confessadamente) manteve como morada da entidade pagadora do seguro (o falecido marido da autora) aquela que tinha nos seus ficheiros informáticos por referência ao anterior contrato, sem que haja notícia de que houvesse correspondência devolvida ou de que o destinatário dessa correspondência tivesse pedido a alteração / retificação da morada.

• Mesmo após a morte de C... , a correspondência dirigida aos seus herdeiros, na sequência do pedido pela autora, foi endereçada à mesma morada (vide documento n.º 5 junto com a contestação) e foi aí recebida pela autora (como decorre, para além da não devolução daquela missiva, da circunstância de os documentos então enviados terem chegado à sua posse – documentos nºs. 4 e 5 juntos com a petição inicial).

• Na morada para a qual a correspondência da ré (desde a data do primeiro contrato de seguro – ou seja, 2002, frisa-se) sempre foi enviada, tinham, efetivamente, residido, antes de se mudarem para a casa adquirida com o recurso ao crédito que deu causa ao contrato de seguro, a autora e seu falecido marido, bem como a mãe deste e sogra daquela, a qual ali continuou a habitar até à atualidade (como esclarecido pela testemunha 2.).

Não se trata, portanto, de uma morada estranha à autora e ao seu falecido marido ou que, entretanto, tivesse passado a ser domicílio de estranhos, mas antes de uma residência de familiar em primeiro grau.

(...)

Assim, caso não tivessem recepcionado as cartas da ré e delas se inteirado, certamente que ou a autora ou seu marido não teriam deixado, ao longo daqueles meses, de contactar a ré para saber o motivo pelo qual deixara de proceder ao levantamento mensal dos prémios do seguro.

Por todo o exposto e fazendo apelo às regras da experiência comum, não se pode deixar de ter a firme convicção de que a sogra da autora recebeu e entregou, ao filho ou à nora, as cartas da ré acima melhor discriminadas – tal como, mais tarde, já em maio de 2010, fez chegar à autora a missiva de resposta ao seu pedido de informação.

Acresce, a tudo isto, que segundo a testemunha 2. [Laurinda Francisco, cunhada da A.] a autora e seu marido formavam um casal unido, que fazia verdadeira partilha de vida, pelo que não é minimamente credível que o assunto do não pagamento do seguro e da anulação da respetiva apólice não tivesse chegado ao conhecimento de ambos, independentemente de saber, em concreto, quem abriu e leu (primeiro) as cartas da ré.

Por tudo isto, não se teve qualquer hesitação em considerar devidamente provado o aludido facto 27.

Efectivamente, perante o que se expôs, na motivação de facto da sentença recorrida, o sentido e a avaliação da prova produzida, em termos de análise crítica, não podia ser outro.

A correspondência referida em 24 a 26 (da sentença recorrida) foi enviada para a anterior morada da A. e do marido (é, aliás, a que consta da escritura de compra e venda de 14/10/2002), morada que por certo[1] e compreensivelmente foi, à época de 2002, feita constar dos serviços da R..

Nessa morada, continuou a morar a sogra da A., que, quanto à carta referida em 19 e 20 deste acórdão (dirigida à A. pela R. e tendo também como direccão a R. (...) , Marinha Grande), foi diligente a fazê-la chegar à A., motivo pelo qual as regras da experiência comum – tanto mais que nunca a A. ou marido terão reclamado da não recepção de quaisquer cartas da R. – impunham/impõem que se dêem/mantenham como provados os factos 27 e 20 e como não provado o facto b).

É quanto basta para concluir pela improcedência do recurso de facto (com a resssalva respeitante ao acrescento do envio “por correio simples”).


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III – Fundamentação de Facto

III – A – Factos Provados[2]

1. Por escritura pública outorgada em 14 de outubro de 2002, foi celebrada compra e venda e empréstimo com hipoteca, este entre a autora e marido C... e o G... S.A.

