Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1853/19.4T8PBL-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VITOR AMARAL
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
CONFISSÃO EXTRAJUDICIAL DE DÍVIDA EM ESCRITURA PÚBLICA
SUA INVOCAÇÃO PERANTE TERCEIROS
Data do Acordão: 09/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DE EXECUÇÃO DE ANSIÃO – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 358º, Nº 2 DO C. CIVIL.
Sumário: 1. - É suscetível de força probatória plena a confissão extrajudicial de dívida, na qual se alude a empréstimos anteriormente concedidos, em determinado montante global, confissão essa exarada em documento autêntico (escritura pública), no âmbito da relação entre os outorgantes (confitente/devedor e beneficiário/credor), de acordo com o disposto no art.º 358.º, n.º 2, do C.Civ..

2. - Porém, não pode invocar-se perante terceiros, cujos direitos resultariam abalados pelo teor de tal declaração confessória, o valor de prova plena dessa confissão extrajudicial, em termos de vedar ao terceiro a impugnação, por qualquer meio probatório admitido em direito, da validade ou veracidade do reconhecimento confessório.

3. - Em reclamação de créditos baseada em confissão extrajudicial de dívida, tendo esta subjacente diversos empréstimos do reclamante ao executado, e sendo o exequente/reclamado terceiro face a tal confissão, cabe ao reclamante o ónus da alegação e prova da existência do crédito reclamado.

4. - Para o que tem de convencer da efetiva entrega das quantias pecuniárias – relação contratual de mútuo –, perfazendo o montante global reclamado, como condição da perfeição da declaração negocial, em contratos configuráveis como reais quoad constitutionem.

5. - Não se provando, em tal caso, se esses empréstimos existiram ou não, a reclamação de créditos improcede.

Decisão Texto Integral:





Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório ([1])

Por apenso a autos de execução que “B... B...”, com os sinais dos autos,

move contra D... e mulher, C..., também com os sinais dos autos,

veio o reclamante C..., com os sinais dos autos,

deduzir reclamação de crédito, no montante de capital de €100.000,00, a que acrescem juros de mora, à taxa de 4% ao ano, ascendendo a €1.841,10 os vencidos até à data de dedução da reclamação do crédito, bem como despesas (judiciais e extrajudiciais) no montante de €10.000,00, assim perfazendo o valor global de €111.841,10, e ainda juros moratórios vincendos, até efetivo e integral pagamento,

pedindo, por isso, que seja atendida tal reclamação, sendo o seu crédito – titulado por escritura pública de reconhecimento da dívida –, garantido por hipoteca voluntária, justificado e graduado no lugar que lhe competir, mas sempre preferencialmente em relação ao crédito exequendo.

Alegou, para tanto, em síntese, que:

- por escritura pública de confissão de dívida e hipoteca, outorgada no dia 30/08/2019, os Executados/Reclamados se confessaram/reconheceram devedores do aqui Reclamante naquela quantia de €100.000,00, referente a vários empréstimos parcelares que este lhes efetuara, entre os anos de 2004 e 2017, até perfazer aquele montante total de capital em dívida, sendo que, apesar do acordado pagamento em prestações sucessivas, nada foi pago/restituído; e

- para garantia das obrigações assumidas, a parte Reclamada/Executada constituiu a favor do Reclamante uma hipoteca voluntária sobre diversos prédios, de que aquela é proprietária, com subsequente registo da garantia (mediante Ap. 342 de 02/09/2019) a favor de tal Reclamante, quando a penhora dos imóveis no âmbito da execução é datada de 29/10/2019.

Notificada, veio a Exequente/Reclamada impugnar a reclamação, concluindo pela sua improcedência, de molde a não ser reconhecido o crédito reclamado.

Alegou, em resumo, que:

- o credor não emprestou a quantia de €100.000,00 ao Executado e este não é devedor dessa quantia;

- a confissão de dívida e constituição de hipoteca a favor do credor Reclamante deve-se apenas à circunstância de ter sido intentada a ação executiva pelo “B... B...” contra os Executados, tendo somente em vista frustrar o crédito exequendo, o que resulta evidente da data da confissão de dívida e constituição de hipoteca;

- não possuindo os Executados outro património capaz de permitir a satisfação do crédito exequendo, a confissão de dívida e hipoteca traduz uma mera encenação com o propósito de impedir o recebimento por parte do Exequente de qualquer quantia pela venda dos imóveis penhorados;

- ocorre, assim, para além de ineficácia do ato em relação ao Exequente (art.ºs 610.º e segs. do CCiv.), nulidade da aludida escritura pública de confissão de dívida e hipoteca, que mais não é do que um ato simulado, com o intuito de enganar terceiros (art.º 240.º do mesmo Cód.).

Respondeu o Reclamante, impugnando o alegado pelo Exequente e alegando, por sua vez, que:

- nunca exigiu qualquer documento formal das quantias emprestadas, visto que mantinha a expetativa de que os Executados lhe pagassem o que devem e perante a relação de confiança que sempre manteve com aqueles;

- a escritura aludida visou salvaguardar a situação dos filhos do Reclamante, considerando a idade avançada deste último, inexistindo qualquer simulação;

- a impugnação do crédito foi deduzida com erro na forma de processo.

Concluiu pela total improcedência da impugnação.

Efetuado o saneamento do processo e enunciados o objeto do litígio e os temas da prova, prosseguiram os autos para julgamento, com produção de provas, seguindo-se a sentença, pela qual foi julgado “(…) não verificado e, por isso, não reconhecido o crédito reclamado por C...” (cfr. fls. 86 do processo físico, com destaques retirados).

Inconformado, o Reclamante apelou do assim decidido, tendo apresentado alegação, onde formula as seguintes

Conclusões ([2]):

...

NESTES TERMOS, e nos de mais de direito aplicáveis e de cujo o douto suprimento desde já se requer, deve o presente recurso obter provimento, revogando-se, por douto Acórdão, a, aliás, douta Sentença que antecede, ora recorrida, proferida pelo Tribunal a quo, por a mesma resultar, salvo o devido respeito, de uma incorreta apreciação da prova produzida e subsequente considerada uma errada matéria de facto dada como provada e não provada, tendo resultado, por isso, numa incorreta aplicação do Direito, devendo, por isso, ser a mesma substituída por outra, que considere verificado e reconhecido o crédito do reclamante, com todas as legais consequências, nomeadamente, com a respetiva graduação do crédito no lugar que lhe competir, face às hipotecas constituídas.”.

