Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1093/09.0TBTMR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
CITAÇÃO POR VIA POSTAL
SOCIEDADE
REPRESENTAÇÃO EM JUÍZO
NULIDADE
Data do Acordão: 09/07/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR – 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO (2ª ESPÉCIE)
Decisão: ANULA CITAÇÃO
Legislação Nacional: 484ºCPC
Sumário: I – Traduzindo a declaração de insolvência um facto sujeito a publicidade, designadamente através do seu registo, o desconhecimento de tal facto por quem interpõe uma acção contra uma sociedade anteriormente declarada insolvente pode-lhe ser imputado (ao A. desta acção), quanto às consequências processuais induzidas pela não citação do administrador da insolvência, quando tal circunstância (a prévia declaração de insolvência) é conhecida no processo;
II – A citação de uma sociedade no local da sede por via postal, assenta a presunção da existência aí de uma estrutura funcional que conduza o conhecimento desse acto àqueles que representam essa sociedade.

III – Este pressuposto deixa de se verificar quando a sociedade foi declarada insolvente e a sua representação em juízo passou a competir ao administrador da insolvência;

IV – A não citação do administrador da insolvência traduz a inobservância das condições e formalidades estabelecidas na lei para a citação dessa sociedade, sendo a irregularidade apta a prejudicar o exercício da defesa desta;

V – A não intervenção do administrador no processo, enquanto destinatário directo do acto, torna tempestiva a arguição da nulidade pela própria sociedade em sede de recurso, particularmente tendo funcionado revelia dessa sociedade R. nos termos do artigo 484º do CPC.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


            1. Em 21 Setembro de 2009[1], M… e marido, J… (AA. e Apelados no presente recurso), demandaram a sociedade C…, S.A. (1ª R. e Apelante no contexto deste recurso) e o irmão da primeira A., P… e mulher, A… (2ºs RR.) pedindo que seja declarada nula a venda (realizada em 10 de Maio de 2007) do “quinhão hereditário” do 2º R. (R. marido) à sociedade 1ª R., respeitante a um prédio misto que identificam no requerimento inicial, por ao tempo dessa venda esse “direito de aquisição sem determinação de parte ou direito que se encontrava registado [nesse] prédio” já não pertencer aos 2ºs RR. Com efeito, haviam estes RR. e os AA., anteriormente a essa venda (em Outubro de 2005), partilhado em processo de inventário, por óbito de sua mãe (…), esse prédio, tendo o mesmo sido adjudicado, “na proporção de metade a cada um”, aos AA. e aos 2ºs RR.

            1.1. Procedeu-se à citação dos RR., por via postal (v., quanto aos 2ºs RR., fls. 24 e 25 e, quanto à 1ª R., fls. 26), sendo que nenhum destes, na sequência dessa citação, contestou ou constituiu mandatário.

            1.2. Em função desta circunstância processual, foi proferida a Sentença de fls. 27/30esta constitui a decisão objecto do presente recurso –, a qual considerou confessados os factos alegados na petição inicial, nos termos do disposto no artigo 484º, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC), decidindo a acção nos seguintes termos:


“[…]
[J]ulgo a acção procedente e declaro a nulidade do contrato de compra e venda celebrado entre «C…, S.A.» e P…, com o consentimento de A…, mediante escritura pública outorgada no dia 10 de Maio de 2007 no Cartório Notarial de S. João da Madeira.
Determino o cancelamento do registo da aquisição a favor de «C…, S.A.» (ap. 15 de 2007/06/08).
[…]”
            [transcrição de fls. 30]

            Justificando este pronunciamento decisório observou-se na Sentença:


“[…]
[A]tendendo aos factos provados, cumpre evidenciar que, como resulta da escritura de compra e venda junta aos autos, o vendedor declarou vender «o seu respectivo direito registado naquele prédio misto», sendo certo que o prédio em causa encontra-se registado em comum e sem determinação de parte ou direito a favor de P… e de M...
Ora, à data da celebração da escritura de compra e venda, na justa medida em que o prédio já havia sido objecto de partilha por óbito de …, o 2º R. só era titular do direito à metade indivisa do prédio misto adjudicado, em compropriedade e na proporção de metade, a favor da A. e ao 2º R., e não já o direito a uma quota ideal ou alíquota no prédio em causa, decorrente do facto de o mesmo integrar a herança aberta por óbito de ...
[…]”
            [transcrição de fls. 29]

            1.3. Notificada desta Sentença, apresentou-se a 1ª R. a recorrer da mesma – marcou tal recurso a sua primeira intervenção neste processo e foi acompanhada da constituição de Mandatário –, oferecendo a motivação que consta de fls. 33/42, rematando-a com as seguintes conclusões:       


(…)

            Os AA. responderam ao recurso a fls. 54/57 vº, pugnando pela manutenção da decisão.


