Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
50/16.5T8GVA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: CHEQUE
TÍTULO CAMBIÁRIO
RELAÇÕES MEDIATAS
RELAÇÕES IMEDIATAS
Data do Acordão: 11/21/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA – JUÍZO COMP. GENÉRICA DE GOUVEIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1º E 22º DA LUCH; ARTº 17.º DA L.U.L.L.
Sumário: I – De acordo com a definição que nos é dada pelo art.º 1º da LUCh, o cheque é uma ordem escrita sobre um banco para que pague ao emitente ou à pessoa inscrita como último beneficiário uma certa importância em dinheiro, com base em fundos disponíveis para o efeito, que contém o mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada, o nome da pessoa a quem ou à ordem de quem deve ser paga, a assinatura de quem a passa e a indicação da data em que e o lugar onde é passada.

II - Assim, o direito de crédito cambiário está consubstanciado no docu­mento, o conteúdo da obrigação cambiária é o que ele revela e é independente da respectiva causa debendi.

III - Os princípios da literalidade e da abstracção são instrumentais em relação à independência do direito cambiário face à causa que esteve na origem da sua constituição.

IV - No entanto, a plena relevância das aludidas características da literalidade e abstracção depende do cheque entrar em circulação, ou seja, de passar à titularidade de terceiros.

V - Deste modo, é de todo o interesse, nas relações cambiárias distinguir-se entre as imediatas, que se estabelecem entre os sujeitos seus intervenientes directos, sem intermediação de outrem, como é o caso, por exemplo, do sacador e do acei­tante, e as mediatas, em que o portador é estranho às relações extracartulares, o que ocorre quando os cheques são endossadas a um terceiro, que, por via desse endosso, passa a integrar a cadeia de sujeitos cambiários.

VI - A inoponibilidade das excepções causais a terceiros não reside na abstracção dos títulos de crédito, fundamento que não explicaria a possibilidade dessa defesa já poder valer nas relações imediatas, antes tendo explicação no princípio res inter alii neque nocere neque processe potest.

VII – Diz-se que o cheque está no domínio das relações mediatas quando o portador é uma pessoa estranha à convenção extracartular subjacente.

VIII - Ora, no presente caso, apesar do cheque ter sido emitido pelo devedor a favor de terceira pessoa que o endossou à exequente, a relação subjacente à sua emissão tem como sujeitos precisamente o devedor e a sua atual portadora, pelo que esta não é uma pessoa estranha à relação extracartular, não tendo aqui aplicação o princípio res inter alios acta, não havendo por isso qualquer razão que justifique a existência do impedimento previsto no art.º 22º da LUCh.

IX - Se o cheque dado à execução foi emitido para pagamento de parte do preço acordado num contrato de empreitada celebrado entre a exequente e o executado, não há qualquer justificação para que o executado - o sacador do cheque - não possa opor à exequente – a actual portadora do cheque - defesa com base nas relações estabelecidas pelo contrato de empreitada, uma vez que esta não é estranha a essas relações, pelo que não tem aqui aplicação o disposto no art.º 22º da LUCh.

Decisão Texto Integral:








Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
Por apenso à execução que lhe moveu T..., L.da o executado deduziu oposição à execução mediante a dedução de embargos, visando com a procedência dos mesmos a extinção da execução.
Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese:
- que a embargada não é parte legítima nos presentes autos, porquanto não tem fundamento para a detenção do cheque, já que o mesmo não foi objecto de endosso válido.
- Defendendo que lhe é possível discutir a relação material/causal para além da relação cambiária, invoca a excepção do não cumprimento do contrato de empreitada subjacente.
A embargada apresentou contestação, defendendo a improcedência dos embargos.
Veio a ser proferida sentença que julgou os embargos nos seguintes termos:
Pelo exposto julgo improcedente, por não provada, a excepção da ilegitimidade, e julgo procedente a excepção de não cumprimento do contrato e, consequentemente, totalmente procedentes os presentes embargos, determinando a extinção da execução.
A Embargada interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
...
O Embargado apresentou resposta, defendendo a rejeição do recurso na parte respeitante à impugnação da matéria de facto e a sua improcedência.
1. Do objecto do recurso
A recorrente impugna a decisão da matéria de facto pretendendo que, quanto àquela que indica, a mesma seja reapreciada por este tribunal. O Embargante defende a rejeição do recurso na parte respeitante à impugnação da matéria de facto, alegando que o recorrente não cumpriu o ónus que lhe é imposto pelo art.º 640º do C. P. Civil, não indicando com exactidão as passagens da gravação de cada um dos depoimentos que pretende ver reapreciados.
É de todos sabida a divergência de posição existente, quanto a esta matéria entre a jurisprudência maioritária dos tribunais da relação e do Supremo Tribunal de Justiça, tribunal este que tem um entendimento muito permissivo no que cumpre ao cumprimento do ónus em causa. Atendendo a esta posição e, estando em causa unicamente dois depoimentos, admite-se o recurso da impugnação da matéria de facto.
Assim, considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas, cumpre apreciar as seguintes questões:
a) A sentença é nula?
c) O facto provado em L e o não provado em 1. são  contraditórios?
c) Deve ser aditado aos factos provados o nº 3 da cláusula 5ª do contrato de empreitada?
d) Os factos julgados não provados sob os n.º 12, 13 e 15 devem ser julgados provados?
e) Os factos julgados provados em R, S, T e U não devem ser julgados provados?
f) Atenta a posição de Embargante e Embargado no cheque dado à execução não é admissível oposição a esta com fundamento da relação subjacente?
2. Da nulidade da sentença
Os presentes embargos foram deduzidos à execução movida ao agora Embargante, servindo como título um cheque sacado sobre o Banco B..., S. A., emitido por V... a favor de M..., S. A., constando do verso do mesmo dois carimbos com a menções “M..., S. A. - A Administração” e um carimbo com a menção “ Devolvido na Compensação do Banco de Portugal – Lx, 18 Fev 2014 Por cheque revogado por justa causa de extravio”, alegando a Exequente no requerimento executivo que recebeu o mesmo por endosso devido a movimentos financeiros entre empresas do grupo.
O Embargante pugnou pela ilegitimidade da Embargada para a execução, atenta a irregularidade do endosso do cheque dado à execução, alegando que foi o contrato entre ambas celebrado que justificou a emissão do aludido cheque, contrato esse que aquela incumpriu, cansando-lhe prejuízos, concluindo pela verificação da excepção do não cumprimento e consequente extinção da execução.
Por sua vez a Embargada na contestação defendeu a regularidade do endosso, defendendo que não tendo intervindo na relação subjacente à emissão do cheque não pode a mesma ser invocada como fundamento dos embargos, aceitando que o contrato invocado foi cumprido para além do prazo convencionado, justificando este facto com alterações da obra inicialmente prevista.
Na decisão sob recurso o endosso foi julgado regular, admitindo-se a discussão da relação subjacente por se considerar a Exequente terceiro de má-fé, sendo os embargos julgados procedentes devido ao incumprimento contratual da Embargada, com fundamento em que o título dado à execução se destinava a garantir o cumprimento de um contrato celebrado entre ambas pese embora o cheque tenha sido emitido a favor de uma outra sociedade.
A esta decisão imputa a recorrente o vício da nulidade a que alude o art.º 615º, n.º 1, b) e d), do C. P. Civil, porquanto sem qualquer fundamento conclui que sendo a tomadora do cheque uma empresa do seu grupo, que nenhuma relação comercial teve com o Embargante só se explicando a emissão do cheque a seu favor pelo intuito de o prejudicar.
Alega ainda que o Embargante não põe em causa a emissão do cheque a favor da tomadora que dele consta.
Dispõe o art.º 615, n.º 1:
É nula a sentença quando:
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conhecer de questões de que não podia tomar conhecimento.
