Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1908/11.3TBFIG-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: INSOLVÊNCIA
SUSTENTO MINIMAMENTE DIGNO
Data do Acordão: 05/29/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA FIGUEIRA DA FOZ – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 824º, Nº 2 DO CPC; 239º, NºS 2 E 3 CIRE
Sumário: I – Como decorre da letra da lei, o legislador fixou objectivamente, em três vezes o salário mínimo nacional, o tecto máximo do razoavelmente necessário para o sustento do devedor e do seu agregado familiar, tecto máximo esse que só por decisão fundamentada do juiz pode ser excedido.

II – Não fixou, contudo, objectivamente, o limite mínimo, o qual, porém, tendo em conta o disposto no artº 824º, nº 2 do Cód. Proc. Civil e o decidido nos Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 177/2002, de 23/04 (DR, I-A, nº 150, de 02/07/2002) e 96/2004, de 11/05 (DR, II, nº 78, de 01/04/2004) não deverá ser inferior ao valor correspondente a uma remuneração mínima garantida (€ 485,00).

III – Em princípio, será entre esses limites mínimo e máximo que, sopesando todos os elementos factuais relevantes apurados, o juiz deverá concretizar, em cada caso, o valor razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.

IV – Entende-se adequada, ponderada e equilibrada a fixação do valor de duas remunerações mínimas garantidas (€ 970,00) como o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno dos devedores (marido e mulher) e do seu agregado familiar (constituído por eles próprios e por um filho já com 25 anos de idade), cujo rendimento mensal monta a € 1.579,00 e cujas despesas fixas regulares, excluída a renda da casa que previsivelmente terão de locar, ascendem a € 656,00 por mês.

Decisão Texto Integral:          Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

         1. RELATÓRIO

J… e M… apresentaram-se à insolvência, logo requerendo a exoneração do passivo restante.

A insolvência foi declarada por sentença de 15 de Dezembro de 2011.

Os credores BANCO …, S.A. e C…, S.A. manifestaram a sua oposição ao pedido de exoneração do passivo restante, este último na assembleia de credores.

O administrador de insolvência elaborou o relatório a que alude o art. 155.º do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE)[1], não se opondo à exoneração do passivo restante.

Foi proferido o despacho inicial a que se referem os artºs 237º, al. b) e 239º, nele tendo sido determinado, além do mais, o seguinte:

“a) Durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que os insolventes venham a auferir seja entregue ao fiduciário infra nomeado;

b) O rendimento disponível referido na alínea anterior não inclui créditos cedidos a terceiro, nos termos do artigo 115.º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas, nem o valor correspondente a duas vezes a remuneração mínima mensal garantida que a cada momento vigorar, nem o necessário para exercer actividade profissional que eventualmente os insolventes venham a desenvolver.

c) (…)”.

Inconformados, os insolventes interpuseram recurso, encerrando a alegação apresentada com as seguintes conclusões:

...

Não há notícia de que tenha sido apresentada qualquer resposta.

O recurso foi admitido.

Nada a tal obstando, cumpre apreciar e decidir.

         Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foram colocadas as seguintes questões:

         a) Nulidade do despacho recorrido;

         b) Exiguidade da quantia fixada para o sustento minimamente digno dos devedores e do seu agregado familiar.

         2. FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. De facto

         Para além da que resulta do antecedente relatório, a 1ª instância levou ainda em consideração a seguinte factualidade:

         a) Os insolventes têm um rendimento base de € 1.579,00 (mil quinhentos e setenta e nove euros);

b) Apresentaram como despesas mensais cerca de €100,00 (cem euros) em alimentação, €255,00 (duzentos e cinquenta e cinco euros) em transportes, €16,00 (dezasseis euros) em saúde, €25,00 (vinte e cinco euros) em vestuário e calçado, €160,00 (cento e sessenta euros) em despesas com água, luz e gás natural, €100,00 (cem euros) para despesas quotidianas com pão, leite, água, fiambre, ou seja, um total de €640,00 (seiscentos e quarenta euros)[2];

c) Alegaram ainda que o rendimento de €1.438,06 será o que necessitam para sobreviver;

d) O agregado familiar dos insolventes é constituído por três pessoas (os insolventes e um filho nascido em 12/08/1986 – fls. 149), subsistindo com base nos seus rendimentos.

2.2. De direito

2.2.1. Nulidade

Os recorrentes argúem a nulidade do despacho recorrido com base em alegada oposição entre os fundamentos e a decisão, bem como em omissão de pronúncia [artº 668º, nº 1, als. c) e d), 1ª parte, do Cód. Proc. Civil].

Um dos argumentos era o erro material verificado na soma das parcelas das despesas mensais enunciadas na al. b) do item 2.1., supra, já constatado e rectificado na nota de rodapé oportunamente inserida.

O outro consiste na alegada desconsideração da despesa mensal decorrente da necessidade de habitação dos recorrentes e respectivo agregado familiar.

