Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
556/12.5TBTMR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: CASO JULGADO
EFICÁCIA
LIMITES
QUESTÃO PREJUDICIAL
INCIDENTE
EXCEPÇÕES
COMPENSAÇÃO
Data do Acordão: 03/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TOMAR – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 577º, I), 580º, 581º E 619º, Nº 1, TODOS DO NOVO C. P. CIVIL; ART.ºS 494º, I), E 671º, Nº 1 DO C. P. CIVIL DE 1961.
Sumário: I - Se o caso julgado abrange a parte decisória do despacho, sentença ou acórdão e se o seu sentido e alcance são determinados pela fundamentação da mesma, ficando definitivamente julgadas as questões principais que constituem o objecto do processo, é problemático se o mesmo deve ocorrer relativamente às questões prejudiciais e incidentais que o tribunal tem de resolver para obter a decisão do caso.

II - Não é conveniente adoptar um critério rígido sobre os limites do caso julgado quando às questões prejudiciais, sendo, contudo, possível afirmar que, se o caso julgado não deve abranger o pronunciamento sobre toda e qualquer questão debatida no percurso lógico que conduziu à decisão da acção, justifica-se que ele confira definitividade ao julgamento das questões prejudiciais quando estas se encontrem numa estreita interdependência com a decisão, de tal modo que mesmo quando as partes não hajam formulado os correspondentes pedidos, provocando pronúncias formais em termos decisórios do tribunal, seja aconselhável impedir uma nova apreciação da mesma questão de modo a evitar uma incompatibilidade prática entre as duas decisões, o que deve ser verificado caso a caso.

III – Numa situação em que os Réus invocaram, por excepção, a constituição de um crédito sobre o Autor, como fundamento da extinção do crédito alegado por este, por compensação, tendo essa excepção sido julgada impro­cedente, por falta de prova da existência daquele contra-crédito, deve considerar-se que se formou caso julgado sobre tal questão, o que impede que o Réu reclame o seu pagamento em nova acção.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

O Autor, alegando a existência de um contrato de arrendamento que o uniu aos 1º Réus e agora ao 2º, invocando a falta de pagamento das rendas desde o mês de Agosto de 2011, intentou acção declarativa de condenação, pedindo:
            - a declaração de rescisão do contrato de arrendamento celebrado entre si e os 1º Réus e, subsequentemente com o 2º ;
            - a condenação solidária dos Réus:
           - a pagarem-lhe  a quantia de € 3.600,00, acrescida das rendas vencidas desde Abril de 2012 até à data da sentença;
            - a entregar o local livre e devoluto;
            - e a pagar o dobro da renda a partir do trânsito em julgado da sen­tença até entrega efectiva do arrendado.
Os Réus I… e G… contestaram, deduzindo contra o Autor o pedido reconvencional de condenação a pagar-lhes a quantia de € 17.370,63, a título de reembolso do custo de obras e indemnização por benfeitorias, descontando-se nessa quantia o valor de € 2.400,00 das rendas de Julho de 2011 a Fevereiro de 2012 e porventura as dos meses posteriores vencidas na pendência da acção, caso se considere que as mesmas são devidas pelos Reconvintes, e a entregar a estes o valor remanescente.
   Alegaram, em síntese:
- Só após terem tomaram de trespasse o estabelecimento comercial a fun­cionar no locado é que constataram que o sistema de esgotos e o de canalização de água potável estavam com fugas, tendo disso dado conhecimento ao Autor.
- As obras que inicialmente previam ser de restauro transformaram-se em obras de recuperação do imóvel, tendo nelas despendido € 14.070,63.
- Devido às obras só puderam abrir o estabelecimento ao público após os finais de Junho de 2011.
- Comunicaram ao Autor, por carta de 29.2.2012, o teor do contrato-pro­messa de trespasse que tinham celebrado com o 3º Réu, contrato no qual este assumia a posição e inquilino a partir de 1.3.2012 e no qual declararam compensar com o valor de € 4.000,00 que o Autor lhes tinha emprestado.
- O Autor declarou opor-se à transmissão do estabelecimento para o 3º Réu.
- No período em que não puderam abrir o estabelecimento – até finais de Junho de 2010 – os Réus não tinham obrigação de pagar rendas, devendo-lhe ser restituídas, no montante de € 900.00
- Pela impossibilidade de utilização do locado os Réus sofreram danos no montante de € 1.500,00.
- A abertura tardia do estabelecimento provocou-lhes danos no montante de € 900,00.
O Autor apresentou resposta, impugnando a matéria das excepções e, contestando o pedido reconvencional, discordou que as obras realizadas fossem de conservação ordinária, alegando que no contrato de arrendamento foi clausulado que o inquilino não poderia fazer retenção ou exigir indemnização pelas obras realizadas.
 Concluiu pela sua improcedência.
Os Réus I… e G… apresentaram articulado, defendendo que a cláusula invocada pelo Autor é abusiva, alegando ainda que as reparações efectuadas eram urgentes e que o Autor já tinha reconhecido o seu direito à compensação, aplicando um desconto no valor da renda e dispensando o pagamento temporário da mesma.

