Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
55/04.9GBLMG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO ACOMPANHADA DE REGIME DE PROVA
COMETIMENTO DE NOVO CRIME
REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO
AUDIÇÃO PRESENCIAL DO CONDENADO
Data do Acordão: 04/03/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JC CRIMINAL DE VISEU – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 50.º, A 56.º DO CP; ARTS. 61.º, N.º 1, AL. B), E 495.º, N.º 2, DO CPP
Sumário: I – Por expressa imposição do artigo 61.º, n.º 1, al. b), do CPP, a revogação da suspensão da execução da pena de prisão não pode ser decidida sem que ao condenado seja facultada a possibilidade de fornecer uma explicação que de alguma forma contribua para reduzir ou afastar o impacto negativo da nova actuação criminosa, convencendo o tribunal da subsistência das expectativas em si depositadas e que justificaram a opção pela dita pena de substituição.

II – Tendo o plano de readaptação como escopo a reinserção social do condenado, o cometimento de novo crime no período da suspensão acompanhada de regime de prova envolve, já por si, frustração dos objectivos daquele plano, pois que este é indissociável dos pressupostos da suspensão, onde avulta o juízo de prognose positiva visando, essencialmente, despertar ou desenvolver os sentimentos de consciência e responsabilidade social do agente em causa.

III – Ocorrendo uma tal vicissitude, ou seja, a prática de novo ilícito penal no decurso da suspensão da execução da pena acompanhada de regime de prova, é ainda no âmbito deste regime, com o horizonte dos arts. 55.º e 56.º do CP, que o comportamento do condenado deve ser avaliado.

IV – Mas precisamente porque assim é, as situações deste tipo caiem na alçada do n.º 2 do art. 495.º do CPP, devendo o condenado ser presencialmente ouvido nos termos em que aquela norma o determina.

Decisão Texto Integral:







Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO:

            O ora recorrente, (…), foi condenado, nestes autos, por acórdão transitado em julgado no dia 3 de Junho de 2013, pela prática de dois crimes de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, nº1 e 204º, nº1, al. a), - por referência à al. a) do art. 202º - e nº 2, al. e) – por referência à al. d) do art. 202º - todos do Código Penal, na pena única de dois anos e oito meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sob regime de prova.

            Ulteriormente, em 14 de Maio de 2015, cometeu um crime de furto qualificado, sob a forma tentada, p. e p. pelos arts. 203º, nº 1, 204º, nº 2, al. e), 22º, 23º, 26º e 73º, nº 1, todos do Código Penal, pelo qual foi condenado na pena de dois anos e dois meses de prisão efectiva.

O Ministério Público pronunciou-se pela revogação da suspensão de execução da pena.

O condenado foi notificado para se pronunciar, na sequência de despacho exarado em 19/01/2018 com o seguinte teor:

Constatando-se que o arguido (…) praticou outro crime de furto qualificado no período de suspensão da pena única de prisão que aqui lhe foi aplicada, tendo, inclusivamente, por via disso, sido condenado em pena de prisão efetiva no processo nº 158/15.4GAMCD, do Juízo de Competência Genérica de Macedo de Cavaleiros – Bragança).

Entendendo não ser obrigatória a audição presencial do arguido nos casos da al .b), do nº1, do art.56º, do C. Penal, mas sem prejuízo do mesmo assim o requerer fundadamente, no prazo de 10 dias, se nisso mostrar interesse, com cópia deste despacho, notifique o arguido, por si na morada do TIR e na pessoa do seu defensor para, querendo, no mesmo prazo, se pronunciar sobre a eventual revogação da suspensão da execução da pena aqui aplicada.

O arguido nada disse, tendo então sido proferido o despacho recorrido, que tem o seguinte teor:

            "O arguido (…) foi condenado nos presentes autos, por acórdão transitado em julgado no dia 3 de Junho de 2013, pela prática de dois crimes de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, nº1 e 204º, nº1, al. a), - por referência à al. a) do art. 202º - e nº 2, al. e) – por referência à al. d) do art. 202º - todos do Código Penal, na pena única de dois anos e oito meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sob regime de prova – v. fls. 732 a 765 e 770.