Contra-alegou a Exequente/Reclamada, concluindo pela improcedência do recurso.

Este foi admitido como de apelação, com o regime e efeito fixados no processo ([3]), tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido tal regime e efeito fixados.

Nada obstando, na legal tramitação recursória, ao conhecimento do mérito da apelação, cumpre apreciar e decidir.

II – Âmbito do Recurso

Sendo o objeto dos recursos delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo fixado nos articulados das partes – como é consabido, são as conclusões da parte recorrente que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([4]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 –, está em causa na presente apelação, com apreciação de matéria de facto e de direito, saber:

a) Se deve proceder a impugnação da decisão referente à matéria de facto, alterando-se as respostas aos pontos i, ii e iii do elenco dos factos dados como não provados (de não provados para provados);

b) Obrigando, em matéria de direito, ao reconhecimento e consequente graduação prioritária do crédito reclamado.

III – Fundamentação

          A) Matéria de facto

1. - Na 1.ª instância foi considerada a seguinte factualidade como provada:

...

2. - E foi julgado como não provado:

«i. Que o credor Reclamante entregou ao(s) Executado(s) 100 (cem) mil euros;

ii. Que o(s) Executado(s) receberam do credor Reclamante 100(cem) mil euros;

iii. Que o(s) Executado(s) não pagar(am) ao credor Reclamante;

iv. Que o(s) Executado(s) não se quis(eram) confessar devedor(es) ao credor Reclamante do montante de 100 mil euros.

v. Que o(s) Executado(s) não se quis(eram) constituir hipoteca voluntária a favor do credor Reclamante».

B) Impugnação da decisão relativa à matéria de facto

1. - Da violação de normas jurídicas sobre a força probatória da prova documental produzida

          Começa o Apelante por defender, nesta sede impugnatória da decisão de facto – que tem por exclusivo objeto a resposta negativa aos pontos fácticos i, ii e iii do quadro dado como não provado, aqueles em que estava em causa a existência/materialização dos empréstimos alegados pelo Reclamante/Recorrente, com inerente entrega faseada de montante global em dinheiro (€100.000,00) –, que a confissão de dívida que outorgou com os Executados/confitentes, titulada por escritura pública, constitui documento autêntico, com a inerente força probatória plena (invoca o quadro normativo dos art.ºs 358.º, n.ºs 2 e 3, 369.º, 370.º e 371.º, todos do CCiv.).

          Força probatória plena essa – prossegue – que apenas pode ser ilidida com base na falsidade do documento autêntico, a qual nunca foi arguida nos autos.

          Mas acrescenta – e bem – a contraparte, em sede de resposta recursiva, que tal força probatória plena incide (apenas) sobre aquilo que, na presença do notário, foi declarado e inserido, como tal, na escritura (as “declarações que os outorgantes fizeram perante o Notário”, como expresso a fls. 129 do processo físico), e já não sobre a veracidade do assim declarado, ou sobre a sua validade ou eficácia, tanto mais que, embora se trate de “confissão extrajudicial”, esta “não tem força probatória plena, por não ter sido feita à parte contrária ou a quem a represente – nos termos do disposto no n.º 2 do art. 358.º do CC.” (cfr. fls. 129 v.º do processo físico).

          Quer dizer – apreciando esta argumentação –, a força probatória dos documentos autênticos, como ocorre com a dita escritura pública confessória de dívida, é apenas, para o caso, a que resulta do disposto no art.º 371.º, n.º 1, do CCiv., segundo o qual tais documentos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, tal como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora.

          No caso, a escritura pública confessória de dívida apenas faz prova plena das declarações dos outorgantes, tal como ali exaradas, por proferidas na presença do notário documentador, e não mais que isso.

          O notário apenas atestou – como só podia atestar – a realidade do concretamente declarado, isto é, que as declarações exaradas foram proferidas naqueles termos na sua presença ([5]).

          Mas não, obviamente, que o conteúdo do assim declarado pelos outorgantes correspondesse à verdade, isto é, que tivessem efetivamente ocorrido os ditos empréstimos – designadamente até perfazer os €100.000,00 invocados e questionados no âmbito destes autos.

Pois que tais empréstimos não ocorreram na sua presença ([6]), pelo que não podiam ser objeto da sua perceção de entidade documentadora.

Assim, de nada serve, salvo o devido respeito, ao Apelante invocar que a contraparte não suscitou o incidente de falsidade do documento autêntico, para abalar a sua força probatória plena.

Na verdade, a Reclamada/Apelada não quis certamente dizer que o documento era falso, que o que nele consta como declarado não corresponde às declarações dos outorgantes, que aquilo que o notário exarou é desconforme com as suas perceções de entidade documentadora.

Não. A Reclamada/Apelada admite, obviamente, que o exarado corresponde ao declarado, donde que fosse absurdo suscitar o incidente de falsidade do documento.

O que a Apelada/Reclamada refere é outra coisa: que, apesar do declarado na escritura, o conteúdo dessas declarações não é verdadeiro, por ali se dizer confessar uma dívida inexistente (correspondente a invocados empréstimos que nunca tiveram lugar), tudo não passando de um logro/simulação para prejudicar quem é credor (como a Exequente/Reclamada) dos declarados confitentes/devedores.

Assente, pois, que não era caso de incidente de falsidade, mas tendo a Apelada/Reclamada impugnado claramente os invocados empréstimos (o conteúdo/veracidade das declarações exaradas em escritura pública, ao ponto de invocar a existência de simulação, por nada ter sido, na sua ótica, emprestado), certo é também que nesta vertente probatória – a que aqui deveras importa – estamos fora da cobertura da força probatória plena do documento autêntico aludido.