O Autor juntou aos autos certidão da decisão proferida no processo n.º … que correu termos no Tribunal de Ferreira do Zêzere, acção em que eram partes o aqui Autor e os Réus recorrentes e em que aquele peticionava a condenação destes a pagarem-lhe a quantia de € 4.000,00 referente a um mútuo celebrado entre ambos.
No despacho saneador foi proferida, após admissão da reconvenção, deci­são com o seguinte conteúdo:
Assim, atentos os motivos supra expostos, decide-se julgar verificada a excepção de caso julgado do pedido reconvencional na parte em que os RR. pedem o reconhecimento de um crédito sobre o A. no valor de 14.070,63€ por obras feitas no local que estes tomaram de trespasse e de que é proprietário o A., caso julgado que obsta a conhecer do mérito de tal pedido, e, em consequência, declarar extinta a instância nesta parte, nos termos dos artigos 494.º, n.º i) e 288.º, n.º 1, e) ambos do CPC.
Os Réus inconformados interpuseram recurso desta decisão, apresentando as seguintes conclusões:

Concluem pela procedência do recurso.
Não foi apresentada resposta.
1.Do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas pelo Recorrente, cumpre apreciar a seguinte questão:
A decisão proferida no processo n.º … que correu termos no Tribunal de Ferreira do Zêzere não impede a apreciação do pedido reconvencio­nal, por não ter formado caso julgado sobre a pretensão agora deduzida?
2. Dos factos
Com interesse para a decisão são de considerar os seguintes factos:
Conforme resulta da certidão junta a fls. 220 e seg., no âmbito do processo que correu os seus termos como acção especial para cumprimento de obrigações emergentes de contrato sob o n.º …, que correu termos no Tribunal Judicial de Ferreira do Zêzere, em que foi Autor P… e Réus I… e G… foi proferida sentença em 18.10.2012, já transitada em julgado, na qual os aí Réus vieram, em sede de oposição, defender-se por excepção, alegando a compensação entre o seu crédito emergente da realização das mesmas obras e o crédito do Autor (resultante de um contrato de mútuo).
Naquela, iniciada com requerimento de injunção apresentado por P… contra I… e G…, o Autor pretendia a condenação destes a pagar-lhes a quantia de 4.000 euros, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal, vencidos e vincendos, até efectivo e integral pagamento, ascendendo os vencidos a 137,21 euros.
O Autor alegou que os Réus lhe deviam a quantia de 4.000,00 euros a título de um empréstimo pessoal que em 24.5.2010 efectuou àqueles.
Os Réus citados deduziram oposição, alegando reconhecer que receberam do Autor a quantia de 4.000,00; porém, invocaram que a referida quantia foi compen­sada com um crédito existente pelos Réus sobre o Autor, atendendo a que adquiriram por trespasse um estabelecimento comercial instalado numa loja propriedade do A., e que se viram obrigados a realizar obras urgentes absolutamente necessárias, que deveriam ter sido asseguradas e suportadas pelo Autor, nos termos do art.º 1074º e 1111º do C. Civil e, nesta medida, pugnaram pela improcedência da acção.
Na referida sentença ficou provado que o Autor emprestou aos Réus a referida quantia de 4.000,00 euros. Ficou ainda provado que no dia 22 de Março de 2010 os Réus tomaram de trespasse um estabelecimento comercial de café instalado no r/ch dtº do prédio sito na Rua …., sendo o A. o dono e senhorio da correspondente fracção autónoma. Nessa data era inquilino H…, que transferiu o respectivo direito ao trespasse e arrendamento para os Réus.
Apesar de ter sido alegado, não se provou que o referido estabelecimento tivesse os defeitos e avarias que foram alegadas pelos aí Réus e que correspondem aos defeitos e avarias indicadas nesta acção, assim como não se provou que os Réus tivessem feito obras nesse espaço e que nelas tivessem gasto a quantia de 14.070,63 euros (obras e gastos que são uma reprodução daqueles que os RR. invocam na presente acção).
Face à factualidade provada e à factualidade não provada o Tribunal con­siderou que o Autor fez prova do seu direito de crédito (resultante do contrato de mútuo que aquele celebrou com os Réus) e considerou não provada a excepção de compensação invocada.
O Tribunal decidiu que, não obstante os Réus tivessem invocado a realiza­ção de obras urgentes realizadas no locado do Autor e que deviam ser suportadas por este, não lograram provar, quer a realização de tais obras (i), quer a absoluta necessi­dade e emergência da realização de tais obras (ii), quer o preço despendido por tais obras (iii).