2. Nos termos daquele convénio, a D... Lda. declarou vender à autora e ao então marido, que declaram comprar, pelo preço de € 92.277,60, que aquela disse já ter recebido, a fração autónoma designada pela letra "E", correspondente à Quinta Moradia, destinada a habitação, de cave para garagem, rés-do-chão e primeiro andar e logradouro, do prédio urbano sito no lugar da (...) , freguesia e concelho da Marinha Grande, inscrito na respetiva matriz sob o artigo número 16339, descrito na Conservatória do Registo Predial da Marinha Grande sob o número 8428, afeto ao regime de propriedade horizontal.

3. Nessa mesma escritura, interveio como terceiro outorgante G... , S.A., na qualidade de mutuante.

4. Autora e marido C... , na qualidade de mutuários, declararam que “se confessam devedores ao G... , SA (...) da importância de € 92.277,60, que do mesmo Banco receberam a título de empréstimo e que vai ser aplicada na precedente aquisição".

5. Para garantia do pagamento e liquidação da quantia mutuada e, bem assim, dos respetivos juros à taxa anual efetiva de 5,16% acrescidos de sobretaxa até 4% ano em caso de mora, a título de despesas e cláusula penal, e despesas judiciais e extrajudiciais fixadas para efeitos de registo em € 3.691,10, a autora e o marido constituíram hipoteca a favor do Banco sobre a mencionada fração autónoma.

6. Dessa escritura pública faz parte integrante o documento particular onde se encontram elencadas as "cláusulas do contrato de mútuo com hipoteca concedido pelo G... , S.A.", sendo que, de acordo com a Cláusula Décima, "os mutuários obrigam-se a contratar um Seguro de Vida, cujas condições, constantes da respetiva apólice, serão indicadas pelo Banco, em sociedade de seguros de reconhecido crédito e da confiança do Banco".

7. Aceite a proposta e celebrado o contrato de seguro, veio a ser emitida, com início em 20.02.2006, a respetiva apólice, titulada pelo n.º 000 (...) 2, com o certificado individual n.º 9..., garantindo as coberturas de morte ou invalidez total e permanente.

8. Do “certificado individual de seguro – temporário de vida associado ao crédito habitação com o n.º 9 (...) consta:

- Como tomador de seguro o G... e como entidade pagadora e 1.ª pessoa segura C... .

- Que é titulado pela apólice nº 000 (...) .

- Que tem início em 10.02.2006.

- Sendo o capital seguro de €110.600,00.

- Como pessoas seguras, a autora e o marido C... .

9. Foi acordado que os prémios emergentes desse contrato teriam periodicidade mensal.

10. E que o pagamento dos mesmos seria efetuado por débito na conta de depósitos à ordem com o nº (...) , conta de que a A. e o marido eram co-titulares

11. Mais foi acordado, nesse contrato, que os beneficiários do seguro seriam, em caso de morte, pelo capital em dívida, o G... , S.A. e “pelo eventual excesso para o capital seguro, em caso de morte, os herdeiros legais”.

12. Entre outras, das condições gerais, constam as seguintes cláusulas:

Art. 7.º - Benficiários

(...)

7. 3 A cláusula beneficiária é irrevogável sempre que tenha havido aceitação do benefício por parte do Beneficiário e renúncia da Pessoa Segura em a alterar (...)

Art. 8.º - Cessação das Coberturas para Cada Pessoa Segura

Salvo disposição em contrário nas Condições Especiais ou nas Condições Particulares, as coberturas garantidas ao abrigo deste contrato cessam para cada Pessoa Segura quando se verifique uma das seguintes condições:

(...)

b) Na data da resolução do contrato

(...)

Art 12.º - Pagamento dos prémios

12.1 Salvo o disposto em contrário nas Condições Especiais ou Particulares, os prémios, eventuias sobreprémios e encargos legais são devidos pelo Tomador de Seguro e vencem-se na data de início do período a que se referem.

(...)

Art. 13.º - Falta de Pagamento dos Prémios

13.1 O não pagamento dos prémios, dentro dos 30 dias posteriores à data do seu vencimento, concede à Seguradora, nos termos legais, a faculdade de proceder à resolução do contrato ou fazer cessar as garantias conferidas em relação a uma ou mais pessoas.

