Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1255/11.0TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: LOCAÇÃO
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
TRANSFERÊNCIA
LOCATÁRIO
PESSOA SINGULAR
SOCIEDADE UNIPESSOAL
RESOLUÇÃO
Data do Acordão: 05/27/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1.º JUÍZO CÍVEL DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: 802º. 1049º, 1109º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: i. Celebrado contrato de locação de estabelecimento com pessoa singular, efectuada a transferência do gozo pela locatária para sociedade unipessoal da qual é a única sócia, nos precisos termos e com os limites que constam do contrato originário, a manutenção do substrato pessoal obsta à resolução do contrato com fundamento na ilicitude da cedência.

II. Ainda a admitir que a locação de estabelecimento mantém, no que se reporta à pessoa do locatário, a natureza de contrato intuitu personae, enquanto não ocorrer cedência da quota inexiste violação contratual fundante do direito à resolução, por não se verificar prejuízo para o credor, revestindo o incumprimento, nesta medida, escassa relevância (art.º 802.º, n.º 2).

Decisão Texto Integral: I. Relatório

No 1.º juízo cível do Tribunal Judicial da comarca de Viseu, A... , viúva, residente na (...), em Viseu, instaurou contra:

B... , casada, residente na (...), em Viseu, e C...e mulher, D... , residentes na morada da anterior, a presente acção declarativa de condenação, a seguir a forma sumária do processo comum, pedindo a final a condenação da 1.ª R. a restituir imediatamente o estabelecimento comercial objecto do contrato de cessão com ela celebrado e todos os RR, solidariamente, no pagamento do valor correspondente ao dobro das mensalidades contratualmente devidas desde a data fixada para a restituição do predito estabelecimento, que liquidou no valor de € 5 356,00 tendo por referência a data da propositura da acção, bem como o referido valor por cada mês que decorrer até à efectiva restituição do estabelecimento, quantia a liquidar em execução de sentença.

Na eventualidade de assim não se entender, pediu que os RR. fossem solidariamente condenados a pagar-lhe a título de enriquecimento sem causa o valor correspondente à mensalidade acordada por cada mês que decorrer desde a data fixada para a restituição do estabelecimento, e que liquidou em € 2.678,00 tendo por referência a data da propositura da acção, bem como as quantias que se vencerem até à efectiva entrega do mesmo, em montante cuja liquidação relegou igualmente para execução de sentença.

Em fundamento alegou, em síntese, ter celebrado com a 1.ª ré contrato de cessão de exploração tendo por objecto o estabelecimento comercial de venda a retalho de flores instalado na entrada do prédio sito na x(...), do concelho de Viseu, nos termos do contrato que reduziram a escrito, tendo iniciado a sua vigência no dia 1 de Dezembro de 2009.

Sucede, porém, que a ré cessionária, sem o conhecimento nem autorização da demandante, procedeu à subcessão do estabelecimento à sociedade E..., Lda., facto do qual teve conhecimento apenas no dia 14 de Janeiro de 2011. Face
à violação do contrato, procedeu de imediato à sua resolução através de carta que remeteu à ré no dia 17 de Janeiro de 2011, interpelando-a para proceder à entrega do estabelecimento até ao dia 1 de Fevereiro de 2011. A ré não aceitou a resolução nem procedeu à entrega do estabelecimento no prazo fixado, tendo-se constituído em mora e na obrigação de indemnizar a autora nos termos do art.º 1045.º do CC.

Faz derivar a responsabilidade dos 2.ºs RR do facto de terem subscrito o contrato na qualidade de fiadores e principal pagadores.
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Regularmente citados, os RR contestaram nos termos da peça que consta de fls. 62 a 74 dos autos, excepcionando com o abuso de direito, por bem saber a autora que logo nas negociações preliminares impôs a 1.ª ré como condição que assim que fosse por si constituída uma sociedade unipessoal, seria esta a assumir a posição de cessionária, com o que a autora concordou, apenas tendo sido deixado em aberto o modo como se iria proceder posteriormente a tal substituição. Constituída a sociedade unipessoal, como previsto, em 7/9/2010, a 1.ª ré interpelou verbalmente a autora para que fosse contratualizada a acordada substituição, tendo esta assumido em consequência um comportamento clamorosamente oposto aos ditames da boa fé, exigindo inicialmente que no novo contrato fosse omitida qualquer menção à trabalhadora E..., de modo a que esta perdesse o vínculo laborar e, face à recusa da contestante, passou a exigir um aumento extraordinário da mensalidade, que passaria de € 650,00 para € 850,00, o que a 1.ª ré não pôde igualmente aceitar.