Não obstante isso, poderia pensar-se que, não provada a factualidade alegada tendente a demonstrar a simulação (cfr. os pontos iv e v julgados não provados), caberia então à Reclamada/Apelada/Exequente a alegação e prova da inexistência do negócio/mútuo invocado na reclamação de crédito (pois que fonte de tal reclamado crédito), ou a invalidade ou extinção de tal negócio.

Ora, não tendo ela logrado ilidir a matéria da “presunção” (à luz do que consta do art.º 358.º, n.º 2, primeira parte, do CCiv.), mais não seria necessário para a procedência da reclamação do crédito.

Será assim?

Adianta-se, desde já – e salvo o devido respeito –, que assim não é.

Com efeito, também de nada serve ao Reclamante, afastada a pretendida força probatória plena da escritura em matéria de veracidade do conteúdo do negócio ali declarado, invocar a “força probatória da confissão extrajudicial”, passando, assim, para o campo normativo da prova por confissão.

É certo que dispõe o art.º 358.º, n.º 2, do CCiv. (que o Apelante convoca), que a confissão extrajudicial, em documento autêntico (ou particular), considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária (ou a quem a represente), tem força probatória plena.

Quer dizer, uma coisa é o valor probatório da confissão extrajudicial documental feita à contraparte; outra, o valor probatório da mesma perante terceiros (pessoas alheias ao negócio/declaração).

Na verdade, se essa confissão é feita à parte contrária, ela tem, naturalmente, a dita força probatória plena, tendo sempre em conta que a confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária (art.º 352.º do CCiv.).

Assim, a declaração confessória de dívida corporizada na dita escritura pública contém o reconhecimento, pela parte executada/confitente, de um facto – verdadeiro ou falso – que a desfavorece (assume-se como devedora) e favorece a parte contrária (o aqui Reclamante/Apelante, projetado para a posição de credor).

Por isso, entre confitente e contraparte (aqui, entre Executados e Reclamante/Apelante) nenhum obstáculo haveria ao valor probatório pleno da confissão de dívida, como exarado na escritura ([7]).

Mas perante terceiros, como o é a Exequente/Apelada, já não se pode reclamar idêntica força probatória. Na verdade, perante aquela Exequente os Executados nada confessaram.

De modo que a força probatória plena da confissão está confinada à relação entre confitente e contraparte (destinatário/beneficiário da confissão), vinculando tal confitente.

Quanto aos terceiros (como a ora Apelada/Exequente), a força probatória da confissão extratada em documento autêntico é a que vale nos termos aplicáveis a essa modalidade de documentos, matéria em que já se viu que a prova plena se resume à veracidade do teor do declarado na escritura (aquilo que é objeto de perceção do notário e pelo mesmo exarado como tal), mas não ao conteúdo da declaração (no caso, a veracidade/realidade da celebração dos invocados empréstimos e correspondentes entregas pecuniárias).

Em suma: nenhuma prova plena contra a Reclamada/Apelada pode retirar-se da escritura pública e da confissão de dívida que encerra em termos de demonstração dos concretos empréstimos (designadamente, quanto aos seus tempos e montantes entregues) e consequente dívida (global) reclamada.

Donde que inexista qualquer “presunção legal” de dívida, de que fosse beneficiário o Reclamante/Apelante, em termos de dever ser a Apelada a provar que o negócio não tinha ocorrido.

Como vem entendendo a jurisprudência do STJ ([8]), “Não pode invocar-se no confronto de terceiros, cujos direitos são abalados pelo teor de declaração confessória, constante de certa escritura pública em que intervieram credor e devedor, o valor de prova plena de tal confissão extrajudicial, em termos de vedar ao terceiro a impugnação, por qualquer meio probatório, da validade ou veracidade do reconhecimento confessório”.

E como depois é explanado, a propósito, no mesmo Ac. STJ (Cons. Lopes do Rego):

“… cumpre realçar que o litígio não intercorre, como é comum, entre credor e devedor/confitente (pretendendo este exonerar-se da força probatória plena associada ao reconhecimento inequívoco, em documento autêntico e em declaração feita à contraparte, da dívida pecuniária que o vinculava para com o seu credor) : na realidade, a existência de um débito emergente de certo empréstimo, realizado entre A e B, provido da garantia real emergente de hipoteca voluntária, é, no caso dos autos, oposto a um outro credor do mutuário , C, - que na sua própria execução logrou penhorar bens imóveis do devedor B, resultando a eficácia da penhora naturalmente precludida pela hipoteca. anteriormente registada, incidente sobre esses bens e que garante o débito resultante do mútuo.

Ora, neste concreto circunstancialismo, temos por seguro que a eventual força probatória plena da declaração de confissão contida na escritura de mútuo celebrada entre A e B nunca poderia vincular irremediavelmente C, impedindo-lhe a demonstração de que, na base de tal escritura e da confissão nela contida, se não encontraria, afinal, uma válida relação obrigacional, garantida pela hipoteca: o que a dita força probatória plena impede é que – sem invocação, nomeadamente, de um vício da declaração negocial que inquine irremediavelmente a própria declaração confessória – não é possível ao confitente exonerar-se, perante o seu credor, a quem fez a confissão da dívida, do facto desfavorável nela contido – mas já não obviamente que terceiros, cujos direitos são abalados pelo reconhecimento confessório, possam pôr em causa, mediante a utilização de quaisquer meios probatórios, a validade e veracidade de declaração confessória a que são inteiramente estranhos - e cuja subsistência  prejudica a consistência dos seus direitos.” ([9]).

In casu, a Exequente/Reclamada/Apelada não deixou de pôr em causa, com liberdade de prova, a validade/veracidade da declaração confessória contra si esgrimida, a que é inteiramente estranha, apodando-a até de inteiramente simulada, por nada ter sido emprestado.

É verdade que à impugnação deduzida não correspondeu a prova – de difícil obtenção, é certo, como é consabido, sobretudo se os invocados empréstimos não passaram pelo circuito bancário, nem deixaram rasto documental visível – da inexistência de quaisquer quantias emprestadas.

Mas daí não pode, como visto, resultar a presunção, perante terceiro credor, e muito menos a prova plena, do contrário, isto é, de que o mútuo – aliás, de valor global muito substancial – é real e o crédito reclamado existente e subsistente.