3. O direito
A decisão recorrida considerou que a sentença proferida no processo n.º …, que correu termos no Tribunal Judicial de Ferreira do Zêzere, em que foi Autor P… (também o Autor da presente acção) e Réus I… e G… (os dois primei­ros Réus nesta acção), já havia decidido definitivamente parte do pedido reconven­cional por eles aqui formulado – a que respeitava ao reconhecimento de um crédito sobre o Autor no valor de 14.070,63 euros, por obras feitas no prédio arrendado em causa na presente acção –, pelo que julgou verificada uma situação de excepção de caso julgado que impedia o conhecimento do mérito do pedido reconvencional nessa parte.
 O caso julgado visa garantir, fundamentalmente, o valor da segurança jurí­dica, fundando-se a protecção a essa segurança jurídica, relativamente a actos jurisdicionais, no princípio do Estado de Direito, pelo que se trata de um valor constitucionalmente protegido – art.º 2.º da Constituição –, destinando-se a evitar que no exercício da função jurisdicional, duplicando-se as decisões sobre idêntico objecto processual, se contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior.
A imutabilidade ou indiscutibilidade das decisões judiciais definitivas impede que a questão que foi objecto da decisão proferida e que já não é inimpugná­vel possa voltar a ser recolocada à apreciação de um tribunal: se tal ocorrer, por força da figura da excepção de caso julgado – que reflecte a chamada função negativa da figura do caso julgado - deve o juiz abster-se de voltar a apreciar a matéria ou questão que se mostra já jurisdicionalmente decidida, em termos definitivos, como objecto de uma anterior acção.
A figura da excepção de caso julgado – que a reforma do Código de Pro­cesso Civil de 1995/96 qualificou expressamente (art.º 577º i), do Novo C. P. Civil, que reproduz o art.º 494º, i), do C. P. Civil de 1961) como dilatória – tem, pois, que ver com um fenómeno de identidade entre relações jurídicas, sendo a mesma relação submetida sucessivamente a apreciação jurisdicional, desvalorizando-se o facto de essa mesma relação já ter sido, enquanto objecto processual perfeitamente individua­lizado nos seus aspectos subjectivos e objectivos, anteriormente apreciada jurisdicio­nalmente, mediante decisão que transitou em julgado.
A propósito do caso julgado material, expressa a lei que, transitados em julgado os despachos, as sentenças ou os acórdãos, a decisão sobre a relação mate­rial controvertida tem força obrigatória nos limites fixados pelos art.º 580º e 581º do Novo C. P. Civil – art.º 619º, n.º 1 do Novo C. P. Civil, que corresponde ao art.º 671º, n.º 1, do C. P. Civil de 1961.
Os limites a que se reporta o mencionado artigo têm a ver com a proposi­tura de uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, em termos da decisão da segunda implicar o risco de o tribunal contradizer ou reproduzir a decisão da primeira – art.º 580º, n.º 1 e 2, e 581º, n.º 1, do Novo C. P. Civil (reproduzem os art.º 498º, n.º 1 e 2, e 499º, n.º 1, do C. P. Civil de 1961).
Quanto aos sujeitos constata-se que nas duas acções as partes são as mes­mas – o Autor e os dois primeiros Réus, pois só estes deduziram o pedido reconven­cional, relativamente a parte do qual a decisão recorrida julgou procedente a excep­ção do caso julgado.
Quanto ao pedido e causa de pedir verifica-se que na presente acção os Réus formularam um pedido reconvencional que inclui a condenação do Autor a pagar-lhes a quantia de € 14.070,63, a título de reembolso do custo de obras e indemnização por benfeitorias realizadas no prédio arrendado, cuja entrega este reclama com a presente acção, e que na acção n.º …, que correu termos no Tribunal Judicial de Ferreira do Zêzere, perante um pedido de reembolso de € 4.000,00 mutuados pelo Autor aos Réus, estes excepcionaram a compensação desse crédito com aquele mesmo crédito de € 14.070,63 que agora é objecto de pedido reconvencional nesta acção, tendo essa excepção sido julgada improcedente.
Existe, pois, uma identidade de conteúdo entre parte do pedido reconven­cional deduzido nesta acção e respectiva causa de pedir, com a excepção de compen­sação deduzida anteriormente pelos mesmos Réus em anterior acção. O crédito cujo pagamento os Réus aqui reclamam é precisamente o mesmo que anteriormente pretenderam que se considerasse que havia compensado um outro crédito que o Autor tinha sobre os Réus, tendo essa excepção de compensação sido considerada improce­dente, com fundamento em não se ter provado a existência daquele crédito.
