Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
383/10.4JALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALICE SANTOS
Descritores: APRECIAÇÃO DA PROVA
VIOLAÇÃO
CRIME CONTINUADO
Data do Acordão: 10/29/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TORRES NOVAS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 374.º, N.º 2, DO CPP; ART. 30.º, N.º 2, DO CP
Sumário: 1 - Não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame crítico deve indicar no mínimo e não tem que ser de forma exaustiva, as razões de ciência e demais elementos que tenham na perspetiva do tribunal sido relevantes, para assim se poder conhecer o processo de formação da convicção do tribunal.

2 - Podendo concluir-se da motivação que o Sr. Juiz fez uma análise crítica dos depoimentos prestados quer pelo arguido, quer pelas testemunhas, que de acordo com os restantes elementos de prova impõem a decisão proferida quanto à matéria de facto, cumpriu com o dever de fundamentação contido no art. 374, n.º 2, do CPP.

3 - Não se verifica a existência de um crime continuado se não se mostrarem provados factos demonstrativos que a realização plúrima do mesmo tipo de crime tenha sido executada no quadro de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.

4 - Não preenche os requisitos da figura do crime continuado, se dos factos provados resulta que o arguido não se deparou com uma situação exterior que facilitou toda a sua atuação, mas foi antes o arguido quem criou todo um esquema para cometer os crimes, conhecendo os meios para os levar a cabo.

Decisão Texto Integral: Acordam  no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal.

***
            No processo supra identificado, após a realização de audiência de discussão e julgamento foi proferido acórdão que condenou o arguido A... como autor material, na forma consumada, de quatro crimes de violação, agravados em função da idade da vítima, previstos e puníveis pelos artigos 164.º, n.º 1, al. a), e 177.º n.º 6, ambos do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão cada um;
- Condenou o arguido A..., operado o cúmulo jurídico das penas supra impostas, na pena única de 6 (seis) anos de prisão; e,
- Ordenou o internamento do arguido A...em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena, nos termos do disposto no art.º 104.º, n.º 1, do Código Penal.

              - O Tribunal julga o pedido cível parcialmente procedente, porque provado em parte, e condenou o demandado A...a pagar ao demandante D..., representado em juízo por sua mãe, E..., a importância de € 30.000 (trinta mil euros), acrescida de juros vencidos e vincendos desde a data da notificação (8/12/2012) até efectivo e integral pagamento à taxa legal que estiver em vigor.

              O demandado vai absolvido do demais peticionado.
            Deste acórdão interpôs recurso o arguido, A....
            São do seguinte teor as conclusões, formuladas na motivação do recurso, interposto pelo arguido:
» Em processo comum com intervenção do Tribunal Coletivo e com base em factos arrolados a fls. 174 a 177, que se dão aqui por integralmente reproduzidos, a Digna Magistrada do Ministério Público acusou o arguido A..., solteiro, reformado por invalidez, nascido em 10-09-1979, filho de B... e de C..., natural da freguesia de (...), concelho de Torres Novas, portador do bilhete de Identidade número (...), residente na Rua (...), (...), imputando-lhe a prática, como autor material, na forma consumada, de 1 crime de violação, agravado em função da idade da vítima, previsto e punível pelos artigos 164º, nº 1, al. a), e 177º, no 6, ambos do Código Penal.
» Por sentença de 19.02.2013, o arguido A...foi condenado como autor material na forma consumada, de 4 crimes de violação, agravados em função da idade da vítima, previstos e puníveis pelos artigos 164.º n.º 1 al. a) e 177.1 n.º 6 ambos do código penal, na pena de 3 anos de prisão cada um; Em cúmulo jurídico das penas supra impostas, na pena única de 6 anos de prisão, e ordenar o internamento do arguido A...em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena, nos termos do disposto no artigo 104.° n.º 1 do Código Penal.
» Nos termos do disposto no artigo 399.° do C.P. Penal é permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei. Traduz na prática um princípio constitucional inerente às garantias de defesa dos arguidos, que é o de poderem recorrer das sentenças condenatórias e bem assim de recorrer de quaisquer atos judiciais que no decurso do processo, tenham como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais, tendo o arguido legitimidade e interesse em recorrer.
» Analisado o douto acórdão aqui sob recurso, e concretamente, o exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal e posteriormente a aplicação das regras do direito constatamos que o fundamento da convicção não pode, face à prova produzida, descrever-se nos termos que se expuseram, tudo porquanto resultou inequivocamente da audiência de julgamento as enormes dificuldades de comunicação com o arguido.
» Pois na verdade, o Tribunal a quo fundou a sua convicção quanto aos factos provados essencialmente nas declarações do ofendido, bem como nas declarações do arguido, as quais tiveram posteriormente subjacentes à alteração não substancial dos factos.
» O arguido não se conforma com a interpretação que foi feita das suas declarações e consequentemente com as conclusões que daí decorreram. As respostas do arguido ao tribunal foram sempre evasivas, proferidas com um completo alheamento da realidade. Foram respostas "tiradas a ferro", com enormes e ostensivas dificuldades de entendimento quanto ao alcance do que lhe perguntavam.
» Assim tendo acontecido quanto às declarações que motivaram a alteração do número de crimes praticado, pelo que, em nosso entendimento, não existe fundamentação nem prova produzida que se considere suficiente, que indique com razoabilidade os factos que constam da acusação pública e que foram objeto de julgamento correspondem à verdade material dos factos, concretamente no que concerne ao número de crimes praticados.
» Acresce que, no que a estes factos diz respeito, se entende que a darem como provados a existência da prática do mesmo ato ilícito por mais do que uma vez, se deveria ter qualificado os mesmos ao abrigo do instituto jurídico do crime continuado.
» Deverá constituir um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada de forma essencialmente homogénea e no quadro de solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
» E na verdade, fatores exógenos existiram que permitiram que o arguido, de imputabilidade diminuída tivesse constantes oportunidades de estar a sós com o ofendido.
» Devem assim tais factos ser tidos em consideração, considerando-se a prática de um único crime, continuado, assim se encontrando a pena a aplicar ao arguido.
Termos em que, e na procedência deste recurso, deve ser reconhecida a errada valoração da prova, realizada pelo Tribunal recorrido e, consequentemente, alterar-se a qualificação e quantificação do(s) crime(s) cometidos pelo arguido.
Assim se fazendo acostumada justiça,
           