Acresce que a escritura pública não é, manifestamente, constitutiva do mútuo do capital reclamado nestes autos, apenas contendo declaração recognitiva das obrigações emergentes de múltiplos empréstimos informais, anteriormente celebrados entre as partes, nem sequer titulados, de per si, que se veja, por quaisquer documentos particulares e muito menos, como dito, em termos de circuito bancário.

Quer dizer, embora o contrato de mútuo acima de certo montante seja um contrato formal, começando por exigir, em certos casos, documento particular assinado pelo mutuário, sem o que o contrato é nulo (cfr. art.ºs 1143.º e 220.º, ambos do CCiv.), a verdade é que nem sequer foi alegado ou plasmado na escritura pública de confissão de dívida qual o valor de cada empréstimo parcelar, de molde a permitir aquilatar da sua validade ou nulidade formal.

Mas ainda que tais documentos particulares assinados pelo mutuário existissem (e tivessem sido juntos aos autos), evidenciado que o facto constitutivo do empréstimo invocado não era o ato declarado na escritura pública, mas antes outros e anteriores negócios jurídicos – anterioridade essa cabalmente admitida/reconhecida nos presentes autos –, é evidente que se tornaria “lícito à contraparte impugnar a genuinidade da letra e assinatura de tais documentos, nos termos do art.º 374.º do CC – recaindo, consequentemente sobre o apresentante desses documentos particulares o ónus de convencer acerca da veracidade das referidas letra e assinatura, como condição para poder beneficiar da força probatória emergente do estatuído no art. 376º do CC.” ([10]).

Argumento que, por maioria de razão, vale para o caso dos autos, onde nem sequer tais documentos particulares existem para poderem ser impugnados, termos em que nem dessa prova documental corroborante dispomos ([11]).

Assim, é de concluir que não podia o Reclamante/Apelante – que invocou e pretende exercer um direito creditório, cabendo-lhe, por isso, a prova dos respetivos factos constitutivos (art.º 342.º, n.º 1, do CCiv.) – deixar de ter o ónus da prova da efetiva entrega das quantias pecuniárias alegadamente mutuadas, “como condição da perfeição da declaração negocial em contratos configuráveis como reais quoad constitutionem.” ([12]).

Tal como, do mesmo modo, alegando matéria de exceção, impendia sobre a contraparte o ónus da prova da factualidade tendente a demonstrar os requisitos da invocada simulação absoluta (art.º 342.º, n.º 2, do CCiv.), mas não, como visto, a falsidade da confissão.

2. - Da existência de outras provas fundantes da impugnação recursiva

Socorre-se o Apelante – na perspetiva de se entender que a aludida escritura constitui meio de prova sujeito à livre apreciação do Tribunal, obviamente, quanto à matéria de entrega/recebimento contratual da dita quantia global – de outros meios de prova no sentido de serem dados como provados os mencionados factos objeto de impugnação recursória, a saber, os depoimentos das testemunhas ...

Para tanto, esgrime o impugnante que essas testemunhas foram esclarecedoras quanto à veracidade da confissão de dívida e hipoteca, esclarecendo a realidade dos empréstimos e os seus motivos, em conjugação até, para além da mencionada escritura, com as certidões de registo predial constantes nos autos principais, referentes aos prédios onde a Exequente constituiu hipotecas judiciais em 30/07/2019.

A propósito de tal prova testemunhal (com referência àquele factualismo dado como não provado), é o seguinte o sentido da análise da 1.ª instância:

«Os factos não provados foram assim considerados por se considerar que a prova produzida não foi suficiente para provar que o credor reclamante entregou 100 mil euros ao Executado e o Executado recebeu 100 mil euros do credor Reclamante.

Senão vejamos:

... é filha dos Executados e referiu que os pais sempre viveram com dificuldades.

Nunca assistiu a qualquer entrega de dinheiro, mas sabe que o C..., primo afastado da família, os ajudava monetariamente.

Esse dinheiro destinava-se à vida profissional do pai (que teve algumas empresas) mas também para a vida pessoal.

Sabe que o pai apontava o dinheiro que o C... lhe emprestava, bem como o dinheiro que lhe restituía.

Há sensivelmente um ano, tiveram uma conversa, fizeram um apanhado geral e chegaram ao valor 100 mil euros.

Desconhece qualquer divida do pai ao B... B...

Questionada referiu que o C... era pintor por conta de outrem e a mulher do C... fazia limpezas. O C... trabalhava muito (até aos fins de semana) e é de seu conhecimento que tem várias casas.

... é filha de C... e referiu, em síntese, que assistiu a uma entrega de dinheiro ao Executado, quando ainda morava com os pais, ou seja, há mais de 13 anos atrás.

Desconhece por que é que o Executado pedia dinheiro ao pai, mas sabe que ele teve uma empresa que foi à falência.

Tem também conhecimento que o Executado fazia pagamentos ao pai.

Recentemente o pai disse-lhe que o Executado lhe devia dinheiro e como não conseguia recuperar o dinheiro fizeram a escritura.

Desconhece o montante que se encontra em divida.

O pai trabalhava como pintor de uma empresa e a mãe trabalhava como doméstica.

Tem três vivendas em França, tudo construído com dinheiro ganho pelo pai.

Desconhece se o pai tem documentos sobre as quantias que emprestou ao Executado.

... é filho dos Executados.

Referiu, em síntese, que hoje sabe da divida porque existe este processo em tribunal.

Nunca ouviu conversas entre o C... e o pai a respeito de qualquer empréstimo de dinheiro.

... é filho de C...

Referiu, em síntese, que assistiu a diversas entregas de dinheiro em envelopes; concretizando, assistiu a duas ou três entregas de dinheiro, desconhecendo, porém, os montantes.

Mais referiu que o Executado não restitua dinheiro ao pai; prestava-lhe serviços.

Questionado, referiu que o pai deve ter apontamento acerca dos montantes que emprestou.

Cerca de 5/6 anos antes de falecer a mãe referiu-lhe que o Executado estava a dever cerca de 80 mil euros e mostrou-se preocupada porque o Executado estava com dificuldades.

