Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1502/13.4TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
DEVER DE ENTREGA DOS RENDIMENTOS OBJECTO DE CESSÃO
DEVER DE INFORMAÇÃO
DOLO
NEGLIGÊNCIA GRAVE
Data do Acordão: 02/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO COMÉRCIO DE LEIRIA DO TRIBUNAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 235.º, 239.º, 243.º, 244.º, DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESA (DL N.º 53/2004, DE 18 DE MARÇO).
Sumário: A exoneração do passivo restante não pode ser concedida ao devedor que incumpriu com o dever de entrega das quantias referentes ao rendimento disponível e com o dever de informação que sobre ele impendia.
Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes da 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório

Por decisão, datada de 28.05.2013, foi liminarmente admitido o incidente de exoneração do passivo restante relativamente à insolvente AA, tendo-se fixado o rendimento disponível no montante que exceda a quantia correspondente a um salário mínimo nacional, acrescida do montante mensal de € 100,00.

Das informações prestadas pela Sra. Fiduciária resulta que a insolvente, no decorrer do período de cessão, não procedeu à entrega de quaisquer quantias, nem facultou quaisquer informações quanto aos rendimentos auferidos.

A Sra. Fiduciária pronunciou-se desfavoravelmente à concessão da exoneração e a credora D..., S.A. pugnou pelo indeferimento da exoneração do passivo restante.

Foi proferida, pelo Juízo de Comércio de Leiria, a seguinte decisão:

V- Nestes termos e face ao exposto, decide-se:

Não conceder à devedora BB a exoneração do passivo restante.

Custas pela insolvente – artigo 248.º, do CIRE.

Valor: o da causa.

Registe, notifique e publicite (artigo 247º, do CIRE)”.

BB, não se conformando com tal decisão, dela interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

(…)

2. Do objecto do recurso

À apelante deve (ou não) ser concedida a exoneração do passivo restante?

A 1.ª instância fixou a seguinte matéria de facto:

“Dos elementos constantes dos autos resulta assente a seguinte factualidade:

1 – Por sentença proferida a 18.04.2013, já transitada em julgado, foi declarada a insolvência de AA.

2 – Por decisão proferida a 13.06.2016 foi determinado o encerramento do processo.

3 – Por decisão datada de 28.05.2013 foi liminarmente admitido o incidente de exoneração do passivo restante relativamente à insolvente, tendo-se fixado o rendimento disponível no montante que exceda a quantia correspondente a um salário mínimo nacional, acrescida do montante mensal de € 100,00.

4 – Ao longo de todos o período de cessão o insolvente não prestou qualquer informação relativa aos rendimentos auferidos, nem procedeu à entrega de quaisquer quantias a título de cessão.

6 – Pelos despachos proferidos em 23.10.2017, 15.11.2017 e 21.09.2018 foram os insolventes notificados para regularizarem os montantes em falta.

7 – Pelos despachos proferidos a 09.04.2019 e 15.11.2019 e 16.02.2020 ordenou-se a notificação da insolvente para, no prazo fixado, facultar à Sra. Fiduciária as informações em falta, sob pena de poder não lhes ser concedida a exoneração do passivo restante.

8 – A insolvente nada requereu, nem facultou à Sra. Fiduciária quaisquer informações”.

Primeira nota:

A apelante junta, em sede da sua alegação de recurso, vários documentos.

Como é sabido, nos termos do n.º 1 do art.º 651.º do CPC, as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425º, do CPC - “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento-, ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância.

Ora, tais documentos não foram juntos na 1.ª instância, por falta só imputável à ora apelante. Não respondeu às várias notificações, que para o efeito, lhe foram remetidas pelo tribunal. Não apresenta a sua oposição ao requerimento, comportamento este que lhe faz presumir uma vida económica insolvente.

Assim, por não se verificarem os requisitos legais, não se admite a junção aos autos do documento ora junto pela recorrente com as suas alegações de recurso - o modelo do nosso sistema de recursos é o da reponderação (e não o do reexame), o que significa que está excluída a possibilidade de alegação de factos ou questões novas na instância de recurso, salvo quanto àquelas que sejam de conhecimento oficioso.

Segunda nota:

Não tendo havido impugnação da decisão relativa à matéria de facto e não havendo razões para a alterar oficiosamente, estes factos permitem que lhe seja concedida a exoneração do passivo restante?

