Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1774/11.9TBACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
PESSOA SINGULAR
PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 11/29/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALCOBAÇA 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 3º N.º 1 DO CIRE
Sumário: Quem tem dívidas vencidas na ordem dos € 92 283,69 e possui como único activo o direito ao seu salário mensal de € 639,85, em parte já penhorado, está, inquestionavelmente, "impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas", pelo que se encontra em situação de insolvência.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I

A... instaurou a presente acção especial de insolvência, pedindo a sua declaração de insolvência e a exoneração do passivo restante.

O Meritíssimo Juiz proferiu sentença em que decidiu que:

"Nos termos e com os fundamentos expostos, e ainda de harmonia com o preceituado no artigo 27.º n.º 1 al. a) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, conjugado com o disposto nos art.ºs 28.º e 3.º, ambos do citado diploma legal, decido:

- Indeferir liminarmente o pedido de declaração de insolvência formulado por A... , contribuinte nº ... , residente no ... Alcobaça.

- Julgar em consequência prejudicado o conhecimento do pedido de exoneração do passivo restante".

Inconformada com esta decisão, a requerente dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata nos próprios autos, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:

1 - A requerente solicitou através de requerimento que c tribunal declarasse a sua insolvência.

2 - Para tanto alegou que não tem rendimentos, é divorcia da vive com os pais, e não tem possibilidades de cumprir com as obrigações assumidas.

3 - Alegou e fez prova do seu rendimento, a penas 639,85 €, que Já inclui dois duodécimos do subsídio de natal e férias.

4 - Daquele vencimento a entidade patronal retém 1/6 que deposita á ordem do Processo n.º 1902/03.8TVL5B, Tribunal Cível de Lisboa, 2.ª Vara da 3.ª Secção, no valor de 106,60 €.

5 - Alegou que a sua situação de insolvência é actual.

6 - Requereu a exoneração do passivo restante.

7 - Juntou os documentos que no seu entender seriam necessários.

8 - Foi convidada a suprir insuficiências, que na sua opinião não eram relevantes urna vez constavam no processo os elementos embora não levados ao pormenor, porque também não estavam ao alcance da requerente.

9 - Dois dias foi o prazo dado à requerente para suprir as insuficiências, estávamos em período de férias e o mandatário encontrava-se no gozo das mesmas.

10 - Mesmo com atraso cumpriu.

12 - Depois de todo o esforço, a requerente recebe despacho de indeferimento.

13 - O tribunal interpretou e aplicou mal a lei aos factos, fez uma interpretação restritiva da mesma, foi ao pormenor nas suas exigências, quando eram por demais evidente que com os dados carreados para o processo e com o rendimento declarado de 639,85 € com dívidas acima de 50.000 € e sem outro património, tendo em conta o conceito de homem médio se colocado na situação de juiz não tinha duvidas em declarar a insolvência da requerente.

14 - A requerente alegou que não tem possibilidades de pagar e está em falta no pagamento das prestações já vencidas veja-se o articulado junto onde se suprem as deficiências.

15 -A requerente reúne os requisitos e fez prova para que seja declarada insolvente.

Conclui pedindo que se revogue a decisão proferida pelo tribunal a quo e se se substitua por outra que declare a pretendida insolvência.

Face ao disposto nos artigos 684.º n.º 3 e 685.º-A n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil, as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir consiste em saber se, perante a situação exposta pela requerente, deve ser declarada a sua insolvência.


II

1.º


Face ao descrito na petição inicial e no requerimento das folhas 20 a 22[1], devemos ter por assente que a requerente alega que[2]:

1 - é divorciada.

3 - recebe a título de salário mensal € 639,85.

2 - vive com os seus pais por não ter rendimentos que lhe permitam ter uma vida independente.

4 - em conjunto com o então marido, quando ainda no estado de casada, contraiu um crédito, para aquisição de uma viatura, junto da financeira B... e, na sequência da ruptura conjugal e pela não liquidação das prestações, veio a ser instaurada uma execução contra ambos, estando em dívida a quantia de € 25 000,00, tendo aí sido penhorado 1/3 do seu vencimento.

5 - na execução instaurada pela B... foram penhorados os bens móveis que tinha na sua casa, os quais foram vendidos, e após tal venda ainda ficaram em dívida € 25 000,00.

6 - deve ao Banco C... € 25 000,00, que estão a ser cobrados numa acção executiva, por desconto mensal aí ordenado no valor de € 106,60.

5 - deve ao Banco D... € 20 000,00[3], estando a dívida já vencida.

6 - deve ao Banco E... , S.A. € 19 783,69, estando a dívida já vencida.

7 - deve à F... cerca de € 1 000,00, estando a dívida já vencida.

8 - deve à G... cerca de € 1 500,00, estando a dívida já vencida.

9 - não tem bens móveis ou imóveis.

10 - com o remanescente do seu salário suporta as suas despesas de alimentação, vestuário, calçado e transportes.


2.º

A Meritíssima Juíza a quo, após enunciar requisitos necessários para a declaração de insolvência, concluiu que "importa, agora, reverter ao caso concreto para aferir da verificação do pressuposto substantivo da declaração de insolvência de pessoa singular já acima referido, ou seja, da impossibilidade actual ou iminente de cumprimento das obrigações do devedor que se encontrem vencidas e/ou quando o passivo não é manifestamente superior ao activo".