            Conforme certidão de fls.1110-75 o arguido praticou em 14 de Maio de 2015 um crime de furto qualificado, sob a forma tentada, p. e p. pelos arts. 203º, nº 1, 204º, nº 2, al. e), 22º, 23º, 26º e 73º, nº 1, todos do Código Penal, pelo qual foi condenado na pena de dois anos e dois meses de prisão efectiva.

            Porque tal crime foi praticado no decurso do prazo de suspensão da execução da pena de prisão aplicada nos presentes autos e, no seu entender, e mostram comprometidas as finalidades da suspensão, o Ministério Público propôs a revogação da mesma.

            Notificado o arguido, o mesmo nada declarou.

            Cumpre decidir.

            Ora, tratando-se de crime idêntico àquele objeto da condenação dos presentes autos e tendo agora o tribunal da segunda condenação optado pela aplicação de uma pena de prisão efetiva, mostra-se definitivamente comprometido o juízo de prognose favorável subjacente à suspensão da execução da pena aqui em crise.

            Tanto mais que o arguido, além destas duas condenações, o arguido tem várias outras pela prática de crimes de condução sem habilitação legal, desobediência e tráfico de estupefacientes de menor gravidade, nomeadamente em penas de prisão efectivas - cfr. fls. 1116-7.

            Esta indiferença do arguido relativamente à advertência ínsita na suspensão da execução da pena e a personalidade tendencialmente delinquente apresentada nos antecedentes criminais são reveladores que as finalidades que estiveram na base daquela

suspensão se mostram definitivamente infirmadas.

            Pelo exposto, nos termos do art.56º, nº1, al. b), do Código Penal, revoga-se a suspensão da execução da pena de prisão aqui aplicada ao arguido (…) e em consequência determina-se o cumprimento da pena única de dois anos e oito meses de prisão.

            Notifique.

            Boletim ao registo criminal.

            Após trânsito em julgado passe e remeta mandados de detenção e condução do arguido (…) para cumprimento da referida pena de prisão."

Inconformado com esta decisão dela interpôs recurso o condenado, retirando da respectiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):

(...)

            A. A condenação do arguido pela prática de crime no período da suspensão da execução da pena de prisão aplicada nos presentes autos não pode nem deve, só por si, determinar a imediata revogação da suspensão da execução.

            B. O douto despacho não atentou a todo o circunstancialismo (dos presentes autos e dos autos em que o recorrente veio a ser condenado) nem tão pouco no teor dos relatórios de monitorização da execução da pena.

            C. O crime cometido pelo arguido nos presentes autos ocorreu em março de 2004, o que inculca a ideia de que as necessidades de prevenção encontram-se deveras atenuadas - facto não considerado no despacho recorrido.

            D. Dos relatórios de acompanhamento da execução da pena decorre que o arguido compareceu às convocatórias, denotou capacidade de análise e reflexão crítica sobre os factos e que exerce actividades laborais diferenciadas circunstância omitida no douto despacho.

            E. Por outro lado, o crime cometido na pendência da suspensão não pressupõe a mesma gravidade nem ilicitude porquanto se tratou de crime não consumado e não é de todo clara qual a concreta participação do mesmo nos factos.

            F. Por fim, o douto despacho desconsidera o contraditório exercido pelo arguido, afirmando que o arguido notificado da promoção no sentido da revogação nada declarou, o que é falso atento o requerimento apresentado nos autos a 15/01/2018 ao qual foi dada a referência n° 2714562.

            G. O tribunal a quo, incorreu, atento o exposto, em erro de julgamento sobre o comprometimento definitivo do juízo de prognose favorável que o levou a decidir pela revogação da suspensão da execução da pena de prisão.