A 1.ª instância viu motivos, bastantes, para negar a exoneração do passivo restante, assim escrevendo:

“A possibilidade da exoneração do passivo restante constitui uma das medidas especiais de proteção do devedor pessoa singular instituídas pelo CIRE.

A esse respeito, dispõe o artigo 235.º, do CIRE: “se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo.”

Contudo, para efetiva obtenção de tal benefício, pressupõe, além do mais, a pontual observância das obrigações contidas no n.º 4 do artigo 239º do CIRE. Entre essas obrigações, recai sobre o insolvente ter de entregar os rendimentos disponíveis a um fiduciário, o qual terá, por sua vez, a obrigação de os distribuir pelos credores, nos termos do disposto nos artigos 239.º, n.º 2 e 241.º, do CIRE.

Assim, desde a concessão do período de exoneração e durante um período temporal consecutivo de cinco anos, o insolvente manterá a obrigação de cumprir com o pagamento das dívidas reconhecidas, embora limitada ao rendimento disponível, isto é, aquele montante pecuniário que ultrapassa o montante declarado pelo tribunal como sendo indisponível.

Em face da factualidade que supra se deixou consignada resulta que decorreram os cinco anos do período de cessão.

A devedora incumpriu com o dever de entrega das quantias referentes ao rendimento disponível, assim como incumpriu com o respetivo dever de informação que sobre ela impendia.

No caso dos presentes autos, desde logo resulta à evidência a violação do dever de informação consagrado na al. a), do n.º4, do artigo 239.º. Assim como resulta dos autos a violação do dever de entrega das quantia monetárias, objeto de cessão, a que alude a alínea c), do n.º4, do artigo 239.º, do CIRE.

Em face da factualidade que resulta assente nos autos, é inequívoco para nós que a atuação da insolvente se insere, pelo menos, na grave negligência quanto à violação dos deveres que sobre ele recaem.

De harmonia com regras de experiência e critérios sociais, é irrecusável que a insolvente tinha consciência da sua vinculação ao dever de informação e de entrega do rendimento disponível e do não cumprimento dessas obrigações. Tal atuação da insolvente, indubitavelmente, prejudica a satisfação dos créditos sobre a insolvência.

Na verdade, os rendimentos cedidos são o único meio de satisfação dos créditos da insolvência, dado que, durante o período da cessão, não se admite a agressão por via executiva do património da insolvente com vista à satisfação daqueles créditos (artigo 242.º, n.º 1 do CPC).

Ao não haver cessão de rendimentos ou esta ser deficientemente cumprida, tal determinará necessariamente um prejuízo para a satisfação dos credores da insolvência.

A insolvente manteve tal conduta mesmo após ter por diversas vezes sido notificada para regularização da situação. Por outro lado, e apesar de notificada para esse efeito, não comunicou aos autos qualquer facto excludente da ilicitude ou da culpa subjacentes à sua conduta

Em face da factualidade que resulta assente nos autos, é inequívoco para nós que a atuação da insolvente se insere, pelo menos, na grave negligência quanto à violação dos deveres que sobre ela recaem.

A exoneração do passivo restante deve ser recusada se se verificarem os fundamentos que impunham a cessação antecipada do procedimento da exoneração (artigo 244º, n. 2, do CIRE).

Por todo o exposto, forçosamente teremos de concluir que se encontram verificados os pressupostos constantes da alínea a), do n.º 1 do artigo 243.º, do CIRE, ou seja, a devedora com grave negligência violou a obrigação imposta pelo artigo 239.º, n.º 4, alínea c) - não entrega ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão, prejudicando assim a satisfação dos créditos sobre a insolvência. Tal circunstância determinaria a cessação antecipada da exoneração do passivo restante (artigo 244.º, n.º2 e 243º, ambos do CIRE).

Nos termos do disposto no artigo 244.º, n.º2, do CIRE, a exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que poderia ter sido antecipada, nos termos do disposto no artigo 243.º, do CIRE.

Termos em que se decide não conceder a exoneração do passivo restante a BB”.

Concordamos com o decidido.

Senão vejamos:

Quando o insolvente for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração do pagamento dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste - artigo 235.º do CIRE. A exoneração do passivo restante constitui um mecanismo cujo objectivo final é a extinção das dívidas e a libertação do devedor de parte de seu passivo, de forma mais breve e leve que a prescrição tradicional, correspondendo ao objectivo do legislador de facultar ao devedor singular uma segunda oportunidade, dando primazia à sua reabilitação produtiva.