II – Fundamentação


            2. Encetando a apreciação do recurso, tenha-se presente que o âmbito objectivo deste foi delimitado pelas conclusões transcritas no item anterior (vejam-se os artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do CPC). Devem, pois, ser tratadas no âmbito do recurso todas as questões que emergem das conclusões, excepção feita àquelas que se apresentem como prejudicadas face à solução dada a outras questões precedentemente abordadas. É este o regime resultante da aplicação à instância de recurso do princípio geral de Direito processual contido no trecho inicial do artigo 660º, nº 2 do CPC: “[o] juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”. A consideração deste aspecto é relevante na presente situação, como adiante se verá.

Seja como for, atendendo ao teor das conclusões, deparam-se a esta instância, como suscitadas pela Apelante, as seguintes questões:
(a) à partida, a desconsideração pela decisão apelada da circunstância da ora Apelante (que, lembra-se aqui, não contestou) ter sido declarada em estado de insolvência, anteriormente à propositura da presente acção. Este elemento de facto (a declaração de insolvência) é visto pela Apelante como indutor de múltiplos desvalores processuais nesta acção, a saber: (i) ilegitimidade da Apelante por preterição de litisconsórcio necessário passivo[2]; (ii) nulidade da citação desta, por não intervenção (citação) do Administrador da insolvência da «Massa Insolvente» e dos «Credores» da Apelante[3]; (iii) integração da presente acção no âmbito previsto no artigo 146º e seguintes do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), situação esta geradora de erro na forma do processo e incompetência territorial do Tribunal de Tomar[4]. Pretende a Apelante, pois, que a presente apelação aprecie estes desvalores, com a seguinte consequência na decisão a proferir por esta segunda instância: “[anulação de ] todo o processado até à citação, [ordenando-se] a remessa e apensação da presente acção aos autos de insolvência […]”.  
(b) alternativamente à consideração das questões processuais antes enunciadas[5], pretende a Apelante, quanto ao mérito da Sentença – e caso subsista utilidade na apreciação desse mérito –, que seja considerada, em vez da declaração de nulidade da escritura, a convalidação [artigo 895º do Código Civil (CC)] ou conversão (artigo 293º do CC) do negócio subjacente à mesma.

Sendo estes os fundamentos do recurso, importa sublinhar, preliminarmente, que os factos a considerar, na subsequente exposição, correspondem às vicissitudes processuais relatados ao longo do antecedente item 1., abarcando os elementos factuais substanciais e processuais que essas vicissitudes ilustram, sendo que estamos, em qualquer dos casos, perante realidades documentalmente estabelecidas nos autos. A este respeito, sublinha-se que a declaração de insolvência da Apelada, conhecida que foi através da motivação do recurso e demonstrada que passou a estar (cfr. fls. 43/49), será argumentativamente pressuposta por esta Relação.

Esclarecidas estas incidências do recurso, é tempo de apreciar, pela ordem acima indicada, os respectivos fundamentos.

2.1. (a) A não consideração nesta acção da circunstância da Apelante ter sido declarada, anteriormente à propositura desta, insolvente – e assim apreciamos o primeiro fundamento do recurso acima enunciado – ficou a dever-se, pura e simplesmente, ao desconhecimento dessa circunstância até à apresentação da motivação pela Apelante. Com efeito, os AA. não indicaram essa situação no articulado inicial, induzindo no processo a não consideração desse elemento. Este funcionou, pois, como aspecto não tomado em conta no tratamento da citação pelo Tribunal a quo, quando confrontado com a revelia absoluta dos RR. (v. o artigo 483º do CPC), concretamente da R. ora Apelante, tendo o efeito cominatório semi-pleno afirmado pela Sentença actuado, por via do preenchimento da previsão do artigo 484º, nº 1 do CPC, sem a consideração dessa circunstância: a da R. C… estar declarada insolvente desde data anterior à propositura da presente acção e, consequentemente, dever ser citada na pessoa do administrador da insolvência.

