Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
56/15.1T8CNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO SANTOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO PAULIANA
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Data do Acordão: 11/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - CANTANHEDE - JL CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 127 CIRE, 277 E) CPC
Sumário: I - As acções de impugnação pauliana tidas em vista pelo artigo 127.º do CIRE são as que, sendo intentadas por credores da insolvência contra actos praticados pelo devedor (insolvente) em prejuízo daqueles, se caracterizam pelo seguinte; a) o crédito que motiva a impugnação é um crédito sobre o insolvente; b) o acto impugnado que envolve a diminuição da garantia patrimonial do crédito é um acto praticado pelo devedor insolvente; c) em caso de procedência da acção, os bens que ficam sujeitos ao direito do credor da insolvência são bens de terceiro, não da massa insolvente.

II – Não sendo legalmente admissível a execução de bens da massa insolvente fora do processo de insolvência, é de julgar extinta por inutilidade superveniente da lide a acção de impugnação pauliana, na parte em que o autor, que não era credor de réu entretanto declarado insolvente, visava impugnar a transmissão de um bem a favor deste último e obter o direito de executar tal bem no património dele, integrado, por efeito da declaração de insolvência, na massa insolvente.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

J (…) e L (…), ambos residentes na rua (…)e R (…), residente na Avenida (…), propuseram a presente acção de impugnação pauliana contra J (…), Lda, com sede (…), representada pelo administrador da insolvência, S (…),– M (…), Unipessoal, Lda, I (…) Unipessoal, Lda, e C (…) Unipessoal, Lda, todas com sede (…) pedindo, além do mais, se considerarem-se ineficazes e de nenhum efeito em relação a eles, autores, as transmissões dos seguintes veículos: 1) veículo automóvel pesado de mercadorias da marca MITSUBISHI, com a matrícula RV (...) ; 2) veículo automóvel pesado de mercadorias da marca VOLVO, com a matrícula XL (...) ; 3) veículo automóvel pesado de mercadorias da marca MITSUBISHI, com a matrícula UD (...) ; 4) do reboque marca MERGUL, com a matrícula 81(...) ; 5) do semi-Reboque marca LISTRAILLER, com a matrícula 25 (...) ; 6) Do veículo automóvel ligeiro de mercadorias da marca SEAT IBIZA, com a matrícula PP (...) , podendo a autora executar tais bens no património dos obrigados à restituição, ou seja, da 4.ª ré (supõe-se que por lapso referiu a 3.ª ré) para pagamento integral do seu crédito.

Alegaram, em resumo:

1. Que eram credores da sociedade J (…), Limitada;

2. Que a 1.ª ré declarou vender ao 2.º réu os veículos acima identificados e que o 2.º réu declarou, por sua vez, vender tais veículos à 4.ª ré (I(…));

3. Que a 1.ª ré foi declarada insolvente, em 2-10-2012;

4. Que as vendas dos veículos impossibilitaram a autora de obter a satisfação integral dos seus créditos, o que era do conhecimento dos réus;

5. Que os veículos foram arrestados.

Em 7 de Junho de 2017, a ré I (…) foi declarada em situação de insolvência, no processo n.º 2473/17.3T8CBR, no juízo de Comércio de Coimbra do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra.

No âmbito do processo de insolvência foram apreendidos para a massa insolvente os veículos acima identificados, com excepção do semi-reboque marca LISTRAILLER, com a matrícula 25 (...) .

Por despacho proferido em 25-10-2017, no processo de insolvência da sociedade I (...) , foi determinado que os autos prosseguissem para a fase da liquidação.

Por despacho proferido em 24 de Maio de 2018 foi declarada extinta a presente instância, por inutilidade superveniente da lide, quanto aos seguintes pedidos:

1. Pedido no sentido de serem declarados ineficazes e de nenhum efeito, em relação à autora, as transmissões dos veículos da 1ª ré (“J (…), Lda” – massa insolvente) para o 2º réu (S (…)), e deste 2º réu para a 4ª ré (“I (…) Unipessoal Lda”);

2. Pedido no sentido de se reconhecer aos autores o poder de executar tais bens no património dos obrigados à restituição, ou seja, da 4.ª ré, para pagamento integral do seu (autores) crédito.