(...) ”

13. A partir de setembro de 2008, não foi possível efetuar a cobrança dos prémios de seguro do certificado em apreço através da conta bancária mencionada em 10.

14. Em 19.09.2008, foi enviada uma carta, por correio simples, para a R. (...) , Marinha Grande, em nome do Sr. C... , dando conta da impossibilidade de pagamento através do NIB por aquele indicado do prémio de seguro, solicitando a sua liquidação até 09.10.2009 e acrescentando que, “caso tal não ocorra, nos termos da legislação aplicável, o contrato deixará de produzir efeitos, por falta de pagamento atempado dos respectivos prémios, nos prazos e condições fixadas na apólice”.

15. Em 10.10.2008, foi enviada uma segunda carta, por correio simples, para a R. (...) , Marinha Grande, em nome do Sr. C... , com o seguinte teor: “não se tendo verificado até ao momento o pagamento do prémio de seguro da apólice em referência, informamos que procederemos à anulação da referida apólice, nos termos legais e contratuais em vigor, na data acima indicada [09/10/2008], a partir da qual deixam de ser garantidas as coberturas previstas nas condições gerais, especiais se as houver, e particulares”

16. Em 15.11.2008, foi enviada uma terceira carta, por correio simples, para a R. (...) , Marinha Grande, em nome do Sr. C... , com o seguinte teor: “vimos pela presente informar que, nos termos da legislação em vigor e das condições contratuais aplicáveis, procedemos ao cancelamento da apólice de seguro acima identificada, por falta de pagamento dos respectivos prémios e com efeitos a partir da data acima mencionada [01/09/2008]”.

17. A autora e o seu então marido tiveram conhecimento do teor da correspondência referida em 14. a 16., que não foi devolvida à ré.

18. No dia 09 de Maio de 2010, o marido da autora, C... , faleceu, no estado de casado, no regime de comunhão geral de bens com aquela.

19. Na sequência de uma solicitação, para o efeito, da autora, formulada em 14.05.2010, através do site do G... , a ré B... enviou-lhe, datada de 01 de junho de 2010, carta contendo o exemplar das condições gerais e especiais aplicáveis à apólice de seguro de vida.

20. Na mesma missiva, a R. informou a autora que: «nos termos da legislação em vigor e das condições contratuais aplicáveis, o certificado individual n 9 (...) se encontra anulado por falta de pagamento dos prémios com data efeito a 01/09/2008».

21. As cartas emitidas pela R. foram remetidas para a morada que consta do Certificado Individual de Seguro, junto pela autora como documento nº4 – mais precisamente, para a Rua (...) , Marinha Grande.

22. Para aquela mesma morada, constante do certificado junto à petição inicial como documento nº4, foi remetida pela ré e recebida pela autora a carta que capeava as Condições Gerais e Especiais desta apólice.

23. Da proposta de adesão junta como documento n.º1 à contestação consta outra morada, tendo a morada mencionada em 18. sido assumida pelo sistema informático da R em virtude de a A. e seu falecido marido já constarem dos registo da R., com aquela morada, por força de anterior celebração de contrato de seguro associado a crédito à habitação, com a apólice n.º 000 (...) e certificado individual n.º 88 (...) 4, com início em 14.10.2002.

24. C... deixou como herdeiros legais: a ora A., A... , e dois filhos, E... e F... .

25. Por escritura pública outorgada em 07 de março de 2012, no Cartório Notarial da Marinha, E... repudiou a herança aberta por óbito de seu pai C... .

26. Em 01 de junho de 2012, por escritura pública outorgada no Cartório Notarial da Marinha Grande, o filho do falecido C... , F... , repudiou a herança aberta pelo óbito de seu pai.


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III – B – Factos não Provados

Não se provou que:

a) – Tenha sido em meados de maio de 2010 que a autora e uma amiga se hajam deslocado à sucursal do "G... " da Marinha Grande para comunicar o falecimento do marido e, por consequência, acionar o seguro de vida.

b) - Até aquela data, a ré não haja comunicado ao marido, nem à autora, que o contrato de seguro, identificado supra se encontrava “anulado” ou sem efeito.

c) – Estivesse disponível no “Extrato Combinado de conta”, na parte intitulada “agenda”, titulada no banco G... , em sede de “Agenda”, todos os pagamentos agendados em face das responsabilidades financeiras do titular da conta, mormente a título de pagamentos de seguros, e prestações de crédito.


