Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1470/13. 2TBCLD-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: PROCESSO TUTELAR CIVIL
PRINCÍPIO DO SUPERIOR INTERESSE DA CRIANÇA
SUSPENSÃO DE CONTACTOS DO FILHO COM O PAI
AUDIÇÃO DO MENOR
Data do Acordão: 11/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE CALDAS DA RAINHA – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 4º, Nº 1, AL. C), E 5º DO RGPTC (LEI 141/2015, DE 08/09).
Sumário: I – Existindo acórdão do Tribunal da Relação, com recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, que imputa ao arguido factos que integram a autoria material de oito crimes de abuso sexual sobre a sua filha, com 4 anos de idade à data dos factos, tal factualidade pode ser levada em consideração num processo tutelar cível (Lei n.º 141/2015, de 08 de setembro), apesar do princípio da presunção de inocência do arguido consagrado no artigo 32.º da Constituição da República.

II – Nesta situação de incerteza deve optar-se pela decisão que cause presumivelmente menor prejuízo à menor.

III – A gravidade dos factos pode implicar a suspensão dos encontros entre pai e filha, mesmo que decorram na presença de técnicos da Segurança Social.

IV – Muito embora a norma da al. c) do n.º 1 do artigo 4.º do RGPTC determine que a criança é sempre ouvida «sobre as decisões que lhe digam respeito», este dispositivo deve ser entendido com alguma elasticidade, não sendo necessário ouvir de novo a criança se ela já foi ouvida anteriormente nos autos e nada se alterou, entretanto, ao nível dos factos relativos à vida quotidiana da menor ou dos seus pais.

Decisão Texto Integral:






Sumário:

I – Existindo acórdão do Tribunal da Relação, com recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, que imputa ao arguido factos que integram a autoria material de oito crimes de abuso sexual sobre a sua filha, com 4 anos de idade à data dos factos, tal factualidade pode ser levada em consideração num processo tutelar cível (Lei n.º 141/2015, de 08 de setembro), apesar do princípio da presunção de inocência do arguido consagrado no artigo 32.º da Constituição da República.

II – Nesta situação de incerteza deve optar-se pela decisão que cause presumivelmente menor prejuízo à menor.

III – A gravidade dos factos pode implicar a suspensão dos encontros entre pai e filha, mesmo que decorram na presença de técnicos da Segurança Social.

IV – Muito embora a norma da al. c) do n.º 1 do artigo 4.º do RGPTC determine que a criança é sempre ouvida «sobre as decisões que lhe digam respeito», este dispositivo deve ser entendido com alguma elasticidade, não sendo necessário ouvir de novo a criança se ela já foi ouvida anteriormente nos autos e nada se alterou, entretanto, ao nível dos factos relativos à vida quotidiana da menor ou dos seus pais.


*

Recorrente ………………...A..., mãe da menor B...;

Recorridos…………………Á..., pai da menor B...;

………………………………..Ministério Público;

Menor………………………..B..., nascida em 1 de maio de 2012.

I. Relatório

a) O presente recurso vem interposto do despacho proferido em 12 de julho de 2021 que indeferiu o pedido da mãe da menor quanto à suspensão de visitas da sua filha B... ao pai, mantendo-se assim a continuidade do regime em vigor.

A decisão recorrida é esta:

«Em 13.04, a progenitora informou os autos de que foi proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito do processo crime n.º ..., em que é arguido o progenitor. Tal acórdão, segundo informou então, revogou o acórdão absolutório proferido pela primeira Instância e considerou que o arguido, progenitor da B..., cometeu oito crimes de abuso sexual de menor, todos praticados contra a mesma.

Requereu, assim, a suspensão das visitas.

O progenitor opôs-se.

Foi de imediato proferido despacho com vista à junção de certidão do mencionado acórdão da Relação, com data de trânsito em julgado caso o mesmo tenha ocorrido.

Foi junta certidão em que o Tribunal da Relação certificou que, por douto acórdão de 07.04.2021, se entendeu que o arguido praticou os crimes mencionados pela progenitora, tendo sido ordenado a baixa dos autos à primeira instância para determinação da pena. Mais se certificou que esse acórdão transitara em julgado em 22.04.2021.

Tendo vista dos autos, o Ministério Público promoveu a solicitação ao ISS, com urgência, de informação sobre como têm estado a decorrer os contactos entre a B... e o pai.

