Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
214/11.8TBTBU.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUIS CRAVO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DÍVIDA
HOSPITAL
ÓNUS DA PROVA
CULPA
SEGURADORA
Data do Acordão: 12/03/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TÁBUA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 5º DO DL Nº 218/99 DE 15 DE JUNHO E ARTIGOS 344º E ART. 506º, Nº1 DO C.CIVIL
Sumário: I – Nas acções de cobrança de dívidas hospitalares, nos termos do art. art. 5º do DL nº 218/99 de 15 de Junho, compete à seguradora demandada alegar e provar que, face às circunstâncias do acidente, não pode ser responsabilizada pelas consequências do mesmo.
II – Isto porque nos termos desse normativo, há uma inversão do ónus da prova, razão pela qual à parte contrária nessa acção cabe, nos termos do art. 344º do C.Civil, a prova de que não foi culpado no acidente que motivou as lesões determinantes dos serviços prestados pela entidade hospitalar.

III – No caso de uma situação de colisão de veículos sem que se apure a culpa de qualquer dos dois condutores, e sendo certo que não há aí qualquer presunção de culpa a onerar o condutor do veículo segurado, importa então solucionar a questão no quadro do estatuído pelo art. 506º, nº1 do C.Civil.

IV – As responsabilidades pelo risco em caso de colisão de veículos são repartidas na proporção em que cada um deles tiver contribuído efectivamente para os danos (1ª parte deste último normativo).

V – Mas se os danos forem causados somente por um dos veículos, sem culpa de nenhum dos condutores, somente a pessoa por eles responsável é obrigada a indemnizar (2ª parte do mesmo).

Decisão Texto Integral:             Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

                                                                       *
            1 – RELATÓRIO
            HOSPITAIS A..., E.P.E.”, pessoa colectiva nº (...), com sede na (...), veio intentar a presente acção
declarativa de condenação, com processo sumário contra “COMPANHIA DE SEGUROS B..., S.A.”, com sede na Av. (...) em Lisboa, pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de €8,375,09 a título de serviços hospitalares que foram prestados a C..., acrescidos de juros vencidos, e ainda nos juros vincendos até integral pagamento. Refere que os cuidados de saúde prestados derivaram de uma colisão onde foram interveniente o veículo de matrícula (...) MM e o velocípede tripulado por aquele C..., o qual foi colhido na faixa de rodagem em que seguia.
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            Citada a Ré, veio a mesmo contestar, impugnando a sua responsabilidade alcandorada na alegação de que o velocípede circulava fora da sua mão de trânsito, indo embater no referido veículo.
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            O julgamento decorreu com observância do legal formalismo, após o que o tiveram lugar as respostas à matéria de facto, das quais não houve reclamações.
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Na sequência imediata foi prolatada sentença dando procedência parcial à acção, na linha de entendimento de que na presente acção cabia à Autora apenas alegar o facto gerador da responsabilidade, pois que competia à Ré demonstrar que a responsabilidade não lhe pertencia (assim operando a inversão do ónus da prova), sucedendo que a Ré nenhuma prova havia feito de que não lhe podia ser assacada a responsabilidade, termos em que se finalizou através do seguinte concreto “Dispositivo”:
«Em face do exposto, e nos termos das disposições legais citadas, o Tribunal julga procedente por parcialmente provada, e, em consequência, condena a Ré Companhia de Seguros B... SA no pagamento da quantia de € 8.280,09 acrescida de juros desde a citação até integral pagamento.
Custas a cargo da Ré e a cargo da Autora de acordo com o respectivo decaimento, o qual depende de simples cálculo aritmético.
Registe e Notifique.»
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            Inconformada com essa sentença, apresentou a Ré recurso de apelação contra a mesma, cujas alegações finalizou com a apresentação das seguintes conclusões:
            «1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença do Tribunal de 1ª instância e é o mesmo apresentado na firme convicção de que a condenação da recorrente, atenta a prova produzida nos autos, é manifestamente desajustada.
Salvo o devido respeito, que é muito, a recorrente entende que o Tribunal a quo fez uma incorrecta aplicação do Direito aos factos.
2. O recurso ora interposto é apresentado na firme convicção de que a matéria de facto apurada nestes autos impunha ao Tribunal a quo a adopção de uma decisão diferente da seguida, designadamente, a absolvição da Ré, ora Recorrente.