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IV – Fundamentação de Direito

Como resulta das conclusões recursivas da A./apelante – ou melhor, dando cumprimento, em vez da A./apelante, à “forma sintética” exigida pelo art. 639.º/1 do CPC – são basicamente 3 as questões invocadas como fundamento/objecto da presente oposição: uma 1.ª, a propósito da decisão de facto; uma 2.ª, a propósito da não cessação do contrato seguro (por a resolução não ter operado eficazmente); e uma 3.ª, caso a 2.ª mereça resposta afirmativa, em que se suscita a “convolação” do pedido, passando a conferir-se à A. (se bem entendemos) o direito à “amortização [por parte da R.]do capital mutuado”.

A 1.ª está decidida.

Quanto à 2.ª questão:

Resulta, em resumo, da matéria de facto assente, que a A. e o marido ( C... ) contraíram, em 14/10/2002, um mútuo hipotecário junto do G... , tendo, por causa de tal mútuo hipotecário, celebrado um conexo contrato de seguro, em que é seguradora a “ B... , S.A.”, em que é tomador do seguro o G... , S.A., em que as pessoas seguras são a A. e o marido, e em que é beneficiário irrevogável (a pessoa a favor de quem reverte a prestação da Seguradora decorrente do contrato de seguro), pelo capital em dívida, em caso de morte das pessoas seguras, o G... .

Sucedendo – é aqui que se situa o litígio – que, tendo falecido, em 09/05/2010, o marido da A., a seguradora, a aqui R/apelada, com fundamento em haver resolvido tal contrato de seguro por falta de pagamento dos prémios, se recusa a cobrir o risco assumido e a proceder ao pagamento do capital.

Temos pois, contextualizando os factos, que a A. e o marido, ao celebrarem um contrato de crédito, foram chamados – mais exactamente, obrigados (cfr. cláusulas 10.ª e 11.ª do documento complementar junto a fls. 25 e ss.) – a aderir ao seguro celebrado pelo banco mutuante com a seguradora aqui R.; e fizeram-no – é da experiência comum[3] – por o banco financiador, aquando da negociação do empréstimo, lhes referir que, por uma pequena quantia a acrescer à prestação mensal, podiam beneficiar do pagamento por outrem da dívida se se viesse a verificar alguma vicissitude nas suas vidas (dito doutra forma, podiam beneficiar da vantagem de ficar garantidos perante a ocorrência de alguma das vicissitude previstas no contrato)[4]; isto é, o seguro de vida (e também, como consta do certificado individual de seguro de fls. 35, os seguros complementares do ramo vida: invalidez total e permanente) foi, naturalmente, uma condição do banco financiador para a concessão do empréstimo e, como também é normal, foi celebrado com uma seguradora ligada ao banco financiador, sendo os mutuários integrados na apólice do Seguro de Grupo subscrita entre o grupo financiador e a seguradora (tudo efectuado, como ainda é comum e normal, nas instalações do banco financiador[5]).

Temos pois, como intervenientes no seguro sub-judice, a R. como seguradora, o G... quer como tomador do seguro (embora sem se responsabilizar pelo pagamento dos prémios) quer como beneficiário irrevogável do mesmo (em caso de morte dos segurados) e a A. e o marido como pessoas seguras, todos eles, a nosso ver, interessados na validade, vigência e cumprimento dos direitos e obrigações do mesmo decorrentes.

Vem isto a propósito, claro está, da questão crucial, no contexto do litígio, da resolução do contrato de seguro, invocada por parte da R/seguradora.