No que respeita ao alcance objectivo do caso julgado, a sentença constitui caso jul­gado nos limites e termos em que julga, conforme dispõe o art.º 621º do Novo C. P. Civil (art.º 673º do C. P. Civil de 1961).
Se ninguém põe em causa que o caso julgado abrange a parte decisória do despacho, sentença ou acórdão e que o seu sentido e alcance são determinados pela fundamentação da mesma, ficando definitivamente julgadas as questões principais que constituem o objecto do processo, tem-se discutido se o mesmo deve ocorrer, relativamente às questões prejudiciais e incidentais que o tribunal tem de resolver para obter a decisão do caso [1].
Se uma visão restritiva da amplitude do caso julgado deixa bastante a san­grar o interesse da certeza do direito e afecta de algum modo o prestígio da admi­nistração da justiça [2], a sua extensão às questões prejudiciais e incidentais significa ampliar a autoridade da decisão a consequências em que as partes podem não ter cogitado, ao formularem as suas pretensões ou ao organizarem a sua defesa [3].
O Código de Processo Civil de 1939, no § único, do art.º 660º, tomava posição neste dilema, dizendo que se consideravam resolvidas tanto as questões sobre que recair decisão expressa, como as que, dados os termos da causa, constituí­rem pressuposto ou consequência necessária do julgamento expressamente profe­rido. E nessa lógica, o art.º 96, b), do mesmo Código, após atribuir competência ao tribunal da causa, para julgar todos os seus incidentes e todas as questões que o Réu suscitasse como meio de defesa, atribuía força de caso julgado ao conhecimento da questão ou do incidente que implique o conhecimento do objecto da acção.
A Revisão do Código de Processo Civil de 1961 eliminou estes dois pre­ceitos com a intenção declarada de não tocar no problema e deixar à doutrina o seu estudo mais aprofundado e à jurisprudência a sua solução caso a caso, mediante os conhecidos processos de integração da lei [4], pelo que não é possível retirar da actual redacção do art.º 91º, n.º 2, do Novo C. de Processo Civil - que reproduz o anterior 96.º, n.º 2, do C. Processo Civil de 1961 -  qualquer orientação nesta matéria. Quando este artigo dispõe que a decisão das questões e incidentes não constitui caso julgado fora do processo respectivo, excepto se alguma das partes requerer o julgamento com essa amplitude, está apenas a abranger aqueles incidentes e questões prejudiciais que não estão abrangidos pelo âmbito do caso julgado definido no art.º 621º do Novo Código de Processo Civil - que reproduz o art.º 673º do C. Processo Civil de 1961 [5].
Necessário é determinar em cada caso quais são os termos em que uma determinada sentença julga, para os efeitos do referido art.º 621º do Novo Código de Processo Civil.
Da análise da doutrina e da jurisprudência sobre esta questão revela-se que não é conveniente adoptar um critério rígido sobre os limites do caso julgado quando às questões prejudiciais, sendo, contudo, possível afirmar que, se o caso julgado não deve abranger o pronunciamento sobre toda e qualquer questão debatida no percurso lógico que conduziu à decisão da acção, justifica-se que ele confira definitividade ao julgamento das questões prejudiciais quando estas se encontrem numa estreita interdependência com a decisão, de tal modo que, mesmo quando as partes não hajam formulado os correspondentes pedidos, provocando pronúncias formais em termos decisórios do tribunal, seja aconselhável impedir uma nova apreciação da mesma questão de modo a evitar uma incompatibilidade prática entre as duas decisões, o que deve ser verificado caso a caso [6].
Na presente situação, os Réus pretendem, através da dedução de um pedido reconvencional, a satisfação de um crédito que já invocaram, por excepção, em anterior acção que o mesmo Autor lhes moveu, como fundamento da extinção do crédito alegado por este, por compensação, tendo essa excepção sido julgada impro­cedente, por falta de prova da existência daquele contra-crédito.
Para a solução do presente recurso importa determinar se a improcedência da defesa, por excepção, no anterior processo, formou caso julgado sobre aquele contra-crédito, o que impede que o mesmo possa ser novamente invocado contra o Autor na presente acção, sendo requerido o seu pagamento, sendo indiferente que a vontade de compensar tenha sido manifestada no processo ou antes dele.