3. De prova produzida, designadamente pelo depoimento das testemunhas D... e F..., deveria ter ficado provado que:
i. No dia 19.07.2008, cerca das 16h30, na Rua da Baleira, Pousadouros, Tábua,  o veículo ligeiro de matrícula (...)MM circulava encostado à berma direita da hemi-faixa de rodagem atento o seu sentido de marcha,
ii. E seguia a uma velocidade não superior a 50 km/h;
iii. Ao descrever a curva onde ocorreu o embate, o velocípede conduzido por C... invadiu a hemi-faixa de rodagem contrária ao seu sentido de circulação, indo embater no veículo de matrícula (...)MM.
4. Mais, de acordo com a testemunha D..., o pai do condutor do velocípede, aqui assistido, assumiu a culpa na produção do acidente dos autos, pagando-lhe os danos sofridos pelo MM.
Sem prescindir,
5. O tribunal a quo não poderia ter dado como provado que a assistência hospitalar prestada a C... importou à Autora o custo global de €8.375,09.
6. O tribunal recorrido deveria ter dado como provado que foi já liquidado o valor de €3.072,03 (três mil e setenta e dois euros e três cêntimos) – factura n.º 2009/4308 (Doc. 2 junto com a P.I.) –, conforme consta da factura n.º 2010/6950, de Setembro de 2010 (Doc. 4 junto com a P.I.), e não €95,00 (conforme resulta provado dos autos).
7. Assim, deveria constar da matéria provada em I), que o montante já liquidado
é de €3.072,03.
Do direito
8. A Recorrente fez prova cabal de tudo quanto alegou acerca da responsabilidade do condutor do velocípede na produção do sinistro dos autos.
9. A sentença ora recorrida violou o disposto no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 218/99.
Sem prescindir,
E por mera cautela de patrocínio,
10. O tribunal a quo não se convenceu sobre a culpa na produção do sinistro ou mesmo se existe culpa de algum dos condutores dos veículos.
11. Nos termos do artigo 506.º, n.º 2 do Código Civil, “em caso de dúvida, considera-se igual a medida da contribuição de cada um dos veículos para os danos, bem como a contribuição da culpa de cada um dos condutores”.
12. O tribunal recorrido, ao invés de aplicar este regime, fez apelo à inversão do ónus da prova resultante do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 218/99, como se esta se  tratasse de uma presunção de culpa, fazendo recair sobre o condutor do MM a responsabilidade pelo sinistro.
13. Também, no âmbito do Decreto-Lei n.º 218/99, quando permaneça a dúvida,
a responsabilidade pelo sinistro é divida por cada um dos veículos envolvidos.
14. A sentença ora em crise violou o disposto no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 218/99 e no artigo 506.º do Código Civil.
15. Assim, atento o exposto, deverá a douta decisão ser revoga e substituída por outra que absolva a recorrente do pedido.
Nestes termos, e nos que Vossas Excelências mui doutamente suprirão, julgando procedente o presente recurso e julgando de conformidade com as precedentes CONCLUSÕES, será feita uma verdadeira e sã JUSTIÇA!»
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Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.
                                                           *
            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
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            2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do N.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo N.C.P.Civil), face ao que é possível detectar o seguinte:
            - incorrecta valoração da prova produzida, que levou ao incorrecto julgamento factual;
            - erro de decisão quanto ao montante da condenação, pois foi desconsiderado o pagamento do valor de € 3.072,03, que resultava da factura n.º 2009/4308 (Doc. 2 junto com a P.I.), conforme consta da factura n.º 2010/6950, de Setembro de 2010 (Doc. 4 junto com a P.I.);
 - erro de decisão porquanto permanecendo a dúvida sobre a culpa na produção do sinistro ou mesmo se existia culpa de algum dos condutores dos veículos, a responsabilidade pelo sinistro devia ter sido dividida por cada um dos veículos envolvidos nos termos do art. 506º do C.Civil.
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            3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
3.1 – Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado/fixado pelo tribunal a quo, obviamente sem olvidar que tal enunciação terá um carácter “provisório”, na medida em que o recurso tem em vista a alteração parcial dessa factualidade. 