Os recorrentes alegaram no artigo 38º, al. a) do requerimento inicial que dos € 1.579,33 que auferem mensalmente pagam … (a) € 732,06 para a habitação.

Como aquela importância correspondia à prestação mensal do empréstimo para aquisição de habitação própria e, mercê da não aprovação do plano de pagamentos apresentado, o imóvel adquirido, que funcionava como casa de morada de família, será objecto de liquidação nos autos de insolvência, os recorrentes entendem que deveria ter sido considerado como despesa mensal fixa o encargo com a renda habitacional que certamente terão de suportar. Esse encargo ascenderá, segundo os recorrentes, a € 400,00 por mês [conclusão L)][3].

Sucede, contudo, que os insolventes requereram a exoneração do passivo restante precisamente para o caso de não ser aprovado o plano de pagamentos (artº 254º) e, ao fazê-lo, não alegaram, como era ónus seu[4], a factualidade que agora querem ver atendida.

E, como foi decidido no Ac. Rel. Porto de 06/03/2012, indicado na anterior nota de rodapé, o poder de iniciativa do juiz de convidar as partes ao aperfeiçoamento dos articulados consubstancia um despacho não vinculado, proferido no exercício de um poder essencialmente discricionário e, por isso, nem o despacho em que o exerça é recorrível, nem o seu não exercício pode fundar a arguição de qualquer nulidade processual, tanto mais que, face ao princípio da auto-responsabilidade das partes, estas deverão suportar as consequências da sua actuação processual.

Não fazia sentido, pois, que o tribunal levasse em consideração como despesa mensal fixa dos insolventes uma quantia concreta e determinada relativa à renda habitacional que previsivelmente terão de pagar, dada a falta de alegação e prova da mesma.

Nada, contudo, permite afirmar que, embora sem o referir expressamente, ao excluir do rendimento disponível o valor de duas remunerações mínimas garantidas, destinadas ao sustento minimamente digno dos devedores e do seu agregado familiar, o julgador da 1ª instância não tenha levado em consideração o previsível – mas ainda não concretizado e determinado – encargo com a habitação.

O despacho recorrido não padece, pois, das enfermidades que os recorrentes lhe apontaram, não apresentando qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão, nem tendo deixado de pronunciar-se sobre qualquer questão que devesse apreciar, motivo pelo qual não é nulo [artºs 660º, nº 2 e 668º, nº 1, als. c) e d) do CPC].

Nega-se, portanto, razão aos recorrentes quanto a esta questão.

         2.1.2. Exiguidade da quantia fixada para o sustento minimamente digno dos devedores e do seu agregado familiar

 Dispõe o art. 239.º, n.ºs 2 e 3 do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas que:

“2. O despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores de insolvência (…)

3. Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:

 a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;

b) Do que seja razoavelmente necessário para:

i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;

ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;

iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor”.

O despacho recorrido excluiu do rendimento disponível, com base na subalínea i) da alínea b) do nº 3 do artº 239º, como integrando o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno dos insolventes e do seu agregado familiar, constituído por três pessoas (eles e um filho), o valor correspondente a duas remunerações mínimas garantidas, ou seja, actualmente, de acordo com o Decreto-Lei nº 143/2010, de 31/12, ainda em vigor, o valor de € 970,00 (novecentos e setenta euros).

Os recorrentes discordam, sustentando que, atentas as suas despesas mensais fixas, nas quais deverá ser incluída uma quantia, que calculam em € 400,00, relativa à renda da habitação que terão de locar para sua residência, o razoavelmente necessário para o seu sustento minimamente digno ascende à importância mensal de € 1.300,00.

Como decorre da letra da lei, o legislador fixou objectivamente, em três vezes o salário mínimo nacional, o tecto máximo do razoavelmente necessário para o sustento do devedor e do seu agregado familiar, tecto máximo esse que só por decisão fundamentada do juiz pode ser excedido. Não fixou, contudo, objectivamente, o limite mínimo, o qual, porém, tendo em conta o disposto no artº 824º, nº 2 do Cód. Proc. Civil e o decidido nos Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 177/2002 e 96/2004, citados no despacho recorrido, não deverá ser inferior ao valor correspondente a uma remuneração mínima garantida (€ 485,00)[5].

Em princípio, será entre esses limites mínimo e máximo que, sopesando todos os elementos factuais relevantes apurados, o juiz deverá concretizar, em cada caso, o valor razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar[6].

Entre os elementos factuais relevantes há que destacar a composição do agregado familiar do devedor, sabido como é que quanto maior for o agregado maior será a quantia necessária para o seu sustento[7].

E convém não esquecer que a exoneração do passivo restante não pode ser vista como a possibilidade de o insolvente se libertar, quase automaticamente, da responsabilidade de satisfazer as obrigações para com os seus credores durante o período da cessão[8]. É, por isso, razoável que o devedor (e o respectivo agregado) não mantenha o trem de vida que tinha anteriormente – e que o levou à insolvência – podendo baixá-lo substancialmente, ainda que salvaguardando sempre uma existência condigna.