A utilização da figura da compensação de créditos como meio de defesa na acção em que se reclama o pagamento de um crédito resulta na invocação de uma relação jurídica inteiramente distinta e autónoma daquela em que o Autor baseia a sua pretensão. O Réu invoca um contra-crédito, cujo reconhecimento determinará que se considere extinto o direito do Autor, por compensação dos dois créditos.
Nesta situação a decisão a proferir nessa acção traduz o resultado do jul­gamento sobre a existência não só do crédito invocado pelo Autor mas também do crédito invocado pelo Réu, pelo que o caso julgado deve abranger as duas vertentes desse julgamento. Daí que haja quem entenda que a defesa por compensação é, sob o ponto de vista processual, um instituto sui generis, equiparável à reconvenção em certo aspecto e identificável com a excepção num outro [7], ou utilizando uma designa­ção imprópria da doutrina italiana, que estamos perante uma excepção reconvencio­nal [8], ou ainda perante uma reconvenção implícita, segundo alguma doutrina alemã [9] .
Assim, embora na primeira acção, o Réu não tenha formulado nenhum pedido formal de reconhecimento do seu crédito, o juízo que recaiu sobre a sua existência deve ser considerado definitivo, não sendo razoável que o Réu pudesse repetir a invocação do mesmo crédito contra o Autor em acções posteriores. Tendo a primeira acção decidido que a pretensão do Autor devia proceder porque o Réu não tinha demonstrado que era titular de um crédito que pudesse compensar o crédito invocado pelo Autor, admitir-se uma segunda acção em que se desse uma segunda oportunidade do Réu demonstrar a existência daquele crédito, era permitir que se proferisse uma segunda decisão perfeitamente contraditória e incompatível com a primeira [10].
Por esta razão deve considerar-se que a decisão proferida na primeira acção que é objecto de caso julgado abrange a defesa que invoca uma situação de compensação de créditos, impedindo que o Réu em nova acção reclame do Autor o pagamento desse crédito [11].
Igual posição é maioritariamente sustentada em Itália [12] face ao disposto no art.º 35º do Codice di Procedura Civile [13], na Suíça [14], e na Espanha, perante o expressamente disposto nos n.º 1 e 3 da Ley de Enjuiciamento Civil [15]. Já no § 322, II, do ZPO alemão [16], embora também se estenda o caso julgado à parte da sentença que aprecia a existência do contracrédito, subjacente à excepção da compensação, ele apenas vigora nos estritos limites do crédito principal. Assim, nas situações em que o crédito do demandado é superior ao crédito do demandante, apesar da defesa por excepção ter sido julgada improcedente, ele pode propor uma nova demanda em que reclame a parte excedente do seu contra-crédito. É esta também a solução no direito austríaco [17].
No presente caso, os Recorrentes alegam que na primeira acção estavam impedidos de formular um pedido de condenação do Autor a satisfazer-lhes o seu crédito, em reconvenção, assim como não puderam socorrer-se dos meios de prova que agora lhes são garantidos na presente acção, pelo que a não admissão de parte do pedido reconvencional que agora deduziram traduz-se numa violação do direito de acção consagrado no art.º 2º, n.º 2, do C. de Processo Civil, e consequentemente do disposto no art.º 20º da Constituição.
Entre nós, até à aprovação do Novo Código de Processo Civil [18], face à redacção do art.º 274º, n.º 1, c), do C. P. Civil de 1961, era dominante na doutrina [19] e na jurisprudência a tese de que só haveria reconvenção quando o contra-crédito invocado pelo réu excede o valor do crédito reclamado pelo autor no montante da diferença que lhe seja favorável.
A primeira acção que se iniciou com um requerimento de injunção, seguiu a forma das acções declarativas especiais para cumprimento de obrigações pecuniá­rias, reguladas no Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, onde é controvertida a possibilidade de dedução de reconvenção [20] e os meios de prova têm a limitação do número de testemunhas constante dos n.º 3 e 4 do art.º 3º.
Contudo, apesar destas limitações, os Réus não deixaram de ter oportuni­dade de expor todos os fundamentos da sua pretensão defensiva e de produzir prova sobre os factos por si invocados, tendo a utilização da figura da compensação de créditos nestas condições sido uma opção sua, uma vez que se não tivessem invocado a existência daquele contra-crédito sobre o autor, não ficavam impedidos de o fazer posteriormente, em acção autónoma ou em defesa por compensação em futura acção que aquele lhes viesse a mover [21].  E tendo sido essa a sua escolha, não poderiam deixar de estar conscientes que ao fazê-lo vinculariam o tribunal a efectuar um juízo sobre a existência do crédito por eles invocado de acordo com a prova produzida e o direito aplicável, obtendo um julgamento não só sobre o crédito do Autor, mas também sobre o seu crédito e a compensação de ambos.