Mais alegaram ter a 1.ª ré cumprido sempre e de forma integral as obrigações por si contratualmente assumidas, procedendo à entrega das rendas nos autos de execução que aquela identificada trabalhadora instaurara contra a autora, no cumprimento de notificação que para tanto lhe foi feita pelo Sr. agente de execução, do que deu pronto conhecimento à demandante, sendo certo que esta nunca procedeu à emissão dos pertinentes recibos com observância dos requisitos legais. E foi neste contexto que a autora emitiu a dita declaração resolutiva e lançou mão da presente acção, o que configura um claríssimo abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”.

Em sede de impugnação alegaram que o contrato celebrado entre a ré cessionária e a sociedade unipessoal por si constituída em nada contraria o contrato celebrado, inexistindo fundamento para a resolução.

Com fundamento em imputada litigância de má fé requereram a condenação da autora no pagamento de indemnização a seu favor, cujo montante pretendem nunca inferior a € 3.000,00.

A autora respondeu, impugnando a factualidade alegada em suporte da excepção arguida, terminando por requerer a final, também ela, a condenação da contraparte como litigantes de má fé, por terem alegado factos que sabiam não serem verdadeiros, reclamando indemnização em valor não inferior a € 2 000,00.
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Fixado o valor da causa, prosseguiram os autos com selecção dos factos assentes e organização da base instrutória. Das peças assim elaboradas reclamaram com êxito os RR, conforme se alcança do despacho exarado a fls. 148/149.

Os RR vieram entretanto apresentar o articulado superveniente de fls. 150 a 156, alegando ter a autora, no identificado processo de execução que lhe foi movido pela trabalhadora E..., celebrado transacção, nos termos da qual se obrigou a proceder ao pagamento da quantia exequenda mediante a penhora das mensalidades por si auferidas pela cessão do estabelecimento aqui em causa, e por um período de 17 meses, o que configura inequívoco reconhecimento da subsistência do contrato celebrado.

Mais alegaram ter procedido à restituição do estabelecimento à autora, o que fizeram mediante entrega das respectivas chaves no escritório do il. Mandatário desta, que as aceitou, nada sendo devido.

Respondeu a autora ao articulado superveniente, impugnando quanto nele foi alegado.

Admitido o dito articulado e aditada aos factos assentes e base instrutória a factualidade julgada pertinente, procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, vindo a matéria de facto a ser decidia nos termos constantes de fls. 239 a 242, respostas não reclamadas.

Foi depois proferida sentença que, na formulação de um juízo de improcedência sobre os fundamentos da acção, decretou a absolvição dos RR do pedido formulado, abstendo-se de condenar qualquer das partes como litigantes de má fé.

Irresignada, interpôs a autora o pertinente recurso e, tendo apresentado as suas alegações, rematou-as com as seguintes conclusões:

“1.ª- A Recorrente considera ter o Digníssimo Tribunal a quo julgado correcta e adequadamente os factos dados como provados na douta sentença ora em crise, na exacta medida em que a análise crítica da prova in casu produzida assim manifestamente o impunha;

2.ª- Com efeito, apenas no que tange à qualificação jurídica da supradita factualidade considera a Recorrente, na linha do arrazoado infra apresentado e naturalmente ressalvado o devido e máximo respeito pela posição ali sustentada, ter andado mal o Digníssimo Tribunal a quo, razão por que ora vem impugnar tal decisão;

3.ª- Na verdade, e como ressalta da análise dos factos in casu dados como provados, a Primeira Recorrida procedeu à subcessão, não autorizada pela Recorrente, da exploração do estabelecimento comercial que consubstanciava o objecto do contrato sub judice, realidade que esta entende (naturalmente ressalvado o devido e máximo respeito por opinião contrária) consubstanciar incumprimento contratual bastante para fundamentar a resolução in casu operada;

4.ª- Verbi gratia, porquanto tal conduta da Primeira Recorrida (cujos exactos contornos se encontram devidamente descritos nos factos dados como provados) abalou irreversivelmente a confiança que a Recorrente in casu depositava (tanto mais que só no decurso da presente acção procedeu aquela à inúmeras vezes solicitada restituição do estabelecimento comercial sub judice) - de outro modo não teria esta procedido à resolução do supramencionado contrato;