Sendo certo que o pedido em causa nesta acção, independentemente de outras considerações que a respeito dele pudéssemos tecer, se refere à subsistência na titularidade da Apelante (da Insolvente) de um direito de inegável conteúdo patrimonial, expressando ele a entrada no património desta de um direito reportado a um bem imóvel, sendo isto certo, dizíamos, estamos perante uma acção em que – pressuposta a insolvência (o que aqui, significativamente, equivale a pressupor a realidade) – é apreciada uma questão relativa a um bem seguramente compreendido na massa insolvente ou uma acção cujo resultado pode influenciar o valor dessa massa[6].

Paralelamente, e ensaiamos aqui a perspectivação do problema colocado no recurso relativamente aos AA./Apelados, importa considerar que a declaração de insolvência é necessariamente acompanhada de publicidade e é levada a um registo acessível ao público (v. artigo 38º do CIRE), sendo que através daquela e deste se pretende a generalização do conhecimento desse facto e, nesse sentido, potenciar que a actuação de terceiros relativamente ao insolvente tenha presente essa concreta incidência e se adeqúe a ela. Vale isto por dizer que o conhecimento desse facto por terceiros é valiosamente considerado pelo legislador – rectius, que o conhecimento desse facto por terceiros não é indiferente ao legislador – e que, em função disso, não se veja como absurda ou descabida a afirmação de corresponder a uma actuação valorada como medianamente diligente, particularmente no caso de se pretender demandar uma sociedade comercial, a de fazer anteceder a propositura de uma acção, quando esta apresente incidência patrimonial, da consulta ao registo onde, tratando-se de um insolvente, esse facto está devidamente assinalado. É certo que muitas vezes – porventura na maioria das situações – a não adopção de tal procedimento não acarreta qualquer problema do género do que aqui se veio a colocar, mas é para evitar situações como esta que existe a apontada obrigatoriedade de publicitação da declaração de insolvência por diversas formas, concretamente através da sua inclusão, conforme os casos, no registo civil e comercial.

Trata-se, pois, a situação de insolvente da R. C…, de um facto que era facilmente acessível ao conhecimento dos AA., na fase preparatória da acção, alicerçando esta circunstância que se faça repercutir nos AA., de alguma forma e dentro de uma lógica não descabida de compatibilização dos diversos interesses em presença, as incidências processuais que a não consideração do dado correspondente à pré-existente declaração de insolvência da Apelante venham a acarretar. Enfim, e para dizer as coisas com o exacto sentido em que aqui temos de as considerar, não nos parece absurdo que assim seja, na medida em que facilmente se teria (teriam os AA.) evitado que assim fosse.

A isto acresce, reforçando esta asserção valorativa, que à declaração de insolvência, enquanto execução universal do património do devedor para satisfação dos respectivos credores, se associam múltiplos efeitos processuais e substantivos aos quais subjaz uma inquestionável lógica de protecção à realidade representada pela massa insolvente, enquanto objecto dessa execução. Ocupam estes efeitos todo o Título IV do CIRE (artigos 81º a 127º) e deles decorre, desde logo, o despojamento do Insolvente (no caso de uma pessoa colectiva, dos seus administradores e representantes legais) dos poderes de actuar sobre o acervo patrimonial correspondente à massa, operando-se a transferência desses poderes para o administrador da insolvência (v. artigos 81º e 82º do CIRE), enquanto órgão de concretização da indicada finalidade concursal. No plano processual exterior à insolvência (artigos 85º a 89º do CIRE), e sem esquecer a transferência da representação judiciária do insolvente para o administrador (artigo 81º, nº 4 do CIRE)[7], a apontada lógica protectiva da massa actua através da subtracção desta ao alcance executivo exterior ao próprio processo concursal (artigo 88º e 89º, nº 1 do CIRE) e ao estabelecimento de mecanismos adjectivos que possibilitem que todos os processos em que sejam apreciadas questões susceptíveis de repercussão na massa insolvente, sejam, através da apensação à insolvência (mediante requerimento do administrador), julgados num quadro geral que potencie a compatibilização com a finalidade concursal e as incidências dessa finalidade, sendo esse quadro representado pelo “ambiente processual”, chamemos-lhe assim, em que decorre a tramitação da insolvência (artigos 85º e 86º do CIRE).