Entretanto, o progenitor informou que suscitou irregularidades do mencionado acórdão e que o mesmo não transitou, afinal, em julgado, dele pretendendo recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça.

Em 12.05, o ISS informou que, em sede de contactos, a B... chega bem-disposta e sem notas de ansiedade ou mal-estar. Os convívios decorrem de forma pacífica, sempre com a intervenção da equipa técnica.

Essa informação social foi notificada às partes.

Não sendo inequívoco, atentos os requerimentos apresentados pelo progenitor, se o douto acórdão da Relação de Coimbra transitara em julgado ou se foi interposto e admitido recurso, solicitou-se ao Tribunal da Relação que informasse o estado do recurso.

No dia 14.06, o Tribunal da Relação de Coimbra certificou que foi interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão proferido, o qual não foi admitido, conforme despacho proferido em 01.06.2021, e que o acórdão proferido em 07.04.2021 não colocou termo à concreta relação jurídico processual penal.

Foi junta cópia do mencionado douto despacho de 01.06.2021, cujo teor se transcreve:

«Recurso interposto pelo arguido para o STJ – a 12-05-2021.

O acórdão agora em crise, embora tenha determinado a culpabilidade do arguido, não conheceu, a final, do objecto do processo.

Com efeito, a decisão em causa não colocou termo à concreta relação jurídico processual penal, porquanto não se pronunciou uma condenação, cujo encargo foi relegado para o tribunal de 1ª instância. Consequentemente o acórdão proferido por este Tribunal da Relação não transitou ainda em julgado.

Nestes termos, não é admitido o recurso, ao abrigo do disposto nos arts 432º, nº1, b) e 400, nº 1, c), do CPP.

Notifique.

Oportunamente, devolva os autos à 1ª instância».

Em face da informação prestada pelo TRC e do relatório do ISS junto a 12 de maio, promoveu o Ministério Público que os contactos entre pai e filha se mantenham, por ora, inalterados.

Foi também dado conhecimento do expediente de 14.06 às partes, que mantiveram as suas posições.

Apreciando:

O Tribunal não é insensível ao facto de a Relação de Coimbra ter entendido que o progenitor praticou oito crimes de abuso sexual na pessoa da B...

Ainda assim, é o próprio Tribunal da Relação que certifica, sem oposição, que o seu douto acórdão não transitou em julgado.

E não se diga que o Supremo não conhece de facto, razão pela qual esse entendimento da Relação (quanto aos crimes que refere que o arguido praticou) transitou em julgado. Se existe a regra de o Supremo conhecer apenas de direito, nada o impede de, num futuro recurso que venha a ser interposto - já que o acórdão da Relação não transitou em julgado -, decidir, por exemplo, anular este acórdão que entendeu que o arguido cometeu os referidos crimes.

Assim, a realidade dos autos é esta, tal como certificado pelo Tribunal da Relação: «O acórdão agora em crise, embora tenha determinado a culpabilidade do arguido, não conheceu, a final, do objeto do processo.

Com efeito, a decisão em causa não colocou termo à concreta relação jurídico processual penal, porquanto não se pronunciou uma condenação, cujo encargo foi relegado para o tribunal de 1ª instância. Consequentemente o acórdão proferido por este Tribunal da Relação não transitou ainda em julgado».

E, como decorre da informação do ISS, os contactos entre pai e filha, com a intervenção dos técnicos da segurança social, decorrem sem incidentes ou sintomas de mal estar para a B...

A situação da B... não pode, nesta fase, ter recuos consoante as decisões do processo crime que, manifestamente, ainda não transitaram em julgado.

Reitera-se o já expendido no despacho de 04.05.2020, que se crê manter atualidade:

A medida de coação aplicada ao progenitor é a mais leve – termo de identidade e residência.

É certo que pode vir a ser condenado, mas o princípio da presunção da inocência impõe cautelas na alteração da realidade em vigor: estão a processar-se contactos que, de acordo com a informação do ISS decorrem de modo tranquilo e positivo. A menor não apresenta desconforto nos contactos com o pai e este tem comportamento adequado, estabelecendo-se regular interação entre ambos.

Uma abrupta interrupção de uma relação, que se vem estabelecendo nas instalações deste Tribunal e de forma vigiada, tem necessariamente consequências mais nefastas, caso ocorra nova absolvição do requerido, do que a sua manutenção. Caso o progenitor venha a ser condenado, com trânsito em julgado, e dependendo das penas aplicadas, aí sim, com segurança, poderá a situação ser revista.