O pai tem casas em França, terreno no Algarve, tem lojas e apartamentos em Portugal.

(…)

Assim:

Algumas das testemunhas referiram ter presenciado uma, no máximo, três entregas de, ao que julgam dinheiro, em montante e datas não determinados;

Duas das testemunhas referem que o Executado ia restituindo o dinheiro emprestado e uma testemunha refere que o Executado ia pagando com serviços ao reclamante.

Não resultam provadas as entregas de dinheiro do credor Reclamante ao Executado nem o recebimento deste de dinheiro entregue por aquele, nem os respetivos montantes parciais ou o seu total.

Mesmo que assim não fosse – e é -, a terem existido entregas de dinheiro ao Executado, sempre ficaria por saber que montantes (em dinheiro ou serviços) foram restituídos e, nessa medida, que montantes ficaram em divida.

Algumas das testemunhas referem que existiam apontamentos sobre as movimentações de dinheiro.

Porém, esses escritos, não foram juntos aos autos.

Nem os seus intervenientes, digo, Executado e credor Reclamante, compareceram para esclarecer essas movimentações de dinheiro.

As testemunhas esforçaram-se por referir que C... era pessoa abastada.

Mas tal não resultou provado.

Acreditamos - pelas regras da experiência - que C... e mulher, emigrados em França, pintor e empregada doméstica, respetivamente, de profissão, eram pessoas trabalhadoras, ousamos até referir, governadas e ansiosos por criar vasto património, também imobiliário.

E foi isso que fizeram - segundo as testemunhas.

Mas daí, a emprestarem milhares de euros, durante anos (desde 2004 a 2017), aos Executados, não merece a mínima credibilidade.

Relembre-se que os Executados eram “patrões”, tiveram várias empresas, nomeadamente em França, segundo a testemunha M... e, resulta dos autos, terem vasto património imobiliário.

Ademais, C... tem filhos, que, por sua vez, também têm uma família.

Emprestar dinheiro a um primo afastado, sem quaisquer documentos, durante anos?

A filha do Executado, J..., associou o momento da celebração da escritura pública aos problemas de saúde do pai, que recentemente sofreu um AVC.

Já os filhos do Credor Reclamante esforçaram-se por associar o momento da celebração da escritura pública ao decesso da sua mãe e mulher de C...

Ou seja: no essencial as testemunhas referidas tentaram afastar a ideia que a escritura só foi celebrada por causa do processo que o Exequente intentou contra ... e mulher.

Porém, também nesta parte o depoimento dos filhos de Executados e credor Reclamante não mereceu credibilidade.

Em primeiro lugar, por que são contraditórios entre si.

Em segundo lugar por que ..., querendo, porventura, demonstrar ser conhecedor da putativa divida há vários anos, referiu que a mãe, cerca de 5 ou 6 anos antes de falecer, conversou consigo e expressou estar preocupada com a divida de 80 mil euros do ..., com o facto do ... ter problemas económicos e não haver documento a titular a divida.

Ou seja:

A mulher de C... estava preocupada com uma divida de 80 mil euros em 2012/2013;

A mulher de C... estava preocupada com o facto do ... ter problemas económicos em 2012/2013;

E, mesmo assim, C... emprestou mais (pelo menos) 20 mil euros a ...?

Sem fazer qualquer documento a titular a divida?

Nomeadamente uma escritura pública de confissão de divida e acordo de pagamento?

Na realidade, tudo leva a crer que esta escritura só se tornou relevante depois da sentença que conferiu força executiva à decisão proferida pelo Tribunal de Grande Instance de Bobigny e de instaurada a execução apensa aos presentes autos e não por causa dos problemas de saúde do Executado ou do decesso da mulher de C....» (itálico aditado).

O Apelante esgrime que os depoimentos testemunhais aludidos foram coerentes e concordes entre si, explicando, de forma convincente e com conhecimento de causa, a relação de proximidade e confiança que existia entre Reclamante e Executados, bem como as dificuldades financeiras destes e a motivação subjacente ao empréstimo dos dinheiros e à elaboração/outorga da dita escritura pública. Assim, defende que tais depoimentos assumem força bastante para fundar uma convicção positiva quanto à veracidade do conteúdo declarado na mencionada escritura, isto é, que tais depoimentos permitem, com credibilidade, concluir que os empréstimos foram realizados, ascendendo a decorrente dívida ao montante reclamado nos autos.

Apresenta o Recorrente, para tanto e no essencial, a seguinte transcrição dos excertos relevantes da gravação áudio desses convocados depoimentos testemunhais ([13]):

...

Que dizer?

Dir-se-á, desde logo, ser sabido que, por um lado, a Relação deve formar a sua própria convicção relativamente aos factos objeto de impugnação, tendo em conta as provas convocadas, mas, também, por outro lado, que só à 1.ª instância assiste a total imediação perante as provas oralmente produzidas, estando, pois, a Relação em posição de algum desfavor, em termos de imediação, perante essas provas.

Ademais, e também por isso, é líquido que a Relação (apenas) deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto impugnada, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662.º, n.º 1, do NCPCiv.).

A prova testemunhal produzida e convocada respeita, in casu, a familiares muito próximos de algum dos outorgantes na dita escritura de confissão de dívida, estes também familiares entre si: com efeito, das quatro testemunhas aludidas, duas são filhas dos Executados (confitentes e alegados devedores) e outras duas são filhas do Reclamante (beneficiário da confissão e alegado credor).

Assim, trata-se, lógica e invariavelmente, de testemunhas interessadas na questão em discussão, não mostrando, por isso, o necessário distanciamento perante os interesses do caso, antes evidenciando que estamos – em termos de alegação e prova – no âmbito do círculo fechado daquelas duas famílias (a dos Executados/confitentes e a do Reclamante/alegado credor, bem como respetivos descendentes/herdeiros), famílias essas, ademais, com ligação de parentesco, embora já algo afastado, entre si.

Ora, esta proximidade familiar e de interesses – ou mesmo comunhão – logo deixa abalada, de algum modo, a necessária posição de distanciamento e isenção de que carecem as testemunhas para poderem afirmar-se como totalmente convincentes perante o Tribunal.