Quanto à primeira das causas de nulidade invocada diremos que a mesma não se verifica.
A nulidade da falta de fundamentação de facto e de direito está relacionada com o comando do art.º 607º, n.º 2º, nº 2, do C. P. C. que impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes.
Como é entendimento pacífico da doutrina, só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade prevista na al. b) do nº 1 do artigo citado.
A fundamentação deficiente, medíocre ou errada afecta o valor da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.
No caso em apreço o juiz fundamentou a sua decisão, pelo que independentemente do seu acerto conclui-se que não se verifica esta causa de nulidade.
Invoca ainda a Embargada o excesso de pronúncia, defendendo que o Embargado nunca colocou em causa a emissão do cheque a favor da tomadora que dele consta.
O art.º 608º, n.º 2, do C. P. Civil, determina que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excep­tuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
A nulidade prevista na alínea d), do nº 1, do artigo 615º, do C. P. C. – quando o Juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento – verifica-se quando o Juiz deixe de tomar posição sobre todas as causas de pedir invocadas na petição, sobre todos os pedidos formulados e mesmo sobre as excepções suscitadas ou de conhecimento oficioso, isto sem prejuízo do conhecimento de alguma delas prejudi­car a apreciação das restantes – artigo 660º, nº 2, do C. P. C.
Da conjugação das normas citadas o juiz deve pronunciar-se sobre todas as questões que sejam submetidas à sua apreciação, mas está, naturalmente, impe­dido de se pronunciar sobre questões não submetidas ao seu conhecimento: no primeiro caso – se não se pronunciar sobre todas as questões – existirá uma omissão de pronúncia, no segundo caso – conhecer de questões não submetidas à sua apre­ciação – ocorrerá um excesso de pronúncia.
Neste caso, o Embargado nunca colocou em causa a emissão do cheque a favor da endossante, tendo no entanto alegado na petição de embargos:
8º - Não obstante a literalidade e abstracção do cheque enquanto título executivo, é lícito e permitido às partes, no domínio das relações mediatas, discutir e demonstrar a relação ou negócio subjacente à emissão de tal título.
9º - O cheque em causa representa a última prestação do pagamento do preço de um contrato de empreitada ajustado entre exequente e executado.
Daqui é permitida a conclusão que o embargante defende que, mesmo encontrando-se nas relações mediatas com o sacador do cheque, face ao que do título consta pode opor-lhe as eventuais vicissitudes do contrato de empreitada que se estabeleceram entre o Exequente e o sacador, uma vez que a emissão do cheque teve como fundamento uma parte do pagamento do preço desse contrato.
Na decisão em apreciação, era pois lícito ao juiz conhecer da possibilidade de uso deste fundamento de oposição à execução, estando exequente e executado nas relações cambiárias mediatas, pese embora sejam os sujeitos da relação jurídica subjacente à emissão do cheque. Da leitura da mesma e, pese embora, seja referenciado o art.º 22º da LUCh, o certo é que não podemos concluir que foi com fundamento da aquisição do cheque pelo exequente ter sido efectuada conscientemente em detrimento do devedor – matéria efectivamente não alegada – ou com fundamento no abuso de direito, uma vez que da sua fundamentação também consta: a conduta da embargada chega a ser abusiva e fere elementar sentido de justiça e de inteligência do cidadão comum e das regras de direito.
Não sendo claros os fundamentos subjacentes à admissão da discussão da relação subjacente nas relações entre portador e sacador, temos que concluir que não se verifica a nulidade de excesso de pronúncia uma vez que essa questão foi suscitada pelo próprio executado.
2. Dos factos
...
Os factos provados são:
A. O cheque do Banco B..., S.A., apresentado como título executivo, tem o número ... e número de conta ..., nele constando a assinatura “V...”, a quantia de “EUROS 7.777,78”, a data de “2014-02-14” e “à ordem de M..., S.A.” – documento de folhas 07 dos autos principais, cujo teor se dá integralmente por reproduzido;
B. No verso do documento em apreço figuram dois carimbos com as menções “M..., S.A.-  A Administração” e um carimbo com a menção “Devolvido na Compensação do Banco de Portugal – Lx, 18 FEV 2014 Por cheque revogado por justa causa extravio” – documento de 07 verso dos autos principais, cujo teor se dá integralmente por reproduzido;
C. O cheque acima mencionado foi entregue pelo embargante à M..., S.A., uma empresa do grupo da embargada;
D. No documento denominado “contrato de empreitada de obras de construção civil 28/2012”, datado de 06 de Setembro de 2012, figura como primeiro outorgante o embargante e como segunda outorgante a embargada, aí se fazendo constar que
1.ª Disposições Iniciais (…)
 N.º 3d – Após a aprovação do projecto de especialidades pela entidade …