Os autores não se conformaram com esta decisão e interpuseram o presente recurso de apelação, pedindo a revogação e a substituição dela por decisão que declarasse a utilidade da presente lide, com as consequências legais.

Nas conclusões XXXIII, XL, XLII da alegação, a recorrente sustenta que a fase da liquidação dos bens no âmbito do processo de insolvência da sociedade I (…) devia ficar suspensa, até que fosse proferida decisão com trânsito em julgado na presente acção.

Os fundamentos do recurso consistiram, em resumo, na imputação à decisão recorrida da violação do disposto nos artigos 2.º, 272.º, n.º 1, 277.º, alínea e), todos do CPC, e nos artigos 601.º, 610.º, 613.º, 616.º a 618.º e 818.º do Código Civil; e o disposto nos artigos 85.º, 88.º, 127.º, n.ºs 1 a 3 e 160.º do CIRE.

Não houve resposta ao recurso.


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Questões suscitadas pelo recurso

A questão suscitada pelo recurso é a de saber se a decisão recorrida violou o disposto nos artigos indicados pela recorrente e, em caso afirmativo, se deve ser revogada e substituída por outra que ordene o prosseguimento da lide e que determine a suspensão da fase da liquidação no processo de insolvência da sociedade I (…)até que seja proferida sentença com trânsito em julgado na presente acção.


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Os factos relevantes para a decisão do recurso são constituídos pelos factos narrados no relatório e que constituíram os principais antecedentes da decisão recorrida.

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Posto isto, passemos à resolução das questões suscitadas pelo recurso.

No presente recurso de apelação está em causa a decisão de julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, quanto a alguns dos pedidos deduzidos pelos autores, ao abrigo da alínea e) do artigo 277.º do Código de Processo Civil.

O tribunal a quo justificou a decisão dizendo em síntese:

1. Resultava dos n.ºs 1 e 3 do artigo 88.º do CIRE que os bens que integravam a massa insolvente só respondiam pelas dívidas dessa insolvência e não sobre quaisquer outras que não estivessem reconhecidas no processo;

2. Que a preferência resultante do arresto não era atendida no processo de insolvência dada a necessidade de assegurar o princípio do tratamento paritário dos credores comuns (artigo 140.º, n.º 3, do CIRE);

3. Que em caso de procedência da presente acção, os bens transmitidos à 4.ª ré não regressariam ao património da 1.ª ré e os credores, aqui autores, sempre teriam de executar o seu direito à restituição no património do obrigado à restituição, no caso a ré I (...) , insolvente;

4. Que o património da ré I (…) estava destinado a determinado fim, o pagamento aos credores reconhecidos no próprio processo, impedindo a lei a instauração de acção executiva contra a mesma;

5. Que do exposto resultava que os efeitos da impugnação pauliana não se produziam se o bem sobre que incidisse integrasse uma massa insolvente (citou o acórdão da Relação de Évora de 15 de Setembro de 2017, processo n.º 539/14.0TBVNO-A.E1);

6. Que com a declaração de insolvência da 4.ª ré e a apreensão dos bens no respectivo processo falimentar ficou impedida a produção dos efeitos visados pela presente acção, pelo que o prosseguimento da lide torna-se inútil quanto às transmissões de bens para a 4.ª ré insolvente.  

Os recorrentes contestaram estes fundamentos com a seguinte alegação:  

1. Que a instância extinguia-se por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, nos termos do disposto na alínea e) do artigo 277.º do CPC, quando, em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, a decisão a proferir já não pudesse ter qualquer efeito útil, quer por não ser possível satisfazer a pretensão que se pretendia fazer valer no processo, seja porque o escopo visado com a acção foi atingido por outro meio;

2. Que a situação em apreço se enquadrava no regime da impugnação pauliana e não no âmbito de uma comum acção declarativa em que se apreciassem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente ou acções de natureza exclusivamente pessoal;

