Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3836/18.2T8CBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: EXECUÇÃO
INCIDENTE DE HABILITAÇÃO
RESPONSABILIDADE DO HERDEIRO
PENHORA
OPOSIÇÃO
Data do Acordão: 12/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - SOURE - JUÍZO EXECUÇÃO - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 262, 744 CPC, 2024, 2025, 2030, 2068, 2071 CC
Sumário: I – Preceitua no art. 744º, nº1 do C.Civil que «Na execução movida contra o herdeiro só podem penhorar-se os bens que ele tenha recebido do autor da herança.».

II – É isto consequência do princípio da limitação da responsabilidade do herdeiro pelas dívidas da herança – na vertente de que o património pessoal do herdeiro não deve responder por dívidas de que o de cujus era o devedor.

III – Donde, se – na execução movida contra o herdeiro/habilitado – tiver lugar uma penhora que recaia sobre outros bens, pode esse executado/habilitado opor-se por simples requerimento, em que pedirá que seja levantada, indicando os bens da herança que tenha em seu poder.

IV – Na verdade, é isto que está expressamente preceituado no art. 744º, nº2 do mesmo n.C.P.Civil, pelo que é esse o mecanismo processual de “reação” para uma tal eventual situação, não sendo fundamento para, ex ante, impugnar a “habilitação” em recurso deduzido contra a decisão final do incidente de habilitação.

Decisão Texto Integral:  










           Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 – RELATÓRIO

C (…)  S.A.” veio, alegando o falecimento do executado M(…) em 18 de janeiro de 2008, sucedendo-lhe como únicos e universais herdeiros a sua mulher e co-executada M (…) e os filhos N (…) e P (…), deduzir os presentes autos de habilitação de herdeiros, requerendo que sejam julgados habilitados os referidos herdeiros, a fim de, respetivamente, contra eles continuar a ação executiva de que estes autos estão apensos.

Feitas as legais citações e notificações, não foi deduzida qualquer contestação, contudo, o Requerido P (…) deu entrada nos autos, em 30.12.2019, de um conjunto de documentos fiscais [comprovativo de pagamento do imposto do selo pela transmissão da herança aberta por óbito de M (…) a favor dos “beneficiários”, a saber, eles Requeridos (a viúva e os 2 filhos), e de documento provisório de identificação fiscal da herança] e bem assim de uma escritura de habilitação notarial, datada de 28 de abril de 2008, por óbito de M (…), em que figuraram como correspondentes habilitados, eles mesmos Requeridos (a viúva e os 2 filhos).

                                                           *

Na imediata sequência, foi proferida decisão final do incidente, a qual, para o que ora releva, foi do seguinte teor:

«(…)

  Matéria de facto

Regularmente citados e notificados, os requeridos não deduziram contestação, pelo que, nos termos do artigo 567º, 1 ex vi dos artigos 293, nº. 3, e 551, nº. 1, todos do Novo Código de Processo Civil (NCPC), considero confessados os factos articulados no requerimento inicial, que aqui se dão por integralmente reproduzidos, excluindo, naturalmente, a matéria puramente conclusiva ou de direito.

**

Do Direito

Com fundamento no assento de óbito, o falecimento do executado encontra-se devidamente comprovado, assim como a qualidade dos seus herdeiros que, após as citações e notificações, não foi impugnada.

Deste modo, atendendo aos documentos juntos, bem como ao consagrado nos artºs. 351.º a 354.º, n.º 1 do Novo Código de Processo Civil, julgo os requeridos:

M (…)

e os filhos

N (…)

e P (…)

habilitados como herdeiros e representantes do falecido Executado M (…), os quais passarão a ocupar a posição jurídica que ao falecido cabia, a fim de, contra eles, se prosseguir na causa.

*

Custas pela requerente (não houve oposição por parte dos requeridos) – artº. 539, nº. 1, do NCPC.

Notifique e registe.

Comunique ao Agente de Execução. ».  

                                                           *

            Inconformado com a dita decisão final apresentou o Requerido P (…) recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

«a) A C (…), S.A, apresentou por apenso ao processo de execução o incidente de habilitação de herdeiro, pelo que, requer que o Recorrente seja incluindo no âmbito da responsabilidade do presente crédito;

b) Entretanto, por escritura pública, outorgada em vinte e seis de janeiro de dois mil e cinco, os Executados N (…), na qualidade de mutuário, e M (…) e seu cônjuge M (…), na qualidade de fiadores, celebraram com a C (…), S.A., ora Exequente, um contrato de Mútuo com Hipoteca e Fiança, a que corresponde o empréstimo nº PT 00350710001790985;

c) O Sr. M (…) faleceu no dia 18 de janeiro de 2008;

d) Considerando que houve incumprimento, e tendo em vista o falecimento supra referenciado, o Banco intentou acção executiva e, posteriormente, o incidente de habilitação de herdeiros;

e) O Recorrente não pactuou o contrato de mútuo ora debruçado, pelo que, se considera parte ilegítima no presente processo, onde, os demais actos processuais não podem prosseguir contra si;

f) Assim sendo, o recorrente é parte ilegítima, devendo ser absolvido da instância, nos moldes dos artigos 576º, n.º 2 e 577º, al.e), ambos do Código de Processo Civil. Ou;

g) Se os termos do presente processo prosseguirem contra o Recorrente, o mesmo não responde com seus bens pessoais, nos termos dos artigos 2068º e 2071º, n.sº 1 e 2, todos do Código Civil.