5.ª- Destarte, afigurando-se evidente que a subcessão não autorizada ora sub judice consubstancia incumprimento contratual, não vislumbra a Recorrente, de todo em todo, base legal para, como sustenta o Digníssimo Tribunal a quo, restringir a existência de inadimplemento aos casos em que a subcessionária (entidade com personalidade jurídica autónoma e, portanto, diversa da cessionária) não tem qualquer relação com a cessionária (verbi gratia, que dela não seja sócia);

6.ª- Nessa conformidade, entende a Recorrente que, ao decidir nos moldes ora impugnados, o Digníssimo Tribunal a quo interpretou e aplicou incorrectamente as normas ínsitas nos arts. 406.º, 432.º, 801.º, 1022.º, 1038.º, als. f) e g) e 1109.º, todos do Código Civil, normas que, salvo o devido e máximo respeito por opinião contrária, deveriam ter sido interpretadas no sentido de estarem, in casu, preenchidos todos os requisitos para a resolução contratual invocada por aquela”.

Com os aludidos fundamentos pretende a revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que julgue a acção procedente.

Contra alegaram os apelados, defendendo naturalmente a manutenção do decidido.
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Como se vê das transcritas conclusões, pelas quais se fixa e delimita o objecto do recurso, constitui única questão submetida à apreciação deste Tribunal indagar se a ré cessionária incumpriu o contrato celebrado, fundamentando a sua resolução por banda da autora, contraente fiel.
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II. Fundamentação

De facto

Não tendo sido impugnada a matéria de facto, nem sendo caso para proceder à sua modificação oficiosa, são os seguintes os factos a atender (agora lógica e cronologicamente ordenados):

1. A 01 de Dezembro de 2009, Autora e Réus celebraram o acordo denominado “contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial”, constante de fls. 20 a 25 dos autos, nos termos do qual aquela, como primeira outorgante, declarou ceder à segunda outorgante, a aqui primeira ré, a exploração do seu estabelecimento comercial de venda a retalho de flores, instalado na entrada do prédio sito na x(...), concelho de Viseu, o qual gira comercialmente com o nome “ K...” (vide cláusula 1.ª).

Nos termos da cláusula 2.ª do aludido contrato, a concessão seria feita pelo período de cinco anos, com início em 1 de Dezembro de 2009 e termo em 1 de Dezembro de 2014, prorrogado tacitamente por igual período se não fosse denunciado por qualquer das partes por carta registada com aviso de recepção, a qual deveria chegar ao conhecimento do outro contraente com 60 dias de antecedência relativamente ao termo do período inicial ou das respectivas prorrogações.

Estipularam ainda as partes que a 2.ª outorgante não poderia celebrar quaisquer contratos relativos ao estabelecimento cujo período de duração se prolongasse para além da concessão, ou dos quais pudessem resultar encargos ou responsabilidades para a primeira outorgante (cláusula 5.ª).

Mais ficou estipulado que a 2.ª outorgante se obrigava a explorar o estabelecimento nos termos em que era explorado pela primeira outorgante e com o mesmo ramo de actividade, vinculando-se ainda a respeitar as obrigações decorrentes do alvará de licenciamento, incluindo as respeitantes ao horário de funcionamento (cláusula 6.ª).

Consoante estabelecido na cláusula 10.ª, a segunda outorgante obrigou-se a pagar pela concessão a quantia mensal de € 650,00, acrescidos de IVA à taxa legal em vigor, a liquidar até ao dia 5 do mês anterior àquele a que dissesse respeito.

Nos termos da cláusula 12.ª, os terceiros outorgantes C... e D... constituíram-se fiadores e principais pagadores de todas as obrigações assumidas pela 2.ª outorgante, quer pelo período inicial da concessão, quer pelo período da renovação, com renúncia expressão ao benefício da excussão prévia, tudo conforme consta do documento de fls. 20 a 24 dos autos cujo teor aqui se dá, quanto ao mais, por reproduzido.

2. O estabelecimento comercial referido em 1. foi entregue à 1.ª Ré a 01 de Dezembro de 2009.

3. O acordo referido em 1. foi comunicado à senhoria da Autora a 21 de Dezembro de 2009, conforme documento constante de fls. 27 e 28 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

4. A 07 de Setembro de 2010 foi registada na Conservatória do Registo Comercial de Viseu a constituição da sociedade “ B... – Unipessoal, Lda.” – Ap. 1, cujo objecto é o comércio a retalho de flores, plantas, sementes e fertilizantes e sede na x(...), concelho de Viseu, sendo o capital social de € 5000,00 representado por uma quota de igual valor, titulada pela sócia B..., conforme documento constante de fls. 95 a 97 dos autos, cujo teor se dá, quanto ao mais, por integralmente reproduzido.

