Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
254/18.6T8OFR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: INVENTÁRIO
CONFERÊNCIA PREPARATÓRIA
QUINHÕES
PRINCÍPIO DA INTANGIBILIDADE DA LEGÍTIMA
Data do Acordão: 06/25/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - O.FRADES - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.48 DO RJPI (LEI Nº 23/2013 5/3), ART-2163 CC
Sumário: I – Na conferência preparatória, os titulares do direito à herança podem deliberar acerca da composição dos quinhões de cada um deles mediante acordo por uma maioria de dois terços.

II – Porém, a lei adjetiva não se pode sobrepor/postergar a substantiva que fixa os termos em que se devem partilhar os bens que constituem um determinado acervo hereditário, sob pena de se desvirtuar os interesses inerentes a uma justa e correta partilha de bens entre os diversos interessados.

III – No caso, como o ajuizado, de se tratar de sucessão legitimária, os co-herdeiros que representem dois terços da herança não podem designar os bens que integram a legítima do herdeiro legitimário, contra a sua vontade, por implicar a violação do princípio da intangibilidade da legítima, sob pena de se violar, por via da lei processual, o expressamente proibido na lei substantiva.

IV – Isto sob pena de aquilo que a lei veda ao autor da sucessão - que é a possibilidade de designar os bens que devam preencher a legítima, contra a vontade do herdeiro legitimário (cf. art. 2163º do C.Civil), - passar a ser possível aos co-herdeiros, desde que representem dois terços da herança.

Decisão Texto Integral:







Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]                                                                                             *

1 – RELATÓRIO

Foi instaurado inventário por óbito de A (…), que correu termos no Cartório Notarial de (...) , a cargo da Exma. Notária (…) sediado (…), para realização da partilha dos bens pertencente àquele, exercendo as funções de cabeça de casal, a interessada e viúva daquele, M (…), e figurando como demais herdeiros/interessados, A (…), M (…), F (…), J (…) e A (…), já todos identificados nos autos.

No decurso dos mesmos e depois de apresentada a relação de bens, teve lugar, no dia 12 de Dezembro de 2016, a conferência preparatória a que se alude no artigo 48º, do Regime Jurídico do Processo de Inventário (Lei nº 23/2013, de 05 de Março, doravante designado como RJPI), na qual estiveram presentes e/ou representados todos os herdeiros, constando da respectiva Ata, o seguinte:

«(…)

Foi requerido que fossem retiradas as verbas 17º e 18º da relação de bens e a alteração das seguintes verbas:

Verba 24º (…)

Verba 42 (…)

Tal alteração foi aprovada por 95% dos interessados, apenas votando contra a mandatária do interessado J (...) .

Pelos mandatários (…) foi requerida a retirada do direito de crédito da verba 16º, no montante de catorze mil e quinhentos Euros, o que não foi aprovado por unanimidade, pelo que, nos termos do artigo 37º, a dívida se reputa litigiosa.

Pelas partes foi dito, que chegaram a acordo, pelo que pretendem pôr termo ao presente inventário nos termos do artigo 48º do Regime Jurídico do Processo de Inventário, nos seguintes termos:

Os bens a partilhar são os seguintes:

                                                           IMÓVEIS

Verba nº 01

(…)

Verba nº 11 (…)

                                                IMÓVEIS DOADOS

Verba nº 12

(…)       

Verba nº 15 (…)

                                     RELAÇÃO ADICIONAL DE BENS

                                                           DINHEIRO

Verba nº 19

(…)

Verba nº 22 (…)

                                                           MÓVEIS

Verba nº 23

(…)

Verba nº 29 (…)

                              BENS NA POSSE DO INTERESSADO M (...)

Verba nº 30

(…)

Verba nº 43 (…)

                                                          

DOADOS

Verba nº 44 (…)

Fixa-se o valor do inventário em noventa e nove mil seiscentos e noventa e quatro Euros e cinquenta e sete cêntimos.

Tendo-se reputado litigiosa a verba 16ª, o valor a ter em conta para efeitos da forma à partilha, o respectivo mapa, é o de oitenta e cinco mil e noventa e quatro Euros e cinquenta e sete cêntimos.

De imediato se passou a cumprir o artigo 57.º, do RJPI, e a dar a forma à partilha, nos seguintes termos:

(…)

Assim, somamos os valores das verbas que perfaz um total de oitenta e cinco mil cento e noventa e quatro Euros e cinquenta e sete cêntimos. Este valor divide-se em duas partes iguais, sendo metade a meação do cônjuge sobrevivo e o restante o valor da herança, sendo que o cônjuge sobrevivo ainda vai receber mais um quarto no valor de dez mil seiscentos e quarenta e nove Euros e trinta e dois cêntimos, num total de cinquenta e três mil duzentos e quarenta e seis Euros e sessenta e um cêntimos (arredondado).