Não nos parece prudente, depois de se ter conseguido uma reaproximação entre pai e filha, que se os afaste de novo, deitando a perder o trabalho de mediação da Segurança Social, para que, na eventualidade de ocorrer nova absolvição, se recomece tudo de novo. A menor B... não pode ser sujeita a alterações de rotina ou experiências que a desestabilizem mais.

Em face de todo o exposto, indefere-se à suspensão das visitas, que deverão decorrer nos precisos termos já determinados.»

b) É desta decisão que vem interposto recurso por parte da mãe da menor, como já se disse, cujas conclusões são as seguintes:

...

c) Contra-alegou o pai da menor, o qual concluiu deste modo:

...

A Exma. magistrada do Ministério Público pronunciou-se nos seguintes termos:

«1. Desde que, em setembro de 2016, o tribunal tomou conhecimento, por intermédio da CPCJ, alertada pela progenitora, de alegados abusos sexuais praticados pelo pai da menor B..., na pessoa desta, quando contava penas 3 e 4 anos, nunca mais ambos ficaram sozinhos no mesmo espaço.

2. De facto, numa primeira fase as visitas ficaram suspensas, após o que foram permitidos contactos com supervisão de técnicos do ISS, em locais neutros. Tais contactos, presenciais, começaram por ocorrer semanalmente, passaram depois a quinzenais, estiveram suspensos entre a acusação e a primeira absolvição e durante a pandemia e foram retomados em 29-12-2020.

3. Nos momentos mais próximos relativamente aos alegados abusos sexuais a B... não evidenciou qualquer comportamento de especial repulsa, medo ou ansiedade por estar na presença do pai, conforme decorre da leitura dos relatórios juntos aos autos pelo ISS.

4. Tem sido à medida que vai crescendo e que vai percecionando a redução dos seus contactos com o pai que a menor vem verbalizando menos vontade em estar com ele, referindo, em setembro de 2019, por ocasião da perícia psicológica a que foi submetida, “não ter quaisquer memórias positivas envolvendo-o (não lhe chama pai, refere-se-lhe como “o” ou “aquela pessoa”), sentir “raiva” e “medo” do pai, e reafirmando, “no final da sessão, que apenas quer a mãe, a avó e o avô, não quero mais ninguém”, pretendendo que “isto acabe tudo e que corra tudo bem”, e “queria que ele fosse para a prisão porque ele foi mau”.

5. Sucede que posteriormente a tal perícia a menor já esteve com o pai por algumas vezes, sempre na presença de técnicos, podendo ler-se nos relatórios do ISS que a menor não se aproxima do pai nem fala com ele diretamente, mas responde-lhe por intermédio das técnicas, participa em alguns jogos que também o envolvem, observa-o com atenção e denota alguma curiosidade acerca dele, comportando-se quase como se isso fosse proibido, mas sem demonstrar desagrado.

6. Assim, não se vislumbra que as poucas visitas/contactos (supervisionadas) que vêm ocorrendo entre a B... e o pai sejam contrários ao seu interesse.

7. A menor tem atualmente 9 anos de idade e foi ouvida em declarações para memória futura no âmbito do processo crime em que é arguido o seu pai.

8. Não tendo ainda 12 anos a audição da menor não se mostra legalmente obrigatória (cfr. artigo 35º, n.º 3, do RGPTC).

9. Para além disso, tal audição não foi requerida por ninguém.

10. Também a menor não evidencia apresentar maturidade suficiente para ser ouvida acerca da manutenção ou não dos seus contactos com o pai, afigurando-se ainda não ser suficientemente autónoma da mãe e dos avós maternos para saber distinguir o discurso destes do seu próprio e abster-se de reproduzir os reparos negativos que estes fazem relativamente ao seu pai, desde logo na presença dos técnicos do ISS, conforme decorre dos relatórios apresentados por esta entidade e do relatório da perícia realizada em 2019 pela FPCEUC.