            H. o douto despacho incorre ainda em vício de falta de fundamentação (artigos 374º e 379º do C.P.P.) na medida em que não concretiza as razões que o levaram a decidir como decidiu e omite circunstâncias e factualidade que deveria ter sido considerada e seria determinante para tomada de decisão oposta à que foi proferida.

            I. Por fim, entende-se, ainda, que não deveria o tribunal ter decidido revogar a suspensão da execução da pena de prisão sem proceder à audição presencial do condenado, o que configura inconstitucionalidade por violação dos direitos e garantias de defesa insítos nos artigos 20º e 32º n° 5 da C.R.P..

            Termos em que, deverá ser revogado o despacho que decidiu pela revogação da suspensão da execução da pena de prisão.

            (…)

            O M.P. respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.

            Nesta instância, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer acompanhando a posição assumida pelo M.P. em 1ª instância, pronunciando-se também pela improcedência do recurso.

            Não houve resposta.

            Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

            Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.

            No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, há que conhecer do seguinte:

            - Apreciar as consequências da falta de audição presencial do condenado antes da revogação da suspensão da pena, nomeadamente, se ocorre violação de garantias de defesa;

- Verificar se o tipo de crime a que se reporta a nova condenação e as circunstâncias do cometimento desse novo ilícito impunham decisão em sentido diverso da que veio a ser tomada pelo tribunal a quo, ocorrendo erro de julgamento;

- Verificar se o tribunal a quo desconsiderou o contraditório exercido pelo arguido;

- Verificar se ocorre falta de fundamentação da decisão, por omissão da factualidade e premissas que conduziram à decisão que veio a ser proferida.

II – FUNDAMENTAÇÃO:

           

Como resulta do relatório que antecede, após notificação do ora recorrente para se pronunciar sobre a revogação da suspensão da execução da pena, o tribunal a quo proferiu despacho revogando a suspensão.

Invoca o recorrente inconstitucionalidade decorrente de violação dos arts. 20º e 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa por preterição do dever de prévia audição antes da revogação da suspensão da execução da pena, que, sustenta, deve ser pessoal e presencial.

Apreciando e decidindo, diremos que é ponto assente que o condenado tem que ser ouvido antes da decisão de revogação da suspensão, desde logo por imperativo legal que se prende directamente com os direitos de defesa que lhe assistem.

Vejamos:

Para a revogação com fundamento no cometimento de novo crime no período da suspensão dispõe a al. b) do nº 1 do art. 56º do Código Penal:

 “1 - A suspensão da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado:

               a) …

b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.

2 - …”

O requisito actualmente exigido – revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas – restringiu a possibilidade de revogação fundada no cometimento de novo crime durante o período de suspensão àquelas situações em que o cometimento desse novo crime evidencie a falência do juízo de prognose que fundamentou a suspensão em termos tais que este se deva considerar definitivamente arredado. Mas precisamente porque é este, agora, o elemento determinante da revogação da suspensão, a lei deixou de exigir a natureza dolosa do novo crime cometido, assim como deixou de exigir o seu sancionamento com pena de prisão.

Não constituindo a revogação da suspensão uma consequência automática do cometimento de novo crime no decurso do período de suspensão, não pode aquela operar sem que o tribunal se pronuncie sobre a insubsistência do referido juízo de prognose; e para essa finalidade deve necessariamente ouvir o visado, por expressa imposição do art. 61º, nº 1, al. b), do Código de Processo Penal. Este normativo assegura ao arguido o direito de ser ouvido sempre que o tribunal deva tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte, não havendo decisão judicial susceptível de o afectar mais gravemente do que aquela que o priva da sua liberdade. Não é, pois, concebível que a revogação da suspensão da execução da pena possa ser decidida sem que lhe seja facultada a possibilidade de fornecer uma explicação que de alguma forma contribua para reduzir ou afastar o impacto negativo da nova actuação criminosa, convencendo o tribunal da subsistência das expectativas em si depositadas e que justificaram a suspensão da execução da pena.

A questão que se coloca, no entanto, consiste em saber se essa audição é necessariamente presencial.