No caso dos autos haverá que ter em atenção as despesas mensais fixas dos insolventes referidas na al. b) do item 2.1., supra, às quais haverá que adicionar uma importância não concretamente apurada relativa à renda da habitação onde os devedores irão residir quando tiverem de abandonar a que foi a sua casa de morada de família.

Mas também é de ter em conta que o filho dos insolventes, já com 25 anos, previsivelmente alcançará a breve trecho a sua autonomia económica, assim libertando substancialmente o orçamento familiar.

Tratando-se, pois, de um agregado familiar de três elementos e sendo de perspectivar que um desses elementos (o filho) logre, num futuro próximo, autonomizar-se economicamente – e não esquecendo que, em princípio, a margem de variação se situa entre o mínimo de uma e o máximo de três remunerações mínimas garantidas – entende-se adequada, ponderada e equilibrada a fixação em duas remunerações mínimas garantidas como o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno dos devedores e do seu agregado familiar e, consequentemente, a exclusão da quantia correspondente do rendimento disponível a ceder ao fiduciário durante o período da cessão.

Não se reconhece, portanto, razão aos recorrentes, antes se concordando com a decisão recorrida que, em nosso entender, deve ser mantida.

Sumário (artº 713º, nº 7 do CPC):

I – Como decorre da letra da lei, o legislador fixou objectivamente, em três vezes o salário mínimo nacional, o tecto máximo do razoavelmente necessário para o sustento do devedor e do seu agregado familiar, tecto máximo esse que só por decisão fundamentada do juiz pode ser excedido.

II – Não fixou, contudo, objectivamente, o limite mínimo, o qual, porém, tendo em conta o disposto no artº 824º, nº 2 do Cód. Proc. Civil e o decidido nos Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 177/2002, de 23/04 (DR, I-A, nº 150, de 02/07/2002) e 96/2004, de 11/05 (DR, II, nº 78, de 01/04/2004) não deverá ser inferior ao valor correspondente a uma remuneração mínima garantida (€ 485,00).

III – Em princípio, será entre esses limites mínimo e máximo que, sopesando todos os elementos factuais relevantes apurados, o juiz deverá concretizar, em cada caso, o valor razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.

IV – Entende-se adequada, ponderada e equilibrada a fixação do valor de duas remunerações mínimas garantidas (€ 970,00) como o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno dos devedores (marido e mulher) e do seu agregado familiar (constituído por eles próprios e por um filho já com 25 anos de idade), cujo rendimento mensal monta a € 1.579,00 e cujas despesas fixas regulares, excluída a renda da casa que previsivelmente terão de locar, ascendem a € 656,00 por mês.

         3. DECISÃO

         Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, em manter a decisão recorrida.

         As custas são a cargo dos recorrentes.

Artur Dias (Relator)

Jaime Ferreira

Jorge Arcanjo


[1] Aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18/03 e alterado pelos Decretos-Leis nºs 200/2004, de 18/08, 76-A/2006, de 29/03, 282/2007, de 07/08, 116/2008, de 04/07 e 185/2009, de 12/08. As alterações introduzidas pela Lei nº 16/2012, de 20/04, não são aplicáveis ao caso dos autos.
  São do mencionado diploma todas as disposições legais adiante citadas sem menção da origem.

[2] É manifesto que somando as parcelas indicadas o resultado obtido é de € 656,00 e não de € 640,00, o que indicia que, por lapso evidente, não foi incluída na operação de adição a parcela de € 16,00 (dezasseis euros) relativa a despesas de saúde.
  Fica, portanto, corrigido o lapso e sanada a nulidade que, com base nele, os recorrentes arguiram.
[3] No corpo da alegação de recurso (ponto I, nº 11) haviam referido € 450,00.
[4] Ac. Rel. Porto de 02/06/2011, Proc. 347/08.8TBVCD-F.C1 e de 06/03/2012, Proc. 1719/11.6TBPNF-D.P1, in www.dgsi.pt.
[5] Ac. da Rel. Porto de 15/09/2011, Proc. 692/11.5TBVCD-C.P1 e de 24/01/2012, Proc. 1122/11.8TBGDM-B.C1, in www.dgsi.pt.
[6] Ac. Rel. Porto de 02/02/2010, Proc. 1180/09.5TJPRT.P1 e de 17/04/2012, Proc. 959/11.2TBESP-E.P1; Ac. Rel. Lisboa de 22/09/2011, Proc. 2924/11.0TBCSC-B.L1-8 e de 09/11/2011, Proc. 1311/11.5TBPDL-B.L1-1, todos em www.dgsi.pt.
[7] Embora se não trate de uma progressão geométrica em que a razão corresponda ao valor do sustento de cada elemento do agregado.
[8] Ac. Rel. Porto de 10/05/2011, Proc. 1292/10.2TJPRT-D.P1, in www.dgsi.pt.