11. Efetivamente, resulta da avaliação psicométrica da B... a “imaturidade atribuída à sua idade”, a “possível dependência relacional dos outros, principalmente dos adultos” e a “rejeição da figura paterna”, podendo ler-se no relatório do ISS de 14-01-2020 que “A progenitora apresenta-se absolutamente convicta de que o progenitor constitui um agressor e que os convívios com a filha, mesmo com supervisão técnica, se constituem como absolutamente prejudiciais para a B..., transmitindo à criança, de forma direta e indireta, desde o início das sessões supervisionadas (dezembro de 2016, tinha a criança, à data, 4 anos de idade) até esta data (7 anos de idade), de que os contactos com o pai se revelam altamente prejudiciais, reportando-se negativamente à figura do pai, como se tratasse de elemento a banir da vida da criança”).

12. A sensibilidade da matéria em causa impõe algum recato e demanda que a menor permaneça o mais possível afastada do que vem sendo trazido aos autos, a bem do seu bem-estar e equilíbrio emocional.

13. Não se afigurando a audição da menor previsivelmente conforme com o seu interesse e nem sequer útil, proceder à mesma equivaleria a encará-la como um dever da menor e não um direito seu, em clara desconformidade com os ditames legais.

14. Para além de a menor não dever ser ouvida, também as suas poucas visitas/contactos com o pai, nos moldes em que se vêm realizando, não devem ser suspensas.

15. Isto porque, apesar da gravidade das imputações que recaem sobre o progenitor, no processo crime ainda em curso, o mesmo presume-se inocente até que transite em julgado eventual decisão condenatória, conforme decorrência do princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

16. Tal princípio não tem o seu âmbito de aplicação restringido à área criminal, antes se impondo em todas as perspetivas da realidade, ainda que se entendam algumas cautelas para salvaguarda de outros princípios, como o do interesse do menor.

17. Assim, a manutenção do regime de visitas/contactos vigente afigura-se como a solução de compromisso e compatibilização entre tais princípios da presunção de inocência, por um lado, e do interesse do menor, por outro lado, sem que da mesma resulte prejuízo relevante para qualquer um deles e muito menos para a menor.

18. De facto, por tal regime a menor apenas tem de estar na mesma sala que o pai uma vez por semana, por período máximo de uma hora, e sempre na presença dos técnicos do ISS que já conhece e com os quais se sente à vontade e protegida.

19. Para além disso, a menor não tem de falar com o pai, olhar para ele ou permitir que ele se aproxime de si.

20. E, se efetivamente isso não acontece, decorre dos relatórios do ISS juntos aos autos, conforme já acima referido, que chega a ocorrer a menor responder a perguntas colocadas pelo pai, ainda que por intermédio dos técnicos, que por vezes observa-o pensando que ninguém está a ver e até participa em jogos em que sabe ser ele também jogador.

21. Decorre também dos mesmos relatórios que a menor também não evidencia desconforto antes ou depois das visitas/contactos.

22. Sendo esses relatórios posteriores à perícia psicológica, presume-se que a informação e observações neles vertidas sejam mais atuais do que as constantes daquela, efetivamente pouco favoráveis relativamente à vontade da criança em conviver com o pai.

23. Caso o tribunal tivesse proferido despacho diverso do recorrido, acolhendo a pretensão da progenitora em ver cessados os contactos da filha com o pai, a alienação parental que já se vem evidenciando corria o sério risco de se tornar mais efetiva e de quase impossível retrocesso, tornando-se a B... em mais uma órfã de pai vivo, apesar de este continuar a presumir-se inocente, de estar apenas sujeito a Termo de Identidade e Residência no processo crime e de não ter sido o Ministério Público a recorrer das duas vezes em que foi absolvido.

24. Assim, diversamente do defendido pela progenitora em sede de recurso, o que se mostra conforme com o interesse da B... é a manutenção destes pequenos contactos com o pai e não a sua suspensão agora para, em caso de absolvição, serem aplicadas “medidas mais musculadas para assegurar essa concretização” dos contactos (cfr. conclusão 20. a), do recurso).

25. Pelo exposto, ponderando os interesses em causa, o despacho recorrido deve ser mantido, nos seus precisos termos, uma vez que não padece de qualquer vício e consagra a decisão mais adequada do ponto de vista do interesse da menor e do respeito pelo princípio da presunção de inocência do pai, não correndo aquela qualquer risco em estar com este até uma hora por semana, em local neutro e sempre na presença dos técnicos do ISS que a vêm acompanhando nos últimos anos e com os quais já criou empatia.

Assim, no meu entendimento, mantendo o douto despacho recorrido nos seus precisos termos farão V. Exas. a JUSTIÇA a que já nos habituaram e que a menor B... demanda e merece.»