5ª Prazos de execução
N.º 1 – O empreiteiro obriga-se a concluir a construção que lhe é adjudicada pelo presente contrato, nos termos acordados antes, no prazo global de 6 (seis) meses a contar da data do início dos trabalhos, que se presume terem início dentro de trinta dias após a disponibilidade e o levantamento da licença de construção em concordância com o antecedente 3.d.
N.º 2 – Fica expressamente entendido e acordado entre as partes que o cumprimento dos prazos de execução da empreitada constitui condição essencial do presente contrato e que o eventual não cumprimento terá como consequência para o empreiteiro, o pagamento das seguintes multas diárias, ao dono da obra:
a) Um por mil (1/1000) do valor da empreitada nos primeiros trinta dias após o termo do referido prazo;
b) Em cada período subsequente de trinta dias até um máximo de sessenta dias, a indicada multa diária sofrerá um aumento de zero vírgula cinco por mil (0,5/1000) até atingir o máximo de dois por mil (2/1000), se o atraso na conclusão da obra durar mais de sessenta dias seguidos
N.º 3 O dono da obra e o empreiteiro deverão acordar numa prorrogação do prazo de execução da empreitada na eventualidade de se executarem qualquer tipo de trabalhos a mais, não previstos nos projectos e demais peças que instruem ou processo de construção ou alteração de materiais. - documento 01 junto com petição de embargos, cujo teor se dá integralmente por reproduzido;
E. O cheque acima mencionado representa a última prestação do pagamento do preço de um contrato de empreitada referido;
F. Esse contrato tinha por objecto a concepção dos projectos de arquitectura e especialidades e a construção de uma moradia unifamiliar em Gouveia;
G. A embargada foi a prestadora desse serviço e da respectiva empreitada, figurando no contrato como empreiteira;
H. O embargante foi e é o dono da obra;
I. O preço estipulado foi de € 129.629,63, acrescido de I.V.A. à taxa de 23%;
J. Esse valor ficou de ser pago em prestações de valor e momento temporal coincidentes com a assinatura do contrato, o início da construção, a colocação de caixilharias, o assentamento de carpintarias e a recepção da obra;
K. O alvará de construção foi levantado na Câmara Municipal e entregue à embargante em 08 de Abril de 2013 e a obra foi iniciada no dia 15 de Abril seguinte;
L. Em 01/08/2013, o embargante fez saber à embargada, em carta que lhe remeteu nessa data, que ao ritmo que os trabalhos ocorriam e em face das interrupções injustificadas de, já na altura, de três semanas e meia, não era previsível que a obra ficasse concluída no prazo contratado;
M. A embargada continuou a executar os trabalhos de acordo com outras empreitadas suas, reincidindo nos abandonos temporários da obra;
N. Por carta de 29/01/2014, o embargante advertiu a embargada que em 03/12/2013 ainda não estavam colocados os aparelhos de ar condicionado e o painel solar, que já havia terminado o prazo da licença de obras e que ainda não lhe tido sido entregues os certificados energético e de conformidade acústica, necessários para que a Câmara emitisse a licença de habitabilidade;
O. Nessa mesma carta, o embargante logo informou que iria cancelar os últimos dois cheques pré datados que, muito tempo antes, já havia entregue para pagamento da obra;
P. O embargante recebeu da embargada uma carta, datada de 10/10/2014, na qual pedia o valor do cheque dado à execução e respectivos juros, aí se podendo ler, além do mais, “A T..., Lda. vem por este meio informar V. Exªs que se encontra por pagar o montante de € 8.824,59, a que acrescem € 442,00 de juros vencidos até ao presente, estando € 7777,78 titulado por cheque nº ..., sacado por V. Exº, sobre o Banco B..., devolvido por indicação de “extravio”. Aquela indicação é falsa, porque o cheque foi entregue por V. Exª à n/ empresa e foi por ela apresentada a pagamento no Banco sacado” – documento 4 junto com a petição de embargos, folhas 12 verso, cujo teor se dá integralmente por reproduzido;
