Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1994/09.6TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
VALOR PROBATÓRIO
DECLARAÇÃO NEGOCIAL
INTERPRETAÇÃO
DEPÓSITO BANCÁRIO
Data do Acordão: 03/06/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU – 2º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 236º, Nº 1 DO C. CIV.
Sumário: I – A consideração de um facto como provado assenta, em processo civil, num juízo de preponderância em que esse facto provado se apresente, fundamentadamente, como mais provável ter acontecido do que não ter acontecido.

II – Idealmente, explicitando percentualmente esta asserção, poderemos dizer que o limiar da prova corresponderá a qualquer percentagem superior a 50% desse facto ter acontecido (correspondendo 50% à não prova).

III – A conclusão entre um Banco, representado pelos seus funcionários, e um seu cliente de um acordo global envolvendo a constituição de diversos depósitos a prazo mediante condições especificamente acordadas entre aqueles e este, assenta em declarações negociais cruzadas cujo significado está sujeito à regra interpretativa prevista, quanto ao sentido de uma declaração negocial, no artigo 236º, nº 1 do CC.

IV – Vale assim, quanto às concretas condições em que foram contratados esses depósitos a prazo, o sentido que o cliente, enquanto declaratário normal naquelas condições, deu às declarações a propósito emitidas por esses funcionários bancários.

V – Daí que, se essas declarações, indo ao encontro da opção do cliente por uma aplicação que não envolvesse qualquer risco para o valor em euros do capital depositado a prazo, indicaram como adequado a tal efeito um depósito a prazo em moeda estrangeira (por poder propiciar uma remuneração mais atractiva), não possa o Banco vir posteriormente restituir valor menor que o capital depositado, com o argumento da depreciação cambial da moeda estrangeira na qual o depósito foi aplicado.

VI – É que, nestas circunstâncias, a declaração negocial do Banco valeu, relevantemente para o cliente, como o assumir por aquele (pelo Banco) do risco cambial inerente à aplicação em moeda estrangeira.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


            1. Em 12/06/2009[1], D… e a sociedade V…, Lda. (AA. e Apeladas no presente recurso), demandaram o Banco A… (R. e aqui Apelante), invocando a constituição em 2007 de alguns depósitos a prazo neste Banco, a 90 dias e com uma remuneração mínima de 5,2% e máxima de 8%, sendo que a aplicação em moeda estrangeira (dólares e libras esterlinas) pelo Banco dos valores depositados pelas AA., não envolveria – e estamos a reproduzir a tese das AA. expressa no articulado inicial –, em função de alterações cambiais desfavoráveis (depreciações da moeda em causa relativamente ao euro), qualquer diminuição do valor depositado em euros e remunerado à taxa mínima de 5,2%[2].

            Sucede que, tendo as AA. detectado em Novembro de 2007 diminuições no valor inicialmente depositado, na contabilização feita pelo Banco R., desencadearam uma reunião (em 27/11/2007) com este visando resgatar imediatamente os depósitos no seu valor em euros, sendo que, mediante contraproposta do Banco (apresentada nesta reunião através do seu representante …), teria ficado subsequentemente consensuado o seguinte:
“[…]
Face às propostas apresentadas pelo Banco ficou verbalmente acordado entre as partes (Banco, aqui R./AA. […]) o seguinte:
Os depósitos mantiveram-se na agência e o Banco, aqui R., ficou com o direito de gerir por sua conta e risco os depósitos até 27/05/2008, e obrigou-se a, nesta data de vencimento, devolver, em euros, às AA. os capitais iniciais depositados em euros e remunerados a uma taxa de juro de 5,2% ao ano e computados desde as datas de constituição referidas no artigo 2º da p.i.
[…]”
            [transcrição de fls. 6].

            Sucede que o R. – e continuamos a indicar os argumentos das AA. – não cumpriu este acordo “[propondo-se], apenas, reembolsar, em euros, às AA. o capital inicialmente depositado, alegando prejuízos com esta operação” (transcrição de fls. 7), apenas creditando as contas dos AA. por este valor sem os juros à taxa (combinada com as AA.) de 5,2%.

            É, pois, o valor dos juros – desses juros à taxa de 5,2% e tomando como data de vencimento 27/05/2008 – que as AA. pretendem obter na presente acção, formulando os seguintes pedidos:
“[…]
[Ser] a R. condenada a pagar o seguinte:
1. À 1ª A., e com respeito ao depósito supra 2.1.1.: a quantia, de capital, no montante de €19.557,53, acrescendo €724,43 de juros vencidos[[3]], e nos que se vencerem à taxa de 05,20% até integral pagamento;
2. À mesma A. e com respeito ao depósito supra 2.1.2.: a quantia, de capital, de €5.307,96, acrescendo €196,61 de juros vencidos, e nos que se vencerem à taxa de 05,20% até integral pagamento;
3. À 2ª R. e com respeito ao depósito supra 2.2.1.: a quantia, de capital, no montante de €2.435,89, acrescendo €84,96+€91,30 de juros vencidos, e nos que se vencerem segundo as taxas estabelecidas pela Portaria nº 1105/02, de 16/10, e que actualmente é de 09,50%, até integral pagamento;
4. À 2ª A. e com respeito ao depósito supra 2.2.2.: a quantia, de capital no montante de €41.249,86, acrescendo €1.438,71 + €1.556,75 de juros vencidos, e nos que se vencerem segundo as taxas estabelecidas pela Portaria nº 1105/02, de 16/10, e que actualmente é de 09,50%, até integral pagamento.
[…]”
            [transcrição de fls. 12/13]

            1.1. A R. contestou impugnando a pretensão das AA. referindo aqueles depósitos a prazo em moeda estrangeira, no seu retorno aos depositantes, às contingências das flutuações cambiais, podendo estas originar, por depreciação da moeda considerada relativamente ao euro, valores inferiores ao depósito inicial em euros. Foi – afirma-o o R. – o que sucedeu com os depósitos das AA. em moeda estrangeira, logo à partida e posteriormente à falada reunião de 27 de Novembro de 27/11/2007[4].

           

1.2. Realizado o julgamento, fixados que foram, a culminar este, os factos provados (vale a tal respeito o despacho de fls. 419/422), foi a acção decidida através da Sentença de fls. 426/437esta constitui a decisão objecto do presente recurso –, julgando-a integralmente procedente, condenando o R. nos seguintes termos:
“[…]
[P]agar às AA.:
a) D… a quantia global de €24.865,59 (vinte e quatro mil oitocentos e sessenta e cinco euros e cinquenta e nove cêntimos) acrescida de juros vencidos e vincendos desde 8 de Setembro de 2008 à taxa de 05,20% até integral pagamento;
b) V…, LDª, a quantia global de €43.685,75 (quarenta e três mil seiscentos e oitenta e cinco euros e setenta e cinco cêntimos) acrescida de juros vencidos e vincendos, às taxas legais comerciais que se forem sucedendo desde 8 de Setembro de 2008 até integral pagamento.
[…]”
            [transcrição de fls. 437]

            1.3. Inconformado com a perda da acção, apelou o Banco R. a fls. 442/543, formulando as seguintes conclusões a rematar a motivação:
“[…]

            1.3.1. As Apeladas responderam ao recurso pugnando pela confirmação da Sentença recorrida.


II – Fundamentação

2. Neste recurso, como em qualquer outro, as conclusões – mesmo quando, como é o caso, apresentam extensão manifestamente desproporcionada aos argumentos pretendidos esgrimir no recurso – operam a delimitação temática do respectivo objecto, nos termos dos artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC)[5].