5. Com data de 01 de Dezembro de 2010, a Ré B... e “ B... – Unipessoal, Lda.” celebraram o acordo denominado “cessão de exploração de estabelecimento” que consta de fls. 98/99 dos autos, nos termos do qual aquela, na qualidade de primeira outorgante, declarou ceder à sociedade sua representada a exploração do estabelecimento comercial de venda a retalho de flores instalado no prédio sito à x(...), concelho de Viseu, o qual gira comercialmente com a denominação “ K...” (cláusula 1.ª).

Nos termos acordados, a cessão foi feita pelo prazo de 4 anos, com início reportado a 1/10/2010 e termo em 1/10/2014, sujeito a prorrogação por igual período não sendo denunciada por nenhuma das partes (cláusula 2.ª).

Mais ficou estipulado que a 2.ª outorgante não poderia celebrar quaisquer contratos relativos ao estabelecimento cuja duração se prolongasse para além da concessão ou dos quais pudessem resultar quaisquer encargos ou responsabilidade para a primeira outorgante, conforme consta da cláusula 4.ª do aludido contrato cujo teor aqui se dá, quanto ao mais, por reproduzido.

6. Com data de 30 de Dezembro de 2010, a 1.ª Ré enviou à Autora a carta registada com aviso de recepção cuja cópia faz fls. 79 dos autos, comunicando ter “procedido à celebração, em 1/12/2010, do contrato de (sub)cessão de exploração do estabelecimento comercial que gira com o nome d K..., sendo cessionária “ B..., Unipessoal, L.da” (…), tudo conforme o acordo assumido por V.ª Ex.ª aquando da celebração do contrato de cessão de exploração em 30/11/2009”, acrescentando que “a presente cessão foi delimitada ao prazo de vigência da anteriormente celebrada com V.ª Ex.ª, em total obediência ao estipulado na Cláusula Quinta, mantendo-se os demais termos, designadamente valor da renda e actualizações”, conforme consta do doc. de fls. 79, cujo teor se dá, quanto ao mais, por reproduzido.

7. A carta referida em 6. foi devolvida, por não reclamada, conforme consta do doc. de fls. 80.

8. No processo de execução que corre termos no 1.º juízo do Tribunal Judicial de Viseu, sob o n.º 932/10.8TTVIS, figura como exequente E... e executada a aqui Autora.

9. A 1.ª Ré enviou ao agente de execução nomeado no processo referido em 8. carta registada com aviso de recepção datada de Dezembro de 2010, a comunicar a data da celebração do acordo identificado em 1. e renda mensal acordada, mais informando ter-se vencido e sido paga em 5/12/2010 a renda relativa ao mês de Janeiro de 2011, cujo recibo ainda não havia sido emitido, pelo que passaria a dar início aos depósitos a favor do processo a partir de Janeiro de 2011, no valor mensal de € 823, 49 (€ 669,50 + Iva), conforme consta do doc. cuja cópia faz fls. 87 dos autos, aqui se dando por reproduzido, quanto ao mais, o respectivo teor.

10. Com data de 30 de Dezembro de 2010, a 1.ª Ré enviou à Autora, mediante correio registado, a carta cuja cópia consta de fls. 76, com o seguinte conteúdo:

“Venho pela presente informar V.ª Ex.ª que foi ordenada a penhora das mensalidades/rendas vincendas até perfazerem o montante provisório de € 7 753,36, por força do processo de Execução n.º 932/10.8 TTVIS, do 1.º juízo do Tribunal do Trabalho de Viseu, que lhe foi movido por E..., conforme melhor resulta da notificação do Sr. Agente de Execução cuja cópia junto.

Em consequência, por imposição legal/judicial, irei proceder ao pagamento das futuras mensalidades/rendas a favor do aludido processo até ordem judicial em contrário”.

11. A autora enviou à ré, via postal registada com aviso de recepção, a carta datada de 4 de Janeiro de 2011, procedendo à actualização da mensalidade acordada para o montante de €669,50, a vigorar a partir daquele mesmo mês de Janeiro, conforme documento constante de fls. 29 e 30 dos autos, cujo teor se dá, quanto ao mais, por integralmente reproduzido.