Q. A essa carta da embargada, o embargante respondeu com uma outra carta de 17/10/2014, em que reforçava o dever daquela em pagar a sanção contratada para o atraso verificado na conclusão e entrega da obra, solicitando, então, o pagamento de € 20.592.23, aí se podendo ler que “(…) Em relação à ultima carta recebida, é nossa convicção, e do nosso aconselhamento legal, que todos os contratos assinados devem ser respeitados e cumpridos na íntegra, pelo que estamos receptivos a cumprir a nossa parte após vermos cumprida a vossa que diz respeito aos quatro meses (desde o dia 15 de Outubro) de atraso em relação ao contratado – Direito a receber o pagamento da multa diária devido a atraso nos prazos de execução do contrato assinado entre as duas partes (…)” – documento 5 da petição de embargos, folhas 13 e verso, cujo teor se dá integralmente por reproduzido;
R. O embargante foi obrigada a fazer um outro talude no seu terreno mais recuado que aquele que originariamente a embargada executou;
S. Isto porque esse talude feito pela embargada ficou muito próximo da casa;
T. O embargante foi também obrigado a altear o muro de suporte de terras adjacente à estrada;
U. Como a construção da casa do executado foi financiada por um empréstimo bancário e como a última tranche ou prestação desse empréstimo só poderia ser e só foi libertada pelo Banco 4 meses após a data prevista, com a apresentação obrigatória da licença de habitabilidade, esta dilação imputável à exequente e ao atraso na conclusão dos trabalhos, obrigou o executado a pagar juros que não pagaria no valor de €1.500,78;
V. No decurso da obra foi pedida à embargada a realização de trabalhos não previstos inicialmente, como seja, a construção e fornecimento de móvel despenseiro na cozinha.
4. Da admissibilidade do fundamento de oposição
A Recorrente coloca em crise que a defesa usada pelo Executado como fundamento dos embargos deduzidos seja admissível atenta a posição que ambos detêm no cheque dado à execução.
A oposição à execução é uma fase eventual da acção executiva que assume a estrutura de acção declarativa do tipo de contra-acção tendente a obstar aos efeitos da execução por via da afectação dos efeitos normais do título executivo, em que o executado pode invocar factos de impugnação e/ou de excepção.
Na acção executiva a que foi deduzida esta oposição o título é um cheque, em que o exequente figura como portador em consequência de endosso e o executado como sacador.
De acordo com a definição que nos é dada pelo art.º 1º da LUCh, o cheque é uma ordem escrita sobre um banco para que pague ao emitente ou à pessoa inscrita como último beneficiário uma certa importância em dinheiro, com base em fundos disponíveis para o efeito, que contém o mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada, o nome da pessoa a quem ou à ordem de quem deve ser paga, a assinatura de quem a passa e a indicação da data em que e o lugar onde é passada.
É um título de crédito à ordem, de natureza formal, pelo qual uma pessoa se compromete, para com outra, a pagar-lhe determinada importância, em certa data e é envolvido, sob a motivação de facilitar a sua circulação como tal e de salvaguar­dar os interesses de terceiros de boa-fé, das características da incorporação, da literalidade, da abstracção, da independência recíproca das obrigações nele assumi­das e da autonomia do direito do portador.
Assim, o direito de crédito cambiário está consubstanciado no docu­mento, o conteúdo da obrigação cambiária é o que ele revela e é independente da respectiva causa debendi.
Os princípios da literalidade e da abstracção são instrumentais em relação à independência do direito cambiário face à causa que esteve na origem da sua constituição.
Por via da relação jurídica cambiária decorrente do cheque que à execução serve de título executivo, está o sacador/embargante, em princípio, juridicamente vinculado a pagar ao exequente a quantia exequenda.
No entanto, a plena relevância das aludidas características da literalidade e abstracção depende do cheque entrar em circulação, ou seja, de passar à titularidade de terceiros.