Assim, reconduzindo as conclusões à sua verdadeira essência, constata-se pretender o Banco Apelante, desde logo – no que constituirá o primeiro fundamento do recurso (a) – discutir uma parte substancial dos factos considerados provados na primeira instância (os consubstanciados nas respostas aos quesitos 1º a 9º e 13º e 14º da base instrutória), através da suscitação do exercício por este Tribunal dos poderes de modificação da decisão de facto previstos nos nºs 1 e 2 do artigo 712º do CPC[6]. Adicionalmente – no que constituirá o segundo fundamento do recurso (b) – pretende a Apelante, com ou sem a almejada modificação dos factos, discutir os pressupostos jurídicos que conduziram o Tribunal a quo ao resultado decisório expresso na procedência da acção, por consideração da relevância de uma alteração ao contrato de depósito primitivo (introduzida numa reunião ocorrida em 27/11/2007) que projectava a permanência do depósito até 27/05/2008, com a restituição, então, do capital remunerando-o, pelo menos, à taxa de 5,2% – note-se que estamos a expor a ratio decidendi do pronunciamento da primeira instância, nos termos em que esta resulta do trecho expositivo de fls. 435/437 da Sentença.

Da Questão de Facto

2.1. Os factos fixados na primeira instância foram os seguintes (e são aqui indicados com a ressalva de que o recurso do Apelante visa alterá-los em alguns pontos que a transcrição infra assinalará):
“[…]

            2.2. (a) Interessa a este primeiro fundamento do recurso, como ponto de partida, o elenco dos factos acabado de transcrever, estando em causa, como indicámos acima, as respostas positivas (todas as respostas aqui contestadas foram de teor irrestritamente positivo) aos quesitos 1º a 9º e 13º e 14º da base instrutória de fls. 356/359[7], respostas estas que vieram a originar os itens 17 a 21 e o item 23 do elenco dos factos provados.

            Está em causa no primeiro grupo destes factos (17 a 21), grosso modo, a caracterização das incidências dos depósitos a prazo em moeda estrangeira contratados entre o Banco R. e as AA., particularmente no que respeita à repercussão do risco da aplicação em moeda estrangeira desses depósitos na integralidade do capital depositado em euros. O segundo bloco de factos, que acabaram por corresponder, agregadamente considerados, ao item 23, respeita ao acordo adicional de alteração dos termos do depósito – e estamos a seguir, como explicitaremos mais à frente, o iter decisório da Sentença apelada – decorrente da reunião de 27 de Novembro de 2007 entre o cliente V… (quem contratou em nome das AA.) e os funcionários do Banco R. ...

            Note-se que foi este segundo aspecto dos factos, expresso no item 23, e não tanto os factos em causa nos itens 17 a 21, em si mesmos considerados, que acabou por funcionar como verdadeira ratio decidendi da procedência da acção, sendo certo que o Tribunal a quo acabou por referir a condenação do Banco a satisfazer aquelas quantias não tanto ao sentido do acordo inicial, nos termos em que o caracterizou, como ao acordo adicional – rectius, à posterior alteração do contrato – decorrente da reunião de 27/11/2007 indicada no ponto 14 do mesmo elenco de factos, sendo através do item 23 que determinamos alcançamos qual foi o resultado desta reunião. Queremos com isto dizer, enfim, que não sendo irrelevantes os termos (iniciais, chamemos-lhe assim) em que foram contratados os depósitos a prazo no Banco R. – e os factos não deixam de descrever essa incidência nos itens 17 a 21 –, acabou por ser o que, independentemente de tudo o mais, foi acordado nessa reunião de 27 de Novembro que acabou por determinar a condenação do Banco naquilo que mais não expressou que o adicionar à devolução do capital em euros o valor correspondente à aplicação a este da taxa de juros de 5,2%[8].

            2.2.1. (a) Numa caracterização geral dos termos em que aqui, na segunda instância, se procederá ao reexame dos factos, sublinharemos assentar essa reapreciação no que consideramos corresponder a um indeclinável dever de valoração directa dos elementos probatórios documentais existentes nos autos, propostos como fontes de prova por ambas as partes ao longo da marcha do processo, e numa valoração mediata da prova pessoal (da prova testemunhal) adrede produzida. O carácter intrinsecamente mediato (indirecto se assim quisermos dizer as coisas) do controlo deste último tipo de prova (a prova pessoal oralmente produzida perante o julgador a quo), controlo que assenta na audição de registos áudio aos quais escapam, pela própria natureza das coisas, uma ou outra das incidências significativas do acto probatório presenciado pela instância precedente. Tal carácter mediato da percepção associada ao acto de reapreciação referido a esta dimensão da prova, não conduz, todavia, a que esta Relação substitua a formação da sua própria livre convicção quanto ao sentido dessa prova, por um mero controlo da fundamentação e da plausibilidade do resultado probatório alcançado na instância precedente, no sentido em que a confirmação de uma qualquer asserção de facto presente no julgamento da primeira instância decorreria da simples constatação de ser ela (essa asserção) tão plausível, face à prova testemunhal, como a asserção contrária[9]. Ou seja, ouvindo o registo da prova formará – formou – esta Relação um entendimento próprio quanto aos factos provados, assente na sua própria livre valoração da prova testemunhal, posicionando-se a coincidência ou a divergência deste Tribunal de recurso com o elenco factual recebido da primeira instância como produto de um julgamento autónomo, tributário de uma valoração própria.

Adoptaremos aqui, portanto, na reapreciação dos trechos da matéria de facto criticados pelo Apelante e actuando no quadro do artigo 712º, nº 1 do CPC, dispondo nós de acesso a todos os meios de prova relevantes, seguiremos aqui, dizíamos, a chamada “tese do poder-dever da Relação formar uma convicção própria sobre os factos”[10].

A isto acresce – e continuamos a mover-nos no quadro preambular da caracterização do julgamento dos factos em sede de recurso – que aquilo que qualificamos como “limiar da prova”, referindo-nos ao limite valorativo da prova, se assim nos podemos expressar, que suporta a afirmação de estar provado um determinado facto, corresponde, numa acção cível, a um juízo de preponderância da hipótese afirmada como provada no confronto com a afirmação contrária, em termos de se sustentar como realidade “mais provável do que não” (“more likely than not[11]). Vale isto pela afirmação de que não se requer aqui, contrariamente ao que sucede na valoração da prova no ambiente de um processo penal, a ultrapassagem de todos os estados de dúvida razoáveis quanto à correspondência de determinado facto à realidade (o chamado standard caracterizado como “beyond a reasonable doubt”).

É certo que estamos num domínio em que a conceptualização – qualquer conceptualização que venha a ser empregue – se apresenta como difusa, não deixando de assentar numa visão subjectiva (a do julgador) das coisas. Sendo impossível ultrapassar este subjectivismo – o subjectivismo de quem julga, porque é preciso que alguém julgue[12] –, a solução está em fornecer um modelo de controlo desse acto – mesmo que dum controlo mínimo se trate –, através da actuação de um ónus de fundamentação reportado ao modelo decisório adoptado, tornando perceptível, neste caso, o porquê de uma determinada asserção fáctica (as coisas sucederam desta forma e não de outra) dever ser considerada como “mais provável do que não” e, consequentemente, como provada.

Podemos, com efeito – pode esta Relação tal como o pôde o Juiz de primeira instância –, dar determinada realidade factual como provada se da valoração da prova, testemunhal, documental, etc., respeitados os parâmetros de apreciação de cada tipo de prova, resultar como justificadamente mais plausível que – para falarmos das concretas incidências do caso concreto – o Banco R., porventura o seu responsável local, tenha estabelecido com os AA. que o respectivo depósito a prazo em moeda estrangeira (isto inexistindo um acordo escrito inequívoco a tal respeito) estivesse sujeito a um valor mínimo garantido em euros correspondente ao capital depositado (em euros) mais uma remuneração de 5,2%, podendo alcançar maiores remunerações, até um máximo de 8%, se a variação cambial decorrente da aplicação pelo Banco em moeda estrangeira propiciasse um ganho superior aos 5,2%. Da mesma forma, pode esta Relação dar como provada a realidade subjacente ao item 23 dos factos se, valorando os depoimentos das testemunhas, considerar como mais provável que na tal reunião do dia 27 de Novembro de 2007, quem aí representava a posição do Banco R. (…) tenha proposto a manutenção dos depósitos até ao subsequente dia 28 de Maio de 2008, garantindo aos depositantes o valor do capital em euros com, pelo menos, 5,2% de juro.