O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo.

Respondeu o Digno Procurador Adjunto, manifestando-se pela improcedência do recurso.

Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta pela improcedência do recurso.

xxx
Colhidos os vistos legais e efectuada a conferência, cumpre agora decidir.

O recurso abrange matéria de direito e de facto já que a prova se encontra documentada.

Da discussão da causa resultaram provados os factos seguintes constantes da decisão recorrida:

2.1.1. O menor D... nasceu em 25 de Fevereiro de 1998 e é filho de E... e de F....

2.1.2. Os progenitores de D... estão separados entre si há mais de nove anos, tendo o menor ficado a residir com a progenitora, mas visitando o pai.

2.1.3. Nas visitas que o menor fazia ao pai, aos fins-de-semana, F... ia buscar o D... a casa de E... e deixava-o em casa de G..., tia paterna do menor, onde este pernoitava.

2.1.4. Nos anos de 2005 a 2007, G... residiu na localidade de (...), Torres Novas, e a partir de 2007 passou a residir na (...), nesta cidade de Torres Novas.

2.1.5. O arguido A...costumava frequentar a casa de G..., por ser irmão do companheiro da mesma, entretanto falecido, pernoitando na mesma amiúde.

2.1.6. Em muitas ocasiões, o arguido pernoitava em casa de G..., em simultâneo com o menor D....

2.1.7. Aproveitando essa circunstância, o arguido manteve contactos de cariz sexual com o menor D..., na mencionada casa, mediante o anúncio de que lhe batia caso não permitisse tais contactos ou os revelasse a terceiros, aproveitando-se do ascendente que possuía enquanto adulto sobre o menor, do receio que lhe infundia através daquele anúncio, e bem assim da tenra idade deste e consequente ingenuidade, inexperiência e falta de capacidade de autodeterminação.

2.1.8. Assim, em datas não concretamente apuradas mas situadas nos anos de 2006 a 2008, quando todos os residentes estavam deitados nos respectivos quartos ou estavam ausentes de casa, o arguido dirigia-se à divisão onde o menor se encontrava a dormir, deitava-se ao pé dele e tirava-lhe a roupa.

2.1.9. O menor D... tentava afastar o arguido, empurrando-o, mas sem sucesso, em virtude de o arguido imprimir uma força física à qual o menor não conseguia resistir e de anunciar ao menor que lhe batia caso não o deixasse prosseguir.

2.1.10. Temendo a reacção do arguido, o menor D... acabava por se deixar vencer.

2.1.11. Depois de tirar a roupa ao D..., o arguido introduzia o seu pénis no ânus daquele, provocando-lhe dores na referida zona corporal.

2.1.12. Apesar do menor pedir ao arguido para parar e de contrair o esfíncter anal, o arguido prosseguiu e introduziu sempre o seu pénis no ânus do menor.