A suspensão da execução da pena, configurada no regime penal português como uma pena em sentido próprio (pena de suspensão de execução da pena de prisão), está regulamentada na Secção II do Capítulo II do Título III do Código Penal, que compreende os artigos 50º a 56º e o seu regime adjectivo consta dos arts. 492º a 495º do Código de Processo Penal.

No art. 50º regulam-se os pressupostos e duração da suspensão da pena, prevendo-se a possibilidade de a suspensão ser subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta e/ou ao acompanhamento em regime de prova, cujos conceitos e regime são desenvolvidos nos artigos 51º (subordinação da execução ao cumprimento de deveres, que podem ou não ser apoiados e fiscalizados pelos serviços de reinserção social; a modificação, no decurso da suspensão, dos deveres impostos na sentença, encontra regulamentação no art. 492º do CPP), 52º (regras de conduta susceptíveis de fiscalização, sujeição a tratamento médico ou a cura em instituição adequada; a sua efectivação é regulada no art. 493º do CPP), 53º (suspensão com regime de prova, regulado no art. 54º e que assenta num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio; este regime é complementado pelo art. 494º do CPP), 55º (falta de cumprimento das condições da suspensão, seja o incumprimento dos deveres ou regras de conduta ou a não correspondência ao plano de reinserção, com regime adjectivo no art. 495º do CPP) e 56º (revogação da suspensão).

A questão que agora cuidamos de apreciar reside essencialmente na interpretação do art. 495º do CPP, norma que rege nos seguintes termos:

1 - Quaisquer autoridades e serviços aos quais seja pedido apoio ao condenado no cumprimento dos deveres, regras de conduta ou outras obrigações impostos comunicam ao tribunal a falta de cumprimento, por aquele, desses deveres, regras de conduta ou obrigações, para efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 51.º, no n.º 3 do artigo 52.º e nos artigos 55.º e 56.º do Código Penal.

2 - O tribunal decide por despacho, depois de recolhida a prova, obtido parecer do Ministério Público e ouvido o condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão, bem como, sempre que necessário, ouvida a vítima, mesmo que não se tenha constituído assistente.

3 - A condenação pela prática de qualquer crime cometido durante o período de suspensão é imediatamente comunicada ao tribunal competente para a execução, sendo-lhe remetida cópia da decisão condenatória.

4 - Para os efeitos do disposto no n.º 1, a decisão que decretar a imposição de deveres, regras de conduta ou outras obrigações é comunicada às autoridades e serviços aí referidos.

Diga-se desde já que extrapolar indiscriminadamente da obrigação de audição do condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão para todos os casos em que está em causa a revogação da suspensão traduz interpretação não consentida pelo texto legal. Se fosse necessário ouvir sempre presencialmente o condenado antes da alteração das condições da suspensão ou da sua revogação, a lei di-lo-ia pura e simplesmente. Contudo, não é isso que resulta do teor literal desta norma ou de qualquer dos outros dispositivos relativos à suspensão da execução da pena. Não é, pois, no argumento literal, que se poderá fundar a interpretação sustentada pelo recorrente.

O argumento de ordem sistemática, por seu turno, reforça a interpretação restritiva. Já vimos que a lei impõe sempre a audição do condenado antes da revogação da suspensão; e impõe-na também antes da alteração das condições da suspensão. Mas apenas se refere à audição presencial quando a suspensão da execução tenha sido subordinada a condições sujeitas a apoio e/ou fiscalização e a revogação da suspensão se funde no seu incumprimento. Só nesta última hipótese ganha sentido a imposição constante do nº 2 do art. 495º do CPP. Expliquemo-nos melhor, repristinando as normas do instituto da suspensão da pena que concretamente relevam agora:

O art. 495º, nº 1, do CPP dispõe que “quaisquer autoridades e serviços aos quais seja pedido apoio ao condenado no cumprimento dos deveres, regras de conduta ou outras obrigações impostos comunicam ao tribunal a falta de cumprimento, por aquele, desses deveres, regras de conduta ou obrigações, para efeitos do disposto no nº 3 do artigo 51º, nº 3 do artigo 52º e nos artigos 55º e 56º do Código Penal”. O art. 51º do Código Penal estatui sobre a suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao cumprimento de deveres e o respectivo nº 3 admite a respectiva modificação sempre que ocorram até ao temos do período de suspensão circunstâncias relevantes supervenientes ou de que o tribunal só posteriormente tenha conhecimento. O nº 4 do mesmo artigo prevê a possibilidade de o tribunal determinar que os serviços de reinserção social apoiem e fiscalizem o condenado no cumprimento dos deveres impostos. Portanto, se tiver havido uma suspensão da pena de prisão subordinada a cumprimento de deveres e se o tribunal tiver determinado que os serviços de reinserção social (ou outros serviços – cfr. 1ª parte do nº 2 do art. 495º do CPP) apoiem e/ou fiscalizem o condenado no cumprimento dos deveres impostos, a modificação dos deveres ou a revogação da pena exigem a prévia audição do condenado na presença do técnico que acompanhou e fiscalizou ou apoiou o respectivo cumprimento.

Este evento processual – audição na presença do técnico que acompanhou os termos da suspensão da execução - apenas tem lugar se e quando o condenado não cumprir deveres que lhe foram impostos como condição de preservação da sua liberdade (abrangendo, no entanto, a suspensão com regime de prova, como se verá). A obrigatoriedade da audição antes da alteração dos deveres ou da revogação da suspensão não foi gizada para permitir ao arguido eximir-se a todo o custo à modificação ou agravamento dos deveres ou à revogação da suspensão, mas sim para lhe permitir esclarecer com transparência as razões que conduziram ao incumprimento. Claro que nesse momento importará garantir o contraditório (contraditório relativamente à promoção do M.P. para alteração dos deveres ou revogação da suspensão); mas importará sobretudo aferir do bem fundado da expectativa ou prognose em que assentou a decisão de suspensão da execução da pena, já que não está em causa apenas a liberdade do arguido, mas também a eficácia e credibilidade do sistema judicial e, em última instância, a própria realização da justiça (esta última a bastar-se com a manutenção do status quo, a exigir a alteração dos deveres ou a impor a prorrogação do período de suspensão ou mesmo a exigir a imediata revogação da suspensão da execução da pena, consoante a gravidade do incumprimento, a razoabilidade da justificação apresentada e os demais elementos apurados com relevo para a decisão). Equacionar a alteração das condições ou a revogação da suspensão significa, afinal, dar satisfação às exigências comunitárias de protecção dos bens jurídicos e garantir o funcionamento do elemento dissuasor. A presença do técnico que apoiou e fiscalizou o cumprimento dos deveres impostos funcionará como fiel das declarações do condenado, permitindo aferir da sua veracidade e facultando a aquisição de elementos preciosos para aquilatar da vontade e dedicação daquele no cumprimento dos deveres que lhe foram impostos. Justifica-se, pois, plenamente – e exige-se – uma audição do condenado não apenas presencial, mas em presença do técnico que apoiou e fiscalizou o cumprimento dos deveres que condicionaram a suspensão.

Importa precisar que a suspensão da execução da pena de prisão pode assumir uma de três modalidades: simples suspensão da execução da pena, suspensão sujeita a condições ou suspensão com regime de prova.

Se porventura a suspensão da execução da pena tiver sido uma suspensão não subordinada ao cumprimento de deveres, ou se mesmo tendo sido fixados deveres não tiver sido determinado o apoio no seu cumprimento, devendo a fiscalização ser efectuada pelo próprio tribunal em momento determinado, normalmente, no termo do prazo de suspensão – o caso típico da condição de pagamento de indemnização – não terá sentido a exigência da parte final do nº 2 do art. 495º do CPP, que se reporta apenas às situações em que tenha operado o nº 1 do mesmo artigo e por referência ainda ao nº 4 do art. 51º, nº 4 do art. 52º e nº 2 do art. 53º, estes do Código Penal.