Os Réus, por opção sua, obtiveram um julgamento sobre o crédito por eles invocado, em acção que, apesar da sua tramitação simplificada, cumpre os requisitos mínimos do processo equitativo exigido pelo art.º 20º, n.º 4, da Constituição, tendo-lhe sido facultada a possibilidade de alegarem todas as razões justificativas da existência daquele crédito e de provarem os factos donde o mesmo resultava, negando-lhe agora a decisão recorrida, em nome da segurança jurídica e com recurso à figura do caso julgado, perante o insucesso daquela pretensão, apenas a possibili­dade de terem acesso a uma segunda oportunidade, em nova acção contra eles interposta pelo mesmo autor, de fazerem valer o seu direito através pedido reconven­cional, repetindo a causa. Este impedimento não se traduz numa negação ao acesso aos tribunais e numa violação do direito de acção, impostos no artigo 20º, n.º 1, da Constituição, uma vez que os Réus já exerceram esse direito no processo n.º …, que correu termos no Tribunal Judicial de Ferreira do Zêzere, ao deduzirem uma defesa por compensação, mas antes revela uma atenção ao princípio estruturante de um Estado de direito democrático – art.º 2º, da Constituição – como é o da segurança jurídica, designadamente a que deve ser conferida pelas decisões dos seus órgãos judiciais.
Resta ponderar se os efeitos do caso julgado não se devem limitar ao montante do crédito dos Réus que equivalia ao crédito do Autor na primeira acção – € 4.000 –, uma vez que a excepção deduzida só pretendia operar neste montante, não tendo sido deduzido pedido reconvencional relativamente ao excedente – € 10.070,63 –, seguindo-se a solução do direito processual alemão e austríaco acima descritos [22].
Se é certo que os Réus, não pediram na primeira acção a condenação do Autor a pagar a parte do seu crédito que excedia o crédito invocado por este, tendo-se limitado a requerer que o pedido do Autor fosse julgado improcedente por força da alegada compensação de créditos, também é verdade que o julgamento efectuado pela sentença proferida nessa acção recaiu sobre a totalidade do crédito invocado pelos Réus, tendo-se considerado que estes, não obstante tivessem alegado a realização de obras urgentes no locado do Autor e que deviam ser suportadas por este, não logra­ram provar, quer a realização de tais obras, quer a absoluta necessidade e emergência da realização de tais obras, quer a realização de despesas com as mesmas obras. O juízo efectuado recaiu sobre a existência da totalidade do crédito invocado, não tendo sido limitado apenas à parte necessária à compensação integral do crédito do Autor, pelo que o alcance do julgamento efectuado abrangeu, pois, todo o crédito invocado pelos Réus e não apenas uma qualquer parte dele, pelo que os efeitos do caso julgado devem por isso abranger a totalidade do crédito invocado. Como dispõe o art.º 621º do Novo Código de Processo Civil, reproduzindo o anterior art.º 673º do C. Processo Civil de 1961, a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga, e a sentença aqui em análise ao condenar os Réus a pagarem a totalidade do crédito invocado pelo Autor, julgou inexistente todo o crédito invocado pelos Réus.
Acresce que, em termos práticos, uma limitação dos efeitos do caso jul­gado à parte do crédito que seria necessária para operar a compensação com o crédito do autor, traria dificuldades insuperáveis, não se vislumbrando como se poderiam diferenciar as obras cujas despesas de realização ainda poderiam ser reclamadas ao Autor, e aquelas cujo direito ao reembolso tinha sido julgado definitivamente improcedente, num claro sinal que a decisão proferida no processo n.º … do Tribunal Judicial de Ferreira do Zêzere, nos termos em que julgou abrangeu a totalidade do crédito invocado pelos Réus.
Por estas razões revela-se correcta a opção da decisão recorrida no sentido de não apreciar o pedido reconvencional na parte em que os Réus reclamavam o pagamento do crédito que já haviam oposto sem sucesso ao Autor na anterior acção, pelo que o recurso deve ser julgado improcedente.
Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas do recurso pelos Recorrentes.
Coimbra, 18 de Março de 2014.