Pese embora a situação do insolvente não poder ser definida como de incapacidade[8], gera-se, com a declaração de insolvência, através do aludido despojamento dos poderes de actuação sobre a massa, uma transferência desses mesmos poderes, e consequentemente dessas actuações, para a pessoa do administrador, abrangendo-se na referenciação a este os factos processuais respeitantes a acções judiciais cujo resultado apresente aptidão para afectar a massa. É com este sentido que a representação judiciária do insolvente, como antes se disse, é atribuída ao administrador e que, em função disso, a citação do insolvente para esse tipo de acções se efectue na pessoa deste mesmo administrador. A garantia da intervenção deste – rectius, a garantia do conhecimento por este – constitui, pois, uma questão fundamental da tutela concursal e deve aqui ser ligada à estatuição do artigo 21º, nº 1 do CPC:”[a]s […] pessoas colectivas e sociedades são representadas por quem a lei, os estatutos ou o pacto social indicarem”, existindo aqui, quanto a uma sociedade declarada insolvente, atribuição legal da respectiva representação em juízo, incumbindo ao juiz (pressupõe-se, obviamente, o conhecimento da realidade relevante) “[…] ordenar a citação do réu em quem o deva representar […]” (trecho inicial do artigo 24º, nº 2 do CPC; v., quanto ao suprimento deste desvalor na dinâmica de um processo, o disposto no artigo 23º do CPC).

Sublinhar todas estas circunstâncias é relevante para a presente situação, pois, de todas elas extraímos um importante elemento interpretativo de resolução de questões do tipo da que aqui se coloca: pretende-se (pretende o legislador) realizar una efectiva tutela concursal protegendo a integridade da massa insolvente, sendo que essa tutela passa pela construção de uma garantia de que, decretada a insolvência, todas as actuações que possam influenciar o valor da massa, designadamente as que se materializem em processos judiciais, sejam referenciadas ao administrador e passem por este, e não pelo próprio insolvente. Esta tutela, associada à dinâmica de uma acção dirigida contra a sociedade insolvente, convoca as diversas normas respeitantes à representação judiciária e ao poder-dever do juiz de obstar e de resolver, quando detectado, esse desvalor processual.

2.1.1. (a) Tendo isto presente, ocorre sublinhar que a realização, no desconhecimento da declaração de insolvência, da citação postal na forma empregue para as pessoas colectivas, não implica aqui uma garantia efectiva, – e não sustenta uma afirmação segura –, de que a circunstância da acção ter sido proposta contra o insolvente seja adequada e efectivamente transmitida ao administrador.

Com efeito, o emprego da citação por via postal no caso de uma pessoa colectiva, e em especial de uma sociedade, traduzindo-se na entrega de determinados documentos a alguém que se encontra numas determinadas instalações (artigo 236º do CPC)[9], sem indagações adicionais quanto ao estatuto funcional dessa pessoa relativamente ao ente colectivo a citar, assenta numa espécie de presunção de existência naquele local de alguma forma de organização funcional dessa pessoa e que tal circunstância conduzirá a que essa entrega acabe por ser efectuada, mesmo que indirectamente, a quem, por administrar e representar essa pessoa colectiva, é o verdadeiro destinatário material do acto de citação – é o verdadeiro destinatário daquilo que através dessa forma de comunicação se pretende transmitir.

Ora, após a declaração de insolvência, sendo o destinatário directo do acto o administrador da insolvência (no sentido de ser este quem pode reagir a esse acto em representação daquela pessoa colectiva), toda a construção lógica em que assenta a presunção de efectivo conhecimento desse acto por quem dispõe de poderes para a ele reagir, entra em crise, não sendo possível afirmar, pelo menos com alguma segurança, que a entrega da correspondência naquele local implicou a transmissão da mesma ao administrador da insolvência e que, em função disso, seja possível dar por desencadeados, nesses termos, os importantes efeitos processuais e substantivos decorrentes da prática, ritualmente correcta, do acto de citação. E isto sem prejuízo das dúvidas que, consistentemente, a situação de insolvência acarreta quanto à continuidade de um efectivo funcionamento da pessoa colectiva naquele local.