II. Objeto do recurso.

O âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

De acordo com a sequência lógica das matérias, cumpre começar pelas questões processuais, se as houver, prosseguindo depois com as questões relativas à matéria de facto e eventual repercussão destas na análise de exceções processuais e, por fim, com as questões atinentes ao mérito da causa.

As questões que este recurso coloca são as seguintes:

1 – Em primeiro lugar cumpre ponderar se se impunha a audição da criança antes de ter sido proferida a decisão, sob pena de violação do disposto no art.º 5.º do RGPTC, e se esta omissão implica a revogação da decisão.

2 – Caso a resposta à questão anterior seja negativa, cumpre verificar se em face do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, ainda não transitado em julgado, por ter sido interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do qual o pai da menor foi declarado autor de 8 crimes de abusos sexuais sobre a menor, cumpre verificar, dizia-se, se se devem suspender as visitas da menor ao pai ou, ao invés, mantê-las tal como se encontram a decorrer.

III. Fundamentação

a) Omissão da audição da menor

1 – Em primeiro lugar cumpre ponderar se se impunha a audição da criança antes de ter sido proferida a decisão, sob pena de violação do disposto no art.º 5.º do RGPTC, e se esta omissão implica a revogação da decisão.

No caso dos autos a resposta é negativa pelas seguintes razões:

(a) Vejamos em primeiro lugar os textos legais aplicáveis.

A al. c) do n.º 1 do artigo 4.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC) – Lei n.º 141/2015, de 08 de setembro –, dispõe que «1. Os processos tutelares cíveis regulados no RGPTC regem-se pelos princípios orientadores de intervenção estabelecidos na lei de proteção de crianças e jovens em perigo e ainda pelos seguintes: (…); c) Audição e participação da criança - a criança, com capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade, é sempre ouvida sobre as decisões que lhe digam respeito, preferencialmente com o apoio da assessoria técnica ao tribunal, sendo garantido, salvo recusa fundamentada do juiz, o acompanhamento por adulto da sua escolha sempre que nisso manifeste interesse.»

Referindo o n.º 2 do mesmo artigo que «Para efeitos do disposto na alínea c) do número anterior, o juiz afere, casuisticamente e por despacho, a capacidade de compreensão dos assuntos em discussão pela criança, podendo para o efeito recorrer ao apoio da assessoria técnica.»

Diz ainda o n.º 1 do artigo 5.º do mesmo diploma que «A criança tem direito a ser ouvida, sendo a sua opinião tida em consideração pelas autoridades judiciárias na determinação do seu superior interesse.»

Verifica-se, pois, que a lei pretende que o tribunal ouça a criança sempre que esta tenha capacidade de compreensão relativamente aos assuntos em discussão, pois na al. c) do n.º 1 do artigo 4.º do RGPTC refere-se que a criança é sempre ouvida sobre as decisões que lhe digam respeito, desde que tenha capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade.

No caso dos autos a menor tem cerca de 10 anos e já tem entendimento para compreender o que está em questão no processo.

(b)  Muito embora a norma da al. c) do n.º 1 do artigo 4.º do RGPTC diga que a criança é sempre ouvida «sobre as decisões que lhe digam respeito», este dispositivo deve ser entendido com alguma elasticidade.

Com efeito, se, por exemplo, no espaço de um ano forem tomadas três ou quatro decisões sobre questões que digam respeito à criança, não é necessário ouvir a criança outras tantas vezes se os assuntos a tratar versarem sobre o mesmo tipo de questões e a criança já tiver sido ouvida anteriormente sobre essa matéria.

Tal pode ocorrer porque por vezes os progenitores repetem as questões alegando algumas alterações da situação factual para justificarem a necessidade de alterar o status quo existente.

Ora, se a criança já foi ouvida e já se manifestou sobre o assunto, por exemplo, sobre com qual dos pais preferia viver e porquê, seria até inadequado, passado pouco tempo, voltar a chamar a criança ao tribunal para lhe fazer as mesmas perguntas.

Por isso, quando a lei diz que a criança é sempre ouvida «sobre as decisões que lhe digam respeito», está a referir-se aos casos em que vai ser tomada uma decisão sobre um aspeto da sua vida e ainda não foi ouvida sobre essa matéria, ou então foi ouvida, mas já decorreu um lapso de tempo durante o qual a informação existente ficou desatualizada.