12. A Autora teve conhecimento do referido em 5., com excepção da data, a 14 de Janeiro de 2011.

13. A Autora enviou à 1.ª Ré, através de correio registado com aviso de recepção, a carta datada de 17 de Janeiro de 2014, na qual refere ter tomado conhecimento no dia 14 de Janeiro de 2011 de que aquela havia subcedido a exploração do estabelecimento comercial “ K...” à sociedade B..., Unipessoal, Lda”, subcessão que diz ter sido feita à sua revelia e consubstanciar claro e inequívoco incumprimento contratual. Com tal fundamento declarou proceder à resolução do contrato identificado em 1., concluindo que “Em conformidade, e sem prejuízo do oportuno cômputo dos prejuízos causados pelo referido inadimplemento contratual, deve V.ª Ex.ª proceder à entrega do estabelecimento comercial “sub judice” até ao próximo dia 1 de Fevereiro de 2011”, tudo conforme consta do doc. de fls. 32 dos autos, cujo teor se dá, quanto ao mais, por reproduzido.

14. A 1.ª Ré respondeu à Autora através de carta datada de 24 de Janeiro de 2011, na qual repudia o teor da missiva referida em 13., relembrando que “(…) aquando das negociações prévias ao contrato celebrado em 30/11/2009, ficou ciente de que seria minha pretensão constituir uma sociedade unipessoal e que esta viria a ocupar a posição de cessionária, tendo dado a sua concordância”, acrescentando que “Mau grado as conversações futuras terem sido encabeçadas pela sua filha Sr.ª F..., a qual, de forma pouco ortodoxa (que é o mínimo que se pode dizer), pretendia um aumento da mensalidade já contratualizada em € 200,00, pretensão que jamais poderia ser acolhida”, concluindo não assistir qualquer razão à autora, tanto mais que através de carta registada enviada em 30/10/2010 lhe comunicou a celebração do acordo referido em 5., carta devolvida por não reclamada, tudo conforme consta do doc. de fls. 34/35, cujo teor se dá, quanto ao mais, por reproduzido.

15. A Autora exigiu como condição para a substituição um aumento da renda no montante de 200,00€.

16. A 1.ª Ré não anuiu ao referido em 15.

17. Através do seu il. Mandatário, a Autora enviou à 1.ª Ré, através de carta registada com aviso de recepção, a missiva datada de 2 de Fevereiro de 2011, a conceder-lhe o prazo improrrogável de 5 dias, com termo no dia 8 de Fevereiro de 2011, para proceder à entrega do estabelecimento comercial identificado em 1., nos termos constantes do doc. junto a fls. 38 e 39 dos autos cujo teor se dá, quanto ao mais, por reproduzido.

18. Através do seu Il. Mandatário, a autora enviou aos segundos RR C... e D..., a carta registada com a/r datada de 04 de Fevereiro de 2011, com o seguinte conteúdo:

“Ex.mos Srs.,

Na qualidade de Advogados de A..., cedente no contrato de cessão de exploração do estabelecimento comercial à margem referenciado e no âmbito do qual V.ªs Ex.ªs se constituíram como fiadores e principais pagadores de todas as obrigações ali assumidas, vimos pelo presente dar conhecimento da carta remetida à concessionária no passado dia 2 de Fevereiro de 2011 e que ora segue em anexo.

Na expectativa da V/ melhor atenção para o exposto, apresentamos os nossos melhores cumprimentos

(…)”, conforme consta da cópia que faz fls. 42 destes autos.

19. As cartas referidas em 17. e 18., não foram levantadas pelos RR.

20. No âmbito do processo de execução identificado em 8. veio a ser acordado entre a E... e a aqui autora o pagamento prestacional da quantia exequenda, acordo nos termos do qual a quantia exequenda, então reduzida para € 6 400,00 e abatida do valor já penhorado, seria paga em 14 prestações mensais e sucessivas, as 13 primeiras no valor de € 250,00 e a 14.ª no valor de € 214,31, acrescendo-lhes três outras, as duas primeiras no valor de € 250,00 e a última no valor de € 106,07, para reembolso de despesas pagas pela exequente, as quais seriam pagas a partir de Janeiro de 2012, pagamento realizado através da manutenção, no montante máximo acordado para cada prestação, da penhora das mensalidades auferidas pela executada por força do contrato referido em 1., tudo conforme consta do doc. de fls. 165 e 166 dos autos, que se tem aqui por integralmente reproduzido.

