Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1350/11.6TBGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: USUCAPIÃO
POSSE
PROVAS
PRESUNÇÃO
ANIMUS POSSIDENDI
Data do Acordão: 02/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA GUARDA – 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1251º, 1252º, Nº 2, E 1268º DO C. CIVIL.
Sumário: I – O legislador – sempre sensato no âmbito dos direitos reais - por entender que a prova do elemento intelectual da posse é, por vezes, difícil, estabeleceu, no nº 2 do art.º 1252.º do C.Civil, uma presunção no sentido de que se presume a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do nº 2 do art.º 1257.º do mesmo diploma.

II - Desta forma, vem o Supremo Tribunal de Justiça decidindo, de forma pacífica, no sentido de que o detentor da coisa, ou seja o que tem o poder de facto, ou o “corpus”, está dispensado de provar que possui com intenção de agir como titular do direito real correspondente - em Acórdão de uniformização de jurisprudência de 14.05.96, publicado no DR II série, de 24.06.96, aplicou esta doutrina, ao extrair a seguinte conclusão: “Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”.

III - O animus exprime-se pelo poder de facto, logo a intenção de domínio não tem de explicitar-se e muito menos por palavras. O que importa é que se infira do próprio modo de actuação ou de utilização.

IV - É certo que nos termos da norma do artigo 294.º do Código Civil um contrato celebrado contra disposição legal de carácter imperativo é nulo.

V - No entanto, o legislador avisado não formula a redacção desta norma de uma forma absoluta, cedendo sempre que outra solução resulte da lei, nomeadamente nos casos em que a lei proibitiva resulta pouco adequada à sanção de nulidade, considerados os interesses em presença e o escopo visivelmente visado pelo legislador.

VI - Fora das situações em que o legislador avulso impede a “usucapibilidade” de certos bens – por ex. o caso dos baldios (artigo 2.º do Dec. Lei n.º 39/76, de 19 de Janeiro) e dos bens culturais classificados ou em vias de classificação (Lei 107/2001 de 8/09) -, os Tribunais têm dado preferência à usucapião como forma originária de aquisição, em detrimento de certas exigências de âmbito administrativo e limitações legais.

VII - Concorrendo os requisitos da usucapião, aferidos pelas características da posse, os vícios anteriores e as vicissitudes ligadas ao acto ou negócio causal não afectam o novo direito, que decorre apenas dessa posse, em cujo início de exercício corta todos os laços com eventuais direitos e vícios, incluindo de transmissão, anteriormente existentes.

VIII - A usucapião não só se abstrai, como inclusivamente se sobrepõe a certas vicissitudes ou irregularidades formais ou substanciais relativamente a actos de alienação ou oneração de bens ou até mesmo à prática de actos que originariamente pudessem considerar-se ilegais ou até mesmo violadores dos direitos de outrem.

IX - O criador de tal instituto entendeu que, ponderados determinados aspectos, certas situações de facto pudessem converter-se num verdadeiro direito, como ocorre no caso da posse, desde que se prolongue durante um período de tempo significativo, o qual se sobrepõe inclusivamente aos próprios vícios que hajam inquinado a posição do possuidor face ao bem possuído, pois surge um direito ex-novo, por mera vontade do respectivo titular, na sua esfera jurídica, desde que judicialmente verificada e declarada a situação de facto que lhe subjaz e que, inclusivamente, retrotrai à data do início de tal situação de facto.

Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1.Relatório
A… e mulher, B…, vieram propor a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra o Município de C…, pedindo que:
a) Seja reconhecida a propriedade dos autores sobre a parcela de terreno, que identificam;
b) Seja o réu condenado a reconhecer o aludido direito de propriedade, abstendo-se de qualquer acto lesivo do mesmo.
Alegam para o efeito, em síntese, que são proprietários de um imóvel urbano, que é uma casa de habitação, com logradouro, que identificam.
A referida casa de habitação foi edificada num lote de terreno, o qual utilizam como seu desde Setembro de 1992.
 Nesse mesmo mês de Setembro, do lado sul do lote, e para uma melhor funcionalidade do lote, os autores adquiriram uma faixa de terreno, com cerca de 160 m2, à Predial da C…, S.A., o que ocorreu por acordo verbal.
Os autores, em 1992, incorporaram no seu lote essa faixa de terreno, realizando trabalhos de remoção e nivelamento de terras, realizando em todo o lote as obras de construção da sua habitação.
No ano de 2004 o Município contactou o autor marido, a quem intimou a entregar-lhe faixa de terreno, alegando que o mesmo era seu.
Sucede que os autores estão na posse de tal parcela de terreno desde 1992, razão pela qual, uma vez que se mostram verificados os respectivos pressupostos, o adquiriram a respectiva propriedade por usucapião.