2.1.13. Nessas ocasiões, o arguido também manipulava o pénis do menor D....

2.1.14. Pelo menos em uma das ocasiões supra referidas, o arguido ejaculou para dentro de um tubo preto próprio para rolos fotográficos.

2.1.15. Em uma das ocasiões supra referidas, o arguido praticou os factos descritos, não à noite, como era hábito, mas pelas 17/18 horas, quando o menor regressou de casa de uma vizinha onde tinha estado a brincar, tendo o arguido aproveitado a circunstância de os tios do menor se encontrarem no café.

2.1.16. Com o mesmo objectivo de obviar a que o menor contasse o sucedido, o arguido dizia-lhe que o deixaria jogar “PlayStation” e comprava-lhe gomas sempre que iam ao café.

2.1.17. Os factos supra descritos ocorreram em ambas as casas de G..., em, pelo menos quatro datas e ocasiões distintas, sendo a primeira ainda na localidade de (...), Torres Novas, e as subsequentes já na residência sita na (...), nesta cidade de Torres Novas.

2.1.18. Como consequência directa e necessária da actuação do arguido, o menor sofreu lacerações ao longo das pregas perianais, nos pontos correspondentes às 3h, 5h e 12h do mostrador de um relógio, medindo cada uma delas cerca de seis milímetros de comprimento, e, como sequela, corrimento aquoso, sem cheiro e, de quando em quando, raios de sangue vivo quando se limpa após obrar - conforme auto de exame médico de fls. 28 a 31 dos autos, aqui dado por reproduzido.

2.1.19. O arguido A...frequentou a escola até à 2.ª classe, mas não sabe ler e apenas sabe assinar o seu nome. Abandonou a escola aos 14 ou 15 anos e até aos 20 anos de idade frequentou o CRIT (Centro de Reabilitação e Integração Torrejano). Depois trabalhou com um irmão numa fábrica de tubos e na construção civil como servente. Teve outros empregos de curta duração, intercalados por períodos de tempo em que ajudava a mãe na horta ou o pai na sucata. Em 2012 começou a frequentar um curso de lavagem de carros no CIRE (Centro de Integração e Recuperação de Tomar). É seguido desde 14/9/2005 no Serviço de Psiquiatria do Hospital de Tomar, estando actualmente medicado com antipsicótico injectável de longa duração. Declarou que ficou mais calmo desde que começou a tomar as injecções. À data do exame mental (5/3/2012) estava consciente e orientado auto e alopsiquicamente. Estabelece um contacto cordial, mas superficial, revelando incapacidade de manifestar afectos e emoções. Sem alterações do humor ou actividade psicótica. Revela notórias dificuldades no pensamento abstracto e limitações cognitivas, expressas na incapacidade de explicar conceitos. O arguido é portador de debilidade mental, havendo períodos de psicose em débil, que lhe diminui a capacidade de avaliar a ilicitude dos factos e de se determinar de acordo com essa avaliação, mas que não o impede de distinguir entre o correcto e o incorrecto - conforme relatório pericial de psiquiatria junto aos autos a fls. 141 a 144, aqui dado por reproduzido.

2.1.20. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito alcançado de satisfazer os seus desejos sexuais, sabendo que o fazia contra a vontade do menor D..., que colocou na impossibilidade de lhe resistir.

2.1.21. O arguido previu e quis agir como descrito, mediante o uso da força física e do anúncio ao menor de que lhe batia caso não permitisse os contactos de cariz sexual supra descritos, ou os revelasse a terceiros, aproveitando-se do ascendente que possuía enquanto adulto sobre o menor, do receio que lhe infundia através daquele anúncio, e bem assim da tenra idade deste e consequente ingenuidade, inexperiência e falta de capacidade de autodeterminação.

2.1.22. Sabia igualmente o arguido que D... era uma criança e que tinha menos de 14 anos.

2.1.23. O arguido estava ciente de que o menor D..., por força da sua idade, não tinha a capacidade e o discernimento necessários para tomar qualquer decisão, livre e esclarecida, quanto à prática de qualquer acto de natureza sexual, e ainda de que com a sua conduta prejudicava o livre e são desenvolvimento da sua personalidade.