Resolução, tendo presente o momento em que, segundo a R., a mesma foi declarada (set/out de 2008), a que não é aplicável a actual LCS (aprovada pelo DL 72/2008, de 16-04), que só entrou em vigor em 01/01/2009; mas sim a anterior legislação, o que à primeira vista não faz, para o caso, grande diferença, uma vez que (assim como o actual art 58.º da LCS) também o anterior art. 1.º/2 do DL 142/2000 (na redacção do DL 122/2005), sobre o regime do pagamento dos prémios de seguro, dizia não ser o mesmo aplicável (entre outros) aos seguros do ramo “vida”.

Não estamos pois perante a resolução decorrente da “cláusula” resolutiva automática[6], que a lei (quer a anterior, cfr. art. 8.º do DL 142/2000, na redacção do DL 122/2005; quer a actual, cfr. art. 61.º da LCS) associa à falta de pagamento do prémio; mas sim perante uma resolução convencional, baseada numa cláusula inserta no contrato, cláusula essa associada ao incumprimento (falta de pagamento do prémio) e que, fixando um termo essencial para o pagamento do prémio em atraso, permite à R/seguradora resolver o contrato sem necessidade de demonstrar a gravidade do incumprimento e evitando as delongas da transformação da mora em incumprimento definitivo.

É o que decorre e se extrai do art. 13.º das Condições Gerais do seguro de grupo a que a A. e marido aderiram, segundo o qual “o não pagamento dos prémios, dentro dos 30 dias posteriores à data do seu vencimento, concede à seguradora, nos termos legais, a faculdade de proceder à resolução do contrato (…)”; ou seja, interpretando/determinando o seu sentido, temos que está clausulado, no contrato de seguro a que a A. e o marido aderiram[7], que um atraso de 30 dias no pagamento do prémio confere à seguradora a faculdade de resolver o contrato.

Repetindo, para resolver o contrato, não tinha a R/seguradora que demonstrar a gravidade do incumprimento, nem que começar por converter a mora em incumprimento definitivo (mediante a interpelação admonitória prevista no art. 808.º do C. Civil), uma vez que a cláusula resolutiva convencional logo dizia, insiste-se, que um atraso de 30 dias no pagamento do prémio confere à seguradora a faculdade de resolver o contrato.

É assim neste contexto contratual que tem que ser analisada a carta mencionada no ponto 14 dos factos provados deste acórdão, ou seja, estando em atraso o prémio mensal vencido em 01/09/2008 (o que a A./apelante não discute), a R., em 19/09/2008, comunicou ao marido da A., por correio simples, que o prémio em atraso teria que ser liquidado até 09/10/2009, sob pena de, “nos termos da legislação aplicável, o contrato deixar de produzir os seus efeitos, por falta de pagamento atempado dos respectivos prémios, nos prazos e condições fixadas na apólice”.

Carta essa que significou, a nosso ver, o exercício da faculdade resolutiva prevista na referida cláusula contratual: a R./seguradora disse ao marido da A. que, caso não pagasse o prémio em atraso no prazo que lhe dava (que ia até 09/10/2008, ou seja, para além dos 30 dias previstos na cláusula), o contrato deixava de produzir os seus efeitos, o que, podendo a R/seguradora ser mais categórica na sua declaração (usando a expressão “resolução contratual”), não deixa de ser concludente e interpretável como pretendendo dizer que, caso o marido da A. não pagasse o prémio em atraso no prazo referido, considerava/declarava o contrato resolvido (aliás, a A/apelada não contesta tal interpretação)[8].

Isto dito, estamos chegados a um ponto relevante do litígio: não tendo o prémio em atraso sido pago no prazo referido/concedido, o contrato resolveu-se? Mais: a resolução contratual foi, em termos de forma, bem efectivada, quer em relação ao marido da A., quer em relação à própria A.?

E a propósito da forma de resolução – sem prejuízo da resolução seguir, via de regra, o regime da liberdade da forma – importa chamar aqui à colação o que se dispunha (em termos especiais) no art. 33.º do Decreto de 21/10/2007 (expressamente revogado pelo art. 6.º/2/b) do diploma que aprovou a nova Lei do Contrato de Seguro), segundo o qual “o contrato de seguro de vida somente poderá considerar-se insubsistente por falta de pagamento do prémio quando o segurado, depois de avisado por meio de carta registada, não satisfaça a quantia em dívida no prazo de oito dias ou noutro, nunca inferior a este, que porventura se ache capitulado na apólice.