O caso dos autos também não demanda uma nova inquirição da criança porque esta já foi ouvida relativamente ao regime de convívio entre si e o pai ora Recorrido, estando em vigor um regime que disciplina esta matéria.

Como a criança já foi ouvida nos autos sobre esta matéria, não há necessidade de a ouvir de novo porque nada se alterou ao nível dos factos da vida corrente da menor ou dos seus pais.

O presente pedido de alteração do exercício das responsabilidades parentais não se baseia em novos factos da vida diária da menor ou dos seus pais, ocorridos em data posterior à regulação das responsabilidades parentais em vigor.

A alteração baseia-se apenas na prolação do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra e respetivo conteúdo, não, como se acabou de dizer, em novos factos da vida quotidiana da menor e seus pais.

Não se mostra, por isso, necessária uma nova audição da menor, improcedendo, por isso, a nulidade arguida.

b) 1. Matéria factual relevante

(I) - A matéria a apreciar é a que resulta do relatório que antecede bem como a factualidade declarada provada no acórdão proferido em 7 de abril de 2021 pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no processo comum coletivo n.º ..., em que é arguido o pai da menor B...

(II) - Foram declarados provados os seguintes factos:

...

c) Apreciação da outra questão objeto do recurso

Vejamos se devem suspender-se os encontros entre a menor B... e o seu pai face aos factos declarados provados no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, nos termos do qual o pai da menor foi declarado autor de 8 crimes de abusos sexuais sobre a menor.

A resposta é afirmativa, pelas seguintes razões:

(I) O acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra ainda não transitou em julgado e a interposição do respetivo recurso tem efeito suspensivo – n.º 1 do artigo 408.º do CPP.

No entanto, este circunstancialismo não constitui obstáculo a que estes factos declarados provados no acórdão não sejam levados em consideração no presente processo.

Com efeito, a decisão constante do acórdão tem existência; é um facto; só deixará de existir se porventura vier a ser revogada.

Porém, neste momento, como se disse, a decisão existe e como existe não pode ser ignorada e deve ser tomada em consideração pelo tribunal.

(II) Presunção de inocência do arguido.

O princípio de presunção de inocência está consagrado no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, nestes termos: «Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação…».

Os constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira consideram que «…em todo o seu rigor verbal, o princípio poderia levar (…) à proibição de suspeitas sobre a culpabilidade (o que equivaleria à impossibilidade de valorização das provas e aplicação e interpretação das normas criminais pelo juiz). Como conteúdo adequando ao princípio apontar-se-á: (a) proibição de inversão do ónus da prova em detrimento do arguido; (b) preferência pela sentença de absolvição contra o arquivamento do processo; (c) exclusão da fixação de culpa em despachos de arquivamento; (d) não incidência de custas sobre o arguido não condenado; (e) a proibição da antecipação de verdadeiras penas a título de medidas cautelares (cfr. AcTC n.º 198/90; (f) proibição de efeitos automáticos da instauração do procedimento criminal» - Constituição da República Portuguesa, 3.ª edição. Coimbra Editora/1993, pág. 203.

Nas palavras de Chaïn Perelman, «…estabelecendo-se uma presunção legal assim em favor de uma das partes, concede-se-lhe uma vantagem, por vezes decisiva, em nome de outras considerações e outros valores que não a verdade objectiva ou a segurança jurídica. Assim é que a presunção de inocência protege as pessoas contra a calúnia e os abusos de poder…» - Lógica Jurídica. Livraria Martins Fontes Editora, S. Paulo/2004, pág. 44.

Verifica-se, por conseguinte, que a presunção de inocência se traduz numa posição jurídica vantajosa concedida ao arguido com o fim de o defender de possíveis abusos, em especial dos abusos das autoridades públicas: trata-se da fonte de onde brotam todas as garantias processuais do arguido.

Assim, o arguido não tem de provar a sua inocência. A acusação é que tem de provar o contrário da inocência, na medida em que uma presunção só se vence através da prova do seu contrário e nunca através de um mero estado de dúvida.

Como o mero estado de dúvida acerca da realidade dos factos não chega para superar a realidade estabelecida ficticiamente pela presunção, o estado de dúvida, como não é suficiente para provar o contrário da inocência, tem de ser valorado a favor do arguido (in dubio pro reo).

Gozando o acusado da presunção de inocência, quem acusa tem de provar a sua culpabilidade, caso contrário o acusado será absolvido.