É disto – é deste tipo de entendimento da valoração da prova – que se trata na subsequente exposição.

Importa ainda – e assim esgotamos a apreciação preambular referida ao controlo dos factos fixados pela primeira instância –, constatada a falta de um suporte documental inequívoco de qualquer das afirmações das partes (não existe aqui qualquer texto “contratual” directamente referido àquelas aplicações a prazo), importa assim, dizíamos, constatar que esta falta de documentos ilustra essa característica do Direito Bancário, geralmente referida como “princípio da simplicidade”. Este – esta característica dos actos bancários – facilitando a actividade bancária e servindo de quadro referencial das relações Banco-Cliente, dificulta as coisas quando essas relações evoluem, como aqui sucedeu, para uma fase patológica, tornando difícil, frequentemente, reconstruir as incidências contratuais cruzadas travadas ao abrigo dessa simplificação de procedimentos[13]. Com efeito, fala-se a este respeito – e trata-se de descrever uma realidade que se desenvolve substancialmente à margem de regulamentações específicas – de um primado do consensualismo a par de uma reformalização normalizada, em que a vontade dos intervenientes tende a produzir efeitos fora dos quadros formais tradicionais da celebração por escrito daquele concreto negócio, mas adoptando modelos normalizados, existentes no Banco, que não abarcando os exactos contornos do negócio em todas as suas incidências, induzem, instrumentalmente, os efeitos pretendidos alcançar pelas partes e ilustram, embora tendencialmente, algumas das condições acordadas entre elas[14]. Interessa esta característica do Direito Bancário ao caso concreto no quadro da compreensão de alguns dos documentos juntos pelo Banco R., caso dos documentos nºs 1 e 2 juntos com a contestação (fls. 76/84 e 86/88) e dos documentos nºs 6 e 7 juntos nas mesmas circunstâncias (fls. 107/113). Efectivamente, revelam estes documentos, em algumas das suas incidências, os padrões formais que foram instrumentais de diversos trechos do relacionamento das AA. com o Banco R., relativamente aos depósitos a prazo em moeda estrangeira, mas não contêm estes mesmos documentos (e outros existentes nos autos devem ser vistos no mesmo contexto) os negócios em si mesmos, abrindo-se caminho para a procura do conteúdo desses negócios, na sua evolução diacrónica, recorrendo ao relato das testemunhas quanto ao que foi efectivamente combinado entre o Banco e os AA. relativamente aos depósitos a prazo aqui em causa.

Aliás, só assim se compreende – e trata-se de uma afirmação consensual a todas as testemunhas que trabalharam ou trabalham paro o Banco R. e intervieram no relacionamento com as AA. – que tenham existido reuniões com as clientes aqui AA. nas quais, sem uma formalização específica, eram propostos produtos bancários e se alcançavam pontos de encontro entre os intervenientes quanto às incidências do relacionamento entre o Banco e aqueles clientes. Daí que, vistos os documentos que as partes juntaram aos autos e ouvidas todas as testemunhas[15], alcance esta Relação o entendimento, em aberto contraste com a afirmação do Apelante na conclusão 50 do seu recurso, de que o Banco, dispondo de modelos gerais de produtos – chamemos-lhe assim – que disponibiliza aos seus clientes, não exclui adaptações adicionais da estrutura base desses produtos à obtenção de efeitos específicos que negoceia com os seus clientes. Assim, os produtos bancários pré-definidos no “menu” do Banco valem, frequentemente, como o veículo mais adequado a um determinado fim, sendo que este (o fim) não deixa de ser, usando um determinado veículo, isso mesmo: aquilo que o Banco e o Cliente estabeleceram numa negociação, quando dessa negociação nasceu, de acordo com os cânones interpretativos de um negócio jurídico, uma realidade negocial decorrente desse processo (negocial). E é assim que a negociação conducente a um determinado resultado se abre, como adiante observaremos, às incidências próprias do modelo interpretativo fornecido pelo artigo 236º do Código Civil (CC), quanto a todos os negócios jurídicos, pois nada de especifico nas relações travadas entre um Banco e um cliente que conduzem à conclusão de negócios entre ambos subtrai as declarações respectivas à incidência da problemática geral da interpretação dos negócios jurídicos. É certo que os modelos negociais oferecidos por um Banco aos clientes tendem, muitos deles (embora não todos), a encaixar-se em padrões pré-definidos, mas a aplicação desses modelos às situações concretas é feita num ambiente negocial, de oferta (de proposta) e de aceitação desta, que não pode prescindir, quando se suscitam relevantes problemas de interpretação (como aqui se suscitaram), de uma ulterior fixação do sentido em que valeram as declarações negociais emitidas, por referência às regras gerais de interpretação dos negócios jurídicos.

Sendo estes os pressupostos de apreciação da prova, em sede de controlo da adequação dos factos fixados pela primeira instância, é tempo de nos referirmos aos pontos concretos da matéria de facto criticados pelo Apelante, sendo que essa apreciação será em larga medida tributária das antecedentes considerações.   

2.2.2. (a) Começando pelos pontos 17 a 21 do elenco fáctico, incidindo estes sobre o conteúdo do acordo inicial, correspondente aos quatro depósitos a prazo em moeda estrangeira efectuados pelas AA., mediante decisão de V…, sublinharemos a afirmação, consensual no depoimento dos diversos funcionários do Banco que trataram com o verdadeiro representante das AA., o referido V…[16], de que este último apresentava (logo as AA. apresentavam) um acentuado perfil de cliente conservador no tipo de aplicações que aceitava realizar, correspondendo isto a uma recusa – por diversas vezes manifestada e enfaticamente reiterada ao Banco[17] – de aplicações que não envolvessem uma completa garantia da intangibilidade do capital inicialmente aplicado. Ora, atendendo à centralidade deste elemento no critério de escolha (no processo de escolha racional) de V… quanto às aplicações de dinheiro por ele promovidas, e conjugando os depoimentos das testemunhas[18] com o teor do documento de fls. 101/102[19], entendemos que as respostas aos quesitos aqui em causa (as respostas aos quesitos 1º a 9º) recolhem o sentido das aplicações a prazo realizadas por V… através das AA. Com efeito, sendo compatível com as características dos negócios celebrados recolhidas nessas respostas, designadamente na atribuição do risco cambial ao Banco, a descrição constante do “Manual de Negócio” junto pelo Apelante a fls. 101/102 (v. nota 21, supra; “[p]ermite [ao cliente] beneficiar de oscilações cambiais favoráveis”), tendemos a valorar o depoimento  da testemunha … (Director da Agência do R. ao tempo da constituição dos depósitos) como apontando no sentido de ter sido oferecido ao cliente, como proposta com potencialidade concorrencial no mercado bancário em que este se movia[20], um depósito com uma taxa base garantida de 5,2%, com intangibilidade do valor depositado em euros e com a possibilidade adicional de, através de uma variação cambial favorável – e estamos a falar de dólares e de libras esterlinas –, o Banco ampliar a remuneração do depósito de 5,2% até aos 8%.