Artigo 33.º este (em vigor, em Set/Out de 2008) que suscita a seguinte pergunta: Ao estatuir, uma concreta forma (carta registada) para a comunicação resolutiva da seguradora, deve entender-se que, ao fazê-lo, se afasta do princípio da consensualidade e estabelece uma formalidade ad substantiam (insubstituível por outro meio de prova ou por documento que não seja de força probatória superior - cfr. art. 364.º/1 do C. Civil), ou, ao invés, deve entender-se que tal representa uma mera formalidade ad probationem?

Pois bem, respondendo, propendemos para considerar[9] que a sua função é apenas a de tornar segura a prova sobre o recebimento da carta/comunicação, procurando evitar dúvidas sobre um aspecto tão delicado e relevante, ou seja, que a carta registada é uma mera formalidade ad probationem, pelo que a circunstância da(s) carta(s) ter sido enviada por correio simples não gera a nulidade da comunicação (ex vi art. 220.º do C. Civil) e, em consequência, a ineficácia da resolução.

Ultrapassado tal obstáculo, apresenta-se agora a dificuldade que a A. logo enunciou na PI e consistente em a carta mencionada no ponto 14 dos factos provados deste acórdão (e já analisada) ter sido enviada apenas ao então marido da A., na medida em que a R/apelada sustenta[10] que a A. “não tinha que ser interpelada para pagar nem tinha a R. de lhe comunicar a resolução do contrato”.

Com o que, com todo o respeito, não concordamos.

Sendo a resolução do contrato um meio de extinção do vínculo contratual por declaração unilateral duma das partes, deve, naturalmente, tal declaração unilateral – em que a natureza potestativa da declaração lhe transmite as características de unilateralidade recipienda (art. 224.º/1/1.ª parte do C. Civil), irrevogabilidade (art. 224.º/1/1.ª parte e 230.º do C. Civil), incondicionalidade e concretização – ter como destinatário todas as contrapartes (no caso de ser mais do que uma) no contrato que se pretende extinguir.

Assim, intervindo a A., no seguro sub-judice, como pessoa segura (como cristalinamente resulta do certificado individual de seguro – fls. 69 verso, 70, 35 e 36)[11], não é a circunstância de na proposta de adesão e no certificado individual de seguro figurar como “entidade pagadora” tão só o seu falecido marido que a A. perde a referida qualidade de interveniente no contrato de seguro e que, em função disto, a seguradora pode fazer cessar o contrato sem nada lhe comunicar.

Efectivamente, tendo a A. participado na celebração do contrato de seguro em causa (subscrevendo a proposta de adesão), associado a um crédito hipotecário, nos exactos termos em que o fez o seu marido, assumindo os mesmos direitos e obrigações, nem compreendemos muito bem como é que se pode sustentar que ela não tem a mesma qualidade do marido[12]: é que estamos perante um seguro de grupo (como, aliás, é denominado nas Condições Gerais) que assenta num contrato celebrado primeiramente entre a seguradora e o tomador do seguro, contrato esse de que a A. e o marido passam a fazer parte, como pessoas seguras, com a adesão e respectiva aceitação pela seguradora.

Existia pois, indiscutivelmente, tanto da Autora como do seu marido (aderentes/pessoas seguras/segurados), o interesse em que o contrato celebrado assegurasse o pagamento do montante da dívida em caso de morte ou invalidez de algum deles ou de ambos, pelo que uma qualquer comunicação da seguradora visando extinguir (a totalidade de) tal contrato de seguro teria que ser dirigida quer à Autora quer ao seu marido[13].

Não sendo suficiente – não valendo como comunicação à A/apelante – esta ter tido conhecimento da comunicação enviada ao seu falecido marido.