2.1.24. O arguido sempre soube que a sua conduta era proibida e punida por lei.

2.1.25. O arguido A...nasceu no seio de uma família constituída pelos pais e dez irmãos. À data dos factos não realizava actividade profissional ou formativa, fazendo uma ocupação informal do seu tempo. Actualmente vive com os pais e um irmão de 34 anos de idade, portador de deficiência mental. O agregado reside numa casa de tolerância, cujo espaço interior satisfaz as necessidades dos seus elementos, subsistindo com as reformas dos progenitores no total de € 532 e com as pensões de invalidez do arguido e do seu irmão, no valor de e 215 cada uma. O arguido recebe ainda uma bolsa de formação, no montante de € 100, acrescida do subsídio de alimentação de € 73. No meio vicinal não é referenciado por atitudes anti-sociais, sendo identificado pelas suas dificuldades ao nível do seu funcionamento psicológico.

2.1.26. Nada consta do C.R.C. do arguido a fls. 212.

2.1.27. O menor D... sofreu dores intensas durante e após o acto sexual. Ainda hoje receia cruzar-se na rua com o arguido. Sofre de constantes idas à casa de banho para poder obrar, pois perdeu sensibilidade na zona perianal. Receia pela sua possível falta de higiene, em especial na presença de terceiros. Cresceu encarando a sexualidade de forma deturpada e com enorme revolta pelo que lhe sucedeu. É uma criança reservada carecendo de acompanhamento da psicóloga.


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2.2. Factos não provados.

Não se dão como provados quaisquer outros factos com relevo para a decisão, designadamente que:

- Em ambas as casas, o menor D... dormia, em regra, no sofá da sala; ou que,

- O arguido formulou apenas uma decisão inicial de manter repetidos contactos sexuais com o menor.


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2.3. Motivação.

A convicção do Tribunal baseou-se na apreciação livre, global e crítica dos seguintes meios de prova:

a) Declarações do menor D... (cujo depoimento foi prestado antecipadamente e transcrito a fls. 100 a 115, o qual relatou de forma credível os actos perpetrados pelo arguido na sua pessoa, confirmando os principais actos levados à acusação, no que foi julgado convincente, pelo espontaneidade do seu discurso, pelos pormenores que indicou e pela segurança que patenteou, não evidenciando qualquer facciosismo pela circunstância de ser demandante cível), das testemunhas E... (mãe do menor, que descreveu as deslocações do D... aquando das visitas ao seu pai e os contactos com o arguido, bem como a forma espontânea de revelação dos factos por aquele na sequência de notícias televisivas sobre um caso de pedofilia, dos sinais e indícios que vinham do menor e que só então relacionou com a situação de abuso sexual, além de descrever a situação actual e do sofrimento que o seu filho revela, nomeadamente a ansiedade e a revolta), G... (relatou as circunstâncias em que o menor e o arguido se encontravam em sua casa), L... (avô do menor, relatou a situação actual do menor e o seu comportamento), H... (avó do menor, idem), M...(tia do menor, idem) e I... (psicóloga que acompanhou o menor por problemas e dificuldades percebidas no meio escolar, relatando a sua instabilidade comportamental, se bem que o seu trabalho não tenha incidido sobre as suas causas) que foram convincentes pelo conhecimento directo dos factos que evidenciaram, pelos pormenores que apresentaram e pela sua isenção;

b) Documentos de fls. 212 (C.R.C.), relatórios de exames médicos de fls. 28 a 31, 141 a 144 e relatório social de fls. 278 a 282; e,

c) Declarações do arguido A... (o qual admitiu que se envolveu com o menor em “brincadeiras de sexo” numa ocasião em que se encontrava em casa da sua cunhada G... na (...) e em 3 ocasiões já na casa sita em Torres Novas, esclarecendo que introduziu o pénis no ânus do menor), as quais foram consideradas, não obstante a forma hesitante e titubeante do relato apresentado, na medida em que revelou suficiente compreensão dos actos em questão e tal descrição se mostrou concordante com diversos outros meios de prova valorados no decurso da audiência.


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Não se deram como provados quaisquer outros factos por falta de prova bastante, segura e credível.

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Breve apreciação crítica da prova.

A convicção do Tribunal resultou da apreciação crítica dos indicados meios de prova, sobressaindo o exame médico na pessoa do menor, bem como o teor das suas declarações e dos depoimentos dos seus indicados familiares, cujos relatos foram julgados absolutamente credíveis, pela forma espontânea com que relataram os factos.

O exame médico permitiu perceber claramente sinais compatíveis e concordantes com os actos e práticas sexuais imputados ao arguido, sendo certo que tais indícios não são expectáveis numa criança com 12 anos à data do exame, afigurando-se que as conclusões médicas são judiciosas, pelas razões de ciência que o Exmo. Perito indicou.