3. Que resultava dos n.ºs 2 e 3 do artigo 127.º do CIRE que a acção de impugnação pauliana pendente à data da declaração de insolvência não só não era apensada ao processo de insolvência como podia prosseguir os seus termos no interesse do credor impugnante;

4. Que tanto era assim que o próprio juiz do processo de insolvência da ré I (…) despachou no sentido de que não interessava a apensação da acção de impugnação pauliana em apreço, atento o disposto no artigo 127.º, n.º 2 do CIRE;

5. Que ainda que não se aplicasse o artigo 127.º do CIRE, mas se aplicasse o artigo 85.º ainda assim não se estaria perante uma situação de inutilidade superveniente da lide, sob pena de esvaziamento do disposto nos artigos 616.º e uma total desprotecção jurídica do credor impugnante, em detrimento do direito à tutela jurisdicional efectiva contida no artigo 2.º do CPC, perante os credores do terceiro adquirente, na medida em que contrariamente àqueles o mesmo não pode reclamar o seu crédito na referida insolvência, mas simplesmente detentor, em caso de procedência da acção de impugnação pauliana, de um direito potestativo da ré insolvente;

6. Que tendo a presente acção corrido o seu curso autonomamente não vislumbram os requerentes a existência de fundamento legal nos termos do disposto no artigo 85.º para a suspensão ou eventual extinção da instância; 

7. Que a liquidação dos bens no âmbito do processo de insolvência da ré I (…) devia aguardar pelo desfecho dos presentes autos porquanto não podia olvidar-se que o direito de propriedade do adquirente sobre os bens em causa era um direito debilitado uma vez que estes respondem por dívidas de terceiro;

8. Que o artigo 160.º do CIRE deve ter aqui aplicação, devendo a liquidação dos bens aguardar enquanto não houver decisão transitada em julgado nestes autos;

9. Que ainda tal normativo não seja aplicado ipsis verbis ao presente caso, a presente instância – na parte ora em discussão – sempre deverá ser vista como causa prejudicial da fase de liquidação dos bens em apreço em sede de insolvência da ré I (…), destruindo ou modificando os fundamentos em que esta se baseia, conforme artigo 272.º, n.º 1, do CPC, pelo que face ao nexo de prejudicialidade a liquidação dos bens em apreço, no âmbito da insolvência da ré I (...) sempre deverá ser suspensa (causa dependente) até à decisão que vier a ser proferida na presente instância (causa prejudicial).

Como se vê pela exposição efectuada, os recorrentes servem-se da presente apelação não apenas para pedir a revogação da decisão recorrida e a substituição dela por decisão que ordene o prosseguimento da acção de impugnação, mas também para sustentarem a suspensão da fase da liquidação no processo de insolvência da sociedade I (...) até ao trânsito em julgado da decisão a proferir neste processo.

Apreciemos, em primeiro lugar, a pretensão de revogação e de substituição da decisão recorrida por decisão que ordene o prosseguimento da acção de impugnação.

Esta pretensão assenta, em primeiro lugar, nas seguintes premissas:

1. Na interpretação da alínea e) do artigo 277.º do CPC, no sentido de que a instância extingue-se com a inutilidade superveniente da lide, quando, em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo a decisão a proferir já não possa ter qualquer efeito útil, quer por não ser possível satisfazer a pretensão que se pretende valer no processo, seja porque o escopo visado com a acção foi atingido por outro meio;

2. No entendimento de que a declaração de insolvência da sociedade I (…) não retira efeito útil à decisão a proferir na acção de impugnação pauliana (quanto aos pedidos acima identificados) porque resulta dos n.sº 2 e 3 artigo 127.º do CIRE que a acção de impugnação pauliana prosseguirá os seus termos.

A interpretação da alínea e) do artigo 277.º do CPC merece a concordância deste tribunal.

O mesmo não se pode dizer em relação à aplicação ao caso das normas do artigo 127.º, do CIRE. Vejamos.

É isento de dúvida que a acção proposta pelos autores, ora recorrentes, é uma típica acção de impugnação pauliana e que o artigo 127.º do CIRE dispõe sobre este este tipo de acções. E é ainda isento de dúvida que o n.º 2 do citado preceito do CIRE prevê situações em que a declaração de insolvência do devedor não torna inútil o prosseguimento das acções de impugnação pendentes à data da declaração da insolvência.   