            Tendo presente esta circunstância, são os seguintes os factos que se consideraram provados na 1ª instância:
I – No dia 19.07.2008, cerca das 16h30, na Rua da Baleira, Pousadouros, Tábua, ocorreu um embate entre o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula (...)MM, conduzido por D... e um velocípede, conduzido por C.... [al.A) dos Factos Assentes];
II – Ambos os veículos circulavam na Rua da Baleira, Pousadouros, Tábua, seguindo o veículo ligeiro de matrícula (...)MM no sentido Arganil – Pousadouros e o velocípede no sentido contrário. [al.B) dos Factos Assentes];
III – O embate ocorreu numa curva à direita no sentido Arganil – Pousadouros. [al.C) dos Factos Assentes];
IV – Na data referida em A, encontrava-se vigente um contrato de seguro, celebrado entre a ré e D..., titulado pela apólice 07- 0900320520, através do qual a primeira declarou assumir a responsabilidade pelos danos decorrentes da circulação do veículo de matrícula (...)MM. [al.D) dos Factos Assentes];
V – Por causa do embate referido em A o condutor do velocípede C... sofreu diversas lesões e foi assistido na urgência dos A..., onde deu entrada no dia 19.07.2008. [quesito 1º da Base Instrutória];
VI – Na sequência das referidas lesões, C... esteve internado nos A... entre 19.07.2008 e 29.07.2008 e entre 11.03.2009 e 16.03.2008. [quesito 2º da Base Instrutória];
VII – E foi submetido a uma intervenção cirúrgica no dia 09.12.2008. [quesito 3º da Base Instrutória];
VIII – Tendo ainda sido acompanhado em consultas externas nos dias 21.08.2008, 09.10.2008, 20.11.2008, 07.01.2009, 25.02.2009, 25.03.2009, 22.04.2009, 27.05.2009, 29.07.2009, 18.11.2009 e 10.03.2010. [quesito 4º da Base Instrutória];
IX – A assistência hospitalar prestada a C... importou à autora A..., E.P.E. o custo global de € 8 375,09, sendo que o montante de € 95,00 já se encontra liquidado. [resposta ao quesito 5º da Base Instrutória].
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3.2 – O Réu/recorrente sustenta ter ocorrido incorrecta valoração da prova produzida, que levou ao incorrecto julgamento factual
E embora não identifique em concreto os quesitos que entende terem sido incorrectamente julgados, pelo cotejo das suas alegações recursórias e factos pelos quais pugna no sentido de serem dados como provados, com o teor da Base Instrutória oportunamente elaborada aquando do despacho de condensação, é possível constatar que o mesmo pretende que se passem a considerar integralmente provados os quesitos 6º, 7º e 9º dessa Base Instrutória, aos quais foi efectivamente dada resposta integralmente negativa após a instrução e discussão da causa.
Sendo certo que os mesmos tinham o seguinte teor:
«6.º
Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em A, o veículo ligeiro de matrícula (...)MM circulava encostado à berma direita da hemi-faixa de rodagem atento o seu sentido de marcha?
7.º
E seguia a uma velocidade não superior a 50 km/h?
         (…)
9.º
E ao descrever a curva onde ocorreu o embate, aquele velocípede invadiu a hemifaixa de rodagem contrária ao seu sentido de circulação, indo embater no veículo ligeiro de matrícula (...)MM?»

Na “Fundamentação” das respostas dadas aos quesitos (cf. despacho de 72-77), a Exma. Juíza de 1ª instância cuidou de, por forma extensiva e concretizada, fazer uma análise crítica e conjugada de toda a prova, explicitando motivada e racionalmente a convicção a que chegara, sempre no confronto do que fora dito pelas várias testemunhas (cuja razão de ciência foi oportunamente apresentada!) e teor literal dos documentos juntos aos autos, sendo nesta parte e com relevo para estes quesitos, nestes concretos termos:
«No que concerne às respostas negativas aos quesitos 6º a 10º - quanto às circunstâncias do acidente, características da via e demais elementos àquele atinentes, destacam-se os documentos de fls. 7 a 10 – Auto de participação de Acidente de viação -, conjugado com o depoimento das testemunhas E... , F... e D.... .
Desde logo, as referidas testemunhas encontravam-se no local aquando do embate, sendo que a testemunha D... era o condutor do veículo com a matrícula (...)MM, e as duas primeiras testemunhas, amigos do sinistrado C..., seguiam, também, naquele local de bicicleta.
D... relatou a percepção que teve dos factos, explicando que seguia no sentido Arganil – Pousadouros e que, de repente, quando se preparava para descrever uma curva, viu três miúdos, a circular de bicicleta a par, tendo guinado o seu veículo para a direita, no entanto, não conseguiu evitar apanhar C.... Mais referiu que seguia a uma velocidade de cerca de 50 km/hora.
Por sua vez, as testemunhas E... e F...esclareceram acerca das circunstâncias de tempo e lugar em que ocorreu o embate, o qual não viram, uma vez que seguiam, os dois numa bicicleta, mais à frente da bicicleta tripulada por C....