Sílvia Pires (Relatora)
Henrique Antunes
José Avelino

[1] Sobre esta discussão, consulte-se Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil anotado, vol. III, pág. 139, ed. 1950, Coimbra Editora, Manuel de Andrade, in Noções elementares de processo civil, pág. 305 e seg., ed. de 1956, Coimbra, Castro Mendes, in Do caso julgado em processo civil, pág. 194 e seg., ed. 1968, Ática, Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, pág. 717, 2.ª ed, Coimbra Editora, Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, vol. III, pág. 200 e seg, 3.ª ed. do autor, Miguel Teixeira de Sousa, in Prejudicialidade e limites objectivos do caso julgado, separata da Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XXIV, n.º 4, ed.,1980, e in Estudos sobre o novo Código de Processo Civil, pág. 578, 2.ª ed., Lex, Anselmo de Castro, in Direito processual civil declaratório, vol. III, pág. 398 e seg., ed. de 1982, Almedina, Mariana França Gouveia, in A causa de pedir na acção declarativa, pág. 392 e seg., ed. 2004, Almedina, Remédio Marques, in Acção declarativa à luz do Código revisto, pág. 447 e seg., ed.  2007, Coimbra Editora, e Lebre de Freitas, Montalvão Machado, Rui Pinto, in Código de Processo Civil anotado, vol. 2.º, pág. 321 e seg., ed. 001, Coimbra Editora.

[2] Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, ob. cit., pág. 718.

[3] Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, ob. cit., pág. 719.

[4] Anteprojecto, publicado no B.M.J., n.º 123, pág. 120.

[5] Neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, in Prejudicialidade e limites objectivos do caso julgado, cit., pág. 311-312.

[6] Neste sentido também Rodrigues Bastos, Teixeira de Sousa, Remédio Marques e Lebre de Freitas, Montalvão Machado, Rui Pinto, nas ob. e loc. cit., seguindo a posição defendida por Manuel de Andrade, de iure constituendo, durante a vigência do C. P. Civil de 1939.

[7] Antunes Varela, in Das obrigações em geral, vol. II, pág. 219, 7.ª ed., Almedina.

[8] Autores citados por Castro Mendes, in Do caso julgado em processo civil, pág. 191-192, e por Luís Miguel Mesquita, in  Reconvenção e excepção no processo civil, pág. 211 e seg., ed. 2009, Almedina.

[9] Autores citados por Luís Miguel Mesquita, na ob. cit., pág. 386, notas 905, 906 e 907.

[10] Situações semelhantes ocorrem, por exemplo, quando numa acção de reivindicação, o Réu excepciona a aquisição do bem reivindicado por usucapião, ou a sua detenção como arrendatário, como refere Chiovenda em Istituzioni, I, pág. 354-358, 2.ª ed., Editore Jovene, ou quando se pretende o cumprimento de um contrato e o Réu excepciona a sua nulidade, como refere Alberto dos Reis, em Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 3.º, pág. 101 e seg., ou quando numa acção de reivindicação se excepciona a aquisição do prédio reivindicado por acessão, como ocorreu na situação julgada pelo Acórdão do S.T.J. de 24-11-1977,  relatado por Rodrigues Basto e que se encontra reproduzido por Miguel Teixeira de Sousa, em Prejudicialidade e limites objectivos do caso julgado, pág. 299-304.

[11] Neste mesmo sentido, Miguel Teixeira de Sousa, in Observações críticas sobre algumas alterações ao Código de Processo Civil, B.M.J. n.º 328, pág. 87.
Também na fundamentação do Acórdão da Relação de Coimbra de 3.12.2009, relatado por Falcão de Magalhães, acessível em www.dgsi.pt, se toma idêntica posição quando se diz, em casos como aquele que se analisa, a relação jurídica creditícia que o Réu, por via de excepção, traz aos autos para ver reconhecido o seu crédito e compensado este com aquele que confessa ter sobre ele a Autora, com vista a obstar à condenação do respectivo pagamento, está compreendido na relação jurídica que ela, Ré, anteriormente, submeteu à apreciação do Tribunal noutra acção em que demandou a aqui Autora, para pagamento do crédito de cujo montante global faz parte aquele que aqui pretende compensar, acção essa contestada e ainda pendente.
Parece inequívoco que, caso fosse atendido o pedido da aqui Ré, a decisão da improcedência da acção passaria, inevitavelmente, pelo reconhecimento do seu crédito e pela afirmação da relevância deste para compensar o crédito cujo pagamento fora peticionada pela autora. A decisão quanto ao contra-crédito invocado pelo Réu para exercitar a compensação, assumir-se-ia, pois, como antecedente lógico, necessário e imprescindível da sentença.
    Já António Colaço Canário, in A reconvenção e a compensação em processo civil, pág. 77, ed. 1983, da AAFDL., e Luís Miguel Mesquita, na ob. cit., pág. 375-379 e 390-398, entendem que o regime processual vigente não estende a força do caso julgado à decisão sobre a excepção da compensação, embora ambos defendam que de iure constituendo, deveria impor-se esse efeito. Também Castro Mendes, in Direito processual civil, II vol., pág. 303-304, ed. 1978/1979, da AAFDL, e em Do caso julgado em processo civil, ob. cit. pág. 189 e seg., entendem que o efeito do caso julgado se deve estender à parte da decisão que aprecia o contra-crédito invocado pelo demandado, mas soluciona a questão defendendo que a compensação só pode ser oposta através da dedução de pedido reconvencional, cuja decisão terá força de caso julgado material.