O relato do menor revelou-se isento, pormenorizado, espontâneo e coerente com a restante prova produzida. Nada indiciou má fé ou qualquer motivação torpe para o menor ou a sua família falsamente imputarem a aleivosia ao arguido. Também as declarações da mãe e restantes familiares do D... contribuíram para cimentar a convicção do Tribunal, nomeadamente por terem presenciado determinadas reacções e comportamentos espontâneos do menor consentâneos com os factos imputados ao arguido (vg. manifestações de precoce e sentido ressentimento perante notícias de casos de pedofilia na televisão ou as obsessões de higiene do menor).

Apesar de algumas dificuldades de comunicação com o arguido, o Tribunal ainda assim valorou parcialmente as suas palavras, não só em termos de enquadramento da sua personalidade, mas também por corroborarem a existência de episódios de relevo protagonizado pelo próprio e pelo menor, além de que o mesmo revelou compreender a gravidade dos factos que lhe são imputados.

Os factos relativos ao estado de saúde do arguido resultaram dos indicados relatórios periciais e sociais.
                                               *
            Cumpre, agora, conhecer do recurso interposto.

O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação (Ac do STJ de 19/6/96, no BMJ 458-98).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar (cfr Germano marques da Silva, in “Curso de Processo penal”, III, pg 335).

Questões a decidir:
- Se foi violado o disposto no artº 374 nº 2 do CPP;
- Se estamos perante um crime continuado;