Cremos ser este o sentido do depoimento da testemunha …[21], o qual, embora pretendendo gerir com alguma reserva as suas palavras (particularmente quando interrogado pela Advogada do Banco), acabou por caracterizar a remuneração dos depósitos fundamentalmente nos termos recolhidos nas respostas aqui criticadas pelo Apelante. Da mesma forma, apontando em idêntico sentido na valoração que dele faz esta Relação ao confirmar as respostas da primeira instância, consideramos o depoimento da testemunha …, que reputamos de particularmente relevante, isento e objectivo, ao indicar estar convencida que o V… (na reunião com o … em 27/11/2007) estava sinceramente convencido – traduzindo isso a convicção que lhe haviam criado – que as condições do depósito lhe garantiam, pelo menos, a incolumidade do valor em euros depositado mais uma taxa remuneratória mínima de 5,2%[22], acrescentando esta testemunha (…) que esse convencimento (quanto ao sincero entendimento do V… dos depósitos nos termos enunciados nos pontos 17 a 21 dos factos) foi partilhado pelo seu colega … na reunião de 27/11/2007, que este, nessas circunstâncias, aceitou que estivesse em causa um erro atribuível ao Banco, propondo este último, no sentido de evitar a ruptura com o cliente (um “bom cliente” e o senhorio da própria agência), a solução de compromisso que se expressou – e isto interessará ao subsequente ponto 2.2.3. (a) deste Acórdão – na resposta aos quesitos 13º e 14º da base instrutória (que correspondeu ao item 23 dos factos)[23]. Note-se que esta mesma ideia de sinceridade do V… quanto ao entendimento dos depósitos a prazo, expressa num genuíno espanto quando confrontado com um outro entendimento, foi inteiramente corroborado pela testemunha …, também funcionária da agência (v. a fundamentação a fls. 419/420). 

Vale tudo isto relativamente à fixação do entendimento do V… das condições em que contratou com o Banco aqueles depósitos a prazo em moeda estrangeira, no quadro da interpretação da declaração negocial que lhe foi transmitida pelo Banco (o declarante ali representado pelo Director …, funcionando aqui o V…, enquanto destinatário dessa declaração, como declaratário). Interessa-nos, pois – e este elemento reflecte-se no nosso entendimento do conteúdo do negócio –, tomando por base o critério plasmado no nº 1 do artigo 236º do CC, referente ao sentido normal da declaração, a caracterização do negócio, nos termos intuídos pelo V… (nos termos subjacentes aos pontos 17 a 20 dos factos, v. em especial o ponto 20), como o sentido que um declaratário normal confere a um depósito a prazo[24], sentido este que sai amplamente reforçado na consideração das particularidades daquele concreto declaratário (“um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real”, como diz o artigo 236º, nº 1 do CC), conhecido ele do Banco nessas particularidades (de declaratário real), como – os próprios funcionários do Banco assim o definiram – um “cliente muito conservador” nas opções de aplicação do seu dinheiro (v. nota 20, supra e texto que para ela remete).

Estamos aqui, na confirmação das respostas da primeira instância aos quesitos 1º a 7º da base, a realizar uma aplicação prática do entendimento, quanto ao sentido daqueles negócios, do artigo 236º, nº 1 do CC com base na chamada “teoria da impressão do destinatário”. Com efeito, reconhecendo que estamos, neste passo argumentativo, a tratar, em essência, de uma “questão-de-direito”[25], temos presente que a génese do artigo 236º do CC aponta para a consagração desse entendimento, fundamentalmente tributário da orientação preconizada por Manuel de Andrade:
“[…]
Abraçamos quanto à maior parte dos negócios jurídicos a teoria da impressão do destinatário. Segundo nos parece, o declaratário deve naturalmente perguntar-se, quando se trata de fixar o sentido da respectiva declaração negocial, o que quis dizer o declarante. Mas para obter a resposta não deve ser obrigado a empenhar toda a diligência e inteligência possível, mas só a duma pessoa razoável – isto é, mediana, normal –, que estivesse na posição concreta em que ele próprio está, daí a nossa preferência por aquela teoria.
[…]”[26].

            É assim que António Menezes Cordeiro fala da consagração, no artigo 236º, nº 1 do CC, “[…] da orientação preconizada por Manuel de Andrade, ainda que um pouco mais objectivada, e acrescenta: “[n]a base deste preceito, a jurisprudência apela a uma ‘…interpretação objectiva ou normativa…’, que não se apegue somente à literalidade do texto, compartilhada por todos, mas capaz de ter em conta particularidades concretas”[27].

            Daí que – e continuamos a citar António Menezes Cordeiro:
“[…]
O artigo 236º/1 do CC tem subjacente o problema clássico da determinação da bitola da diligência. Como resulta claro do texto de Manuel de Andrade, perante uma declaração de vontade, o destinatário – que se considere habilitado a aceitá-la – deve fazer um certo esforço para se inteirar do seu significado. Qual o quantum de esforço exigível? Uma fasquia subjectiva, variável com as circunstâncias, vem premiar os néscios e os desinteressados. Uma fasquia fixa só estatisticamente será justa. Fica, assim, uma fasquia objectivamente variável: em cada caso se construirá (a «posição do real declaratário»), normativamente, a figura do destinatário normal. Repare-se que por esta via, podem ser recuperadas regras não explícitas na nossa lei tais como a da validação da interpretação mais directa, perante fórmulas muito claras e evidentes (in claris non fit interpretatio), a de uma «interpretação de boa fé», consagrada nos Códigos alemão (§ 157) e italiano (artigo 1366º) ou como necessidade de atender à globalidade do contrato, à totalidade do comportamento das partes – anterior ou posterior ao contrato –, à particularização das expressões verbais, ao princípio da conservação dos actos – o favor negotii – e, à primazia do fim do contrato. O declaratário normal, figura normativamente fixada, atenderá a todos estes vectores.
[…]”[28].

            Revertendo estas considerações – rectius, o modelo interpretativo do artigo 236º, nº 1 do CC – ao caso concreto, determinando o sentido em que o declaratário V… entendeu aqueles depósitos a prazo em moeda estrangeira, nos termos em que o Director da agência do Banco … de Viseu, …, lhos apresentou (intangibilidade do valor depositado em euros com uma taxa fixa de 5,2%, projectável até 8%), concluímos que as respostas aqui criticadas pelo Apelante caracterizam adequadamente a percepção que aquele declaratário afirma, nesta acção, ter sido a sua quanto ao conteúdo daqueles concretos negócios. Essa caracterização aparece-nos, pelo menos, como a mais provável (fortemente mais provável e preponderante) de ter sido induzida no V… pelo Director da agência do R., como, aliás, acabou por o reconhecer a testemunha …, ao caracterizar a posição do primeiro naquela reunião de 27/11/2007.

Vale – valeu – essa declaração negocial, pois, com esse sentido – com o sentido em que o V… a entendeu –, sendo esse mesmo sentido aquele que recolhem os pontos 17 a 20 da matéria de facto.

Note-se, enfim, quanto à adequação do facto fixado no ponto 21 do mesmo elenco, como resultado da agregação das respostas aos quesitos 8º e 9º da base instrutória, que as funcionárias do Barclays aí indicadas, …, confirmaram efectivamente a asserção presente nesse facto.

Vale tudo o que antes referimos, enfim, como confirmação integral dos factos 17 a 21 fixados na primeira instância.  

2.2.3. (a) Interessa-nos agora, ainda no quadro do fundamento do recurso reportado à impugnação dos factos, o item 23 do elenco da Sentença apelada, que acabou, como acima referimos, por constituir a verdadeira ratio decidendi dessa mesma Sentença, sendo que a condenação do Banco R. se refere (v. transcrição do correspondente trecho da Sentença na nota 10, supra) à promoção do cumprimento da alteração dos contratos acordada nesta reunião de 27 de Novembro de 2007 com o representante do Banco (o Director regional) ... A prova desta incidência, decorrente das respostas positivas aos quesitos 13º e 14º da base instrutória, já foi amplamente justificada no item anterior deste Acórdão (v. nota 25, supra e o texto que para ela remete). Limitamo-nos aqui a recordar que a testemunha … reconheceu que a posição do referido … nessa reunião foi no sentido de induzir, como posição oficial do Banco, o acordo adicional referido nesse ponto 23 dos factos.

Confirmam-se, assim, igualmente, essas duas respostas (quesitos 13º e 14º) e o correspondente item dos factos provados, improcedendo igualmente esta dimensão do recurso do Apelante. 

  

Da Questão de Direito

            2.3. (b) Assente que os factos a considerar são os que a primeira instância fixou, confirmando esta Relação essa dimensão do julgamento da acção, importa apreciar agora a operação subsuntiva que, em função desses factos, determinou a condenação do Apelante.