TERMOS EM QUE REQUER-SE A ABSOLVIÇÃO DA INSTÃNCIA POR ILEGITIMIDADE DE PARTES, E EM CASO DIVERSO, A NÃO EXECUÇÃO DO PATRIMÓNIO PESSOAL DO RECORRENTE. FAZENDO-SE ASSIM A COSTUMADA JUSTIÇA.»         

                                                                       *

            Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

                                                                      *

            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelo Requerido nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4, 636º, nº2 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

- desacerto da decisão recorrida em julgar o Requerido como habilitado na execução movida a, entre outros, o falecido pai M (…) [nomeadamente pelo fundamento da sua ilegitimidade, e bem assim devido à circunstância de não poder ter lugar a execução do património pessoal dele Recorrente].

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos a ter em consideração para a decisão são essencialmente os que decorrem do relatório supra.

                                                                       *

            4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

            Desacerto da decisão recorrida em absolver o Requerido como habilitado na execução movida a, entre outros, o falecido pai M (…) [nomeadamente pelo fundamento da sua ilegitimidade, e bem assim devido à circunstância de não poder ter lugar a execução do património pessoal dele Recorrente]:

Será que ocorre a ilegitimidade do Requerido/recorrente P (…)em ter sido julgado habilitado (conjuntamente com os demais demandados) como herdeiro e representante do falecido Executado M (…), desse modo passando a ocupar a posição jurídica que ao falecido cabia, a fim de, contra ele, se prosseguir na causa?

Cremos bem que não – e releve-se o juízo antecipatório! – como se vai passar a explicitar.

Argumenta sinteticamente o Requerido/recorrente para fundamentar esta sua alegação que o próprio não pactuou o contrato de mútuo cujo incumprimento é o título executivo na execução apensa [em que o falecido M (…) interveio na qualidade de fiador], pelo que, «se considera parte ilegítima no presente processo, onde, os demais actos processuais não podem prosseguir contra si».

Desde logo importa ter presente que a sentença do incidente de habilitação de sucessores apenas decreta a habilitação dos sucessores da parte falecida, isto é, verifica se as pessoas indicadas têm a qualidade de herdeiro ou a qualidade que os legitima a substituir a parte falecida e declara que essa qualidade existe, julgando, em consequência, as pessoas indicadas habilitadas para com elas prosseguirem os termos da demanda.

O pedido deduzido no requerimento do incidente é o de serem habilitados os sucessores, a decisão que a final é proferida é a de julgar as pessoas indicadas como sucessores habilitadas ou não.

Não cabe no objeto do incidente de habilitação de sucessores a determinação dos termos em que depois terá lugar a sua intervenção no processo, nem, tão pouco, qualquer delimitação ou cerceamento dessa intervenção, donde, quando a mesma ocorrer ((e se ocorrer), caberá ao juiz do processo onde ela é feita decidir se a admite e em que termos.

Ademais, recorde-se que é requisito do requerimento inicial do incidente a indicação dos fundamentos de facto que constituam a respetiva causa de pedir.

Na habilitação de sucessores, tratar-se-á dos factos jurídicos concretos em função dos quais as pessoas indicadas adquiriram a qualidade de sucessores do falecido, isto é, adquiriram por morte deste (sucederam) a titularidade da relação jurídica em função da qual ele era parte na ação.

Como existem direitos ou posições jurídicas que se extinguem com a morte do seu titular e outros que se transmitem, aqueles factos jurídicos dependem do que está efetivamente em causa.

Assim, se o falecido era parte na execução em virtude de estar, enquanto “fiador”, pessoalmente obrigado no título executivo, a qualidade de sucessores cabe às pessoas que lhe sucederam nessa posição, o que em princípio sucede com os herdeiros e legatários (cf. artigos 2024º e 2030º do Código Civil), sendo certo que a obrigação do “fiador” não se extingue pela morte (“em razão da sua natureza, ou por força da lei” – cf. art. 2025º do mesmo C.Civil).

In casu, precisamente por se tratar de uma sucessão na posição de titular de relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida, a atribuição da qualidade de herdeiros às pessoas indicadas como sucessores é bastante para consubstanciar a sua qualidade de sucessor do falecido, precisamente porque os sucessores (mortis causa) são, em princípio, os herdeiros.