Antes de mais, cumpre referir que a versão do embate das testemunhas supra referidas não se afigura credível com as regras do normal acontecer. Vejamos:
Declararam tais testemunhas que seguiam todos pela berma do lado direito, no sentido de marcha Pousadoros – Arganil, sendo que as referidas testemunhas iam mais à frente e que o veículo MM, que circulava em sentido contrário, passou por eles com velocidade pouco adequada ao local (porque se trata de uma estrada estreita, onde o cruzamento entre veículo tem que ser realizado com precaução – facto que o tribunal pode constatar no local), e que o condutor, ao deparar-se com a bicicleta das testemunhas, se assustou. Ouviram uma travagem e quando olharam já viram o seu amigo prostrado no chão junto à berma por onde seguiam, tendo o MM ficando imobilizado no meio da faixa de rodagem, na diagonal.
Desde logo, acaso o condutor do MM seguisse dentro da sua mão de trânsito como quis fazer querer o respectivo condutor, este, após o embate com a bicicleta do C... não teria ficado na posição constante do croquis elaborado pela GNR, uma vez que o mesmo entrou na curva a direito, não chegando a descrever a mesma, ficando
imobilizado no meio da via, deixando através de si um rasto de travagem de cerca de 11 metros (incompatível com a velocidade alegada de 50 k/m). Acresce que o C..., na sequência do embate com o MM, foi projectado e ficou prostrado junto à berma direita atento o sentido de marcha que seguia.
Por sua vez, não se afigura possível que o C... seguisse completamente junto da berma da estrada, na sua mão de trânsito, pois que, acaso assim fosse, o MM jamais ficaria imobilizado no meio da via.
De facto, conjugado o teor de todas as declarações prestadas pelas referidas testemunhas, pelo croquis junto aos autos, bem como pela percepção que o tribunal teve do local aquando da realização da inspecção ao local (de onde resulta a resposta negativa do quesito n.º10º), o tribunal não pode considerar como provado que o MM seguia junto à berma da hemi faixa de rodagem atento o seu sentido de marcha, nem que o referido C... tenha invadido tal hemi-faixa.
De facto, o condutor do MM, atentas as referidas declarações, ao iniciar a descrição da curva à direita (a qual não tem visibilidade) depara-se com a presença da bicicleta que antecedia a bicicleta tripulada por C..., tendo ficado surpreendido – facto que levou a accionar o sistema de travagem (sendo que as testemunha E... referiu que quando o MM passou por si seguia a uma velocidade excessiva para o local e que quando o avistou começou a travar, tendo o condutor referido ter ficado surpreendido a presença das bicicletas). Ora, acaso o MM circula-se junto à berma direita da sua mão de trânsito e a uma velocidade de 50 km/hora não teria sido surpreendido com a presença de tal bicicleta.
Todas as provas foram ponderadas e criticamente apreciadas.»

Neste quadro, queremos desde já vincar que a opção pela reprodução que vimos de fazer deste segmento da “Fundamentação” cumpre uma função muito particular e decisiva.
É que perfilhamos o entendimento de que quando há impugnação da matéria de facto e ao tribunal de recurso é impetrada uma decisão à luz do disposto no art. 712º do C.P.Civil, a “Fundamentação” do tribunal a quo vai ser o objecto precípuo da atenção do tribunal de recurso, pois que o labor deste se orienta para a detecção de qualquer “erro de julgamento” naquela decisão da matéria de facto, em termos da apreciação e valoração da prova produzida (não podendo obviamente limitar-se à análise da coerência e racionalidade da fundamentação da decisão de facto operada pelo tribunal a quo).
Sendo certo que, “não bastará uma qualquer divergência na apreciação e valoração da prova para determinar a procedência da impugnação, sendo necessário constatar um erro de julgamento”.[1]
E assim o é em atenção ao entendimento de que a efectiva garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto (consignado no art. 712º do C.P.Civil), impõe que a Relação, depois de reapreciar as provas apresentadas pelas partes, afirme a sua própria convicção acerca da matéria de facto questionada no recurso, não podendo limitar-se a verificar a consistência lógica e a razoabilidade da que foi expressa pelo tribunal recorrido.
É este, afinal, o verdadeiro sentido e alcance que deve ser dado ao princípio da liberdade de julgamento fixado no art.º 655º do C.P.Civil.
Que dizer no caso vertente?
Revertendo às alegações recursórias da Ré/recorrente, temos desde logo que esta invocou fundamentalmente duas das testemunhas inquiridas na audiência ( D... e F...), cujos depoimentos foram valorados e aquilatados pela Exma. Juíza do julgamento, resultando da transcrição feita dos excertos dos respectivos depoimentos destas no confronto com a gravação digital áudio que acompanhou o recurso, a fidedignidade de uma tal reprodução.