É a chamada exoneração do passivo restante, cujo benefício vale apenas para o devedor de boa fé que incorreu em situação de insolvência - a boa fé do devedor é excluída nas situações previstas no n.º 1 do artigo 238.º.

Como é sabido, a recusa final da exoneração do passivo restante depende da verificação dos mesmos requisitos ou pressupostos que a recusa antecipada da exoneração, previstos no artigo 243º, do CIRE.

A recusa da exoneração para efeitos do previsto no artigo 243º, n.º 1 al. a), do CIRE, depende da demonstração cumulativa dos seguintes pressupostos: a) Incumprimento pelo devedor de alguma das obrigações que lhe são consignadas pelo artigo 239º, do CIRE; b) Prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência em razão desse incumprimento; c) Que esse incumprimento seja imputável, a título de dolo ou negligência grave, ao devedor.

Na negligência grave, o agente actua em termos que só uma pessoa particularmente displicente ou descuidada, nas mesmas circunstâncias, actuaria.

Os Tribunais vêm entendendo que:

“Actuam em negligência grave os insolventes que, durante o período da cessão, retêm ilicitamente quantias que, de acordo com a decisão que fixou o rendimento objecto da cessão à fidúcia, deveriam ter sido entregues ao fiduciário, vindo apenas, no final do período e na iminência de uma decisão de recusa da exoneração, invocar circunstâncias pessoais e despesas que podiam (e deviam) ter dado a conhecer ao Tribunal no decurso do dito período.

Nestas circunstâncias, só um cidadão particularmente displicente e descuidado perante as obrigações que lhe incumbem no contexto da por si pretendida exoneração do passivo restante (e que o mesmo não podia ignorar e se comprometeu a observar - artigo 236º, n.º 3, do CIRE), poderia encetar a conduta assumida pelos insolventes ao reter quantias que sabiam que deviam entregar à fidúcia e ao omitir naquele período e junto do Tribunal informações pessoais tidas por relevantes”.

“O não cumprimento pelo devedor, sem justificação atendível, do ónus processual que sobre ele recai de, uma vez interpelado, não só informar, com verdade, quais os rendimentos que lhe advieram, a qualquer título, no período da cessão, mas também de entregar os documentos comprovativos desses rendimentos tem como consequência a recusa da exoneração; Viola dolosamente a obrigação de entrega ao fiduciário do rendimento disponível o devedor que, face aos rendimentos auferidos e tendo em consideração o rendimento considerado razoavelmente necessário para o seu sustento minimamente digno (fixado em valor correspondente a um salário mínimo nacional), devia entregar à fidúcia, pelo menos, a quantia de € 33.807,48, mas nem um cêntimo entregou” – Acórdãos da Relação do Porto de 22.11.2021 e 21.06.20221, pesquisáveis in www.dgsi.pt .

“A violação será imputável a título dolo quando o devedor não cumprir as obrigações de forma consciente e intencional. A violação será cometida com grave negligência quando, em face das circunstâncias do caso, só um devedor especialmente descuidado no cumprimento das suas obrigações é que não teria cumprido as obrigações que lhe são impostas. A violação das obrigações prejudica a satisfação dos créditos sobre a insolvência quando por esse facto os credores deixarem de obter o pagamento, total ou parcial, dos créditos que lhe foram reconhecidos”/ “Sempre que há entradas de rendimentos no património do devedor (periódicas, esporádicas ou ocasionais), coloca-se a questão do apuramento do rendimento disponível a ceder ao fiduciário. E a resposta a tal questão, quando o apuramento se fizer por força da combinação do corpo do nº 3 com a alínea b), i), do artigo 239º, não pode deixar de ter por referência o rendimento disponível de um determinado período. No caso, o período de referência é o de um mês. Há incumprimento doloso quando ele é intencional e consciente. São pressupostos desta intencionalidade e consciência o conhecimento, do devedor, da parte dos seus rendimentos que são objeto de cessão e o conhecimento da obrigação de os entregar imediatamente ao fiduciário” - Acórdãos desta Relação de Coimbra, de 22.10.19 e 28.3.2017, publicados em www.dgsi.pt .