O réu, citado para o efeito, veio alegar que este Tribunal é incompetente, em razão da matéria, para julgar e decidir a presente acção, já que se trata de matéria da competência dos tribunais administrativos.
O terreno que os autores ocuparam e delimitaram excede o terreno previsto, aprovado e licenciado para o lote de que são proprietários.
 No âmbito da operação de loteamento aquele terreno foi previsto, aprovado e licenciado para a concretização de uma passagem pedonal/pública (e para cedência à Câmara Municipal).
O pedido dos autores de reconhecimento daquele terreno como seu por usucapião é ofensivo do regime legal de ordenamento do território, designadamente no que a loteamentos se refere do PDM da C…, bem como do regime jurídico dos loteamentos, e visa pôr em causas as deliberações definitivas da Câmara de entrega do terreno.
O terreno em causa destina-se, segundo a planta síntese do loteamento, à criação de uma passagem pedonal, envolvente ao lote 20 desta operação de loteamento e devia passar para o domínio público municipal, sendo subtraído ao comércio jurídico, o que ocorre desde a emissão do alvará de loteamento …, pelo que qualquer acto de cedência da referida parcela a favor de terceiros, mormente dos autores, é nula e de nenhum efeito.
Também é nula por falta de forma e porque a sociedade a Predial da C…, Lda., não pode doar nos termos em que o fez, por não se conter dentro do objecto social de tal sociedade e ainda, sendo do domínio público municipal, o operador do loteamento estava impedida de dispor da mesma.
Quanto à alegada usucapião, importa ter presente que desde 2004 os autores estão notificados de uma deliberação camarária que lhes determinou a devolução do terreno ilegalmente ocupado e não reagiram, pelos meios administrativos próprios contra essa deliberação que nunca impugnaram contenciosamente, o que, para além do mais, impede a verificação dos pressupostos legais da usucapião.
O Sr. Juiz do Círculo da Guarda proferiu a seguinte decisão:
Julgo a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, procedente e, consequentemente, decido:
a) Declarar os autores A… e mulher, B…, como proprietários da:
i) Parcela de terreno, com a área de 160 m2, sita na confinância a sul do lote 1 referido em 1. e 2 da factualidade julgada provada.
b) Condenar o réu Município de C… a:
i) Reconhecer que os autores são proprietários da referida parcela de terreno; e a
ii) Abster-se de praticar qualquer acto lesivo do mesmo.

2.O Objecto da instância de recurso
O apelante MUNICÍPIO De C…, apresentou as suas alegações, assim concluindo:
...
A 1.ª instância fixou esta matéria de facto:
...
Porque não impugnada, será esta a matéria a utilizar no âmbito da instância recursiva.
São três, as questões colocadas a este Tribunal, pela pena do ilustre mandatário do réu/recorrente:
1.Do flagrante erro sobre a apreciação dos factos considerados provados;