Ora se assim é, e até pela correspondente apreciação feita na “Fundamentação”, verdadeiramente não se compreende como e porque é que o depoimento dessas testemunhas e a percepção que resultou da inspecção ao local “permitiam concluir pela existência efectiva de responsabilidade do condutor do velocípede.
É que se bem compulsarmos o depoimento das duas ditas testemunhas e mais concretamente os excertos que foram transcritos, não se consegue vislumbrar a exuberância nem sequer a evidência da culpabilidade que a Ré/recorrente sustenta.
Senão vejamos.
A dita testemunha D... era o condutor do veículo ligeiro MM interveniente no acidente e segurado da ora Ré; por tais razões e embora não fosse parte nesta acção, não deixou de evidenciar o mesmo os habituais óbices, em termos de isenção e objectividade de depoimento, que são feitos a quem se encontra numa posição equiparada, a saber, um comprometimento com a causa da Seguradora e uma recorrente desculpabilização da condução feita pelo mesmo…
Por isso que afirmar – como faz a Ré/recorrente nas suas alegações – que esta testemunha prestou um depoimento “seguro e descomprometido com os factos em causa” é conclusão que, com o devido respeito, não conseguimos adquirir.
Por outro lado, tendo em conta que se tratava de uma via “estreita”, com um total de 3,80 metros de largura (conforme consignado na acta de audiência após a inspecção feita ao local – cf. fls. 71), e que este condutor do veículo reconhece que ficou surpreendido logo com a circulação do 1º velocípede em sentido contrário ao seu – e que face a isso encostou o mais possível à sua berma direita e travou e veículo – o que nos parece inteiramente legítimo e igualmente plausível alvitrar é que o mesmo não vinha nos momentos que antecederam o acidente a circular bem dentro da sua hemi-faixa de rodagem…, ou então vinha com velocidade desadequada para aquele local (curva fechada).
Pois que se o mesmo diz que “não vinha com muita velocidade” e “abrandei a velocidade” ao entrar na curva, há que saber interpretar tais declarações à luz das regras da normalidade das situações e se efectivamente o mesmo tinha arrancado dum cruzamento pouco antes, tal não impede que tendo passado a circular numa via que se lhe apresentou de início desimpedida, tivesse imprimido velocidade ao seu veículo e com ele seguisse de modo superior a 50 Km/hora quando se aproximou da curva...
Aliás, temos um seu rasto de travagem de 11 metros assinalada no solo, seguindo uma trajectória longitudinal sobre a curva, o que se é conclusivo de alguma coisa é sobre a velocidade do veículo!
Já a testemunha F... – que circulava no dia e local numa outra bicicleta, com precedência sobre a do sinistrado C...– foi o próprio a reconhecer que não tinha “visto” o embate, pelo que, intentar inferir das afirmações deste sobre a posição onde o corpo do C...ficou prostrado no solo após o embate, para concluir sobre a posição de circulação do mesmo antes do embate e local deste, parece-nos por demais temerário.
Note-se que é inquestionável ter sido o dito sinistrado C...projectado por força desse embate, pelo que, desconhecendo-se, em concreto, quer as posições relativas de cada um dos veículos na ocorrência, quer a velocidade a que cada um deles então seguia, sem que vestígios objectivos tivessem ficado no local, parece-nos remeter irremediavelmente para a inconcludência.
O que idem se diga sobre a “postura” do pai do sinistrado C..., em ter alegadamente negociado indemnizações com a dita testemunha D..., facto que obviamente não tem virtualidade para configurar uma “confissão” sobre a culpabilidade do filho...
Assim, o que temos é que após a concatenação dos meios de prova produzidos, ao que se chega – o que igualmente sucedeu com a Exma. Juíza de 1ª instância – é a uma insuperável incerteza sobre a dinâmica do acidente.
Não sendo despiciendo sublinhar que no sentido da versão do acidente sustentada pela Ré/recorrente, e com conhecimento directo e pessoal sobre o mesmo, apenas e unicamente se apresentou a dita testemunha D..., pelo que, no contexto do supra exposto, clamar pela credibilização acrítica do por ele afirmado na audiência, parece-nos por demais desajustado.     
Ora se assim é, temos que, analisada criticamente a prova pessoal indicada pela Ré/recorrente, a restante prova pessoal produzida em audiência (com conhecimento mais ou menos directo dos factos) e a prova documental junta aos autos, constata-se que não houve qualquer erro de apreciação e valoração da prova nas respostas negativas dadas aos quesitos 6º, 7º e 9º da Base Instrutória, pelo que se devem manter as respostas impugnadas pela Ré/recorrente.