Vê-se, pois, que a presunção de inocência do arguido está estabelecida para o processo penal e visa-se com ela reforçar a ideia, e garanti-la na prática processual, de que o arguido não tem de provar a sua inocência, ao invés, é a acusação que tem de provar a culpabilidade do acusado.

Porém, fora do processo penal, esta presunção perde, em regra, este seu valor jurídico e permanece apenas como valor moral.

Por conseguinte, esta presunção não pode exercer nos presentes autos, cuja natureza é tutelar cível, a influência que exerce no processo penal.

Esta posição não implica que nos presentes autos se desconsidere que ainda não existe uma decisão com trânsito em julgado (aliás, até estas podem ser revistas sob determinados pressupostos).

Porém, na sequência do já dito atrás, há que ter em consideração que existe uma decisão do Tribunal da Relação que fixa certos factos como tendo sido praticados pelo arguido e também que os recursos dos acórdãos do Tribunal da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça só em casos limitados versam sobre a matéria de facto e, por fim, que as hipóteses de alteração ou revogação da factualidade declarada provada ou não provada pelo Tribunal da Relação são escassas.

Com efeito, o artigo 434.º do CPP determina que «Sem prejuízo do disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 410.º, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito.»

E nos n.º 2 e 3 do artigo 410.º do mesmo Código, diz-se que «2- Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.»

Face ao exposto, neste momento, surge como fortemente provável a hipótese dos factos declarados provados pelo Tribunal da Relação se manterem para futuro.

Aliás, dada a limitação das hipóteses em que o Supremo Tribunal de Justiça pode alterar a matéria de facto fixada pelo Tribunal da Relação, é mais provável esta hipótese que a inversa, isto é, que tal factualidade venha a ser objeto de revogação.

É com base nesta situação de forte prognóstico quanto ao futuro, no sentido de que os factos declarados provados no acórdão se manterão que tem de ser ponderado se os encontros para convívio entre a menor e o seu pai devem manter-se ou suspender-se.

Passa-se, pois, analisar esta problemática partindo da ideia de que é altamente provável a hipótese do pai da menor ter praticado os factos em questão.

(III) Partindo pois desta hipótese, verifica-se que os factos imputados ao arguido, como cometidos por ele, impõem a cessação dos encontros entre si e a menor.

Com efeito, as ações atribuídas ao pai da menor no acórdão implicam que se conclua que o convívio entre ambos não é salutar para a menor, pelas seguintes razões:

É sabido que as condutas humanas, as ações exteriores, são o reflexo de decisões do foro interno, isto é, o que fazemos é expressão externa daquilo que vai na nossa mente.

Como referiu John Searle «A força motriz que está por detrás da maior parte das acções humanas (e animais) é o desejo» - Mente, Cérebro e Ciência (1984). Lisboa: Edições 70, 2000, pág. 81.

Os nossos desejos encontram-se ligados, naturalmente, à satisfação das nossas necessidades, interesses, instintos que preenchem o dia a dia de cada ser humano.

Tendo-se declarado provado que o arguido «acariciou a filha B... manualmente nas nádegas, friccionou, com os dedos a sua zona vulvar, com movimentos para a frente e para trás, causando-lhe dor nessa região» (facto A); que quando «…a filha se encontrava a dormir na cama, o arguido Á..., pelo menos por duas vezes, retirou-lhe o pijama, até a mesma ficar nua, e friccionou a sua língua na boca dela, nos seios e na vagina da criança, tendo colocado o seu corpo em cima da criança, friccionando o seu pénis na zona vulvar da criança, com movimentos pélvicos para a frente e para trás» (facto B); que «…o arguido, pelo menos por uma vez, após despir-se, solicitou à filha, B..., que lhe acariciasse o pénis tendo esta obedecido» (facto C); que «…o Arguido Á..., pelo menos por uma vez, estando nu, colocou o seu pénis sobre os lábios da filha e disse para ela o beijar nessa zona, o que aquela acabou por fazer» (facto D); que  «…o arguido, pelo menos por três vezes introduziu os dedos e um objecto com luz e outro idêntico a uma agulha na vagina da criança, causando-lhe dor, bem como colocou bolachas na vagina da criança, sua filha, comendo as mesmas» (facto E) e que «…o arguido Á..., pelo menos por uma vez, encontrando-se na zona da ..., trincou a zona vulvar da sua filha, B..., que se encontrava nua», tal factualidade é naturalmente o reflexo da postura mental do arguido em relação à sua filha, esta com 4 anos de idade à data dos factos.