Sucede que as acções de impugnação pauliana tidas em vista pelo artigo 127.º têm contornos diferentes dos da presente acção.

Assim, aquelas são intentadas por credores da insolvência contra actos praticados pelo devedor (insolvente) em prejuízo daqueles e caracterizam-se pelo seguinte:

Em primeiro lugar, o crédito que motiva a impugnação é um crédito sobre o insolvente; 

Em segundo lugar, o acto impugnado que envolve a diminuição da garantia patrimonial do crédito é um acto praticado pelo devedor insolvente;

Em terceiro lugar, em caso de procedência da acção, os bens que ficam sujeitos ao direito do credor da insolvência são bens de terceiro, não da massa insolvente.

É por o acto impugnado ser um acto praticado pelo devedor insolvente e por a procedência da acção de impugnação pauliana ter por efeito o direito de executar os bens no património de terceiro, que está vedado aos credores a instauração de acções de impugnação pauliana de actos praticados pelo devedor cuja resolução haja sido declarada pelo administrador da insolvência. Compreende-se: se o acto praticado pelo devedor é resolvido pelo administrador da insolvência, os bens regressam à massa, conforme resulta do n.º 1 do artigo 126.º do CIRE, e o produto da liquidação aproveita a todos os credores.

E é ainda por o acto impugnado ser um acto praticado pelo devedor insolvente e por a procedência da acção de impugnação pauliana ter por efeito o direito de executar os bens no património de terceiro, que as acções de impugnação pauliana pendentes à data da declaração de insolvência ou propostas ulteriormente não serão apensas ao processo de insolvência e, em caso de resolução do acto pelo administrador da insolvência, só prosseguirão os seus termos se tal resolução vier a ser declarada ineficaz por decisão definitiva. A justificação desta solução continua a ser a acima exposta: na hipótese de a resolução ser declarada eficaz, os bens regressam à massa insolvente e aproveitam a todos os credores da insolvência.

Segue-se do exposto que a procedência da acção de impugnação pauliana prevista no artigo 127.º do CIRE não tem como efeito o reconhecimento do direito de executar bens que integram a massa insolvente. Embora o direito que está pressuposto em tal acção seja um direito de crédito sobre o insolvente, o direito à execução reconhecido ao impugnante incide sobre bens de terceiro.

Como escrevemos acima, os contornos da presente acção de impugnação pauliana são diferentes.

Em primeiro lugar, o crédito cuja garantia patrimonial se pretende acautelar com a acção não tem como devedora a insolvente; o devedor é outro, no caso a 1.ª ré.

Em segundo lugar, o acto que envolveu a diminuição da garantia patrimonial do crédito dos autores e que está a ser impugnado não foi praticado pela insolvente; foi praticado pela devedora (1.ª ré). A ora insolvente foi demandada na qualidade de adquirente posterior dos bens, ao abrigo do disposto no artigo 613.º do Código Civil; não foi demandada na qualidade de devedora que praticou o acto que envolveu a diminuição da garantia patrimonial do crédito.

Em terceiro lugar, o direito que os autores querem ver reconhecido, como consequência da procedência da acção de impugnação pauliana, é o de executarem bens da massa insolvente.

Uma vez que a presente acção de impugnação pauliana não se ajusta à acção que está prevista no artigo 127.º do CIRE, o regime deste preceito não lhe é aplicável. E não lhe sendo aplicável, falece razão aos recorrentes quando ancoram nele a pretensão de prosseguimento da presente acção.

Como lhes falece razão quando invocam contra a decisão recorrida o acórdão do tribunal da Relação de Lisboa proferido em 22 de Maio de 2012, no processo n.º 552/10.7TCFUN, publicado em www.dsgi.pt. É certo que a questão que estava em causa em tal acórdão era a da extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, no domínio de uma acção de impugnação pauliana, em consequência da declaração de insolvência. Sucede que a acção de impugnação pauliana que aí estava em causa era a tida em vista pelo artigo 127.º do CIRE. Com efeito, o acto impugnado era uma alienação imputada a uma sociedade que era devedora dos impugnantes e pretendia obter-se com a acção o direito de executar tais bens no património do terceiro adquirente.