“A entrega dos rendimentos ao fiduciário que excedem o rendimento indisponível deve ser feita de imediato, ou seja, mensalmente, logo após o seu recebimento, e não num momento posterior, nomeadamente no final da cessão, dando-se ao devedor uma última oportunidade para liquidar valores em dívida que acumulou ao longo dos 5 anos que durou a cessão. Na falta de qualquer justificação do devedor para a falta de cumprimento do seu dever de entregar ao fiduciário a quantia excedente ao rendimento indisponível, concluiu o tribunal recorrido e bem, por presunção judicial, que houve da sua parte “grave negligência” no incumprimento, uma vez que tinha meios para o fazer”/ “A exoneração do passivo será sempre recusada se o devedor, tendo sido determinado que preste informações sobre o cumprimento das suas obrigações, não as fornecer no prazo que lhe for estabelecido, sem invocar motivo justificado, constituindo recusa da exoneração, nessa situação, uma sanção para o comportamento indevido do devedor. – Acórdãos da Relação de Guimarães de 28.2.2019 e 16.11.2017, in www.dgsi.pt .

“Existe a obrigação de entrega imediata ao fiduciário de qualquer quantia recebida que integre rendimentos objecto de cessão, por impulso do insolvente e sem necessidade de intervenção directora do Tribunal ou do administrador judicial nomeado para fase de exoneração do passivo restantes. A cessação antecipada do instituto da exoneração do passivo restante ou a recusa de exoneração exige a verificação de dois pressupostos: a reiterada existência de negligência grave ou dolo das suas obrigações e desse facto resultar prejuízo efectivo para a satisfação dos créditos. O mero incumprimento da entrega de quantias ao fiduciário, por banda do devedor, sem que se apure que o mesmo tenha sido doloso ou cometido com grave negligência e que tenha causado prejuízo aos credores, não poderá sem mais conduzir à cessação antecipada da cessão de créditos. O instituto da exoneração do passivo restante não pode configurar «um instrumento oportunística e habilidosamente empregue unicamente com o objectivo de se libertarem os devedores de avultadas dívidas”/ “ A exoneração do passivo restante permite que o Devedor se liberte de dívidas e se possa reabilitar economicamente, benefício que só é concedido ao Devedor que tenha pautado a sua conduta por regras de transparência e de boa-fé, no tocante às suas concretas condições económicas e padrão de vida adotado durante o período de cessão; - essa decisão assenta na apreciação da conduta que foi desenvolvida pelo Devedor ao longo do período de cessão;- a obrigação de entrega do rendimento objeto de cessão deve ser cumprida logo que esse rendimento seja recebido, de forma imediata, não tendo cabimento o pagamento do valor global decorrido que está, há muito, o período de cessão, com recurso a crédito;- a lei impõe ao fiduciário um desempenho ativo no sentido de obter do devedor, e daqueles de quem este tenha direito a haver os rendimentos, a parte objeto de cessão, cabendo ao Tribunal acompanhar, pelo menos anualmente, o modo como vem sendo feito o recebimento dos rendimentos objeto de cessão e a subsequente liquidação pelo fiduciário” - Acórdãos da Relação de Évora de 14.7.2021 e 30.6.2021, pesquisáveis no site www.dgsi.pt .

Tratando-se de um benefício concedido pelo legislador, o devedor terá de se esforçar por merecer a concessão do mesmo – perdão total das dívidas não integralmente satisfeitas – e aquela dependerá da efetiva cedência do “rendimento disponível”, tal como se acha definido no nº3 do art.º 239º do CIRE, durante o período de cinco anos posterior ao encerramento do processo de insolvência.

A concessão de tal benefício surge como a contrapartida do sacrifício do devedor que, durante o período de cessão se encontra sujeito, entre outras, à obrigação de “exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado” e à obrigação de “entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão” – als. b) e c), do nº4 do art. 239º.

Dispõe o artigo 244º do CIRE, sobre a “Decisão final da exoneração”:

1. Não tendo havido lugar à cessação antecipada, o juiz decide nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor, ouvido este, o fiduciário e os credores da insolvência.

2. A exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior”.

Remetendo o nº2 de tal norma para os fundamentos e requisitos previstos para a cessação antecipada, dispõe a tal respeito o artigo 243º do CIRE, que a exoneração deve ser recusada, nomeadamente, quando “o devedor tiver dolosamente ou com grave negligencia, violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência”.

Recordamos que a exoneração do passivo restante, na perspectiva do devedor, serve a realização de valores constitucionalmente consagrados, como a liberdade económica - ou, em rigor, a recuperação dessa liberdade - e o direito ao desenvolvimento da personalidade, desde que o devedor não tenha incorrido em condutas culposas e recorrentes relacionadas com a insolvência.