A circunstância de ambos terem tido conhecimento do teor da correspondência referida em 14., 15. e 16. (como se refere no ponto 17 dos factos provados deste acórdão), permite afirmar que a declaração resolutiva foi eficaz em relação ao marido, na medida em que “a declaração negocial que tem um destinatário, torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou é dele conhecida” (cfr. art. 224.º/1 do C. Civil), porém, não havendo nenhuma declaração dirigida à A/apelante, não sendo ela destinatária de qualquer declaração da R/seguradora, nenhuma eficácia resolutiva se produziu em relação a ela.

Mas – é o ponto – não havendo declaração resolutiva em relação à A/apelante, isso significa, forçosa e necessariamente, que todo a relação contratual se mantém incólume, válido e vigente, como se não tivesse havido resolução contratual em relação ao marido da A./apelante?

Sendo esta a regra – o vínculo contratual ou se extingue ou não se extingue (por força da resolução), não parecendo que possa haver “meio termo” – entendemos, em face da natureza jurídica “sui generis” do seguro de grupo, que no caso poderá entender-se não ser assim.

Efectivamente, importa ter presente a estrutura triangular do seguro de grupo; em que o tomador celebra um contrato com o segurador, com vista a que a este adiram os membros de um determinado grupo (ligados ao tomador de seguro por um vínculo e interesse comum: no caso, a obtenção dum crédito hipotecário junto da entidade bancária tomadora do seguro), tornando-se então segurados; ou seja, no seguro de grupo, como refere Maria Inês Oliveira Martins[14], não nos encontramos perante um único contrato, mas sim perante uma pluralidade de contratos: de um lado, o celebrado entre o segurador e o tomador; de outro, as várias relações jurídicas contratuais que as adesões e as respectivas aceitações pelo segurador vêm estabelecer entre o segurador e cada um dos segurados.

O que significa, sendo distintas (do contrato celebrado entre o segurador e o tomador) e várias as relações jurídicas que o segurador estabelece com os aderentes/segurados, que não repugnará também cindir a relação jurídica estabelecida pela R/seguradora com a A./apelante e o marido e, face à declaração resolutiva dirigida ao marido da A/apelante, considerar cessada a relação jurídica contratual com ele estabelecida[15] e, ao invés, não havendo declaração resolutiva quanto à A/apelante, considerar válida e vigente a relação contratual com esta estabelecida.

Solução esta que não contraria qualquer expectativa/confiança da A/apelante, que teve conhecimento da declaração resolutiva dirigida ao seu marido, ou seja, que ficou a saber, desde as cartas constantes dos pontos 14, 15 e 16 (dos factos provados), que o “risco” do falecimento do marido deixaria de estar coberto pelo seguro de grupo a que haviam aderido.

Sendo assim, em conclusão, quando, em 09/05/2010, faleceu o marido da A., já tal “risco” não estava coberto, não estando a R/apelada obrigada a pagar (ao beneficiário G... ) a importância segura, ou seja, o capital mutuado em dívida.


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Improcede pois o que a A./apelante invocou e concluiu na sua alegação recursiva – ficando prejudicado o conhecimento da 3.ª questão – o que determina o naufrágio da apelação e a confirmação do decidido na 1ª instância, que não merece os reparos que se lhe apontam.
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V - Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar totalmente improcedente a apelação e, consequentemente, confirma-se a decisão recorrida.

Custas pela A./apelante.


Coimbra, 14/03/17

 (Barateiro Martins)

 (Arlindo Oliveira)

 (Emídio Santos)



[1] Quando da adesão a um anterior seguro de grupo, a julgar pela dilação temporal de quase 4 anos entre a escritura de compra e venda e o seguro de grupo sub-judice.
[2] Alinhados, lógica a cronologicamente, tanto quanto possível, e sem repetições.
[3] E também do nosso conhecimento de ofício, resultante de outros e idênticos processos.