                                                                       *
4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
4.1 – questão do erro de decisão quanto ao montante da condenação, pois foi desconsiderado o pagamento do valor de € 3.072,03, que resultava da factura n.º 2009/4308 (Doc.2 junto com a P.I.), conforme consta da factura n.º 2010/6950, de Setembro de 2010 (Doc.4 junto com a P.I.):
Neste particular, diremos que a anotação literal que consta da dita factura 2010/6950, datada de 17.09.2010, é a seguinte:
INT.19/07/08 a 29/07/08, N/FACTURA 2009/4308, JÁ LIQUIDADA
Que dizer então?
O que a Ré/recorrente pretende afinal é que se dê acolhimento positivo e incontestado a esse pequeno excerto/segmento escrito de uma factura.
Por na interpretação da mesma de tal resultar o invocado pagamento!
Acontece que nem a própria indica que tenha existido qualquer depoimento a confirmar esse pretenso pagamento, ou que o mesmo apareça certificado ou comprovado por qualquer outro e diverso documento...
Quando é certo que, em nosso entender, esse referenciado pequeno excerto/segmento escrito é de equívoca interpretação, desconhecendo-se verdadeiramente a razão de o mesmo figurar aposto naquela factura.
Note-se que o significado da expressão “LIQUIDAÇÃO”, tanto pode ser o de “apuramento de contas”, como o de “pagamento de uma dívida”…[2]
Tanto mais que por carta datada de 21.03.2011, o A. veio a reclamar da Ré o pagamento da quantia total de € 8.375,09, “pela assistência prestada a C...” que afirmava encontrar-se “em débito” (cf. Doc.5 junto com a P.I. - fls. 14).
Tudo razões para não vislumbrar que se possa ou deva alterar o sentido da decisão – ser devido o pagamento do montante de € 8.280,09, alcandorado que estava no facto provado sob IX, isto é, que do montante global dos serviços prestados, (apenas) se encontrava pago o parcial de € 95,00.    
Improcede assim, sem necessidade de maiores considerações, este argumento recursivo.
                                                           *
4.2– Cumpre agora entrar na apreciação da questão igualmente supra enunciada, esta mais directamente reportada ao mérito da sentença, na vertente da fundamentação de direito da mesma, a saber, erro de decisão porquanto permanecendo a dúvida sobre a culpa na produção do sinistro ou mesmo se existia culpa de algum dos condutores dos veículos, a responsabilidade pelo sinistro devia ter sido dividida por cada um dos veículos envolvidos nos termos do art. 506º do C.Civil:
Se bem captamos o sentido do alegado pela Ré/recorrente, esta sua questão encontra-se colocada a título subsidiário, isto é, a mesma ficaria prejudicada e seria mesmo de nulo interesse e sentido, caso tivesse sido dado acolhimento ao pedido de modificação às respostas dadas aos quesitos 6º, 7º e 9º, por via da impugnação da matéria de facto apresentada como 1º fundamento do recurso.
            Acontece que tal não ocorreu, como flui do que antecede.
            Assim sendo, cumpre efectivamente apreciar e decidir este fundamento recursivo.
            E vamos fazê-lo, começando por sublinhar o seguinte:
            Para um caso, como o dos autos, em que a dívida reclamada excede o valor máximo previsto no art. 9º, nº1 do DL nº 218/99 de 15 de Junho (este apenas aplicável a dívidas cujo valor não exceda 1000 contos/€ 4 987,98, por acidente e lesado) avulta a norma contida no art. 5º do mesmo normativo, a qual, sob a epígrafe “alegação e prova” se estatui o seguinte:
Nas acções para cobrança das dívidas de que trata o presente diploma incumbe ao credor a alegação do facto gerador da responsabilidade pelos encargos e a prova da prestação de cuidados de saúde, devendo ainda, se for caso disso, indicar o número da apólice de seguro”.
Face a esta norma, a jurisprudência tem, maioritariamente, perfilhado a interpretação de que a mesma consagra uma inversão do ónus da prova, a saber, passou a caber ao demandado demonstrar os factos que o isentem de responsabilidade, nomeadamente ao nível da culpa.
Para tanto, aventa-se que o legislador, sabedor das dificuldades criadas pelo regime previsto pelo anterior DL nº 194/92 de 8 de Setembro[3], passou a distinguir, conforme resulta do texto do art. 5º do novo diploma, entre o que o credor tem de alegar (o facto gerador de responsabilidade) e o que tem de provar (a prestação de cuidados de saúde).