21. Tal acordo, apresentado em juízo a 15/12/2011, veio a ser apreciado pelo Mm.º Juiz na mesma data tendo, em consequência, decretado a suspensão da execução nos termos do doc. de fls. 167.

22. No âmbito do aludido processo executivo, a Ré B... foi notificada pelo agente de execução do teor da aludida transacção, nos termos constantes do escrito junto como documento 16-A, com o teor constante de fls. 168, que se tem aqui por integralmente reproduzido.

23. A 1.ª Ré passou a entregar nos autos de execução supra identificados o valor das rendas devidas, por força do acordo ali celebrado entre exequente e executada.

24. A 1.ª Ré entregou à Autora o cheque n.º 6376647462, datado de 30/11/2009, no valor de € 6.950,00, sendo € 5.000,00 respeitantes ao preço a pagar pela cessão da exploração de estabelecimento comercial e € 1.950,00, respeitantes a três rendas devidas por força do acordo referido em 1.

25. A Autora nem sempre procedeu ao envio de facturas/recibos com os requisitos legais para efeitos contabilísticos e fiscais, referentes aos pagamentos que a 1.ª Ré ia fazendo.

26. A 1.ª Ré entregou ainda à Autora os valores de € 669,50 e € 153,99, mediante transferências bancárias efectuadas em 7 e 8/2/2011; € 669,50 e € 153,99, mediante transferências bancárias efectuadas em 7 e 10/3/2011; € 669,50 em 6/4/2011; e € 669,50 em € 9/5/2011, por conta do valor das rendas devidas por força dos acordos referidos em 1. e 5.

27. A Ré B... entregou à Autora o valor de € 823,50 em 8/1/2011, 5/2/2011, 5/3/2011, 5/4/2011, 5/5/2011, 5/6/2011, 5/7/2011, 5/8/2011, 5/9/2011, 10/10/2011, 3/11/2011, 5/12/2011, 5/1/2012, 5/2/2012, por força do valor das contrapartidas devidas no âmbito dos acordos referidos em 1. e 6., tendo a ré emitido os respectivos recibos de quitação, conforme docs. cujas cópias constam de fls. 157 a 164.

28. A Ré B... entregou o estabelecimento referido em 1. à Autora na data de 30 de Abril de 2012.
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De Direito

Não está em causa nos autos que entre a autora e a primeira ré foi celebrado contrato de cessão de exploração, nos termos do qual aquela transferiu para a ré, temporária e onerosamente, a exploração/gozo do estabelecimento comercial identificado no escrito a que se refere 1., com todos os seus equipamentos.

Ultrapassando divergências doutrinárias quanto à natureza do contrato assim caracterizado, a lei designa-o agora mais rigorosamente por locação de estabelecimento comercial, mandando aplicar-lhe, com as necessárias adaptações, as disposições especiais atinentes ao arrendamento urbano para fins não habitacionais (cf. art. 1109.º do C.C., diploma ao qual pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem).

Não obstante tal remissão, absteve-se o legislador de regulamentar o contrato de locação de estabelecimento que, mantendo-se como contrato relativamente atípico, continua a reger-se pelas estipulações das partes, sendo-lhe subsidiariamente aplicáveis as disposições atinentes aos contratos de locação e de arrendamento que com ele não se mostrem incompatíveis e, na sua falta, as regras gerais dos contratos, tal qual foi considerado na decisão apelada.

A autora fundamentou a resolução do contrato celebrado com a primeira ré no facto desta ter procedido a ilícita subcessão da exploração do estabelecimento que, defende, lhe estava interdita nos termos do contrato celebrado, fundamento que não foi acolhido na decisão recorrida e que traz de novo à apreciação deste Tribunal. Vejamos se lhe assiste razão.

Resultou efectivamente demonstrado que com data de 1 de Dezembro de 2010, a ré B... celebrou com “ B... – Unipessoal, Lda.” acordo denominado de cessão de exploração de estabelecimento, nos termos do qual transmitiu para a sociedade o gozo do estabelecimento que lhe havia sido cedido pela autora, nos termos constantes do escrito a que se reporta o ponto 5. dos factos assentes, o que comunicou a esta por missiva datada de 30/12/2010 (cf. ponto 6. dos factos assentes).

Demonstrada a invocada subcessão cumpre indagar se, conforme pretende a autora, o contrato vedava à cessionária a possibilidade de proceder à transmissão do estabelecimento, conforme fez, incumprimento contratual que legitima e fundamenta a resolução.