Diga-se ainda, contra a pretensão dos recorrentes, que não faria sentido, à luz do princípio da unidade da ordem jurídica, que a acção de impugnação pauliana prevista pelo artigo 127.º do CIRE - proposta pelo credor do insolvente contra actos praticados por este em detrimento daquele (credor) - não pudesse ser instaurada ou prosseguir para o credor obter o direito de executar bens integrantes da massa, mas já pudesse prosseguir a acção de impugnação visando o mesmo propósito desde que fosse proposta por quem não era credor do insolvente.

O recurso assenta, em segundo lugar, na alegação de que, caso se entendesse que era de aplicar o regime do artigo 85.º do CIRE, ainda assim não se estaria perante uma situação de inutilidade superveniente da lide, sob pena de um total esvaziamento do disposto no artigo 616.º do Código Civil e uma total desprotecção do credor impugnante, em detrimento do direito à tutela jurisdicional efectiva contida no artigo 2.º do CPC, perante os credores do terceiro adquirente, na medida em que contrariamente àqueles, o mesmo não pode reclamar o seu crédito na referida insolvência, porquanto não é credor da mesma, mas simples detentor, em caso de procedência da acção de impugnação pauliana, de um direito potestativo junto da ré insolvente.

Esta alegação também não colhe contra a decisão recorrida.

Em primeiro lugar, não tem sentido criticar a decisão recorrida laborando no pressuposto da aplicação ao caso do regime do artigo 85.º do CIRE. E não tem sentido porque tal regime não serviu de fundamento jurídico à decisão recorrida. Daí que o argumento da aplicação ao caso de tal preceito, deduzido, de resto, a título hipotético, não seja pertinente para criticar a decisão recorrida.

A parte restante da alegação - que a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide implica uma total desprotecção jurídica do credor impugnante no confronto com os credores do terceiro impugnante, na medida em que aquele não pode reclamar o seu crédito na insolvência, uma vez que não é credor da insolvente, mas detentor, em caso de procedência da impugnação pauliana, de um direito potestativo junto da ré insolvente - não colhe pelo seguinte.

A alegação exposta tem implícita a seguinte lógica jurídica: uma vez que, numa situação como a dos autos, o credor impugnante não é credor da insolvente e, por tal razão, não pode reclamar o seu crédito no processo de insolvência, então a única via de lhe assegurar o exercício efectivo do direito de impugnação pauliana previsto nos artigos 610.º e 613.º, ambos do Código Civil, é o de lhe reconhecer o direito de prosseguir com a acção e de obter o reconhecimento do direito de executar os bens no património do insolvente, terceiro adquirente.

Salvo o devido respeito, esta lógica não tem amparo na lei. Com efeito, se a aceitássemos, ela significaria que alguns dos bens da massa insolvente da sociedade I (…) podiam ser executados fora do processo de insolvência e que o produto da sua venda fosse afecto ao pagamento de créditos que não estavam verificados no processo de insolvência por sentença transitada em julgado.

Sucede que este resultado não é compatível com o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Assim:

1. Em primeiro lugar, não é compatível como o n.º 1 do artigo 1.º (na parte em que afirma que o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores) e como n.º 1 do 88.º dos quais resulta que não é admissível a execução de bens da massa insolvente fora do processo de insolvência;

2. Em segundo lugar não é compatível com o artigo 173.º do qual resulta que só é possível a satisfação de um direito de crédito através do produto da venda de bens que integram a massa insolvente se o crédito estiver verificado por sentença transitada em julgado.