            Já antes, no final do item 2, fixámos os termos em que se coloca esta dimensão do recurso, sendo que ela se refere, fundamentalmente – e este aspecto foi objecto de ampla discussão ao longo do processo expositivo deste Acórdão –, às consequências da reunião de 27 de Novembro de 2007 (v. o item 23 dos factos) nos termos em que os quatro depósitos a prazo em moeda estrangeira foram mantidos até 27 de Maio de 2008, designadamente à aplicação a esses depósitos, como remuneração aí renovadamente garantida, da taxa fixada (aí reafirmada) de 5,2%.

            Foi nisto – no acrescento desta taxa ao capital depositado que o Banco acabou por devolver – que a Sentença apelada condenou o R. ora Apelante.

            Não sendo particularmente relevante para a discussão envolvida na apreciação deste fundamento do recurso a qualificação do depósito bancário, não deixaremos de sublinhar que no caso de um depósito a prazo, como aqui sucede, a figura contratual típica que maior proximidade apresenta é, directamente, a do mútuo[29] e não a do depósito irregular (do qual, aliás, também funcionaria como modelo paradigmático o contrato de mútuo).

A questão que aqui se coloca prende-se com a incidência nos depósitos a prazo das AA. do resultado da reunião de 27/11/2007, havida entre o V… e o Banco e já antes amplamente referida. Com efeito, deste encontro resultou, nos termos recolhidos pelo item 23 dos factos, um reposicionamento dos negócios consubstanciados nos depósitos a prazo, através da projecção deles (dos respectivos prazos) por mais seis meses, com o assumir pelo Banco da garantia do valor depositado em euros acrescido de uma taxa de juro de 5,2%.

            Embora pareça, à primeira vista, encarando em si mesmo o trecho dos factos aqui relevante, ter ocorrido uma outra constituição de depósitos a prazo remunerados segundo determinada taxa, integrando esse elemento no contexto global do relacionamento das AA. (através do V…) com o R., no quadro geral da aplicação dos valores referidos nos itens 5 a 8 dos factos na constituição de depósitos a prazo (com a possibilidade de aplicação em moeda estrangeira nos termos indicados no item 19), encarando as coisas neste contexto global, surge a questão da projecção de uma modificação na relação contratual global, no sentido em que sobre esta recai, sem quebra da sua identidade inicial (expressa em quatro depósitos a prazo com a possibilidade de aplicação em moeda estrangeira e com garantia de uma remuneração mínima de 5,2%), um ajustamento de condições que se reflecte – reflectiu –, fundamentalmente, no elemento tempo, mas que não deixou de abarcar a garantia daquilo (integralidade do depósito em euros e a taxa de 5,2%) que havia gerado desentendimento relativamente ao design inicial daquela relação contratual. Estamos, pois, conforme o entendeu a Sentença apelada perante modificação dos contratos iniciais [30] – para sermos rigorosos talvez se deva dizer perante a modificação da relação contratual complexa inicial em que esses contratos se integravam[31] –, incidência esta (a modificação) relativamente à qual vale a seguinte leitura do artigo 406º, nº 1 do CC: “[o] contrato […] pode modificar-se […] por mútuo consentimento dos contraentes […]”.

            Foi em função da relevância desta modificação por acordo – que respeitou a forma consensual e não formalizada aceite, desde o início, para toda a relação contratual aqui discutida[32] – que a Sentença apelada condenou o Banco R., ora Apelante, a remunerar a aplicação em euros à taxa efectivamente contratada.

            Vale tudo isto, enfim, pela afirmação da improcedência deste último fundamento do recurso reportado ao enquadramento jurídico dos factos. 

            2.4. Sendo certo – e assim culminamos a apreciação das questões suscitadas no recurso – que o Apelante insiste na condenação das AA. como litigantes de má fé, limitar-nos-emos, afastando aqui essa incidência, a sublinhar que estes (os AA.) obtiveram ganho de causa na presente acção – rectius, tinham razão na posição que sustentaram –  e que o Apelante perderá o recurso, sendo que, em qualquer das hipóteses, ambas as partes se limitaram ao longo do processo a sustentar, exercendo legitimamente o seu direito de acção, as respectivas posições, sendo que estas se abrem a interpretações díspares que aqui foram discutidas. Nada, enfim, que permita alicerçar, relativamente a qualquer das partes, uma condenação por litigância de má fé e, menos ainda, uma condenação desse tipo relativamente às AA. E o que acabámos de dizer para as razões substanciais esgrimidas pelas partes, vale inteiramente para os respectivos comportamentos processuais, espelhando estes a mais completa normalidade ritual e lisura de procedimentos.

            Sendo tão evidente a falta de suporte da afirmação de ter existido litigância de má fé, torna-se até difícil argumentar justificando essa conclusão. Trata-se, com efeito, de uma evidência relativamente à qual pouco mais se poderá dizer além de a constatar.

            2.5. Aqui chegados, esgotada a apreciação das questões suscitadas no recurso de apelação, decorrendo dessa apreciação a total improcedência deste, resta-nos conferir a expressão decisória correspondente a esse resultado, deixando antes aqui nota, como determina o nº 7 do artigo 713º do CPC, do sumário dos aspectos essenciais do antecedente percurso argumentativo:
I – A consideração de um facto como provado assenta, em processo civil, num juízo de preponderância em que esse facto provado se apresente, fundamentadamente, como mais provável ter acontecido do que não ter acontecido;
II – Idealmente, explicitando percentualmente esta asserção, poderemos dizer que o limiar da prova corresponderá a qualquer percentagem superior a 50% desse facto ter acontecido (correspondendo 50% à não prova);
III – A conclusão entre um Banco, representado pelos seus funcionários, e um seu cliente de um acordo global envolvendo a constituição de diversos depósitos a prazo mediante condições especificamente acordadas entre aqueles e este, assenta em declarações negociais cruzadas cujo significado está sujeito à regra interpretativa prevista, quanto ao sentido de uma declaração negocial, no artigo 236º, nº 1 do CC;
IV – Vale assim, quanto às concretas condições em que foram contratados esses depósitos a prazo, o sentido que o cliente, enquanto declaratário normal naquelas condições, deu às declarações a propósito emitidas por esses funcionários bancários;
V – Daí que, se essas declarações, indo ao encontro da opção do cliente por uma aplicação que não envolvesse qualquer risco para o valor em euros do capital depositado a prazo, indicaram como adequado a tal efeito um depósito a prazo em moeda estrangeira (por poder propiciar uma remuneração mais atractiva), não possa o Banco vir posteriormente restituir valor menor que o capital depositado, com o argumento da depreciação cambial da moeda estrangeira na qual o depósito foi aplicado;
VI – É que, nestas circunstâncias, a declaração negocial do Banco valeu, relevantemente para o cliente, como o assumir por aquele (pelo Banco) do risco cambial inerente à aplicação em moeda estrangeira.  


III – Decisão

            3. Assim, na improcedência da apelação, decide-se confirmar inteiramente a decisão recorrida.

            Custas do recurso a cargo do Apelante.