[12] Ver autores citados por Luís Miguel Mesquita, na ob. cit., pág. 379-380, notas 885 a 888 e 890 a 892.

[13] Este artigo dispõe que “quando for oposto através da compensação um crédito que seja contestado e exceda a competência, em razão do valor, do tribunal da causa, o juiz, se o pedido se basear em fundamento não controvertido ou facilmente verificável, pode proferir decisão sobre este e remeter, quanto á excepção da compensação, as partes para o tribunal competente, subordinando, sempre que o entenda necessário, a execução da sentença à prestação de uma caução”.

[14] Ver, autor citado por Luís Miguel Mesquita, na ob. cit., pág. 379-388, nota 914.

[15] Consta dos referidos preceitos: “1. Se, perante o pedido de pagamento de determinada quantia, o demandado alegar a existência de um crédito compensável, esta declaração poderá ser impugnada pelo autor através do meio previsto para a contestação à reconvenção, mesmo que o demandado apenas peça a sua absolvição e não a condenação no saldo que em seu favor possa resultar… 3. A sentença que vier a ser proferida terá de resolver os pontos a que se referem os números anteriores e as decisões que contenha sobre esses pontos terão força de caso julgado”.

[16] Dispõe este preceito que “se o demandado faz valer a compensação de um contracrédito, a decisão de que este não existe faz caso julgado até ao montante relativamente ao qual a compensação foi feita valer.”

[17] Vide autor citado por Luís Miguel Mesquita, na ob. cit., pág. 384, nota 902.

[18] O Novo Código de Processo Civil no art.º 266º, n.º 1, c), que alterou a redacção do anterior art.º 274.º, n.º 1, c), parece ter consagrado a teoria daqueles que defendiam que a compensação teria que ser sempre deduzida através de pedido reconvencional, independentemente do equilíbrio de valores entre os créditos contrapostos, o que, se assim for, terá resolvido a questão em discussão na presente acção, uma vez que nesse caso a decisão sobre o contra-crédito é necessariamente abrangida pelo caso julgado. Contudo, Lebre de Freitas, em A acção declarativa comum à luz do Código de Processo Civil de 2013, pág. 124 e seg., sustenta que a nova redacção do art.º 266º, n.º 1, c), do Novo Código de Processo Civil não tem a virtualidade de alterar a interpretação até aí dominante.
 
[19] Vaz Serra, em Algumas questões em matéria de compensação no processo, na R.L.J., Ano 104º, pág. 276 e seg., Ano 105º, pág. 6 e seg., Ano 109º, pág. 145 e seg. e Ano 110º, pág. 254 e seg., Rodrigues Bastos, em Notas ao Código de Processo Civil, vol. II, pág. 33, 3.ª ed. do autor, Anselmo de Castro, em Direito Processual Civil Declaratório, vol. I, pág. 175, ed. de 1981, Almedina, Lebre de Freitas, em Introdução ao processo Civil, pág. 172, nota 25, ed. 1996, Coimbra Editora, e Pais de Amaral, em Direito processual civil, pág. 199-200, 2.ª ed., Almedina.

[20] Sobre esta problemática, Salvador da Costa, in A injunção e as conexas acção e execução, pág. 86 e seg., ed. 2008, Almedina, acórdãos aí citados, e ainda os acórdãos da Relação de Lisboa, de 13.7.2010, relatado por Ilídio Sacarrão, e de 4.12.2012, relatado por Orlando Nascimento, acessíveis em www.dgsi.pt.

[21] Remédio Marques, na ob. cit., pág. 307.

[22] O Acórdão do S.T.J., de 26.4.2012, relatado por Prazeres Beleza, acessível em www.dgsi.pt, em situação paralela, entendeu que a utilização da compensação com invocação de crédito de valor superior ao reclamado em oposição à execução, julgada procedente, não tinha força de caso julgado, relativamente à parte do crédito que excedia o valor do crédito exequendo.