Subsistirá nesse caso, ao menos, a obrigatoriedade da audição presencial, em termos tais que, ouvido o condenado sem que o seja presencialmente, daí resulte nulidade insanável?

Não descortinamos argumento legal nesse sentido. Manifestamente, não resulta do art. 495º, nº 2, do CPP. E também não resulta da al. c) do art. 119º, ainda do CPP, já que não se vê onde é que a lei exige a comparência do arguido. O que a lei exige – já o dissemos supra – é que o condenado seja ouvido. De resto, não é difícil descortinar situações em que a audição presencial será de todo impossível. Basta pensar na hipótese de o condenado não só não cumprir as condições da suspensão como violar gravemente os deveres que sobre si impendem, ausentando-se de seguida para local incerto. Considerar, numa tal situação, inviabilizada a revogação da suspensão da execução da pena de prisão por impossibilidade da audição presencial do condenado seria uma solução irrazoável, para não dizer absurda, e que o direito manifestamente não postula. Acresce que não há qualquer razão teleológica, princípio de funcionamento do sistema ou garantia constitucional que obste a uma audição não presencial do condenado para aferir das razões do incumprimento das condições subjacentes à suspensão da pena ou da revogação da suspensão, nos casos que apontámos.

De forma distinta se passam as coisas quando a suspensão tenha sido subordinada a regime de prova, como é o caso de que agora tratamos. Na verdade, o regime de prova enquanto complemento da suspensão da execução da pena, fora dos casos em que é obrigatório, pressupõe um juízo de insuficiência ou de inadequação da simples suspensão, exigindo a elaboração de um plano de readaptação social que o condenado deverá cumprir, sujeito a vigilância de técnico de reinserção social. Trata-se de um plano contendo objectivos de ressocialização, visando essencialmente despertar ou desenvolver os sentimentos de consciência e responsabilidade social, plano a que o condenado deverá corresponder sob pena de lhe ser imposta alguma das medidas previstas nas alíneas do art. 55º do Código Penal ou mesmo de lhe ser revogada a suspensão da execução da pena, nos termos previstos no art. 56º, nº 1, al. a), do mesmo diploma.

É claro que tendo o plano de readaptação como escopo a reinserção social, o cometimento de novo crime no período da suspensão envolve, já por si, frustração dos objectivos daquele plano, pois que este é indissociável dos pressupostos da suspensão, onde avulta o juízo de prognose positiva já aludido.

Sendo a suspensão com regime de prova algo de mais complexo, exigente e elaborado do que a simples suspensão da execução da pena, esse regime não preclude pelo facto de o condenado cometer novo crime no período da suspensão. Ocorrendo uma tal vicissitude, é ainda no âmbito do regime de prova, com o horizonte dos arts. 55º e 56º do Código Penal, que o comportamento do condenado deve ser avaliado. Mas precisamente porque assim é, as situações deste tipo caiem na alçada do nº 2 do art. 495º do CPP, devendo o condenado ser presencialmente ouvido nos termos em que aquela norma o determina. Só depois, concluindo o juiz que a socialização em liberdade se tornou impossível, para usar as palavras de Figueiredo Dias, poderá ser revogada a suspensão da execução da pena.

Tratando-se de situação em que a lei exige a presença do arguido e não tendo este sido convocado para ser ouvido, configura-se a nulidade insanável prevista no art. 119º, al. c), do CPP.

Consequentemente, fica prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas.

III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, acordam nesta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em dar provimento ao recurso, devendo o tribunal a quo proceder à audição do condenado nos termos previstos no art. 495º, nº 2, do CPP, antes de se pronunciar sobre os efeitos do cometimento do novo crime no período da suspensão da execução da pena.

Sem taxa de justiça.



Coimbra,

(texto processado pelo relator e revisto por ambos os signatários)

Jorge Miranda Jacob (relator)

José Eduardo Martins (adjunto)