A importância do acto de citação, que o funcionamento da cominação semi-plena ilustra plenamente neste caso concreto, justifica cautelas (que o legislador, em casos como estes, reforça no artigo 483º do CPC), sendo que se considera haver falta de citação “[q]uando se demonstre que o destinatário da citação pessoal[[10]] não chegou a ter conhecimento do acto, por facto que não lhe seja imputável” (artigo 195º, nº 1, alínea e) do CPC).

Neste caso, embora a situação configurada não corresponda exactamente à demonstração de que o destinatário da citação pessoal (percebendo-se agora que este era o administrador da insolvência) não chegou a ter conhecimento do acto por facto exterior ao próprio, fica, todavia, em crise, como antes se disse, a natureza ritualmente correcta do acto de citação, podendo afirmar-se que não foram observadas as formalidades prescritas na lei, em vista da pré-existente declaração de insolvência da citada.

O caso deve ser reconduzido, pois, em nosso entender, à nulidade da citação prevista no artigo 198º do CPC (a citação directa do administrador e não de outrem constitui uma formalidade estabelecida na lei)[11], considerando-se que a não intervenção do administrador da insolvência neste processo, enquanto verdadeiro destinatário directo que era dessa citação, preenche o condicionalismo de tempo que ainda permite a suscitação de tal nulidade, nos termos decorrentes do nº 2 do mesmo artigo 198º[12], sendo evidente que a falta cometida (a não efectivação da citação na pessoa do administrador) pode ter prejudicado efectivamente a defesa do citado, como requer o nº 4 da mesma disposição.

É este o resultado decisório que aqui haverá que estabelecer, correspondendo ele, no essencial, ao atendimento de uma das dimensões do primeiro fundamento da apelação enunciado no item 2. deste Acórdão. Procede, pois, o recurso, ficando em função desta procedência prejudicadas as outras questões suscitadas pela Apelante (aqui temos a incidência prática da aplicação do trecho inicial do artigo 660º, nº 2 do CPC, antevista no item 2., supra).

Resta, assim, formular a competente decisão, subsequentemente à indicação, em sumário imposto pelo nº 7 do artigo 713º do CPC, dos elementos centrais do antecedente percurso argumentativo:


I – Traduzindo a declaração de insolvência um facto sujeito a publicidade, designadamente através do seu registo, o desconhecimento de tal facto por quem interpõe uma acção contra uma sociedade anteriormente declarada insolvente, pode-lhe ser imputado (ao A. desta acção), quanto às consequências processuais induzidas pela não citação do administrador da insolvência, quando tal circunstância (a prévia declaração de insolvência) é conhecida no processo;
II – A citação de uma sociedade no local da sede por via postal, assenta na presunção da existência aí de uma estrutura funcional que conduza o conhecimento desse acto àqueles que representam essa sociedade;
III – Este pressuposto deixa de se verificar quando a sociedade foi declarada insolvente e a sua representação em juízo passou a competir ao administrador da insolvência;
IV – A não citação do administrador da insolvência traduz a inobservância das condições e formalidades estabelecidas na lei para a citação dessa sociedade, sendo a irregularidade apta a prejudicar o exercício da defesa desta;
V – A não intervenção do administrador no processo, enquanto destinatário directo do acto, torna tempestiva a arguição da nulidade pela própria sociedade em sede de recurso, particularmente tendo funcionado revelia dessa sociedade R. nos termos do artigo 484º do CPC.


III – Decisão


            3. Assim, concedendo-se provimento ao recurso, anula-se a citação da R. C…, S.A., consubstanciada no aviso de recepção de fls. 26, determinando-se a realização de tal citação na pessoa do Administrador da insolvência da sociedade R.

            Custas pelos Apelados.