E fazendo-o, afirmou que:

"Do referido temos que além do passivo não se mostrar comprovadamente fixado, não tendo inclusive a requerente de forma clara e cabal (mas antes de forma conclusiva), esclarecido individualmente quanto a cada um deles quais os efectivos montantes em débito, datas de constituição dos mesmos, datas de vencimento ou prestações mensais respectivas, mesmo após convite para suprir as afirmações conclusivas vertidas no requerimento inicial. Por outro lado, as prestações mensais acima referidas quanto ao passivo, considerando que vive com os pais e que não comprovou quaisquer outras despesas mensais fixas, acrescendo ainda que pelo menos por uma das dividas sempre responderá igualmente o ex-marido da requerente (contra o qual no limite poderá exercer o seu direito na meação respectiva sendo tal o caso), com esforço (é certo e há que reconhece-lo) são ainda suportáveis pelo activo da requerente.

Pois bem, deste quadro factual e dos elementos probatórios juntos aos autos, resulta desde logo os rendimentos da requerente e face às prestações mensais acima referidas, se afigura ainda assim que tais rendimentos são capazes de prover à satisfação dos encargos assumidos, mesmo que com negociação dos montantes das prestações com as diferentes entidades.

Assim sendo, dificilmente se poderá defender que o património da requerente pudesse ser estimado, pelo menos, em valor manifestamente inferior ao passivo do mesmo. Ao que acresce que face ao alegado pela própria Requerente, o companheiro da mesma ser igualmente responsável pelo pagamento das dívidas contraídas.

Consequentemente, não estão alegados e indiciados os factos necessários a que se conclua que a Requerente, pese embora as dificuldades (há que reconhece-lo) em que eventualmente se encontre, esteja de todo impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas ou numa situação iminente de que tal se verifique, reconhecendo, com a apresentação deste processo, que se encontre numa situação de insolvência".

Como é sabido, o n.º 1 do artigo 3.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas dispõe que "é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas", acrescentando o seu n.º 4 que "equipara-se à situação de insolvência actual a que seja meramente iminente, no caso de apresentação pelo devedor à insolvência".

E, como bem salienta a Meritíssima Juíza a quo, "o único critério de aferição dos pressupostos objectivos da declaração de insolvência reporta-se à, actual ou iminente, impossibilidade de cumprimento das obrigações do devedor que se encontrem vencidas.[4]"

Salvo melhor juízo, não há dúvidas quanto ao passivo da requerente, que ascende a € 89 783,69, mais cerca de € 2 500,00 e é também pacífico que todo ele se encontra vencido.

Por outro lado, o seu único activo é composto pelo seu direito ao salário mensal de € 639,85, do qual, aliás, já não pode dispor na totalidade, por nele já incidir uma penhora. E é com esse rendimento que a requerente suporta as suas despesas de alimentação, vestuário, calçado e transportes, não obstante se encontrar a viver em casa dos seus pais.

Assim, não se acompanha a Meritíssima Juíza a quo quando afirma que não está "comprovadamente fixado" o passivo, nem "esclarecido individualmente (…) quais os efectivos montantes em débito (…) [e] datas de vencimento" e, vivendo a requerente "com os pais (…) não comprovou quaisquer outras despesas mensais fixas". Pelo que, com o devido respeito, se discorda do entendimento do tribunal a quo quando considerou que "se afigura ainda assim que tais rendimentos são capazes de prover à satisfação dos encargos assumidos, mesmo que com negociação dos montantes das prestações com as diferentes entidades" e que "dificilmente se poderá defender que o património da requerente pudesse ser estimado, pelo menos, em valor manifestamente inferior ao passivo do mesmo."

Ora, há um "ponto comum [que] respeita ao conceito básico de insolvência, traduzido na impossibilidade de cumprimento, pelo devedor, das suas obrigações, que se acolhe, expressis verbis, no n.º 1 do" artigo 3.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, mesmo nos casos em que, "apesar de faltar ainda o incumprimento efectivo de obrigações, este se vislumbre já no horizonte, em ponderação da situação concreta do devedor e das expectativas que objectivamente deve ter quanto à capacidade de honrar atempadamente os respectivos compromissos, levando, designadamente, em conta a relação entre o seu activo e o seu passivo". Para o efeito há que ter "em conta a expectativa do homem médio face à evolução normal da situação do devedor, de acordo com os factos conhecidos e na eventualidade de nada acontecer de incomum que altere o curso dos acontecimentos."[5]

À luz do que acima se disse, quem, como a requerente, tem dívidas vencidas na ordem dos € 92 283,69 e possui como único activo o direito ao seu salário mensal de € 639,85, em parte já penhorado, encontra-se inquestionavelmente "impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas".

Dito com a simplicidade das coisas verdadeiras: a requerente está em situação de insolvência, a qual não pode deixar de ser declarada.


III

Com fundamento no atrás exposto, julga-se procedente o recurso, revoga-se a sentença recorrida e, em consequência, determina-se que o tribunal a quo profira decisão em que declare a insolvência da requerente A... .

Sem custas.


António Beça Pereira (Relator)
Nunes Ribeiro
Hélder Almeida

[1] Este requerimento surge na sequência do despacho da folha 12.
[2] Salvo o devido respeito, nas folhas 24 e 25 da sentença recorrida não se descreve com exactidão toda a realidade que foi alegada pela requerente.
[3] Na petição inicial a requerente diz dever ao Banco D... (apenas) € 2 500,00, mas no requerimento das folhas 20 a 22 já afirma que a dívida ascende a € 20 000,00.
[4] "Neste sentido, veja-se, Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, reimp. Vol. I, Quid Juris, 2006, pág. 59, 68-72; Menezes Leitão, Direito da Insolvência, Almedina, 2009, pág. 78-80; Catarina Serra, O Novo Regime da Insolvência, Uma Introdução, 3.ª ed., Almedina, 2008, págs. 23-24 e 76".
[5] João Labareda e Carvalho Fernandes, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2.ª Edição, pág. 70, 71 e 73.