Esta postura mental é a oposta àquela que é considerada adequada nas relações entre pai e filha e que consiste na inexistência de sentimentos com conteúdo sexual na mente do pai e correspondentes atos executivos de tais sentimentos pedem.

Tal factualidade mostra que o pai não é portador de um sentimento de amor filial pela sua filha, muito embora ele possa considerar que sim, porque a vê como um objeto sexual suscetível de satisfazer os seus desejos desta natureza, como se refere no citado acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra.

Neste quadro, partindo sempre da hipótese do Recorrido ser autor dos factos que lhe são atribuídos, o tribunal tem de partir do princípio de que o Recorrente continua a ter atualmente o mesmo tipo de sentimentos em relação à filha, porquanto não existem factos que indiciem qualquer mudança neste aspeto.

Assim, o interesse da menor aponta no sentido de não ter contatos com o pai porque a mencionada postura deste em relação à filha é o oposto daquela que deve existir.

Por sua vez a menor, sendo ainda pequena, poderia não ter suficiente capacidade crítica para compreender o desvalor da ação atribuída ao seu pai, podendo até supor que tais actos fossem adequados, digamos «bons», mas mostrou, no entanto, que a atuação do pai não lhe era agradável ao ponto de ter contado o que se passou à sua mãe e não querer estar na presença do pai.

Nestas circunstâncias, os contatos entre a menor e o pai devem ser suspensos porque não servem os interesses da menor, os quais consistem em viver uma infância livre de relações onde surjam ou estejam latentes elementos de cariz sexual que a tenham a si mesma como objeto, com ou sem contato físico.

Por outro lado, a atribuição de tais factos ao recorrido permite concluir, como já se disse, que o mesmo não desempenha adequadamente o papel de pai perante a filha e sendo assim não há razão para existir convívio entre ambos.

(IV) O facto das visitas se efetuarem na presença de dois técnicos da segurança social não altera a conclusão a que se chegou, porque tal presença não apaga a recordação da menor em relação ao que se passou, nem suprime a postura mental do Recorrente em relação à filha.

(V) Realça-se mais uma vez, para que não haja dúvidas, que aquilo que é dito se baseia no pressuposto de que os factos declarados provados no acórdão do Tribunal da Relação correspondem à realidade presente e que não sofrerão alteração no futuro, o que não está de todo garantido, existindo sempre o risco da presente decisão se basear em factos que podem vir a ser declarados insubsistentes.

Porém, dada a gravidade da situação, tem de ser tomada uma decisão e esta será sempre, por natureza, uma decisão de risco, tomada num ambiente de incerteza, por não ser possível saber o que vai ocorrer no futuro.

A decisão a tomar oscila, por isso, entre a hipótese dos factos não se manterem e a hipótese de se manterem.

Face a esta alternativa, cumpre tomar a decisão que preventivamente atenue ou cause presumivelmente menor dano.

Se forem suspensos os encontros e os factos não se mantiverem, quem sai prejudicado é o pai da menor e esta última também, na medida em que não se relaciona com o seu pai, mas esta carência pode ser recuperada mais tarde ao longo da vida;

Se não forem suspensos os encontros e os factos se mantiverem, quem sai prejudicada é a menor, eventualmente de um modo difícil de atenuar.

Nesta situação de incerteza deve optar-se pela decisão que menos prejudica (presumivelmente) a menor, ou seja, esta última, porque é a parte mais carecida de proteção, dado ser um ser humano cuja personalidade está em formação, ao invés do seu pai.

É esta, alias, a finalidade visada no presente processo que se orienta pelo interesse superior da criança/jovem, nos termos do qual «a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, nomeadamente à continuidade de relações de afeto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto» - al. a) do artigo 4.º da Lei n.º 147/99, de 01 de Setembro (Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo), aplicável ao caso dos autos pela remissão feita no n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 141/2015, de 08 de Setembro (Regime Geral do Processo Tutelar Cível)

 (VI) A suspensão durará enquanto não existirem factos que juridicamente imponham decisão diversa da agora tomada.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso procedente e determina-se a suspensão das visitas do Recorrente à sua filha.

Custas pelo Recorrente.


Coimbra, 23 de novembro de 2021