Sustenta o recorrente que a sentença recorrida violou o disposto no artº 374, nº 2 do CPP, o que leva à nulidade da sentença, nos termos do art. 379 n.º 1 al a) do CPP”.
 Da análise do disposto no art. 374 do CPP vemos que a sentença compõe-se de três partes: relatório, fundamentação e dispositivo.
O relatório é elaborado de acordo com o nº 1, a fundamentação de acordo com o nº 2 e o dispositivo de acordo com o nº 3.
Na fundamentação é agora obrigatória a indicação das provas que serviram a convicção do tribunal e do exame crítico destas.
Dispõe o art 374 nº 2 do CPP que “ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
Em relação á anterior redacção deste preceito legal, a Lei 59/98 de 25/8 que procedeu á revisão do Cod. Penal aditou a exigência do “exame crítico das provas”. Ou seja, para além de se indicar as provas que serviram para formar a convicção do tribunal, este tem que proceder ao exame crítico das provas, isto é ao processo lógico e racional que foi seguido na apreciação das provas.
“A fundamentação, como resulta expressis verbis do nº 2, não se satisfaz com a enumeração dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento e dos que serviram para fundamentar a sentença. É ainda necessário um exame crítico desses meios, que servirá para convencer os interessados e a comunidade em geral da correcta aplicação da justiça no caso concreto”. (Maia Gonçalves, em anotação ao art 374 do CPP).
O objectivo dessa fundamentação e no dizer do prof. Germano Marques da Silva, no Curso de Processo Penal, pg 294, III Vol é a de permitir “a sindicância da legalidade do acto, por uma parte e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando, por isso como meio de autodisciplina”.
A ratio da exigência de fundamentação é a de submeter a decisão judicial a uma maior fiscalização por parte da colectividade e é também consequência da importância que assume no novo processo o direito à prova e à contraprova, nomeadamente o direito de defender-se, probando”.
Não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo (Ac STJ de 12/4/2000, proc nº 141/2000-3ª, SASTJ nº 40,48).
Portanto esse exame crítico deve indicar no mínimo e não tem que ser de forma exaustiva, as razões de ciência e demais elementos que tenham na perspectiva do tribunal sido relevantes, para assim se poder conhecer o processo de formação da convicção do tribunal.
Ora, se analisarmos a sentença recorrida vemos que esta está bem elaborada e da mesma constam de forma clara e explicita os factos provados e não provados e, encontra-se, ainda, fundamentada.
Na verdade, todos os factos referidos na acusação foram tidos em consideração. Logo, o tribunal não omitiu qualquer facto relevante para a decisão da causa. E é óbvio, que a lei não obriga o tribunal a referir os factos trazidos a julgamento pela acusação ou pela defesa, que não sejam essenciais para a descoberta da verdade mas, apenas circunstanciais.
            Da motivação temos de concluir que o Sr Juiz fez uma análise crítica dos depoimentos prestados quer pelo arguido, quer pelas testemunhas, que de acordo com os restantes elementos de prova impõe a decisão proferida quanto à matéria de facto.
Na verdade, tendo o Sr juiz enumerado as provas que teve ao seu dispor, indicando o essencial do seu conteúdo e, portanto, o modo como formou o juízo da sua veracidade, cumpriu com o dever de fundamentação contido no art 374 nº 2 do CPP
O que o recorrente faz é discordar com a forma como na decisão recorrida foi apreciada a prova produzida em julgamento e as conclusões de convicção probatória a que ali se chegou.
De acordo com o disposto no art 412 nº 3 al b) do Código Processo Penal, a matéria de facto impugnada só pode proceder, quando o recorrente tendo por base o raciocínio lógico e racional feito pelo tribunal na decisão recorrida, indica provas que “imponham decisão diversa”.
Ora, o recorrente ao pretender a alteração da matéria de facto defende que o Tribunal formou a sua convicção essencialmente nas declarações prestadas pelo arguido, e “estas foram sempre evasivas, proferidas com um completo alheamento da realidade. Foram respostas “tiradas a ferro” com enormes e ostensivas dificuldades de entendimento quanto ao alcance do que lhe perguntavam”.
O que afinal o recorrente faz é impugnar a convicção adquirida pelo tribunal a quo sobre determinados factos em contraposição com a que sobre os mesmos ele adquiriu em julgamento, esquecendo a regra da livre apreciação da prova inserta no art 127.
De acordo com o disposto no art 127 a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
“O art 127 do Código Processo Penal estabelece três tipos de critérios para avaliação da prova, com características e naturezas completamente diferentes: uma avaliação da prova inteiramente objectiva quando a lei assim o determinar; outra também objectiva, quando for imposta pelas regras da experiência; finalmente, uma outra, eminentemente subjectiva, que resulte da livre convicção do julgador.
A prova resultante da livre convicção do julgador pode ser motivada e fundamentada mas, neste caso, a motivação tem de se alicerçar em critérios subjectivos, embora explicitados para serem objecto de compreensão” (Ac STJ de 18/1/2001, proc nº 3105/00-5ª, SASTJ, nº 47,88).
Tal como refere o Prof Germano Marques da Silva no Curso de Processo Penal, Vol II, pg 131 “... a liberdade que aqui importa é a liberdade para a objectividade, aquela que se concede e que se assume em ordem a fazer triunfar a verdade objectiva, isto é, uma verdade que transcende a pura subjectividade e que se comunique e imponha aos outros. Isto significa, por um lado, que a exigência de objectividade é ela própria um princípio de direito, ainda no domínio da convicção probatória, e implica, por outro lado, que essa convicção só será válida se for fundamentada, já que de outro modo não poderá ser objectiva”.
Ou seja, a livre apreciação da prova realiza-se de acordo com critérios lógicos e objectivos.
Sobre a livre convicção refere o Professor Cavaleiro de Ferreira que esta « é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundada da verdade» - Cfr. "Curso de Processo Penal", Vol. II , pág.30. Por outras palavras, diz o Prof. Figueiredo Dias que a convicção do juiz é "... uma convicção pessoal -até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais -, mas em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros ."- Cfr., in "Direito Processual Penal", 1º Vol., Coimbra Ed., 1974, páginas 203 a 205.