A expressão “facto gerador da responsabilidade” tem um sentido mais restrito que a de facto jurídico constitutivo do direito, este identificado com a causa de pedir (art. 498º, nº 4 do C.P.Civil), significando que, no caso, como o dos autos, de um acidente de viação, o demandante terá tão só que alegar os factos necessários a identificar o acidente, nomeadamente quanto ao local, data, intervenientes, conexão entre o mesmo e as lesões que originaram a prestação de cuidados de saúde, para além da prova da prestação desses cuidados.
Sobre o demandado, nomeadamente a Seguradora, recairá então o ónus de, a fim de evitar a sua responsabilização, concretizar os elementos de factos narrativos da dinâmica do acidente, a fim de eventualmente imputar a outrem, que não ao seu segurado, a culpa pela produção do mesmo.[4]
Revertendo mais uma vez ao caso dos autos, uma vez que, nos termos do disposto no art. 503º nº 1 do C.Civil, o proprietário do veículo seria, enquanto presumido detentor do mesmo, desde logo responsável pelos danos provenientes do risco da circulação da viatura, e que a eventual culpa do condutor do veículo MM também seria, face ao disposto no art.º 15º, nº 1 do DL nº 291/2007, de 21 de Agosto, fonte de responsabilidade da Seguradora, a esta restaria, para escapar à obrigação de pagar a despesa de saúde reclamada, demonstrar que o acidente é exclusivamente imputável ao lesado ou a terceiro (arts. 505º e 570º do C. Civil).
Certamente tendo presente estes pressupostos, a aqui Ré seguiu esse caminho, assacando a responsabilidade pelo acidente à conduta culposa do lesado C..., o qual teria invadido a faixa de rodagem do seu segurado, aparecendo inopinadamente à frente do veículo MM, numa curva fechada.
Acontece que realizada a audiência de julgamento, no particular da dinâmica do acidente, pouco mais resultou apurado, para além da circulação de ambos os veículos intervenientes – bicicleta tripulada pelo lesado C...e veículo automóvel MM conduzido pelo segurado D... – no dia e local em referência, do que um embate entre ambos na aí existente curva à direita no sentido Arganil – Pousadouros.
Designadamente não resultou provado que o veículo MM circulava encostado à berma direita da hemi-faixa de rodagem atento o seu sentido de marcha, que seguisse a uma velocidade não superior a 50 km/h e que foi o velocípede tripulado pelo C...ao descrever a curva onde ocorreu o embate a invadir a hemifaixa de rodagem contrária ao seu sentido de circulação, indo embater no veículo MM (cf. ditas respostas negativas aos quesitos 6º, 7º e 9º da Base Instrutória).
“Quid iuris”?
            Neste conspecto, resulta em nosso entender uma situação de colisão de veículos sem que se apure a culpa de qualquer dos dois condutores.
            Pois que, não havendo aqui efectivamente qualquer presunção de culpa a onerar o condutor do veículo ligeiro MM, muito menos está provada a culpa efectiva deste, ou do tripulante da bicicleta.
            Por outro lado, a questão não se pode resolver singelamente no quadro do previsto pelo art. 503º, nº1 do C.Civil, atribuindo a responsabilidade à Seguradora do veículo MM, a saber, pela responsabilidade objectiva aí consagrada, decorrente dos riscos da circulação desse veículo MM, pois que tal argumento também é transponível quanto ao velocípede/bicicleta do lesado C..., que também é um “veículo de circulação terrestre”.
            Importa então solucionar a questão no quadro do estatuído pelo art. 506º, nº1 do C.Civil, como bem foi sustentado nas alegações recursórias pela Ré/recorrente.
            De facto, não tendo sido apuradas culpas de ambos os condutores, causais no acidente, há que ter em conta a distribuição das responsabilidades pelo risco na produção dos danos, nos termos do dito art. 506º, nº1 do C.Civil.
Temos presente que não se trata nesta disposição legal da distribuição dos riscos dos veículos (e suas características), em termos estatísticos, na ocorrência dos acidentes, mas sim da “proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos”, isto é, trata-se de uma distribuição em concreto, conforme decorre da norma em referência.
Temos então que a lei manda atender à proporção do risco concreto de cada veículo para os danos.
Ora, os danos resultam de uma maior segurança do condutor do veículo automóvel – protegido pela carroçaria, pelo tamanho e em geral pela estrutura do automóvel – na colisão com o velocípede/bicicleta.
Sendo certo que desta colisão resulta, consabidamente, um risco maior de danos do que o que resultaria da colisão de dois automóveis ou de duas motorizadas, ou ainda de dois velocípedes/bicicletas.