 
J. A. Teles Pereira (Relator)
Manuel Capelo
Jacinto Meca


[1] Trata-se da data da propositura da acção e marca a aplicação do regime de recursos decorrente do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Pela mesma razão, qualquer disposição do Código de Processo Civil adiante referida, cujo texto tenha sido alterado pelo indicado DL 303/2007, sê-lo-á na versão resultante deste Diploma.
[2] Aqui reproduzimos o trecho pertinente do articulado inicial:
“[…]
4
O acordo que levou à constituição destes depósitos foi celebrado entre, por um lado, o Dr. …, por incumbência e em representação das AA., e, por outro, o Sr. …, Gerente daquela Agência.
5
Entre ambos foi verbalmente acordado que o Banco faria a gestão conveniente daquelas quantias, inclusive, e se achasse adequado, através de aplicações em dólares e/ou libras.
6
No entanto, ficou claro entre ambos (Dr. …/Banco R., representado por …) que findos os prazos supra referidos, as AA. receberiam o capital depositado em euros e nos precisos montantes dos depósitos iniciais em euros, acrescidos dos juros, também em euros, e que deveriam ser liquidados à taxa mínima de 5,2% e máxima de 8%, dependente da evolução cambial.
Donde:
7
Ficou claro, desde o início, que, no caso do Banco R. optar por aplicar naquelas moedas (libras e/ou dólares) as quantias depositadas, o risco cambial corria por conta da R., mas não das AA.
[…]”
                [transcrição de fls. 4].
[3] Adiantando já um elemento de enquadramento jurídico da situação, aqui suscitado pela estruturação do pedido das AA. em valor respeitante a capital e a juros (quando o que as AA. pretendem é, fundamentalmente, obter o diferencial respeitante aos juros dos depósitos a prazo), diremos que as AA. realizaram através do pedido uma aplicação prática das regras respeitantes à imputação do cumprimento, relativamente ao valor depositado pela R., nos termos do artigo 785º, nº 1 do Código Civil: “[q]uando, além do capital, o devedor estiver obrigado a pagar despesas ou juros, ou a indemnizar o credor em consequência da mora, a prestação que não chegue para cobrir tudo o que é devido presume-se feita por conta, sucessivamente, das despesas, da indemnização, dos juros e do capital”. 
[4] Indica a R. na contestação:
“[…]

3.º

Refira-se ainda que, as relações entre os AA. e o R., através da agência de Viseu, sempre se caracterizaram por uma grande informalidade e assentaram na mais profunda confiança,
[…]

Em Julho de 2007, por solicitação dos AA., foi realizada uma reunião entre, por um lado, o Gerente e a Assessora Financeira do Banco R. e, por outro, o Sr. … e a sua filha, …, para aferirem qual a melhor forma de aplicar os montantes de que dispunham.

Entre os diversos tipos de investimentos possíveis, foram abordadas as vantagens e desvantagens da constituição de depósitos a prazo em moeda estrangeira, aplicações que, desde logo, captaram o interesse dos AA..

10º
No âmbito dessa reunião, os representantes do Banco explicaram detalhadamente aos clientes, ora AA., que os depósitos a prazo em moeda estrangeira eram remunerados segundo uma taxa de juro fixa, correndo por conta dos subscritores o risco da variação cambial […].
[…]
43º
Não obstante e face ao descontentamento demonstrado pelos AA. aquando da visita do Sr. … à agência de Viseu em 20 de Novembro de 2007, a que se seguiu a apresentação de uma reclamação no dia 21 do mesmo mês, o R., por mera cortesia comercial, tentou encontrar uma solução (entenda-se, aconselhamento) que atenuasse as perdas verificadas sempre na óptica da protecção dos interesses do cliente.
44º

Nessa senda, foi agendada uma reunião, que se realizou no dia 27 de Novembro de 2007 no escritório do Sr. …, com o intuito de que as partes chegassem a um entendimento relativamente à melhor forma de resolver a reclamação apresentada pelos AA..

45.º

No âmbito da mencionada reunião, onde estiveram presentes o Sr. …, em representação dos AA. e os Drs. … em representação do ora R., na sequência do aconselhamento prestado, os AA. deram instruções ao R. para manter as quantias aplicadas em depósitos a prazo em moeda estrangeira pelo período de seis meses, o que fizeram na expectativa de uma valorização favorável da taxa da cotação do dólar e da libra esterlina face ao euro, por forma a atenuar as perdas verificadas.

46.º

Por conseguinte é inteiramente falso que, como afirmam os AA. nos arts. 18.º a 21.º e 28.º da douta PI, tenham os representantes do R. acordado que, findo o prazo de 6 meses, i.e., em 27 de Maio de 2008, o R. se obrigaria a devolver, em euros, os montantes de capital inicialmente depositados e posteriormente investidos, acrescidos de uma remuneração de 5,2% ao ano e computados às datas de constituição dos depósitos,
[…]”
                [transcrição de fls. 29, 30, 39/40].
[5] V. o Acórdão do STJ de 03/06/2011 (Pereira da Silva), proferido no processo nº 527/05.8TBVNO.C1.S1, cujo sumário está disponível na base do ITIJ, directamente, no seguinte endereço:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f9dd7bb05e5140b1802578bf00470473:
“[…]
[O] que baliza o âmbito do recurso, tal sendo, afora as de conhecimento oficioso, as questões levadas às conclusões da alegação do recorrente, extraídas da respectiva motivação (artigos 684.º n.º 3 e 690.º n.º 1 do CPC), defeso é o conhecimento de questão não aflorada naquelas, ainda que versada no corpo alegatório.
[…]”.
[6] Trata-se de uma evidência ter o Apelante cumprido os ónus indicados nas duas alíneas do nº 1 do artigo 685º-B do CPC.
[7] Aqui transcrevemos a formulação desses quesitos:
“[…]

1)

A autora D… constituiu na agência da ré um depósito, em 13/07/2007, no montante e por via da transferência aludido em E), pelo prazo de 90 dias, e com uma remuneração mínima de 5,2% e máxima de 8%?

2)

E constituiu ainda outro depósito em 16/11/2007, no montante e por via da transferência aludido em F), pelo prazo de 90 dias e com uma remuneração mínima de 5,2% e máxima de 8%?

3)

A autora V…, Lda. constituiu um depósito em 13/07/2007 na agência da ré, no montante e por via da transferência aludido em G), pelo prazo de 90 dias e com uma remuneração mínima de 5,2% e máxima de 8%?

4)

E constituiu ainda outro depósito na mesma agência, no dia 28/09/2007, no montante e por via da transferência aludido em H), pelo prazo de 90 dias e com uma remuneração mínima de 5,2% e máxima de 8%?
5)

Entre as autoras e a ré foi acordado verbalmente que a segunda faria a gestão conveniente das quantias supra referidas, inclusive, se achasse adequado, através de aplicação em dólares e/ou libras?

6)

Mais acordaram que findo o prazo convencionado as autoras receberiam o capital depositado em euros nos precisos montantes dos depósitos iniciais em euros, acrescido de juros também em euros, os quais deviam ser liquidados de acordo com as taxas acima mencionadas dependente da evolução cambial?

7)

E acordaram ainda que caso a ré optasse por aplicar naquelas moedas (libras e/ou dólares) as quantias depositadas, o risco cambial corria por conta da ré e não das autoras?

8)

Em 20/11/2007 o Dr. … foi informado no balcão da agência da ré, pelas funcionárias … que o risco cambial inerente às aplicações financeiras corria por conta dos depositantes?

9)

E que os depositantes apresentavam, naquela data, saldos inferiores aos montantes depositados?
[…]
13)

Na reunião aludida em O) ficou verbalmente acordado entre o banco e o Dr. … que os depósitos em causa se mantinham na agência ficando a ré com o direito a gerir por sua conta e risco os supra referidos depósitos até 27/05/2008?

14)

Mais acordaram que a ré se obrigava na referida data de vencimento a devolver, em euros, às autoras os capitais inicias depositados em euros a uma taxa de juro de 5,2% ao ano e computados desde as datas de constituição referidas nos artº 1º a 4º da base instrutória?
[…]”
                [transcrição de fls. 356 a 358].
[8] Basta ponderar, a respeito desta preponderância decisória da matéria consubstanciada no item 23, que o Tribunal a quo, depois de parafrasear esse trecho dos factos, referiu o seguinte, justificando a condenação do R.:
“[…]

Resulta destes factos que entre autoras e ré foram modificados os contratos iniciais (dentro da liberdade negocial – artigos 405º e 406º, n.º 1, do Código Civil), obrigando-se a ré a devolver no dia 27 de Maio de 2008 as quantias inicialmente depositadas em euros e remuneradas desde as datas dos depósitos à taxa de 5,2%.