O princípio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento, encontrando afloramento, nomeadamente, no art. 355 do Código de Processo Penal. É ai que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na recepção directa de prova.
No dizer do Prof. Germano Marques da Silva "... a oralidade permite que as relações entre os participantes no processo sejam mais vivas e mais directas, facilitando o contraditório e, por isso, a defesa, e contribuindo para alcançar a verdade material através de um sistema de prova objectiva, atípica, e de valoração pela íntima convicção do julgador (prova moral), gerada em face do material probatório e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens". -Cfr. "Do Processo Penal Preliminar", Lisboa, 1990, pág. 68”.
O princípio da imediação diz-nos que deve existir uma relação de contacto directo, pessoal, entre o julgador e as pessoas cujas declarações irá valorar, e com as coisas e documentos que servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto.
Citando ainda o Prof. Figueiredo Dias, ao referir-se aos princípios da oralidade e imediação diz o mesmo:
« Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efectivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tomar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...) .Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais ". -In "Direito Processual Penal", 10 Vol., Coimbra Ed., 1974, páginas 233 a 234 .
Assim, e para respeitarmos estes princípios se a decisão do julgador, estiver fundamentada na sua livre convicção e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum, ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso. Como se diz no acórdão da Relação de Coimbra, de 6 de Março de_2002 (C.J. , ano XXV|II, 20 , página 44) "quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum".
Ora, se atentarmos aos factos apurados e compulsada a fundamentação temos de concluir que os juízos lógico-dedutivos aí efectuados são acertados, designadamente no que se refere aos factos apurados e postos em questão pelo recorrente.
            O Sr juiz na decisão recorrida, nomeadamente, em sede de convicção probatória, explica de forma clara e coerente os seus juízos lógico-dedutivos, analisando cada uma das diversas provas tidas em consideração.
            E, ao contrário do sustentado pelo recorrente, o Tribunal fundou a sua convicção nas declarações do ofendido, no depoimento dos seus familiares, no exame médico junto aos autos e, apenas, parcialmente, nas declarações do arguido.
A convicção do Tribunal resultou da apreciação crítica dos indicados meios de prova, sobressaindo o exame médico na pessoa do menor, bem como o teor das suas declarações e dos depoimentos dos seus indicados familiares, cujos relatos foram julgados absolutamente credíveis, pela forma espontânea com que relataram os factos.
O exame médico permitiu perceber claramente sinais compatíveis e concordantes com os actos e práticas sexuais imputados ao arguido, sendo certo que tais indícios não são expectáveis numa criança com 12 anos à data do exame, afigurando-se que as conclusões médicas são judiciosas, pelas razões de ciência que o Exmo. Perito indicou.
O relato do menor revelou-se isento, pormenorizado, espontâneo e coerente com a restante prova produzida. Nada indiciou má fé ou qualquer motivação torpe para o menor ou a sua família falsamente imputarem a aleivosia ao arguido. Também as declarações da mãe e restantes familiares do D... contribuíram para cimentar a convicção do Tribunal, nomeadamente por terem presenciado determinadas reacções e comportamentos espontâneos do menor consentâneos com os factos imputados ao arguido (vg. manifestações de precoce e sentido ressentimento perante notícias de casos de pedofilia na televisão ou as obsessões de higiene do menor).
Apesar de algumas dificuldades de comunicação com o arguido, o Tribunal ainda assim valorou parcialmente as suas palavras, não só em termos de enquadramento da sua personalidade, mas também por corroborarem a existência de episódios de relevo protagonizado pelo próprio e pelo menor, além de que o mesmo revelou compreender a gravidade dos factos que lhe são imputados.”
Portanto, a matéria apurada baseou-se na prova testemunhal e documental produzida em julgamento. Tendo a factualidade apurada apoio na prova produzida e encontrando-se devidamente fundamentada, nada há a alterar. Na verdade é o juiz de julgamento que tem em virtude da oralidade e da imediação, uma percepção própria do material probatório que nós, neste Tribunal, não temos. O juiz do julgamento tem um contacto vivo e imediato com todas as partes, ele questiona, ele recolhe todas as impressões e está atento a todos os pormenores.
Analisando a decisão recorrida e ao contrário do sustentado pelo recorrente, esta encontra-se devidamente fundamentada e, faz uma exposição dos motivos de facto que fundamentaram a decisão e faz um exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. A decisão recorrida indica de forma clara e na medida do que é necessário, as provas que serviram para a formação da convicção do tribunal.
Assim, perante os factos apurados e a sua motivação não procede a crítica do recorrente. Este esquece a prova produzida e as regras da experiência e sobrevaloriza a sua apreciação subjectiva do que deveria ter sido considerado provado, querendo fazer prevalecer a sua versão dos factos, sem apoio na prova produzida.
É de notar que o juiz da 1ª instância é o juiz da oralidade e da imediação da audiência de julgamento, logo está numa posição que lhe permite apreender as emoções, a sinceridade, a objectividade, as contradições, todas os pequenos gestos que escapam no recurso. Portanto, o juiz do julgamento, em virtude da oralidade e da imediação, portanto, do seu contacto, com arguidos, testemunhas, tem uma percepção que escapa aos juízes do tribunal da Relação.
O Tribunal da Relação apenas pode controlar e sindicar a razoabilidade da sua opção, o bom uso do princípio da livre convicção, com base na motivação da sua escolha.
Ora, da motivação resulta que a convicção do tribunal não é puramente subjectiva, intuitiva e imotivável, mas antes resultou da livre apreciação da prova, da análise objectiva e crítica da prova. A solução a que chegou o tribunal é razoável atendendo á prova produzida e está fundamentada. Na verdade, face a todo o material probatório tudo indica que o tribunal recorrido captou a verdade material.