[1] Elemento temporal este (ou seja, processo iniciado posteriormente a 01/01/2008) que determina a aplicação do regime dos recursos introduzido pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Pela mesma razão, qualquer disposição do Código de Processo Civil adiante referida neste Acórdão, cujo texto tenha sido alterado pelo DL 303/2007, sê-lo-á na versão resultante deste Diploma.
[2] V. conclusão IV, supra transcrita.
[3] V. as conclusões VI e VII, supra transcritas.
[4] V. as conclusões VIII, IX e X, supra transcritas.
[5] A alternatividade intui-se da passagem da motivação onde este segundo fundamento da apelação é indicado “[s]em prejuízo das excepções [antes] identificadas” (v. fls. 36).
[6] Ou seja, uma acção relativamente à qual o artigo 85º, nº 1 confere ao administrador da insolvência a possibilidade de requerer a respectiva apensação ao processo de insolvência.
[7] “O suprimento das limitações dos poderes de que o devedor é privado faz-se por via de representação, segundo o regime dos nºs 3 a 5 [do artigo 81º do CIRE].
Por força do nº 4, a representação do devedor cabe ao administrador da insolvência, sendo nele definida em termos genéricos que exigem alguns comentários. Em verdade, diz este preceito que o administrador representa o devedor «para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessam à insolvência».
Esta fórmula tem um alcance que vai muito para além do que o suprimento das limitações dos poderes do insolvente exige. Por isso, o próprio legislador sentiu necessidade de, logo no número seguinte, esclarecer – e bem – que a representação não se refere a actos através dos quais o devedor intervém no próprio processo de insolvência, seus incidentes e apensos, a menos que a lei o determine.
Noutro plano, no exercício da representação, o administrador da insolvência pode ter poderes mais amplos do que aqueles de que o devedor é privado. Assim resulta do nº 3. Estão aqui em causa limitações do poder de disposição impostas ao devedor, por razões alheias à insolvência, que tenham por fonte uma decisão judicial ou administrativa, mas também a própria lei, quando impostas apenas em favor de pessoas determinadas. […].
A explicação deste regime é fácil de fazer. Para além de assim se agilizar a actuação do administrador na satisfação do interesse dos credores, dá-se a circunstância de a intervenção de um terceiro – o administrador – afastar, na normalidade dos casos, os riscos envolvidos na prática do acto pela pessoa em função da qual a limitação é estabelecida – o devedor.” (Luís A. Carvalho Fernandes, João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, vol. I, Coimbra, 2006, p. 341).
[8] Fala-se a este respeito, sublinhando sempre a inadequação do termo incapacidade, desde logo por não visar a defesa dos interesses do próprio devedor, em “indisponibilidade relativa dos bens que constituem a massa falida” (Manuel A. Domingos de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, reimpressão, Coimbra, 2003, pp. 115/116), de “ilegitimação” para a prática de determinados actos (António Mota Salgado, Falência e Insolvência, Guia Prático, 2ª ed., Lisboa, 1987, p. 94) ou de “inibição” (António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Comercial, 2ª ed. Coimbra, 2007, p. 433).
[9] Diz o nº 1 deste que “[a] citação por via postal faz-se por meio de carta registada com aviso de recepção, de modelo oficialmente aprovado, dirigida ao citando e endereçada […], tratando-se de pessoa colectiva ou sociedade, para a respectiva sede ou para o local onde funciona normalmente a administração, incluindo todos os elementos a que se refere o artigo 235º e ainda a advertência, dirigida ao terceiro que a receba, de que a não entrega ao citando, logo que possível, o fará incorrer em responsabilidade, em termos equiparados aos da litigância de má fé.
[10] A citação postal corresponde a uma citação pessoal (artigo 233º, nº 2, alínea b) do CPC).
[11] Neste sentido, v. Acórdão da Relação do Porto de 05/01/2004 (Martins Lopes), na Colectânea de Jurisprudência, tomo I/2004, pp. 163/165: “[e]stá ferida de nulidade a citação de uma sociedade para a acção de despejo, na pessoa do seu representante, em momento posterior à sentença que a declarou em estado de insolvência” (ponto II do sumário).
[12] Sem a intervenção do administrador da insolvência no processo, não se considera, independentemente do transcurso do prazo de contestação referido à indevida citação da própria sociedade, que já tenha ocorrido o facto apto a desencadear a contagem desse prazo e a precludir o direito de invocar a nulidade da citação, nos termos previstos no nº 2 do artigo 198º do CPC.