Mas a ré, contrariamente ao acordado, creditou as contas das autoras apenas em 8 de Setembro de 2008 e nas quantias discriminadas em 16. dos factos provados, inferiores às inicialmente depositadas.

Incumpriu a ré os contratos celebrados pelas autoras pois deveria ter naquela data creditado as contas das autoras nas quantias descritas em 5. a 8. dos factos provados, acrescidas dos respectivos juros vencidos desde as datas de cada um dos depósitos (artigo 798º, do Código Civil).

Assim, deveria ter creditado a conta da autora D…, nas quantias de €264.000,00, acrescida de juros à taxa de 5,2% desde 13 de Julho de 2007 até 8 de Setembro de 2008 e a quantia de €39.135,04, acrescida de juros vencidos à mesma taxa, desde 16 de Novembro de 2007 até 8 de Setembro de 2008.

E deveria ter creditado a conta da autora V…, Ldª, nas quantias de €26.703,54, acrescida de juros à taxa de 5,2% desde 13 de Julho de 2007 até 8 de Setembro de 2008 e a quantia de €233.000,00 euros, acrescida de juros vencidos à mesma taxa, desde 28 de Setembro de 2007 até 8 de Setembro de 2008.

E não o tendo feito mas antes tendo apenas creditado em 8 de Setembro de 2008 (e não cumprindo a data determinada para a entrega – 28 de Maio de 2008) a conta da autora D… nas quantias de €260.452,19 e €35.397,53 e a conta da autora V…, Ldª, nas quantias de €26.352,78 e €207.307,39 naquela data, incumpriu o contrato verbal celebrado com as autoras e constituindo-se na obrigação de reparar as autoras nos seguintes termos, tendo sempre em consideração que se constituiu em mora no dia 28 de Maio de 2008 (cfr. artigos 804º, 805º, n.º 2, alínea a) e 806º, todos do Código Civil) […].
[…]”
                [transcrição de fls. 435/436].
[9] Tal entendimento da prova – e adiante definiremos qual o “nosso” entendimento do chamado “limiar da prova” numa acção cível – desvirtua, em última análise, o sentido dos amplos poderes de controlo dos factos que foram atribuídos à segunda instância com a introdução do registo da prova testemunhal.
[10] A expressão é de J. P. Remédio Marques e assenta na contraposição à chamada “tese restritiva dos poderes da Relação”, v. “Um breve olhar sobre o duplo grau de jurisdição em matéria de facto”, nos Cadernos de Direito Privado, Número Especial 01/Dezembro 2010, pp. 80/90.
Caracteriza-se a tese ampla aqui seguida nos seguintes termos:
“[…]
A Relação desfruta não apenas do poder de aferir a razoabilidade da convicção dos juízes da 1ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, nos casos flagrantes ou notórios de desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão de facto proferida pela 1ª instância, mas também (e sobretudo) de um poder-dever de formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação da prova, sem se achar limitada ou condicionada pela convicção que tenha servido de base à decisão recorrida.
Este poder-dever pressupõe que a Relação valore, ela própria, de modo crítico e fundado, a prova disponível, não se limitando a aceitar passivamente a convicção formada pela 1ª instância ou a controlar somente a formação dessa convicção efectuada na 1ª instância.
[…]” (pp. 85/86).
[11] Seguimos aqui a formulação, comum na doutrina anglo-saxónica, quanto ao “limiar da prova” (threshold of evidence) em processo civil, comummente definido como “preponderance of the evidence”, em que a parte onerada com o ónus da prova (burden of proof) tem de demonstrar que algo é mais provável ter acontecido assim do que mais improvável ter acontecido nesses termos (v. McCormick, On Evidence, 5ª ed., St. Paul, Minnesota, 1999, p. 484: “[t]he most acceptable meaning to be given to the expression, proof by a preponderance, seems to be proof which leads the jury to find that the existence of the contested fact is more probable than its nonexistence”; v. Louis Kaplow, “Burden of Proof”, in The Yale Law Journal, edição electrónica, 121: 738 – 2012, p. 741/742: “[i]n the United states, civil litigation ordinarily is governed by a preponderance of the evidence rule, under which the plaintiff must establish that it is more likely than not that the defendent is liable […]”).
O limiar da prova, aquém do qual o facto se considera um facto não provado, corresponderia a menos de 50% de probabilidade, equivalendo 50% também à não prova, sendo qualquer não prova, mesmo que tangencial, referida à actuação do burden of proof (o non liquet que desencadearia a regra de decisão prevista, entre nós, no artigo 342º do Código Civil). Corresponde uma probabilidade de mais de 50% à regra “mais provável do que não” e, portanto, à prova do facto: “The standard is met if the proposition is more likely to be true than not true. Effectively, the standard is satisfied if there is greater than 50 percent chance that the proposition is true” (citámos a entrada “Legal burden of proof”, na versão inglesa da Wikipedia, http://en.wikipedia.org/wiki/Legal_burden_of_proof).
Na jurisprudência do nosso Supremo Tribunal de Justiça encontramos a afirmação desta regra no processo civil no recente Acórdão de 06/12/2011 (Gabriel Catarino), proferido no processo nº 1675/06.2TBPRD.P1.S1, disponível na base do ITIJ, directamente, no seguinte endereço:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/57dc123960ba7ba88025795f00381f83.  
[12] E, num julgamento, “em algum momento é preciso acreditar em alguém”, como, com enorme expressividade, se disse no Acórdão do STJ de 10/05/2007 (Pires da Rosa), proferido no processo nº 06B1868, disponível no sítio do ITIJ em:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/3bd4510d626cc929802572d80032c287.
[13] V., quanto às incidências do princípio da simplicidade bancária, António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 3ª ed., Coimbra, 2006, pp. 146/148.
[14] António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, cit., pp. 147/148.
[15] E esta Relação ouviu, por mais de uma vez, a gravação desses depoimentos.
[16] … (gestora de clientes do Barclays de Viseu a quem incumbiu substituir o tratamento personalizado do cliente V…, após a saída do Director da agência, …), … (Subdirector da Agência, que abandonou o Banco na mesma ocasião do Director …), … (gestora de empresas do Banco), … (o ex Director da Agência, que contratou os depósitos a prazo iniciais), … (assessora financeira do Barclays, que propôs à Agência o uso com aquele cliente – V… – dos depósitos a prazo em moeda estrangeira) e … (o actual Director da Agência).
[17] Daí que a testemunha …, assessora financeira do Barclays (em certo sentido vendedora de produtos financeiros mais complexos que um depósito a prazo), nunca tenha conseguido, como ela própria o reconheceu, “vender” ao V… qualquer desses produtos “estruturados” (a expressão é da testemunha) designadamente que implicasse qualquer tipo de risco referido ao capital, concluindo a testemunha que não existia nada, no “menu” do Banco que servisse àquele cliente (do qual as AA. acabam por ser alter egos, passe a “despersonalização”, simplesmente argumentativa, da A. D…) que não fossem simples depósitos a prazo. Assim, explicou esta testemunha que a alternativa – por ela aconselhada ao Banco – correspondente aos depósitos a prazo em moeda estrangeira (o modelo previsto no Manual de Negócio de fls. 101/102) funcionou como solução adaptável ao entendimento do cliente, na medida em que traduzia um depósito a prazo (aplicação de um determinado valor a determinado prazo com recuperação do capital acrescido do juro) com o qual o Banco, jogando com expectativas de valorização da moeda em que o depósito era aplicado (uma moeda tendencialmente forte: dólares, libras esterlinas, francos suíços), tinha oportunidade de remunerar o capital com uma taxa mais atraente, caso essas expectativas de valorização cambial se realizassem.
[18] Todas – e centramo-nos aqui nos depoimentos dos bancários indicados na nota 18, supra – indicaram que o V… não aceitaria aplicações que comportassem o risco da diminuição do capital inicialmente depositado e afirmaram (concretamente …) que a percepção que o V… tinha dos depósitos era essa, designadamente na reunião de 27/11/2007 com o ...