Daí que pudesse ser relevante a obtenção para os autos de prova testemunhal descomprometida com os interesses daquelas duas famílias, o que não ocorreu, tanto mais que – sublinha-se – inexiste qualquer documento referente às invocadas entregas concretas de dinheiros e respetivos contratos de mútuo/empréstimo.

Por outro lado, nenhuma das testemunhas convocadas mostrou sequer conhecimento preciso das concretas entregas de numerário, em termos de circunstanciar – com riqueza e encadeamento de pormenores, o que permitiria melhor dar crédito probatório aos testemunhos – o tempo, o espaço e o modo de cada entrega e os montantes parcelares entregues, bem como a origem e o destino dos dinheiros respetivos.

Ao invés, as testemunhas aludidas muito pouco mostraram saber, em termos de conhecimento pessoal e direto, sobre tais concretas entregas: ou não presenciaram qualquer entrega, apenas lhes tendo sido dito que as entregas aconteciam, ou apenas assistiram à entrega de alguns envelopes, sem saber, por isso, com o necessário conhecimento pessoal e direto, quando ocorreram as entregas, que montantes continham esses envelopes, se ocorreu ou não restituição do numerário desses visionados envelopes, que concreto acordo foi estabelecido entre quem entregou e quem recebeu, que concreto destino foi dado a esse concreto dinheiro.

Em suma, no fundamental, estes depoimentos apenas reiteram o alegado nos autos por Reclamante e Executados, fundando-se essencialmente no que foi dito por pais a filhos sobre o relacionamento patrimonial entre as duas famílias e sobre a motivação subjacente à tardia outorga da escritura de confissão de dívida e hipoteca, para além de relatarem – aí com conhecimento pessoal e direto – o clima de confiança recíproca e proximidade que, de há muito, existia entre tais famílias e os respetivos elementos, mormente Reclamante e Executados.

Cabe, então, perguntar: bastará, para convencimento do Julgador, num caso como o dos autos, trazer ao processo os filhos, para prestação de testemunho nos moldes aludidos?

Com todo o devido respeito, entendemos – tal como o fez a 1.ª instância – que, no contexto dos autos, aquela prova testemunhal não é suficiente para fundar uma convicção positiva.

Com efeito, na ausência de qualquer documento comprovativo das concretas entregas pretéritas de numerário, impunha-se, obviamente, uma prova testemunhal forte, trazida por testemunhas que, sem qualquer interesse na questão decidenda, com o inerente desprendimento, mostrassem conhecimento pessoal e direto dos factos – ademais longamente reiterados no tempo –, com um relato que evidenciasse riqueza e encadeamento de pormenores, adesão à realidade, com corroboração por elementos objetivos credíveis, e sentido persuasivo, de molde a não deixar dúvidas em quem tem a função de julgar, isto é, no quando da sindicância recursiva da decisão de facto, em termos de determinar/“impor” decisão diversa.

Não tendo o Apelante logrado alcançar tal objetivo, a convicção da Relação terá de ser conforme à da 1.ª instância, não podendo, pois, este Tribunal ad quem ficar convencido da realidade dos alegados empréstimos, ao longo de um tão extenso período temporal, e com tão elevado montante global disponibilizado, sem existência de um único documento de suporte ou garantia, sem passagem palpável pelo circuito bancário ([14]) e sem que as partes alguma vez com isso mostrassem qualquer preocupação, a não ser através da tardia (face a tão alargado tempo de perduração da invocada dívida, por cerca de 13 anos) confissão escritural de dívida (esta datada de 30/08/2019), já no enfiamento da ação executiva do aqui Exequente (esta, por sua vez, intentada em 29/07/2019, como resulta da certidão de fls. 134 a 138 v.º e 140 e segs. do processo físico), sendo, por seu lado, a decisão judicial que atribuiu força executória à sentença proferida por Tribunal de França (sentença estrangeira de 12/02/2008, do Tribunal de Grande Instância de Bobigny, através da qual os aqui Executados foram condenados a pagar ao aqui Exequente a quantia objeto de execução) datada de 09/04/2019 (cfr. fls. 144 e v.º do processo físico) ([15]).

Assim, após longuíssima letargia do alegado credor (ora Reclamante/Apelante), a escritura de confissão de dívida com hipoteca ocorre logo a jusante da atribuição de força executória à sentença condenatória estrangeira e decorrente instauração da ação executiva pela parte aqui exequente/apelada contra os Executados (ali confitentes), sendo notório que tal confissão de dívida e hipoteca – esta a incidir sobre sete imóveis – faz perigar a posição do credor Exequente ([16]).

De nada servindo, nesta perspetiva, a invocação, em acréscimo, da «demais prova documental junta aos autos» (cfr. conclusão 6.ª do Apelante), designadamente «certidões de registo predial», sendo que estas também não permitem afastar o perigo para a posição do credor (Exequente), ainda que a penhora seja, como alegado, posterior à hipoteca (cfr. conclusões 11.ª e 14.ª).

Com efeito, é ancorado na anterioridade da hipoteca que o Reclamante/Apelante pretende uma graduação prioritária sobre o produto dos bens penhorados, com o inerente prejuízo para a parte exequente, não sendo líquido, até ante as invocadas dificuldades económicas dos devedores (Executados), que haja remanescentes bens que permitam a satisfação do crédito exequendo.

Por outro lado, a invocada circunstância de os Executados somente terem sido citados para a execução após a celebração da escritura (cfr. conclusão 10.ª) é bem compreensível por a execução se ter iniciado pela penhora – só após esta se tendo procedido à citação –, tendo sido algo numerosas e demoradas as diligências do Agente de Execução tendentes à penhora de bens, o que não desmente que a execução tenha sido intentada em 29/07/2019 e só depois, em 30/08/2019, tenha sido celebrada a escritura pública de confissão de dívida e hipoteca ([17]).

Termos em que não pode colher a impugnação da decisão da matéria de facto, visto não se demonstrar qualquer erro de julgamento nesse âmbito, improcedendo, então, as conclusões do Apelante em contrário e tornando-se definitivo o quadro fáctico – o julgado provado e o não provado – constante da decisão em crise, só a esse, por isso, devendo atender-se para o julgamento da matéria recursiva de direito.