[4] Daí que, em tal contrato de seguro de grupo, o grupo bancário financiador, além de assumir a veste de “tomador de seguro”, haja assumido também a de “beneficiário do seguro”, em virtude de ser o sujeito a favor de quem reverte a prestação da entidade seguradora; ou seja, do ponto de vista dos interesses em jogo, o fim do financiador é (deve ser) o de assegurar a restituição do dinheiro emprestado perante a verificação de um sinistro que possa prejudicar o normal pagamento do empréstimo; daí que, perante a ocorrência do sinistro, ou seja, perante a verificação do risco previsto, a seguradora fique adstrita à realização de uma prestação pecuniária (pelo valor do capital mutuado em dívida) ao beneficiário indicado no contrato, in casu, o grupo bancário G... .
[5] Segundo disseram as testemunhas da R., “a B... não tem balcões e o G... é o mediador”:
[6] Que, em rigor, é um caso de caducidade pelo decurso do prazo sem o prémio ser pago.

[7] Sendo a cláusula em questão uma ccg – de um seguro de grupo a que a A. e o marido se limitaram a aderir – e nada lhe sendo oposto em termos de comunicação e informação (em que havia a regra “especialíssima” contida no art. 4.º/2 do então vigente DL 176/95, de 26-07, segundo a qual era ao Banco G... que competia o cumprimento do dever de comunicação e informação das cláusulas contratuais gerais do seguro de grupo a que a A. e marido aderiram), inseriu-se e passou a fazer parte do contrato de adesão individualizado.

[8] O que também significa, a nosso ver, que as cartas da R. mencionadas nos ponto 15 e 16 dos factos provados deste acórdão nada acrescentam ou trazem de verdadeiramente novo (em relação à 1.ª carta); ou melhor, apenas revelam uma certa confusão da R., que, na carta de 10/10/2008, diz que o contrato se resolveu em 09/10/2008 (em harmonia com o exercício da faculdade resolutiva efectivada na primeira carta) e que, depois, em nova carta, de 15/11/2008, vem dizer que a apólice foi anulada com efeitos a partir de 01/09/2008 (ao arrepio da cláusula 8.º/b, transcrita no ponto 12 dos factos); aliás, a confusão sobe de tom no depoimento das suas duas testemunhas: efectivamente, ambas disseram (remetendo ainda a H... para o melhor conhecimento da I... ) que, após 3 tentativas de cobrança (junto da conta no G... ), foi enviado um aviso (referindo-se à 1.ª carta) a dizer que o prémio estava em falta e depois um novo aviso (referindo-se à 2.ª carta) a lembrar que o pagamento estava em falta e que, em Novembro, não havendo esse pagamento, se anulou a apólice por falta de pagamento; ora, com todo o respeito, não é exactamente isto que resulta do texto das cartas.
[9] Não se ignorando que sobre a “forma” de idênticas comunicações das seguradoras há jurisprudência divergente do STJ: Ac. de 09/03/2000 e de 20/04/1999, in BMJ 486.º, p. 287; e de 19/03/2002, in CJ, Tomo I, p. 142.
[10] E tal foi dito/confirmado de viva voz pelas suas duas testemunhas, que referiram que “a B... manda sempre a correspondência apenas para o pagador”.

[11] Sendo certo que o art. 1.º/c) do RJCS então em vigor (aprovado pelo DL 176/95, de 26/07) definia o “segurado” como a “pessoa no interesse do qual o contrato é celebrado ou a pessoa cuja vida, saúde ou integridade física se segura”, unindo, assim, as duas qualidades.

[12] Das circunstâncias que rodearam a celebração do contrato – associado a um empréstimo contraído por ambos os conjuges – abrangendo o risco de morte ou invalidez de ambos os cônjuges, sendo o prémio mensal a debitar numa conta de que ambos eram titulares, não se encontra qualquer diferença no interesse que qualquer um deles tem relativamente quer às pessoas seguras quer ao risco que se pretende cobrir com a celebração do contrato em causa: o pagamento do crédito hipotecário por parte da seguradora, pelo qual ambos são devedores solidários, no caso de falecimento de qualquer um deles.
[13] Cfr., neste sentido, Ac. STJ de 31/01/2007, in www.dgsi.pt e Ac Rel Porto de 04/02/2014, in CJ, Tomo I, pág. 192.
[14] In “o Seguro de Vida enquanto tipo contratual legal”, pág. 74 e ss:

[15] Aliás, o art. 13.º/1 das condições gerais fala em “fazer cessar as garantias conferidas em relação a uma ou mais pessoas”.