Acresce que o incidente de habilitação de sucessores constitui o meio processual de operar a modificação subjetiva da instância, através da substituição da parte primitiva pelos respetivos sucessores na relação substantiva em litígio (cf. art. 262º do n.C.P.Civil).

Trata-se, portanto, de uma exceção ao princípio da estabilidade da instância caracterizada pelo falecimento da parte e transmissão por via sucessória da posição que ela ocupava na relação substantiva.

A habilitação de sucessores tem assim como requisitos o falecimento de uma parte na ação e que a relação substantiva de que ele era titular não se tenha extinto com o respetivo óbito. Os sucessores da parte falecida são chamados a substituir a parte falecida porque lhe sucederam na titularidade da relação substantiva em litígio e por isso têm interesse em ocupar a posição de parte.

Ora se assim é, não vislumbramos como dar acolhimento à invocada “ilegitimidade” do Requerido ora recorrente, tanto mais que o mesmo não denega a sua qualidade de “sucessor” e até juntou aos autos uma escritura notarial que tal já certificava, sendo certo que a falta de contestação implica que seja dado como confessado o facto alegado.[2]

Nesta linha de entendimento naufraga inapelavelmente esta primeira vertente recursiva.

                                                           ¨¨

E o mesmo se diga quanto ao outro principal argumento recursivo, a saber, o de que não poder ter lugar a execução do património pessoal dele Recorrente.

É certo que em correspondência com o determinado pelos arts. 2068º e 2071º do C.Civil, se preceitua no art. 744º, nº1 do C.Civil pela seguinte forma:

«Na execução movida contra o herdeiro só podem penhorar-se os bens que ele tenha recebido do autor da herança.»

Sucede que não é isso manifestamente fundamento de impugnação da sua habilitação como sucessor.

Senão vejamos.

Temos presente que «através do incidente de habilitação determina-se quem assume a qualidade jurídica ou a legitimidade substantiva, e não, em rigor, a sua legitimidade ad causam para ingressar na lide na posição da parte falecida ou extinta»[3].

É por assim ser que «A limitação da responsabilidade do herdeiro pelas dívidas da herança, consequência, por sua vez, da ideia de que o credor deve continuar, para além da morte do devedor, a contar com a garantia patrimonial comum do crédito, mas o património pessoal do herdeiro não deve responder por dívidas de que o de cujus era o devedor, traduz-se em que, na execução contra ele movida, só se podem penhorar os bens recebidos do autor da herança (art. 744-1)»[4].

Donde, se – na execução movida contra o herdeiro/habilitado – tiver lugar uma penhora que recaia sobre outros bens, pode esse executado/habilitado opor-se por simples requerimento, em que pedirá que seja levantada, indicando os bens da herança que tenha em seu poder.

É isto que está expressamente preceituado no art. 744º, nº2 do mesmo n.C.P.Civil.

O que tudo serve para dizer que é esse o mecanismo processual de “reação” para uma tal eventual situação, não sendo fundamento para, ex ante, impugnar a “habilitação” em recurso deduzido contra a decisão final do incidente de habilitação.

Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, igualmente improcede este argumento recursivo.

Donde, a improcedência total do recurso.

                                                           *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – Preceitua no art. 744º, nº1 do C.Civil que «Na execução movida contra o herdeiro só podem penhorar-se os bens que ele tenha recebido do autor da herança.».

II – É isto consequência do princípio da limitação da responsabilidade do herdeiro pelas dívidas da herança – na vertente de que o património pessoal do herdeiro não deve responder por dívidas de que o de cujus era o devedor.

III – Donde, se – na execução movida contra o herdeiro/habilitado – tiver lugar uma penhora que recaia sobre outros bens, pode esse executado/habilitado opor-se por simples requerimento, em que pedirá que seja levantada, indicando os bens da herança que tenha em seu poder.

IV – Na verdade, é isto que está expressamente preceituado no art. 744º, nº2 do mesmo n.C.P.Civil, pelo que é esse o mecanismo processual de “reação” para uma tal eventual situação, não sendo fundamento para, ex ante, impugnar a “habilitação” em recurso deduzido contra a decisão final do incidente de habilitação.

                                                           *

6 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se a final julgar totalmente improcedente o recurso.

Custas do recurso pelo Requerido/recorrente.

                                                                       *

Coimbra, 14 de Dezembro de 2020

Luís Filipe Cravo ( Relator )

Fernando Monteiro

Ana Márcia Vieira


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Ana Vieira

[2] Cf. neste sentido, expressamente, o acórdão do STJ de 15.05.2007, proferido no proc. nº 07A1002, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[3] Assim SALVADOR DA COSTA, in “Os incidentes da instância”, Livª Almedina, 5ª ed., 2008, a págs.  246.
[4] Citámos agora LEBRE DE FREITAS, in “A Ação Executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013”, Ed. GestLegal, 7ª ed., a págs. 270.