  C) O Direito

Da decisão da causa segundo as regras de repartição do ónus da prova

Por provar ficou na causa a existência dos invocados empréstimos, no montante global de €100.000,00, de que seria credor o Reclamante sobre os Executados – persistem como não provados, apesar da impugnação empreendida (mas decaída), os ditos pontos i, ii e iii do quadro fáctico julgado não apurado da sentença –, tal como ficou por provar o seu contrário, isto é, a inexistência de tais empréstimos e os requisitos da simulação absoluta (cfr. pontos iv e v não provados).

É certo que é o Reclamante/Apelante que se apresenta como credor, pretendendo exercer um seu direito em sede de reclamação de créditos (satisfação creditória através da execução intentada pela Exequente/Reclamada), pelo que lhe cabe, segundo as regras de repartição do ónus da prova, a alegação e prova dos factos constitutivos do direito creditício alegado (citado art.º 342.º, n.º 1, do CCiv.).

Para tanto, teria de demonstrar a invocada relação contratual de mútuo, com o consequente dever dos mutuários de restituição das quantias mutuadas.

É certo que também a contraparte não logrou demonstrar a matéria de exceção que alegara (inexistência dos empréstimos/mútuos, que mais não traduziriam que um exercício de simulação absoluta).

Mas o que realmente importa para o desfecho da causa é se o credor, o aqui Reclamante, logra, ou não, demonstrar ser titular do crédito reclamado, independentemente da dita matéria de exceção, pois que, se não demonstra a existência do seu reclamado crédito, a reclamação tem fatalmente de improceder.

Cabia, assim, ao Reclamante o ónus de convencer da efetiva entrega das quantias pecuniárias mencionadas – relação contratual de mútuo (art.ºs 1142.º e segs. do CCiv.) –, perfazendo o montante global reclamado, como condição da perfeição da declaração negocial em contratos configuráveis como reais quoad constitutionem ([18]), como, aliás, lembrou, de algum modo e no essencial, a decisão recorrida.

Ora, atendendo à factualidade apurada nestes autos, claro se torna, salvo o devido respeito, que tal ónus não se mostra cumprido, já que mereceram resposta negativa os pontos fácticos aludidos (os objeto de impugnação recursiva), resultando não provado que o pretenso credor Reclamante tivesse entregue aos devedores/Executados a quantia pecuniária alegadamente integrante do crédito hipotecário reclamado na execução.

Donde que deva improceder, sem necessidade de outras considerações, a apelação, confirmando-se, pois, a decisão recorrida e, assim, decaindo toda a argumentação do Recorrente em contrário.

IV – Sumário (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

1. - É suscetível de força probatória plena a confissão extrajudicial de dívida, na qual se alude a empréstimos anteriormente concedidos, em determinado montante global, confissão essa exarada em documento autêntico (escritura pública), no âmbito da relação entre os outorgantes (confitente/devedor e beneficiário/credor), de acordo com o disposto no art.º 358.º, n.º 2, do CCiv..

2. - Porém, não pode invocar-se perante terceiros, cujos direitos resultariam abalados pelo teor de tal declaração confessória, o valor de prova plena dessa confissão extrajudicial, em termos de vedar ao terceiro a impugnação, por qualquer meio probatório admitido em direito, da validade ou veracidade do reconhecimento confessório.

3. - Em reclamação de créditos baseada em confissão extrajudicial de dívida, tendo esta subjacente diversos empréstimos do reclamante ao executado, e sendo o exequente/reclamado terceiro face a tal confissão, cabe ao reclamante o ónus da alegação e prova da existência do crédito reclamado.

4. - Para o que tem de convencer da efetiva entrega das quantias pecuniárias – relação contratual de mútuo –, perfazendo o montante global reclamado, como condição da perfeição da declaração negocial, em contratos configuráveis como reais quoad constitutionem.

5. - Não se provando, em tal caso, se esses empréstimos existiram ou não, a reclamação de créditos improcede.  

V – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, manter incólume a decisão recorrida.

Custas da apelação e na 1.ª instância a cargo do Reclamante/Apelante.

Coimbra, 07/09/2021

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas e em teletrabalho.

Vítor Amaral (relator)