 Nesta ponderação e tendo ainda em conta as conhecidas características concretas do acidente (colisão numa circulação frontal dos veículos), parece-nos proporcional e justificada a fixação do risco dos danos dos veículos intervenientes no acidente em 25% para a bicicleta/velocípede e 75% para o veículo automóvel, à luz do disposto no referenciado art. 506º, nº1, 1ª parte do C.Civil.
Acontece porém que, além dessa distribuição dos riscos, há que ter em conta o disposto na parte final desta norma (2ª parte): “se os danos forem causados somente por um dos veículos, sem culpa de nenhum dos condutores, só a pessoa por eles responsável é obrigada a indemnizar”.
Ora, no presente caso, nenhum dos condutores teve culpa, e os danos foram causados somente pelo veículo automóvel MM, já que o sinistrado C...foi projectado, em consequência da colisão, sofrendo as lesões físicas que lhe demandaram a prestação da ajuizada assistência hospitalar (cf. facto V).
Em decorrência, como os danos foram provocados somente pelo veículo automóvel seguro na Ré/recorrente, somente esta é responsável pela indemnização (ainda que a distribuição dos riscos fosse a apontada – de 25% para o velocípede e 75% para o automóvel).[5]
Assim, resultando incontornavelmente nesta linha de entendimento a responsabilidade da aqui Ré/recorrente no evento que determinou os cuidados de saúde prestados, subsiste votado ao insucesso o que a mesma aduz nesta via recursória.
            Donde, “brevitatis causa”, improcede fatalmente o presente recurso.
                                                           *
5 - SÍNTESE CONCLUSIVA
I – Nas acções de cobrança de dívidas hospitalares, nos termos do art. art. 5º do DL nº 218/99 de 15 de Junho, compete à seguradora demandada alegar e provar que, face às circunstâncias do acidente, não pode ser responsabilizada pelas consequências do mesmo.
II – Isto porque nos termos desse normativo, há uma inversão do ónus da prova, razão pela qual à parte contrária nessa acção cabe, nos termos do art. 344º do C.Civil, a prova de que não foi culpado no acidente que motivou as lesões determinantes dos serviços prestados pela entidade hospitalar.

III – No caso de uma situação de colisão de veículos sem que se apure a culpa de qualquer dos dois condutores, e sendo certo que não há aí qualquer presunção de culpa a onerar o condutor do veículo segurado, importa então solucionar a questão no quadro do estatuído pelo art. 506º, nº1 do C.Civil.
IV – As responsabilidades pelo risco em caso de colisão de veículos são repartidas na proporção em que cada um deles tiver contribuído efectivamente para os danos (1ª parte deste último normativo).
V – Mas se os danos forem causados somente por um dos veículos, sem culpa de nenhum dos condutores, somente a pessoa por eles responsável é obrigada a indemnizar (2ª parte do mesmo).  
                                                                       *
6 - DISPOSITIVO
Pelo exposto, decide-se a final, com base em fundamentação em parte diversa, pela total improcedência da apelação, mantendo a sentença recorrida nos seus precisos termos.  
            Custas nesta instância pela Ré/recorrente.

                                                                                   Coimbra, 3 de Dezembro de 2013

                                  
                                                 (Luís Filipe Cravo - Relator)
                                                 (Maria José Guerra)
                                           (António Carvalho Martins)

[1] Citámos o Ac. da Rel. de Coimbra de 17-04-2012, proc. nº 1483/09.9TBTMR.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc; no mesmo sentido, veja-se A. ABRANTES GERALDES in “Julgar”, nº 4, Janeiro/Abril 2008, Reforma dos Recursos em Processo Civil, páginas 74 a 76 e o Ac. do S.T.J. de 15-09-2010, proferido no proc. nº 241/05.4TTSNT.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.

[2] Veja-se neste sentido o “Dicionário da língua Portuguesa – 2010/Acordo Ortográfico”, dos “Dicionários Editora”, Livª Porto Editora, a págs. 981.
[3] Do qual constava o precedente regime, à luz do qual se entendia que era o Exequente quem, perante Embargos de Executado, tinha de provar os factos constitutivos da responsabilidade, nomeadamente a culpa.
[4] Efectuando um levantamento da linha jurisprudencial recente mais exemplificativa, vide o Ac. do T.R.Lisboa de 25-10-2012, proferido no proc. nº 1067/09.1TJLSB.L1-6, acessível em www.dgsi.pt/jtrl.
[5] Sustentando esta mesma via de solução para um caso com similitude, vide o Ac. do T.R.Lisboa de 26-02-2013, proferido no proc. nº 1721/11.8TVLSB.L1-1, acessível em www.dgsi.pt/jtrl.