Releva para o efeito o disposto na cláusula 5.ª do acordo celebrado entre autora e ré, com o seguinte conteúdo “A Segunda Outorgante não pode celebrar quaisquer contratos relativos ao estabelecimento cujo período de duração se prolongue para além da concessão, ou dos quais possam resultar encargos ou responsabilidades para a primeira outorgante”.

Face ao assim estipulado impõe-se proceder à sua interpretação, ou seja, fixar o sentido e o alcance com que a mencionada cláusula deve valer, o que contende com a matéria da interpretação dos negócios jurídicos a que presidem os art.ºs 236.º a 239.º[1], o primeiro destes preceitos consagrando a teoria objectivista da impressão do destinatário. A regra é assim a de que o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, entendido como alguém medianamente instruído e diligente colocado na posição do real declaratário, perante o comportamento do declarante, exceptuados os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido, ou o de o declaratário conhecer a vontade real daquele.

As circunstâncias a ter em conta na interpretação são, deste modo, todas aquelas a que um declaratário normal atenderia: os termos do negócio, as negociações prévias, os interesses em jogo, a finalidade prosseguida pelo declarante, etc., sendo também relevante a conduta posterior das partes, havida na sua execução.

Por último, tratando‑se de negócio formal, a interpretação alcançada nos precedentes termos não pode valer se não tiver um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (art.º 238.º).

Revertendo ao caso dos autos, não se vê que do teor literal da assinalada cláusula resultasse vedada a possibilidade do cessionário proceder, também ele, à transferência do gozo do estabelecimento, desde que fossem observadas as condições estabelecidas na transcrita cláusula 5.ª. Pelo contrário, a circunstância das partes terem prevenido a possibilidade da cessionária celebrar contratos relativos ao estabelecimento, na fórmula abrangente que utilizaram, tendo o cuidado de vedar a celebração daqueles cujo limite temporal ultrapassasse a duração fixada para o contrato originário e assegurando que nenhum encargo ou responsabilidade seria transmitido para a autora, aponta antes no sentido de ser permitida a realização de todos os demais, independentemente da sua natureza, postos que deles não resultasse violação de nenhuma das condições impostas.

Em suma, tal como se concluiu na sentença apelada, “Não tendo resultado provado com que intenção concreta convencionaram as partes em tais termos, teremos de (…) concluir, como se impõe, que para um declaratário normal tal cláusula permitia à segunda outorgante celebrar quaisquer contratos.”

É certo que a lei -art.º 1038.º- consagra como obrigação do locatário a de (…) não proporcionar a outrem o gozo total ou parcial da coisa por meio de cessão onerosa ou gratuita da sua posição jurídica, sublocação ou comodato, excepto se a lei o permitir ou o locador o autorizar” (vide al. f), constituindo ainda obrigação a seu cargo, nos termos da al. g), “(…) comunicar ao locador, dentro de 15 dias, a cedência do gozo da coisa por algum dos referidos títulos, quando permitida ou autorizada.” No entanto, ainda a ter por aplicáveis à locação de estabelecimento os citados normativos, a verdade é que o sentido fixado à cláusula vinda de analisar equivale à autorização do locador, que assim ficou expressamente consagrada no acordo celebrado. É certo que, conforme se vê dos factos assentes em 5. e 6., a comunicação imposta pela al. g) do preceito não observou o limite temporal prescrito pela lei, irrelevando aqui obviamente o facto da carta enviada não ter sido reclamada, atento o disposto no n.º 2 do art.º 224.º. Todavia, tal questão não foi, nestes precisos termos, suscitada pela apelante, que fundamentou a resolução na ilicitude da transmissão, por proibida, e a sua ineficácia por falta de comunicação, o que é coisa diversa da sua intempestividade, encontrando-se assim subtraído o seu conhecimento aos poderes de cognição deste Tribunal.