Luís Cravo

Fernando Monteiro


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([1]) Segue-se, no essencial, por razões de celeridade processual e economia de meios, o que consta do relatório da decisão recorrida.
([2]) Que se deixam transcritas, com destaques retirados.
([3]) Subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
([4]) Excetuadas, naturalmente, questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([5]) É pacífico que, de acordo com o disposto no art.º 371.º, n.º 1, do CCiv., a cobertura da força probatória plena dos documentos autênticos apenas releva quanto ao que o notário leu e explicou, ao que os outorgantes disseram perante ele (e ele afirmou que tal foi dito), mas não resultará provado que sejam verdadeiras as afirmações feitas pelos outorgantes, ou que não estejam viciadas por erro, dolo ou coação, nem que o ato não seja simulado – cfr., por todos, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987, págs. 327-328.
([6]) Os outorgantes logo se encarregaram de declarar, em sede de escritura pública, que os empréstimos confessados eram coisa do passado, por anteriormente feitos (entre 2004 e 2017, quando a escritura pública confessória foi outorgada em 2019).
([7]) Veja-se o sumário do Ac. STJ, de 31/05/2011, Proc. 4716/10.5TBMTS-A.S1 (Cons. Salazar Casanova), em www.dgsi.pt, segundo o qual “Tem força probatória plena a confissão extrajudicial de dívida, na qual se alude ao empréstimo que foi concedido em determinado montante, confissão essa exarada em documento autêntico (escritura pública) em que outorgaram o ora exequente, destinatário da confissão (art. 358.º, n.º 2, do CC) e os executados, documento que constitui título exequível de harmonia com o disposto no art. 46.º, n.º 1, al. b), do CPC.”.
([8]) Cfr. sumário do Ac. STJ, de 12/01/2012, Proc. 6933/04.8YYLSB-C.L1.S1 (Cons. Lopes do Rego), em www.dgsi.pt.
([9]) Para logo se acrescentar e concluir: “Ora, na concreta situação litigiosa, situada no âmbito de um procedimento de reclamação de créditos, a declaração confessória do mutuário não foi naturalmente feita ao credor exequente, mas antes ao próprio mutuante, não podendo, consequentemente, este prevalecer-se da referida força probatória plena no confronto de um outro credor comum do mutuário, com vista a destruir a eficácia da penhora por ele conseguida na sua própria execução. // Em suma: a declaração confessória, constante de escritura pública em que intervieram mutuante e mutuário, não faz prova plena relativamente a terceiros cujos direitos possam ser abalados pelo teor do reconhecimento confessório, em termos de lhes precludir a utilização de todo e qualquer meio de prova, admitido em direito, para convencer da invalidade ou inveracidade do reconhecimento confessório que, porventura, conste da escritura” (itálico aditado).
([10]) Cfr. Ac. cit. do STJ (Cons. Lopes do Rego).
([11]) Veja-se que os invocados devedores vieram dizer que os empréstimos «foram maioritariamente efetuados em numerário, em diversas parcelas, ao longo do período mencionado na Escritura (…); alguns terão sido por cheques, cuja cópia ou comprovativo não logrou obter atendendo o tempo já decorrido.» (cfr. tomada de posição de fls. 43 do processo físico). No mesmo tom, veio o invocado credor (Reclamante) afirmar que nunca exigiu «qualquer documento formal das quantias emprestadas», apesar do referido «valor global», escudando-se na também mencionada «relação de confiança» com os Executados e na «expectativa de que (…) pagassem», tendo aquele valor sido «entregue em numerário (…) e alguns cheques, dos quais nunca ficou com cópia», encontrando-se atualmente na «impossibilidade de obter os respetivos comprovativos e aqui juntá-los» (cfr. fls. 45 do processo físico).
([12]) Vide o mesmo Ac. do STJ, cujo caminho também é seguido, no essencial, pela decisão recorrida, já que desta consta, em modo conclusivo, na fundamentação de direito, que competia ao credor Reclamante o ónus de alegar e provar os factos constitutivos do direito de crédito que vem reclamar.
([13]) Podendo, sem dificuldade, acreditar-se que houvesse relacionamento de proximidade e confiança, o que, a mais disso, importa saber, fundamentalmente (em termos de formação da convicção do Julgador), é acerca da realidade dos concretos empréstimos aludidos – seus montantes, datas, modos de entrega –, até perfazer o dito valor global, este vertido na escritura em discussão.
([14]) As invocadas entregas em numerário, sem sombra visível de documentos (os referentes às múltiplas entregas parcelares) ou de recurso ao sistema bancário, o que nos tempos que correm – a não ser que razões ponderosas em contrário o imponham, as quais não transpareceram nos autos – é coisa assaz rara ou mesmo estranha, como tal de difícil compreensão para o homem comum atual (não se perceciona bem a vantagem da entrega por meio de notas em «envelopes», em vez de, por exemplo, por transferência bancária, sendo que nada foi junto/comprovado quanto a entrega de quaisquer cheques), têm o efeito prático de impedir, na sindicância probatória, que se saiba de onde retirou o alegado mutuante as quantias mutuadas e para onde as canalizaram os supostos mutuários, subtraindo, desse modo, ao controlo do Julgador, na tarefa de aferição da sua existência, o percurso dos dinheiros mencionados (se as importâncias pecuniárias, em vez de serem uma miragem, existiram e foram emprestadas, teriam de ter um percurso, que pudesse ser estabelecido/acompanhado, o que seria deveras relevante, pelo seu caráter objetivo, para esclarecimento dos factos num caso como o dos autos).
([15]) Estes dados foram também confirmados pelo Tribunal de recurso mediante consulta dos autos executivos, após autorização para acompanhamento dos mesmos na sua versão eletrónica, através do sistema Citius.
([16]) Defende o Reclamante que goza de garantia real hipotecária, “constituída sobre os imóveis penhorados e registada”, e que deve, por isso, o seu reclamado crédito “ser graduado preferencialmente em relação ao crédito da exequente” (cfr. art.ºs 14.º a 17.º do deduzido articulado de reclamação de crédito).
([17]) Municiando o aqui Reclamante para poder suplantar, no plano executivo, mediante reclamação de crédito, a parte exequente, perante a anterioridade da garantia hipotecária em face da penhora (sobre os mesmos bens), horizonte em que «as regras da experiência» (cfr. conclusão 14.ª) também não abonariam a favor da tese do Recorrente (e dos Executados, irmanados com aquele na versão trazida aos autos), antes apontando no sentido contrário, posto não ser plausível (nem credível) que, durante um tão longo lapso temporal, alguém emprestasse reiteradamente um tão elevado montante global sem se munir de qualquer comprovativo/prova e/ou garantia, à margem da esfera bancária, com entregas em numerário, para que o devedor apenas pagasse quando pudesse (sem qualquer pressão ou constrangimento, numa lógica de confiança familiar), deixando correr/rolar, assim, a dívida durante mais de uma década, para, só depois de intentada a execução pelo credor/exequente, vir então, de forma expedita, outorgar escritura de confissão de dívida e hipoteca, com o efeito prático (e jurídico) de relegar o Exequente, em termos de concurso, para a subalternidade creditória, vista a condição de desvantagem temporal da penhora no confronto com o pronto registo da hipoteca (invocado registo definitivo desta garantia com data de 02/09/2019, como consta do art.º 7.º do articulado de reclamação).
([18]) É conhecida a distinção entre contratos reais quoad constitutionem e contratos consensuais quoad constitutionem. O contrato real quoad constitutionem é aquele em que se exige, para além das declarações de vontade dos contraentes, um determinado ato material, de prática anterior ou simultânea. Diversamente, os contratos consensuais quoad constitutionem ficam perfeitos (i. é, celebrados/concluídos) com as meras declarações de vontade das partes, independentemente de qualquer ato material de que dependesse a sua validade – a sua finalidade atinge-se, pois, pela simples verificação do acordo, independentemente de qualquer ato material.