[19] Embora a elaboração deste “Manual de Negócio” do Banco, contendo a descrição dos depósitos a prazo em moeda estrangeira, seja posterior à situação aqui em causa, foi referido pelas testemunhas … que aquele produto já apresentava em 2007, aquando da realização dos depósitos a prazo aqui em causa, as exactas características descritas nesse Manual.
Assim, importará reter, no texto dessa descrição do produto (na caracterização que dele faz o próprio Banco), que “[o] Depósito Barclays em Moeda Estrangeira é uma aplicação a prazo, com taxa fixa garantida para o período e montante acordados, em moeda estrangeira”; que na descrição dos “benefícios para o cliente” o Banco indica que o depósito “permite beneficiar de oscilações cambiais favoráveis” e que, enfim, na descrição dos “benefícios para o Barclays” este refere o “aument[o do] grau de fidelização”.
Pode, pois, caracterizar-se o produto como não prevendo, no contexto intrínseco do documento que o descreve, a repercussão no cliente de oscilações cambiais desfavoráveis, que afectem a natureza de aplicação a prazo com taxa fixa garantida, e que o Banco interioriza como vantagem destacável a fidelização do cliente, no que representará uma descrição visando um produto destinado a criar um plus de vantagem indutor desse efeito de fidelização. Note-se que o simples depósito a prazo remunerado a uma determinada taxa, fixada à partida e invariável em função de qualquer incidência, apresenta para o Banco (o accipiens) o interesse da disponibilização de determinada quantia à utilização por este na sua politica de investimentos, aquilo que Paula Ponces Camanho define como interesse do Banco no depósito, nos seguintes termos:
“[…]
Analisando o fim principal do depósito bancário, verificamos ser este, desde logo, realizado no interesse do banco, uma vez que é com as quantias provenientes daqueles que os bancos financiam as suas operações activas. De facto, os depósitos bancários constituem a principal fonte de financiamento das instituições bancárias.
[…]” (Do Contrato de Depósito Bancário, Coimbra, 2005, p. 185).
[20] Foi referido pela testemunha V… e pela sua filha, …, que o BPI ofereceria na altura remunerações nas aplicações a prazo de 5,5%, sendo que testemunha … confirmou que o V… lhes apresentou este dado na fase preliminar da realização dos depósitos.
[21] Aliás muito bem caracterizado na fundamentação do Senhor Juiz a quo a fls. 420/421.
[22] E toda a confusão que gerou esta acção teve início, cerca de 20 de Novembro de 2007, quando a testemunha … (depois da saída da agência do Director …), não compreendendo os valores de um extracto, pediu, secundando instruções do pai (V…), uma simulação do resgate da conta a prazo naquela data e verificou que, naquele momento, lhe entregariam menos dinheiro do que o inicialmente depositado (e isso representava um absurdo para o V… num depósito a prazo e concretamente naquele depósito a prazo).
[23] Sem que isto corresponda a uma transcrição exacta do depoimento da testemunha …, não deixaremos de mencionar aqui que o apontamento apresentado pelo ora relator como resultado da audição desse depoimento foi o seguinte: “o Dr. V… dizia (e repetia) que ele não tinha assumido qualquer risco cambial e que era isso o que combinara com o Director da agência …; a ideia com que ela […] ficou na reunião de 27 de Novembro foi que o … entendia que o Dr. V… tinha razão na reclamação, tendo-lhe dito que o Banco assumia o erro; o erro foi vender um produto que não correspondia ao que o cliente entendia ter comprado, que era um depósito sem risco cambial para ele”.
[24] V. a caracterização deste (de um depósito a prazo), no confronto com as outras modalidades de depósitos, por Paula Ponces Camanho, Do Contrato de Depósito Bancário, cit., pp. 140/141, cfr. artigo 1º, nº 1, alínea c) e nºs 4 e 5, do Decreto-Lei nº 430/91, de 2 de Agosto. Constitui característica deste depósito (de qualquer depósito a prazo) a intangibilidade da quantia base depositada: Assim, discutir aqui se isso significa em euros ou na moeda aplicada é jogar com palavras e conceitos fora do quadro em que aquelas e estes foram pensados pelo declaratário nas concretas condições em que os depósitos lhe foram apresentados pelo Director da Agência.
Chamamos aqui a atenção para a circunstância da testemunha … (quem propôs este tipo de depósito à agência como o mais adequado ao perfil de cliente de V…) ter caracterizado o depósito a prazo em moeda estrangeira como um simples e normal depósito a prazo e ter acrescentado (o que desmente o entendimento do Apelante) que o Barclays não sujeita esses depósitos à emissão de qualquer promissória. Esta testemunha, embora colocando as coisas num plano abstracto e evitando falar (até por desconhecimento) daquele negócio concreto, sempre distinguiu o depósito a prazo em moeda estrangeira de outro tipo de investimentos (os tais “produtos estruturados”) envolvendo risco para o capital investido na sua integralidade.
[25] “Consequência directa da natureza jurídico-cientifica da interpretação das declarações de vontade é a sua recondução às questões-de-direito” (António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, tomo I, 3ª ed., Coimbra, 2005, p. 743).
[26] Manuel A. Domingues de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, reimpressão, Coimbra, 2003, p. 311.
[27] Tratado de Direito Civil Português, I, cit., p. 760.
[28] Tratado de Direito Civil Português, I, cit., p. 760/761.
[29] Esta asserção, quanto à qualificação adequada ao depósito a prazo, é expressamente sustentada por António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, cit. pp. 481/482. Aliás, a qualificação genérica como mútuo, envolvendo tanto os depósitos à ordem como os depósitos a prazo é sustentada entre nós por Paula Ponces Camanho, Do Contrato de Depósito Bancário, cit., pp. 190/194:
“[…]
Sendo o depósito irregular realizado no interesse do tradens, o accipiens, ao receber em depósito quantias, está a prestar um serviço ao depositante e, por este, cobra um determinado preço. De facto, se o interesse prevalecente no contrato é o do depositante, este deverá pagar ao depositário um preço pelo serviço que este lhe presta. Ora, no depósito bancário acontece exactamente o contrário. Neste, é o ‘depositário’ que paga uma quantia (juro) ao depositante pela utilização das quantias. Isto indicia que neste contrato prevalecerá o interesse do depositário na utilização da coisa ‘depositada’, tal como acontece no mútuo.
Assim, a qualificação do depósito bancário como contrato de depósito irregular deve ser afastada. Nos contratos de depósito, se houver lugar a pagamento de qualquer quantia, esta é paga pelo depositante ao depositário, como correspectivo da obrigação de guarda. Nos depósitos bancários acontece precisamente o inverso. Aqui é o banco (‘depositário’) que paga uma quantia ao cliente (‘depositante’): os juros.
[…]” (pp. 190/191).
[30] Note-se que, como refere António Menezes Cordeiro, “[o] único critério possível para determinar, no caso concreto, se se está perante a mesma prestação modificada, ou se, pelo contrário, a prestação já é outra, é extrajurídico. O senso comum terá de indicar a solução, no caso concreto” (Tratado de Direito Civil Português, Vol. II, Direito das Obrigações, tomo IV, Coimbra, 2010, p. 260).
[31] Em rigor, desde o início, aquilo que esteve em causa foi uma relação negocial global, desdobrada em quatro aplicações a prazo de determinados valores pelas AA. no Banco R., com base num entendimento conjunto do negócio no qual se repercutia a individualidade de cada uma dessas aplicações. Só com base neste entendimento conjunto da situação é que adquire sentido o posterior tratamento conjunto dela, enquanto resultado da falada reunião de 27/11/2007.
[32] “O contrato de depósito bancário pode ainda ser considerado como um negócio consensual, na medida em que a lei não requer para a sua validade qualquer formalidade especial” (Paula Ponces Camanho, Do Contrato de Depósito Bancário, cit., p. 123).