2. Mostrando-se provado que “No ano de 2004 o Município réu contactou o autor marido, a quem intimou a entregar-lhe a parcela de terreno que se refere em 4., com o alegado fundamento de que tal terreno era do Município e tinha sido indevidamente ocupado pelos autores”, não podia o julgador da 1.ª instância concluir pela existência do “animus possessório”.
Escreve o ilustre mandatário do apelante réu:
“A Mmª Juíza “a quo”, perante a matéria de facto dada como provada nos pontos 16. e 18, erroneamente, salvo o devido respeito, considerou que “Em conformidade, o animus, para além de ter sido demonstrado conforme supra descrito (“na convicção de que exercem um direito seu e em nome próprio como se exercessem um direito de propriedade, pelo menos no momento em que adquiriram a faixa de terreno em causa” – o que ocorreu no ano de 1992: vide o ponto 5 da factualidade assente), presume-se – o que não foi ilidido – nos termos do art. 1252º, n.º 2 do CC. Por isso, há que concluir que os autores têm a posse (corpus e o animus) da referida faixa de terreno.”
Tendo ficado provado que “No ano de 2004 o Município réu contactou o autor marido, a quem intimou a entregar-lhe a parcela de terreno que se refere em 4., com o alegado fundamento de que tal terreno era do Município e tinha sido indevidamente ocupado pelos autores.”, não podia a Mmª Juíza “a quo” concluir, como concluiu, que in casu está verificado o animus possessório.
Daqui apenas se pode e deve concluir que, pelo menos a partir de 2004, os AA têm consciência de que usam a parcela em questão, com oposição da Câmara Municipal da C… e, por isso, não usam a mesma com consciência de que não lesam o direito de quem quer que seja.
Ainda que se aceitasse a tese dos AA – que não se aceita – desde 1992 até 2004, apenas decorreram 12 anos, tempo insuficiente para que os AA pudessem ter adquirido por usucapião a referida parcela de terreno, pelo que nunca poderia ser julgado procedente o invocado direito dos AA., por falta de requisitos legais da invocada posse.
Por isso, e não obstante tudo o demais, in casu não se verificam os requisitos da posse, designadamente quanto ao animus, que permitam concluir que os AA tenham adquirido o direito de propriedade sobre a parcela de terreno em questão por usucapião…”.
Salvo o devido respeito pelo alegado, entende este Tribunal que o apelante carece de razão.
Senão vejamos.
Como é sabido, o proprietário tem ao seu dispor – processualmente falando -, quando o seu direito seja simplesmente contestado ou posto em dívida por outrem, a chamada acção de simples apreciação positiva – que se declare a respectiva existência -, visando-se, com esta acção, não defender a propriedade contra agressões de terceiros, mas antes de a certificar, tornando-a incontroversa, pelo menos em relação a esses terceiros violadores - eficácia do caso julgado -.
Na situação dos autos não estamos perante qualquer agressão do direito de propriedade dos autores – os quais mantém a fruição da fracção – razão pela qual julgamos poder concluir – como o fez já a 1.ª instância - que, ao nível do direito de propriedade, estamos perante acção de simples apreciação positiva: os autores peticionam que sejam declarados proprietários da parcela de terreno objecto do presente litígio, louvando-se no instituto da usucapião.
Como todos sabemos, a usucapião é uma forma de aquisição originária de direitos, cuja verificação depende de dois elementos: a posse - corpus/animus - e o decurso de certo período de tempo, variável conforme a natureza móvel ou imóvel da coisa.
A posse faculta ao possuidor a aquisição, designadamente por usucapião, do direito real nos termos do qual aquela posse foi exercida – artºs 1268 nº 1 e 1287 -.
Porém, a constituição por usucapião não é automática, tem de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente – art.º 303, ex-vi art.º 1292.
Verificada a posse com certas características e decorrido o prazo assinado na lei, o direito real correspondente à posse constitui-se por usucapião.
Mas, nada vincula ou força o beneficiário, logo que tenha uma situação possessória boa para usucapião, a invocá-la. Pode fazê-lo na altura que mais lhe convier. Enquanto não ocorrer essa invocação, o possuidor tem, não o direito real correspondente à posse exercida, mas o direito potestativo à aquisição desse direito por usucapião.
E uma vez adquirido o direito à aquisição por usucapião, esse direito não se perde nunca e é independente de registo - art.º 5 nº 2 a) do Código de Registo Predial.
Pode, por isso, o direito potestativo ser exercido muitos anos depois e só cede pela superveniência de causa originária de aquisição do mesmo direito por terceiro.
O titular do direito real de propriedade dispõe de uma permissão normativa plena ou total de aproveitamento das utilidades da coisa corpórea atingida por ele - art.º 1305.
Além da plenitude, o direito real de propriedade é ainda dotado de uma outra qualidade: é exclusivista em relação a coisa. O direito real de propriedade não admite, no tocante à mesma coisa, a concorrência de outro direito de conteúdo igual.
Em vista desta característica, demonstrado que uma pessoa é titular do direito real de propriedade sobre uma coisa, segue-se, como corolário lógico, que não pode ser recusado, que nenhuma outra pessoa pode ser titular desse mesmo direito.