Deste modo, é de todo o interesse, nas relações cambiárias distinguir-se entre as imediatas, que se estabelecem entre os sujeitos seus intervenientes directos, sem intermediação de outrem, como é o caso, por exemplo, do sacador e do acei­tante, e as mediatas, em que o portador é estranho às relações extracartulares, o que ocorre quando os cheques são endossadas a um terceiro, que, por via desse endosso, passa a integrar a cadeia de sujeitos cambiários.
O cheque em causa está emitido a favor de pessoa diversa do exe­quente que é o seu portador e pelo executado na posição jurídica de sacador, pelo que não estamos no plano das relações imediatas, não podendo, em princípio discutir-se, nesta fase declarativa de oposição à execução, a origem da constituição da obrigação jurídica cambiária, por via da análise do conteúdo da respectiva relação jurídica subjacente, conforme resulta do art.º 22º da LUch, que não permite à pessoa accionada em virtude de um cheque que nas relações mediatas possa opor ao portador as excepções fundadas sobre as relações pessoais delas consigo ou com portadores anteriores a não ser quando o portador ao adquirir o cheque tiver procedido conscientemente em detrimento do devedor.
Dos factos que resultaram provados resulta inequívoco que a Recorrente e Recorrido não se encontram nas relações imediatas.
O art.º 22º da LUCh reproduz o disposto no artigo 17.º da L.U.L.L. para as letras e livranças.
A inoponibilidade das excepções causais a terceiros não reside na abstracção dos títulos de crédito, fundamento que não explicaria a possibilidade dessa defesa já poder valer nas relações imediatas, antes tendo explicação no princípio res inter alii neque nocere neque processe potest [1].
Na verdade, conforme dispõe o art.º 406º do C. Civil, quando a relação obrigacional tem na sua origem um contrato, em regra o negócio não têm eficácia externa, só produzindo efeitos relativamente a terceiros nos casos previstos na lei.
Ora, quer o referido art.º 17º da LULL, quer o art.º 22º da LUCh, reforçam aquela regra geral nos títulos de crédito, supondo, tipicamente, situações geradas pela circulação do título, em cujo contexto se reafirma a impossibilidade de o devedor-demandado se defender, invocando excepções emergentes da relação causal da emissão do título às quais o credor-demandante é alheio.
Daí que se diga que o cheque está no domínio das relações mediatas quando o portador é uma pessoa estranha à convenção extracartular subjacente [2].
Ora, no presente caso, apesar do cheque ter sido emitido pelo devedor a favor de terceira pessoa que o endossou à exequente, a relação subjacente à sua emissão tem como sujeitos precisamente o devedor e a sua atual portadora, pelo que esta não é uma pessoa estranha à relação extracartular, não tendo aqui aplicação o princípio res inter alios acta, não havendo por isso qualquer razão que justifique a existência do impedimento previsto no art.º 22º da LUCh.
Se o cheque dado à execução foi emitido para pagamento de parte do preço acordado num contrato de empreitada celebrado entre a exequente e o executado, não há qualquer justificação para que o executado - o sacador do cheque - não possa opor à exequente – a actual portadora do cheque - defesa com base nas relações estabelecidas pelo contrato de empreitada, uma vez que esta não é estranha a essas relações, pelo que não tem aqui aplicação o disposto no art.º 22º da LUCh, conforma decidiu a sentença recorrida, embora com diferentes fundamentos.
Por esta razão improcede este fundamento do recurso.
Considerando que o objecto do presente recurso tinha, para além das questões acima decididas e que não obtiveram provimento, como único funda­mento a alteração da matéria de facto a qual se mantém inalterada deve ser julgado improcedente.
Custas do recurso pela Embargada.


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[1] Carolina Cunha, in Letras e Livranças. Paradigmas actuais e recompreensão de um regime, pág. 244 e seg., Almedina, 2012.

[2] Cfr. Abel Pereira Delgado, in Lei Uniforme sobre o cheque anotada, pág. 107, da 3.ª ed., Livraria Petrony.