Essa tutela, agora na perspectiva do credor, colide naturalmente - ou pode colidir -, ao aspirar à liberação, objectiva e subjectiva, das dívidas restantes do devedor, com a tutela constitucional da titularidade dos direitos de crédito de natureza patrimonial, protegidos pela via do art.º 62º, 1, da CRP - direito à propriedade privada.

Ora, no perímetro da liberdade de conformação do legislador, deve considerar-se que essa conciliação entre valores e direitos constitucionalmente protegidos corresponde a uma ponderação equilibrada de interesses, que não deixa de ter em conta os interesses dos credores e não menospreza o valor central da igualdade dos credores , ainda que os interesses do devedor insolvente não culposo prevaleçam, tendo em conta o peso do interesse na reintegração na vida económica  - e social - e da protecção social do mais fraco - sobre este ponto, ver o Acórdão do STJ de 23.3.2021, pesquisável em www.dgsi.pt.

Ora, mostram os autos, que a insolvente foi notificada, por despachos proferidos a 09.04.2019 e 15.11.2019 e 16.02.2020 para, no prazo fixado, facultar à Sra. Fiduciária as informações em falta, sob pena de poder não lhes ser concedida a exoneração do passivo restante. E o que fez a ora apelante?

Remete-se ao total silêncio, nada dizendo.

Violação dolosa do dever de informação significa violação consciente e intencional. São pressupostos desta consciência e intencionalidade o conhecimento, pelo devedor, do dever de informação e a decisão de não prestação da informação ou a decisão de prestação de uma informação que não corresponde à realidade. Com efeito, o dever de informação só é de considerar cumprido quando o devedor preste a informação com verdade, pelo que a violação de tal dever tanto se dá quando o devedor recusa expressa ou tacitamente o fornecimento de uma informação como se dá quando o devedor presta uma informação que não corresponde à realidade.

A violação será cometida com culpa grave quando, em face das circunstâncias do caso, só um devedor especialmente descuidado no cumprimento das suas obrigações é que não teria cumprido ou cumprido com verdade a obrigação de informação que recaia sobre si - não é requisito de relevância da violação do dever de informação para efeitos da alínea g) que, de tal violação, resulte um beneficio para o devedor ou um prejuízo para os credores, pois tal exigência também não tem o mais leve apoio na letra da lei. Está-se perante um caso em que a lei se basta com o desvalor da acção – neste preciso sentido, por ex. os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães, de 18.01.2011, e desta Relação de Coimbra, de 29.01.2013, ambos pesquisáveis em www.dgsi.pt.

Por isso, teremos de concluir, como o fez a 1.ª instância, que se encontram verificados os pressupostos constantes da alínea a), do n.º 1 do artigo 243.º, do CIRE, ou seja, a devedora com grave negligência violou a obrigação imposta pelo artigo 239.º, n.º 4, alínea c) - não entrega ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão, prejudicando assim a satisfação dos créditos sobre a insolvência, além de que violou o dever de informação.

Caso a ora apelante tivesse motivos, como alega agora ter, para justificar o seu silêncio nos autos, deveria tê-lo feito no âmbito das várias notificações que o tribunal lhe fez, assim exercendo plenamente o seu contraditório.

Não o pode fazer é agora, no âmbito deste recurso. Trata-se de questão nova, baseada em elementos factuais não apresentados e, por isso, não considerados pelo julgador da 1.ª instância.

É inútil, agora, argumentar com o facto de “a insolvente admite que não procedeu à entrega de quaisquer quantias, não por qualquer negligência, falta culposa ou dolo, mas sim, para fazer face às despesas mais elementares e necessárias à sua sobrevivência minimamente condigna e do seu filho e pelo seu desconhecimento dos procedimentos. Durante o lapso temporal decorrido do período de cessão, a insolvente teve que mudar de casa, de emprego, teve inúmeros problemas de saúde e ficou bastante desorientada”.

Razões pelas quais, nesse enquadramento fáctico e jurídico, se terá agora que manter intacta na ordem jurídica, a decisão da 1ª instância, que não concedeu à devedora BB/apelante a exoneração do seu passivo restante, em consequência do que se tem, também, que julgar improcedente o presente recurso de apelação.

(…)

3. Decisão

Assim, na improcedência da instância recursiva, mantemos a decisão proferida pelo Juízo de Comércio de Leiria – J1.

Custas pela apelante.

Coimbra, 15 de Fevereiro de 2022

(José Avelino Gonçalves - Relator)

(Paulo Brandão – 1.º adjunto)

(Arlindo Oliveira - 2.º adjunto)