Correspondentemente, uma posse exercida nos termos do direito real de propriedade é também, necessariamente, uma posse exclusiva, uma posse que exclui qualquer outra posse por parte de outrem.
A usucapião assenta numa relação possessória que tanto pode ser constituída “ex novo” pelo sujeito a quem aproveita como pode derivar de transmissão, a favor do sujeito, de posse anterior.
De acordo com o art.º 1251.°, a posse é concebida como o poder de facto que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real – o legislador consagrou a concepção subjectivista de posse.
O legislador – sempre sensato no âmbito dos direitos reais - por entender que a prova do elemento intelectual da posse é, por vezes, difícil, estabeleceu, no nº 2 do art.º 1252.º, uma presunção no sentido de que se presume a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do nº 2 do art.º 1257.º - este preceito já constava no § 1º do art. 481º do Cód. de Seabra.
Desta forma, vem o Supremo Tribunal de Justiça decidindo, de forma pacífica, no sentido de que o detentor da coisa, ou seja, o que tem o poder de facto, ou o “corpus” está dispensado de provar que possui com intenção de agir como titular do direito real correspondente - em Acórdão de uniformização de jurisprudência, de 14.05.96, publicado no DR, II, de 24.06.96, aplicou esta doutrina, ao extrair a seguinte conclusão: “Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”.
Como sabemos, o animus é inferível, exprime-se pelo poder de facto.
A intenção de domínio não tem de explicitar-se e muito menos por palavras. O que importa é que se infira do próprio modo de actuação ou de utilização.
A posse diz-se de boa fé, quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem - art.º 1260.º, n.º 1 .
O possuidor, quando começa a gozar a coisa, actua na convicção de que não está a prejudicar outrem, ou seja, que tinha, ele próprio, o direito, que ninguém tinha direito algum sobre a coisa.
Tratando-se no caso de aquisição de imóveis, e na ausência de justo título e de registo da posse, o prazo é de quinze anos ou de vinte anos, respectivamente, havendo boa ou má-fé do possuidor, nos termos do art.º 1296.º.
No caso vertente, a posse é não titulada, atento o vício formal de que enferma a doação, já que carecendo esta de ser celebrada por escritura pública, para poder ser válida, - vide artigos 947º do CC e 80º, n.º 1 do Código do Notariado -, foi feita verbalmente.
Como tal, presume-se de má-fé - artigo 1260º, n.º 2 -, o que nos remeteria para o prazo de 20 anos.
Porém, tal presunção pode ser ilidida com a prova de boa fé, como aconteceu no caso presente.
Pires de Lima e Antunes Varela ensinam, nas anotações ao seu Código Civil, Volume III, 2ª edição, página 20/21, que o conceito de boa fé é de natureza psicológica e não ética ou moral, consistindo na simples ignorância de se estar a lesar os direitos de outrem”, resultando essa ignorância, na generalidade dos casos, da convicção (positiva) de que se está a exercer um direito próprio, adquirido por título válido, por se desconhecerem, precisamente, os vícios da aquisição. Mas a lei não exige que assim seja, devendo considerar-se de boa fé a posse que resulta negócios não titulados, como a venda efectuada de modo informal.
Ponto, obviamente, é que exista a convicção de se não lesarem direitos alheios.
Como escreve, acertadamente, a 1.ª instância, “… os autores têm vindo a usar e fruir de forma contínua a parcela de terreno objecto destes autos desde o ano de 1992, pelo que se encontra provado, ao nível da posse, o corpus.
Em conformidade, o animus, para além de ter sido demonstrado conforme supra descrito (“na convicção de que exercem um direito seu e em nome próprio como se exercessem um direito de propriedade, pelo menos no momento em que adquiriram a faixa de terreno em causa” – o que ocorreu no ano de 1992: vide o ponto 5 da factualidade assente), presume-se – o que não foi ilidido – nos termos do art. 1252º, n.º 2 do CC.
Por isso, há que concluir que os autores têm a posse (corpus e o animus) da referida faixa de terreno.
A posse, porém, só conduz à usucapião se for pública e pacífica (art.ºs 1293.º, al. a), 1297.º e 1300º, n.º 1 do CC) – os restantes requisitos apenas influem no prazo necessário à usucapião. Isto porque nem todas as categorias da posse merecem a mesma protecção ou apresentam a estabilidade suficiente para que se lhe possa atribuir, nos mesmos termos, o efeito criador ligado à usucapião.
Na situação sub iudicio a posse pacífica – art. 1261º do CC – está provada, como resulta dos factos provados (“e para esse efeito não usam de qualquer violência”); assim como está demonstrada que a posse é pública, ou seja, é uma posse exercida de modo a poder ser conhecida pelos interessados, uma posse exercida à vista de toda a gente (art. 1262º do CC) – cfr. a matéria de facto dada como provada (“e fazem-no de forma a poder ser conhecido pelos interessados, designadamente pelo réu”).
Quanto ao decurso de tempo, da matéria de facto provada resulta que tal posse existe desde 1992.
Os pressupostos para a verificação da usucapião têm que se verificar aquando da entrada em juízo da acção.