Por outro lado, e tal como não deixou de se assinalar na decisão recorrida, a 1.ª Ré cessionária transmitiu o gozo do estabelecimento para a sociedade B... – Unipessoal, Lda., da qual é a única sócia, em contrato cujos termos são decalcados do contrato originário. Deste modo, mesmo a admitir que a locação de estabelecimento mantém, no que se reporta à pessoa do locatário, a natureza de contrato “intuitu personae”, e sem prejuízo da sociedade assim constituída ser obviamente um ente jurídico diferente da locatária com a qual a autora contratou, do que não há dúvida é que enquanto não ocorrer cedência da quota o substrato pessoal se mantém o mesmo, tal como se mantêm todas as obrigações assumidas perante a demandante. Se assim é, cabe efectivamente questionar se, mesmo a considerar ter ocorrido violação do contrato -o que, como vimos, não sucede no caso concreto- estaríamos perante incumprimento que legitimasse a resolução, dado que nenhum prejuízo foi causado ao credor. E a resposta é, cremos, negativa, dada a escassa relevância que assumia tal desvio ao programa contratual -cf. n.º 2 do art.º 802.º, cuja solução é mais uma emanação do princípio da boa fé plasmado no n.º 2 do art.º 762.º- impondo a subsistência do vínculo contratual.

Assumem aqui plena pertinência os considerandos feitos pelo Prof. A. Varela em parecer publicado na CJ, VIII, t. 4, pp. 17 ss., citado na decisão apelada, ainda que a propósito de um contrato de arrendamento: “é certo que com o seu acordo negocial se criou uma sociedade e que a sociedade comercial, seja qual for o seu tipo, goza de personalidade jurídica. Mas a doutrina moderna das sociedades, sobretudo depois dos abusos cometidos, durante o período da última guerra, à sombra da personalidade autónoma das sociedades, não se cansa de advertir que o princípio da personalidade colectiva das sociedades comerciais não deve ser hipertrofiado ou sobrevalorizado. O reconhecimento da personalidade colectiva desempenha uma função meramente instrumental, no entender de muitos desses autores, não passando de um esquema posto ao serviço dos sócios, em ordem a facilitar-lhes a prossecução decerto escopo económico comum, em regra de carácter lucrativo.

Assim, se as rés eram contitulares de um arrendamento para comércio e constituíram, apenas entre elas, uma sociedade para explorar o mesmo ramo de comércio, só formalmente poderá dizer-se que os inquilinos mudaram. Substancialmente, enquanto não houver transmissão ou cessão de quotas, eles continuam os mesmos.

Que prejuízo real tem o locador com essa pura transformação formal (enquanto, como no caso presente, a sociedade tiver as mesmas sócias) para que ela sirva fundadamente de causa de resolução do contrato?

Em reforço, sempre se dirá que, ainda a entender-se que estávamos perante uma cedência ilícita e ineficaz em relação à autora, a circunstância de, em Dezembro de 2011, conhecedora pois dos temos do contrato celebrado entre a 1.ª ré e a dita sociedade unipessoal, aquela ter celebrado transacção no âmbito de processo judicial em que se propôs ceder as rendas que viesse a receber por via do acordo de locação, o que pressupõe a subsistência do mesmo, equivale inequivocamente ao reconhecimento da subcessionária enquanto tal pelo que, também por esta via, não assistia à demandante o direito a resolver o contrato (cf. art.º 1049.º).

Finalmente, e também decisivamente, a verdade é que ficou demonstrado ter a 1.ª ré pago escrupulosamente as rendas até ao momento em que procedeu à entrega do estabelecimento, quedando-se sem fundamento fáctico qualquer pretensão indemnizatória, posto que indemonstrada a existência de qualquer prejuízo. Ademais, o que só lateralmente se refere, não sendo aplicáveis aos contratos de locação de estabelecimento, dadas as suas especificidades no confronto com o contrato tipo da locação, entre outras, as disposições relativas à mora do locatário e sua purga,[2] nunca a autora teria direito à pretendida indemnização pela mora peticionada em via principal, mora que, repete-se, não logrou provar.

Em remate, não tendo a autora logrado provar que a ré incumpriu o contrato celebrado, tal como considerou a primeira instância, não lhe assistia o direito à respectiva resolução, improcedendo deste modo todas as conclusões recursivas.
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III. Decisão

Em face do exposto, acordam os juízes da 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso, mantendo a sentença apelada.

Custas a cargo da apelante.
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Maria Domingas Simões (Relatora)
Nunes Ribeiro
Helder Almeida


[1] “A interpretação das cláusulas contratuais só envolve matéria de facto quando importa a reconstituição da vontade real das partes, constituindo matéria de direito quando, no desconhecimento de tal vontade, se deve proceder de harmonia com o nº 1 do art. 236º do Código Civil” vide aresto do STJ de 4/6/2002, processo nº 02 A 1442, disponível em www.dgsi.pt.
[2] Cf. Gravato de Morais, “Alienação e oneração de estabelecimento comercial”, págs. 151/152.