Sustenta o recorrente que deveria ter sido condenado pela prática de um crime de violação agravada, em função da idade da vítima na forma continuada.
Preceitua o art.º 30º nºs 1 e 2, do Código Penal que:
           
1. O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
2. Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
O crime continuado ocorre quando, através de várias acções criminosas, se repete o preenchimento do mesmo tipo legal ou de tipos que protegem o mesmo bem jurídico, usando-se de um procedimento que se reveste de uma certa uniformidade e aproveita um condicionalismo exterior que propicia a repetição, fazendo assim diminuir consideravelmente a culpa do agente.
O fundamento desta diminuição da culpa encontra-se na disposição exterior das coisas para o facto, isto é no circunstancialismo exógeno que precipita e facilita as sucessivas condutas do arguido e o pressuposto da continuação criminosa será assim e verdadeiramente a existência de uma relação que, de fora, e de modo considerável facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente. (DEC da RP nº 4148/05).
Conforme tem sustentado o Supremo Tribunal de Justiça são pressupostos do crime continuado:
- realização plúrima do mesmo tipo de crime, ou de vários que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico;
- Homogeneidade da forma de execução;
- unidade de dolo: as diversas resoluções devem conservar-se dentro de “uma linha psicológica continuada”;
- Persistência de uma situação exterior que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente. (WC do STJ de 5/4/2000, de 15/6/2000, de 9/11/200).
No caso vertente verifica-se a realização plúrima do mesmo tipo de crime, ocorre homogeneidade na forma de execução e as diversas resoluções podem ser reconduzidas a una unidade jurídica.
No entanto, não se vislumbra na matéria de facto qualquer facto que nos leve a considerar pela persistência de uma situação exterior que facilitou a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente (art. 30 nº 2 do CPenal).
Tal como decidiu o Ac do STJ de 23/01/1983 no BMJ 323, 208 “Para que exista um crime continuado não basta uma pluralidade de acções violadoras dos mesmos preceitos legais, ainda que praticados dentro de um período limitado de tempo, sendo ainda necessário que o agente tenha sido influenciado por circunstâncias exteriores que facilitem a repetição dos actos criminosos, pois é este condicionalismo que concorre para diminuir o grau de culpa, tornando menos exigível comportamento diverso”.
No caso vertente, não se verifica a existência de um crime continuado pois não se mostra que a realização plúrima do mesmo tipo de crime tenha sido executada no quadro de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
“Fundando-se a diminuição da culpa no circunstancialismo exógeno que precipita e facilita as sucessivas condutas do agente, o pressuposto da continuação criminosa deverá ser encontrado numa relação que, de modo considerável, e de fora, facilitou aquela repetição, conduzindo a que seja, a cada crime, menos exigível ao agente que se comporte de maneira diversa.
Importante, portanto, será determinar quando existiu um condicionalismo exterior ao agente que facilitou a acção daquele, facilitou a repetição da actividade criminosa (“tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito” – cf. Eduardo Correia, Direito Criminal, II, 209) e, por isso, diminui/atenua a respectiva culpa”.
É que, se o agente concorre para a existência daquele quadro ou condicionalismo exterior, está a criar condições de que não pode aproveitar-se para que possa dizer-se verificada a figura legal de continuação criminosa.
É esse o entendimento da jurisprudência dominante ao afirmar que inexiste crime continuado – mas concurso de infracções – “quando as circunstâncias exógenas ou exteriores não surgem por acaso, em termos de facilitarem ou arrastarem o agente para a reiteração da sua conduta criminosa, mas, pelo contrário, são conscientemente procuradas e criadas pelo agente para concretizar a sua intenção criminosa” (cf. Aos. STJ de 10.12.1997 in Prol. 1192/97; e de 07.03.2001 e 12.06.2002 in Boletim interno deste STJ, nºs 49 e 62, respectivamente. Da matéria de facto assente, cremos não haver dúvidas de que o arguido agiu sempre de forma homogénea e lesou sempre o mesmo bem jurídico. Só que dos factos assentes não resulta a existência de um condicionalismo exterior ao agente que facilitou a acção daquele, que facilitou a repetição da actividade criminosa e que, por isso, diminua a culpa do arguido.
Dos factos provados resulta antes que foi o arguido que criou todo um esquema, para cometer os crimes, conhecendo os meios para os levar a cabo. O arguido não se deparou com uma situação exterior que facilitou toda a sua actuação.
Portanto, resulta da matéria de facto assente que foi sempre o próprio arguido quem criou as condições necessárias para a prática dos factos/crimes, formulando várias resoluções criminosas, agindo e concretizando-as em função de cada caso concreto, “adaptando o modos operando às circunstâncias específicas dos seus desígnios”. Aliás, dos factos apurados não resulta nenhuma circunstância exógena diminuidora da culpa do arguido.
 Em face do que se deixa dito, concluímos que no caso em análise inexiste crime continuado.


Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.


Custas pelo recorrente fixando-se a taxa de justiça em 5 UCs.

                                              
Coimbra, 29 de Outubro de 2014

Alice Santos - relatora

Belmiro Andrade - adjunto