A presente acção deu entrada em juízo a 2 de Novembro de 2011 (vide fls. 22 dos autos), tendo o réu sido citado a 7 de Novembro de 2011 (vide fls. 45 dos autos).
A citação tem como efeito cessar a boa fé do possuidor – art. 481º, al. a) do CPC.
Ora, desde o ano de 1992 até Novembro de 2011 decorreram 19 anos completos (não chegaram a completar-se 20 anos) (…)
No caso em apreço, não existe título de transmissão da propriedade, que, portanto, não está registado, nem sequer está registada a mera posse, pelo que o prazo de usucapião a aplicar à parcela de terreno é os do art. 1296º do CC.
Assim, importa definir se a posse dos autores é de boa fé ou de má fé, já que, no primeiro caso, a usucapião ocorre aos 15 anos e, no segundo caso, tal só ocorre aos 20 anos (…) O momento em que deve existir a boa fé é o da aquisição da posse como resulta do n.º 1 do art. 1260º do CC (mala fides superveniens no nocet).
O momento da aquisição da posse é o da apreensão da coisa.
Na situação dos autos esse momento para os autores remonta ao ano de 1992, data em que adquiriram – de forma não titulada (por se basear num acordo verbal) – a posse da parcela em discussão nos autos (…) Ora, na nossa apreciação, a factualidade enunciada, demonstra que efectivamente os autores actuaram na fruição da parcela de terreno em causa nos autos de boa fé.
Mostra-se assente que os autores actuaram com a convicção (positiva) de que estavam a exercer um direito próprio, sem prejudicar o verdadeiro titular que lhe o transmitiu, estando convencidos de que não existe nenhum direito de terceiro que seja lesado com a sua posse.
Apesar dos vícios de forma, no caso em apreço, os possuidores estão de boa fé, já que, embora conheçam os vícios da aquisição, estão convencidos de que não lesam, com a sua posse, direitos alheios.
A posse de má fé é aquela cujo possuidor conhece, quando a adquire, que lesa o direito de outrem.
Ora, isto claramente não aconteceu com os autores no caso dos autos.
Recordo que o que releva para esse efeito é o momento da aquisição da posse, pois, conforme já referido, mala fides superveniens no nocet – o que significa que as interpelações do Município réu de 2004 julgadas como provadas (e, porventura, outras posteriores) em nada afectam a boa fé dos autores.
Julgamos que, mesmo perante tal interpelação, e os seus termos, isso não afectou a boa fé dos possuidores, aqui autores.
Tenho presente que um princípio muito geral dos direitos reais é que as transmissões posteriores à minha aquisição não me são oponíveis.
Os autores adquiriram a posse de quem era o proprietário da parcela (pelo menos disso estavam convencidos), pelo que a transmissão posterior para o réu Município não é capaz de criar a convicção psicológica nos adquirentes/autores de que, por força disso, perdem o seu direito, antes pelo contrário, existem razões para acreditar que isso não os pode afectar.
Os autores provaram que, no momento da aquisição da posse da parcela de terreno, estavam de boa fé e que a sua posse foi sempre de boa fé.
Assim sendo, nos termos do art. 1296º do CC, a usucapião ocorre no termo de 15 anos de posse.
Portanto, no caso sub judice já decorreu tempo mais do que suficiente para que os autores adquiram por usucapião a propriedade da parcela de terreno em discussão nestes autos”.
Decidiu bem.
De facto, provando-se apenas que “No ano de 2004 o Município réu contactou o autor marido, a quem intimou a entregar-lhe a parcela de terreno que se refere em 4., com o alegado fundamento de que tal terreno era do Município e tinha sido indevidamente ocupado pelos autores”, tal não tem a virtualidade de afastar o “animus” presumido e, muito menos, de transformar a boa-fé originária em má-fé.
Configura, tão só, um acto meramente administrativo, sem qualquer influência no caminho da usucapião.
Nesta data, já decorria - desde o ano de 1992 - o processo constitutivo do direito de propriedade, através do instituto da usucapião.
Como resulta da lei, a posse diz-se de boa - fé quando, no momento da sua aquisição, o possuidor ignorava que lesava o direito de outrem - art.º 1260 n.º 1.
Como todos os caracteres em exame, a boa ou má-fé avalia-se no momento da aquisição e, como o título ou não título, é uma característica permanente da situação possessória.
O que releva decisivamente para efeitos de qualificação da posse é a ignorância do possuidor, ao adquiri-la, de que lesava direitos de terceiros, pelo que a boa ou má-fé deve ser apreciada em relação ao momento da aquisição da posse, sendo irrelevantes alterações posteriores quanto à convicção ou ao estado de espírito do possuidor.
Improcede, pois, neste particular a instância recursiva.
3. Com esta acção os AA. procuram alcançar um objectivo que lhes é vedado por lei, ou seja obterem a alteração dos referidos alvarás de loteamento, sem darem cumprimento às exigências legais, para tanto impostas pelo regime jurídico dos loteamentos, estando vedado à 1.ª instância decidir como o fez?
Começa a apelante por dizer:
“O terreno que os AA ocuparam e delimitaram excede o terreno previsto, aprovado e licenciado para o referido lote 1 de que os AA são proprietários.