Não sendo legalmente admissível a execução de bens da massa insolvente fora do processo de insolvência, é de afirmar, como fez a decisão sob recurso, que o prosseguimento da presente acção de impugnação pauliana quanto aos pedidos acima identificados tornou-se inútil em virtude de ter sido declarada a insolvência da sociedade I (…). Com efeito, ao pedirem que se declarassem ineficazes em relação a si as transmissões dos veículos automóveis e que se lhes reconhecesse o direito de os executarem no património da adquirente, o efeito jurídico pretendido pelos autores, ora recorrentes, era o de obterem o reconhecimento do direito de verem satisfeito o seu crédito através do produto da venda de tais bens. A efectivação deste direito implicaria necessariamente uma execução para pagamento de quantia certa no âmbito da qual pudessem se atingidos os bens do terceiro adquirente. Sucede que, tendo o terceiro adquirente (aquele em cujo património se pretendia a execução dos bens) sido declarado em situação de insolvência e tendo os bens em causa sido apreendidos, passando a integrar a massa insolvente, o n.º 1 do artigo 88.º do CIRE ao dispor que “a declaração de insolvência obsta à instauração de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência…”, obstava à instauração de execuções contra o terceiro adquirente.

Por todo o exposto, é de concluir que a decisão recorrida tem amparo na lei, não tendo violado as normas jurídicas indicadas pela recorrente.

Diga-se, por último, que carece de sentido a imputação à decisão recorrida da violação de algumas delas, concretamente das constantes dos artigos 2.º e 272.º, n.º 1, do CPC, dos artigos 601.º, 610.º, 613.º e 818.º do Código Civil, e dos artigos 85.º, 127.º, n.ºs 1 e 3 e 160.º do CIRE. Com efeito, resulta da combinação das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 639.º do CPC que só tem sentido imputar à decisão recorrida a violação das normas jurídicas que tenham constituído fundamento jurídico do que foi decidido. Segue-se daqui, para o caso, que teria sentido imputar à decisão recorrida a violação das normas acima indicadas se eles tivessem constituído fundamento jurídico da decisão de declarar extinta a instância. Sucede que nenhuma das normas compreendidas nos artigos acima indicados serviu de amparo expresso ou implícito à decisão do tribunal a quo para declarar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide quanto aos pedidos deduzidos pelos autores sob as alíneas a) e d).

 Apreciemos, agora, a pretensão dos recorrentes no sentido de ser suspensa a fase da liquidação no processo de insolvência da sociedade I (…) até ao trânsito em julgado da decisão a proferir neste processo.

Sobre ela cumpre dizer que não compete a este tribunal, no âmbito da presente acção de impugnação pauliana, ordenar a suspensão da liquidação dos bens, no processo de insolvência da sociedade I (…). O processo relativo à liquidação constitui um apenso ao processo de insolvência (artigo 170.º do CIRE) e é ao juiz do tribunal onde corre o processo de insolvência que compete decidir sobre a suspensão da fase da liquidação.

De resto, os autores, ora recorrentes, já requererem nestes autos [acção de impugnação pauliana] a suspensão das diligências de liquidação dos bens em causa nos presentes autos até que fosse proferida decisão definitiva no âmbito deste processo e tal pedido foi indeferido precisamente com fundamento de que não competia ao juiz da acção de impugnação pauliana determinar a suspensão de outra causa ou de diligências determinadas noutro processo.

O despacho foi notificado aos ora recorrentes e os autos não dão conta de que contra ele tenha sido apresentada reclamação ou recurso.

Assim, não se irá conhecer do pedido dos recorrentes no sentido de ser ordenada a suspensão da fase de liquidação no processo de insolvência. E não se conhecendo deste pedido, também não se irá conhecer dos argumentos que o sustentam, constituídos essencialmente pela alegação de que o artigo 160.º do CIRE tem aplicação ao caso e que tal aplicação impõe a suspensão da liquidação enquanto não houver decisão transitada em julgado e pela alegação de que há um nexo de causalidade entre a presente acção e a liquidação no processo de insolvência que justifica a suspensão desta última ao abrigo do disposto no artigo 272.º, n.º 1, do CPC.


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Decisão:

Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.

Condenam-se os recorrentes nas custas (encargos) do recurso por a elas terem dado causa, ao abrigo do artigo 527.º, n.º 1, 1.ª parte, e n.º 2, do CPC.

Coimbra, 6 de Novembro de 2018.

Emídio Santos (Relator)

Catariana Gonçalves

António Magalhães