Os AA ocuparam e delimitaram uma área de terreno que, quer em área, quer na sua configuração, não corresponde à que foi devidamente aprovada pela Câmara Municipal de C… no projecto de operação de loteamento que deu origem ao alvará 14/92, que, posteriormente, como já se deixou dito, foi substituído pelo alvará 3/95 (...) Dos referidos processos de loteamento verifica-se que, em nenhum deles, foi autorizada qualquer alteração das respectivas operações de loteamento, pelo que, sempre a ocupação, pelos AA da parcela de terreno cuja propriedade pretendem, através da presente acção, que lhes seja reconhecida por usucapião, é ilegal, abusiva e ofensiva do regime legal de ordenamento do território, designadamente no que a loteamentos se refere, do PDM de C…, bem como do regime jurídico dos loteamentos”.
É certo que nos termos da norma do artigo 294.º, um contrato celebrado contra disposição legal de carácter imperativo, é nulo.
No entanto, o legislador avisado não formula a redacção desta norma de uma forma absoluta, cedendo sempre que outra solução resulte da lei, nomeadamente nos casos em que a lei proibitiva resulta pouco adequada à sanção de nulidade, considerados os interesses em presença e o escopo visivelmente visado pelo legislador.
Como escreve A. Castanheira Neves - Estudo intitulado “O Actual Problema da Interpretação Jurídica”, publicado na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 118, p. 58 - “...o objecto problemático da interpretação jurídica não é a norma como objectivização cultural…, mas o caso decidendo, o concreto problema prático que convoca normativo-interpretativamente a norma com seu critério judicativo…, o que significa, evidentemente, que é o caso e não a norma o prius problemático-intencional e metódico”.
 Ao conjunto do acto se deve atender e por isso a publicidade ficará com um carácter cujo valor o juiz averiguará em cada caso”.
Por outro lado, as coisas públicas, não sendo susceptíveis de posse privada, não podem ser adquiridas por usucapião, já que o legislador, de mote próprio coloca as coisas fora do comércio jurídico, arredando a constituição de direitos reais através do instituto da usucapião.
O caso dos baldios – artigo 2.º do do Dec. Lei n.º 39/76, de 19 de Janeiro/ por sua vez, o Decreto-Lei nº 40/76, de 19 de Janeiro, consagrava uma anulabilidade, a todo o tempo, dos actos e negócios que tivessem por objecto a apropriação de terrenos baldios, anulabilidade que abrangia a própria apropriação por usucapião (art.º 1 nºs 1 e 3) – e dos bens culturais classificados ou em vias de classificação - Lei 107/2001 de 8/09 – que, através do seu artigo 34.º, torna insusceptível de aquisição, por usucapião, são afloramentos de tal princípio.
Mas, mesmo nesta última situação, tem sido entendido pelos Tribunais – por ex. O Acórdão da Relação de Guimarães de 17.12.2013 – que “… artigo 34 da Lei 107/2001 de 8/09 não impede a análise do processo de constituição da situação jurídica – aquisição, por usucapião, da servidão de passagem – invocada pelos autores. O que quer dizer que a classificação do prédio, como bem cultural de interesse público, não é facto superveniente que torne inútil a continuação da lide, para apuramento dos factos controvertidos”.
No entanto, fora destas situações em que o legislador avulso impede a “usucapibilidade” de certos bens, os Tribunais têm dado preferência à usucapião, como forma originária de aquisição, em detrimento de certas exigências de âmbito administrativo e limitações legais.
Concorrendo os requisitos da usucapião, aferidos pelas características da posse, os vícios anteriores e as vicissitudes ligadas ao acto ou negócio causal, não afectam o novo direito, que decorre apenas dessa posse, em cujo início de exercício corta todos os laços com eventuais direitos e vícios, incluindo de transmissão, anteriormente existentes.
A usucapião não só se abstrai, como inclusivamente se sobrepõe a certas vicissitudes ou irregularidades formais ou substanciais relativamente a actos de alienação ou oneração de bens ou até mesmo à prática de actos que originariamente pudessem considerar-se ilegais ou até mesmo violadores dos direitos de outrem
O criador de tal instituto entendeu que, ponderados determinados aspectos, certas situações de facto, pudessem converter-se num verdadeiro direito, como ocorre no caso da posse, desde que se prolongue durante um período de tempo significativo, o qual se sobrepõe inclusivamente aos próprios vícios que hajam inquinado a posição do possuidor face ao bem possuído, pois surge um direito ex - novo, por mera vontade do respectivo titular, na sua esfera jurídica, desde que judicialmente verificada e declarada a situação de facto que lhe subjaz e que, inclusivamente retrotrai à data do início de tal situação de facto.
Este entendimento, tem-se mantido inalterado, mesmo nos casos em que tenha ocorrido fraccionamento dominial em violação do art.º 1376º, nº1 do Código Civil e é, pacífico nos casos de fraccionamento da propriedade rústica, conforme se retira do aresto citado, mas também de inúmeros outros que se pronunciam sobre idêntica questão, ressaltando-se que o momento a atender para a qualificação de um determinado prédio como rústico é aquele em que ocorreu o fraccionamento, mesmo se o destino que lhe é dado posteriormente seja outro – neste sentido, o Acórdão do STJ de 7.4.2011, pesquisado no site www.dgsi.pt, embora tratando situação no restante diversa da dos autos -.
Não olvidamos a existência de decisões que vão em sentido contrário, ou, pelo menos, que não aplicam a força do instituto de usucapião no seu pleno – nomeadamente as indicadas pela apelante -, mas, temos para nós que a trilhada pela 1.ª instância – embora com argumentos algo diferentes dos nossas, é a mais conforme ao Direito e à Justiça.
Mais, a actividade probatória que o autor, nas acções reais, tem de desenvolver é extraordinariamente pesada, mas tem como limite uma aquisição originária.
Demonstrando-se um facto aquisitivo originário, não há que recuar mais atrás, dado que esse é o momento da constituição do direito adquirido pelo autor.
A título de exemplo, atrevemo-nos a colocar algumas das decisões dos Tribunais Superiores, que perfilham a tese da prevalência da usucapião:
“A usucapião está na base de toda a nossa ordem imobiliária, valendo por si, em nada sendo prejudicada pelas vicissitudes registais.
A aquisição por via da usucapião, porque é originária, mesmo que houvesse registo anterior ao início da respectiva posse, cederá o mesmo perante tal forma de aquisição.
Nada podendo fazer o titular inscrito no registo contra a usucapião - Acórdão do STJ de 18.5.1999, retirado do site www.dgsi.pt -.
Como ensina o Acórdão do STJ de 4.2.2014, pesquisado no site www.dgsi.pt -, “Na situação descrita, o reconhecimento judicial da mencionada usucapião deve sobrepor-se e prevalecer sobre o fraccionamento ilegal do prédio, que, porventura, tenha estado na respectiva génese, já porque em causa está um direito não transmitido, mas constituído ex novo, já porque, esgotado o decurso do tempo necessário à respectiva verificação, com o inerente alheamento da autoridade pública ou interessado a quem incumba a prevenção/repressão ou arguição da correspondente violação, deixou de fazer sentido, afrontando as concepções dominantes na comunidade, a tardia salvaguarda do subjacente interesse público, devendo a Ordem Jurídica absorver a situação ocorrente e consolidada”.
Com se decidiu no Acórdão do STJ de 06.07.76 – consultado no BMJ n.º 259º pág. 161), “...I – A operação de loteamento tem por objecto a divisão em lotes de qualquer área de um ou vários prédios, situados em zonas urbanas ou rurais, destinados imediata ou subsequentemente à construção; assim, são dois os requisitos do loteamento urbano: um fraccionamento predial e o destino desse fraccionamento (construção) (...) aliás, a usucapião é uma forma de constituição de direitos e não uma forma de transmissão dos mesmos: o usucapiente não adquire o bem por transmissão de anterior titular, o direito surge na sua esfera jurídica, “ex novo”.
Assim, sendo a usucapião uma forma de aquisição originária e não derivada de direitos, ela operará, mesmo relativamente a parcelas de um prédio, ainda que, na sua génese, tenha estado um fraccionamento ilegal.
Também esta Relação de Coimbra, no seu Acórdão de 31.05.05 – retirado do site www.dgsi.pt - decidiu que, “Sendo a usucapião uma forma de aquisição originária e não uma forma de transmissão de direitos, surgindo estes na esfera jurídica do usucapiente ex novo, ela operará, mesmo que relativamente a uma parcela de um prédio, ainda que, na sua génese, tenha estado um fraccionamento ilegal porque constitutivo de fracções com área inferior à unidade de cultura.
E isto é assim porque, perante um longo período de tempo, deixa de fazer sentido a invocação do interesse público que preside às restrições impostas à divisão, à prévia sujeição aos mecanismos ligados ao urbanismo, devendo o sistema jurídico absorver a situação e reconhecer ao usucapiente a exclusividade do seu direito de propriedade sobre a parcela que, na prática e desde há tanto tempo, nunca deixou de lhe pertencer e sobre a qual veio exercendo, de forma regular, continuada e pacífica, os poderes inerentes ao direito de propriedade”.
Sendo defendida doutrina idêntica, designadamente, nos Acórdãos de 08.06.93 – retirado da Col.Jur./STJ, Tomo 2º, pág.142 - da Relação do Porto, de 09.01.95 – Col.Jur., Tomo 1º, pág.189 -, e no Acórdão da Relação de Évora, de 26.10.00 – também publicado na Col.Jur, Tomo 4º, pág. 272.
“Mesmo que tivesse havido fraccionamento ilegal, nos termos do art. 1376, nº1, do C.C., desde que esteja invocada a usucapião e se verifiquem os respectivos pressupostos, procede a aquisição do direito de propriedade com base na usucapião” - Acórdão do STJ de 19.10.2004, publicado no site www.dgsi.pt .
Como nos ensina, o Acórdão desta Relação de 2.5.89, sumariado no BMJ nº 387, pág. 671, “A usucapião, como forma originária de aquisição de direitos reais, rompe com todas as limitações legais que tenham a coisa possuída por objecto (por exemplo, a exigência de forma para a partilha de uma herança e a proibição de divisão de um prédio”.
Incidindo a posse sobre bens corpóreos, a invocação da usucapião apenas é vedada perante obstáculos legais expressos, como sucede nos casos assinalados no art.º 1293.º - direito de uso e habitação e servidões prediais não aparentes -, naqueles que resultem de normas jurídicas que impedem a apropriação individual de determinados bens do domínio público ou de baldios - Acórdão do STJ de 20.1.99, na CJ/STJ, Tomo I, pág. 53 - ou das que obstam à colocação de certos bens no comércio jurídico.
Mas não existe obstáculo a que a usucapião sirva para legitimar uma operação de divisão material de um prédio, ainda que, na sua origem, tenham sido desrespeitados certos condicionalismos impostos.
Na verdade, não valem contra isto os obstáculos legais para afastar a figura da usucapião, desde que, como sucede no caso em apreço, uma determinada situação de facto se tenha constituído em posse e esta se mantenha durante um período prolongado de tempo, pois, decorre das regras que lhe são aplicáveis, que o direito correspondente à posse exercida é um direito “ex novo” e, por isso, imune aos vícios que anteriormente lhe pudessem ser apontados – neste sentido, por exemplo, os Acórdãos desta Relação, de 28.3.2000,publicado na CJ, Tomo II, pág. 31 e segs. (no qual são citados diversas outras decisões desse Tribunal, e em cujo sumário se escreve que “Havendo loteamento ilegal, mas estando na mesma acção invocada a usucapião e verificando-se os respectivos pressupostos, procede a acção com esse fundamento, não obstante a ilegalidade do loteamento”), da Relação de Évora, de 26.10.2000, na CJ, Tomo IV, pág. 272 e seguintes (cujo sumário é “São usucapíveis as parcelas com área inferior à unidade de cultura, resultantes de divisão, efectuada por partilha verbal, de um prédio rústico apto para fins agrícolas).
Assim, sempre com o devido respeito pela tese apresentada pelo apelante, nenhum obstáculo legal existia a que aos apelados fosse reconhecido o direito de propriedade sobre a parcela de terreno em causa, por a terem adquirido por usucapião.
Assim, mantemos o decidido pela 1.ª instância.
Resta o sumário:
i. O legislador – sempre sensato no âmbito dos direitos reais - por entender que a prova do elemento intelectual da posse é, por vezes, difícil, estabeleceu, no nº 2 do art.º 1252.º, uma presunção no sentido de que se presume a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do nº 2 do art.º 1257.º - este preceito já constava no § 1º do art. 481º do Cód. de Seabra.
ii. Desta forma, vem o Supremo Tribunal de Justiça decidindo, de forma pacífica, no sentido de que o detentor da coisa, ou seja, o que tem o poder de facto, ou o “corpus” está dispensado de provar que possui com intenção de agir como titular do direito real correspondente - em Acórdão de uniformização de jurisprudência, de 14.05.96, publicado no DR, II, de 24.06.96, aplicou esta doutrina, ao extrair a seguinte conclusão: “Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”.
iii. O animus exprime-se pelo poder de facto, logo, a intenção de domínio não tem de explicitar-se e muito menos por palavras.
O que importa é que se infira do próprio modo de actuação ou de utilização.
iv. É certo que nos termos da norma do artigo 294.ºdo Código Civil, um contrato celebrado contra disposição legal de carácter imperativo, é nulo.
v. No entanto, o legislador avisado não formula a redacção desta norma de uma forma absoluta, cedendo sempre que outra solução resulte da lei, nomeadamente nos casos em que a lei proibitiva resulta pouco adequada à sanção de nulidade, considerados os interesses em presença e o escopo visivelmente visado pelo legislador.
vi. Fora das situações em que o legislador avulso impede a “usucapibilidade” de certos bens – por ex. o caso dos baldios – artigo 2.º do do Dec. Lei n.º 39/76, de 19 de Janeiro/ por sua vez, o Decreto-Lei nº 40/76, de 19 de Janeiro - e dos bens culturais classificados ou em vias de classificação - Lei 107/2001 de 8/09 – que, através do seu artigo 34.º, torna insusceptível de aquisição, por usucapião, são afloramentos de tal princípio -, os Tribunais têm dado preferência à usucapião, como forma originária de aquisição, em detrimento de certas exigências de âmbito administrativo e limitações legais.
vii. Concorrendo os requisitos da usucapião, aferidos pelas características da posse, os vícios anteriores e as vicissitudes ligadas ao acto ou negócio causal, não afectam o novo direito, que decorre apenas dessa posse, em cujo início de exercício corta todos os laços com eventuais direitos e vícios, incluindo de transmissão, anteriormente existentes.
viii. A usucapião não só se abstrai, como inclusivamente se sobrepõe a certas vicissitudes ou irregularidades formais ou substanciais relativamente a actos de alienação ou oneração de bens ou até mesmo à prática de actos que originariamente pudessem considerar-se ilegais ou até mesmo violadores dos direitos de outrem
ix. O criador de tal instituto entendeu que, ponderados determinados aspectos, certas situações de facto, pudessem converter-se num verdadeiro direito, como ocorre no caso da posse, desde que se prolongue durante um período de tempo significativo, o qual se sobrepõe inclusivamente aos próprios vícios que hajam inquinado a posição do possuidor face ao bem possuído, pois surge um direito ex - novo, por mera vontade do respectivo titular, na sua esfera jurídica, desde que judicialmente verificada e declarada a situação de facto que lhe subjaz e que, inclusivamente retrotrai à data do início de tal situação de facto.

3.Decisão
Pelas razões expostas, na improcedência do recurso, mantemos a sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Guarda.
Custas pelo apelante.

Coimbra, 25 de Fevereiro de 2014

(José Avelino Gonçalves - Relator -)
(Regina Rosa)
(Artur Dias)