O remanescente, no montante de trinta e um mil novecentos e quarenta e sete Euros e noventa e quatro cêntimos, será dividido em cinco partes iguais, por ser esse o número de filhos, cabendo a cada um destes o montante de seis mil trezentos e oitenta e nove Euros e cinquenta e nove cêntimos.

Uma vez que há acordo da maioria dos interessados, apenas se opondo a mandatária do interessado (…), de imediato se organiza o mapa da partilha, nos seguintes termos:

Os bens deixados por óbito de A (…) são os constantes da relação supra referida, sendo que os quinhões dos interessados serão os seguintes:

M (…)

(…)

A (…)

(…)

M (…)

(…)

F (…)

(…)

J (…)

ACTIVO:

Verba seis[2] ----------------------------------------------------------------------------------------- 4,41€

Verba doze[3] ------------------------------------------------------------------------------------- 249,40€

Metade da verba quarenta e dois[4] ------------------------------------------------------------- 50,00€

Somam os bens o montante de TREZENTOS E TRÊS EUROS E OITENTA E UM CÊNTIMOS, recebendo a menos que o seu direito o valor de SEIS MIL E OITENTA E CINCO EUROS E SETENTA E OITO CÊNTIMOS.

Recebe tornas de:

M (…) no valor de SEIS MIL E OITENTA E CINCO EUROS E SETENTA E OITO CÊNTIMOS.

Por todos os presentes, com a exceção do herdeiro J (…), foi ainda dito: que não pretendem reclamar da forma e do mapa de partilha, prescindindo do respectivo prazo, e mais declaram que nada mais têm a reclamar uns dos outros, seja a que título for, quanto aos bens da herança partilhada. Declaram ainda, também à exceção do referido herdeiro J (…), prescindir mutuamente do pagamento das tornas a que haja lugar.»

Na oportuna sequência foram os autos remetidos ao juiz cível territorialmente competente para decisão homologatória dessa partilha [Tribunal de Oliveira de Frades], onde veio a ser proferida sentença do seguinte teor:

«SENTENÇA

Comprovado que está o pagamento da taxa e a comunicação ao Ministério Público nos termos do art.º 5º do RJPI, está o processo em condições de prosseguir e de ser apreciado para os efeitos pretendidos.

Compulsados os autos verifica-se que estamos perante um inventário para partilha dos bens por óbito de A (…) com última residência no Lugar da (...) , freguesia de (...) , concelho de (...) a e falecido em 27.04.2011, no estado de casado.

Exerceu funções de cabeça de casal a viúva A (...) .

A cabeça de casal apresentou relação de bens e prestou juramento e declarações. (fls 13 a 22).

Citados os outros interessados, houve reclamações que foram devidamente decididas, tendo sido proferido despacho a determinar os bens a partilhar.

Na conferência preparatória, na qual compareceram todos os interessados, os mesmos chegaram a um acordo na composição dos quinhões.

Foi proferido despacho determinativo da forma da partilha e elaborado mapa informativo da partilha, tendo os interessados com direito a tornas informado que já as haviam recebido quanto às tornas, e foi elaborado mapa definitivo partilha, do qual não houve reclamações.

Pelo exposto, por se terem cumprido todas as legais formalidades e inexistindo razões formais e substantivas que o impeçam, o tribunal, nos termos do art.º 66º da Lei 23/2013 de 5 de Março, homologa, por sentença, a partilha levada a cabo pelos interessados e adjudica os bens aos interessados nos precisos termos constantes do mapa de partilha.

Registe e Notifique.»

                                                           *

Inconformada com essa decisão, apresentou o interessado J (…)recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões[5]:

«(…)

11- O recorrente tem direito a tornas na partilha efetuada.

12- Conforme o disposto na Ata da Conferencia- fls 117 a 134- onde consta o acordo dos interessados nos temos do artigo 48 RJPI para por fim ao processo, na forma à partilha, consigna-se a este respeito que o interessado recebeu a menos que o seu direito €6085,78 a receber da cabeça de casal A (...) .

13- Nesta, mais se refere que “pelos presentes foi dito, com exceção do herdeiro J (…) foi ainda dito: que não pretendem reclamar uns dos outros, seja a que título for quanto aos bens da herança partilhada. Declarando ainda também em relação á exceção do interessado J (…) prescindirem mutuamente de tornas que haja lugar.”

14-Tal resultou da retificação da Ata da conferência por força da reclamação do recorrente, por desconformidade com a realidade factual ali vertida.

15-A sentença que homologou a partilha refere que os interessados prescindiram de tornas ,o que não corresponde a realidade processual.

16-O recorrente notificado para a os efeitos do artigo 61 reafirma esse mesmo direito.

17-O recorrente vislumbrando a injustiça que o acordo comportava, manifestou a sua oposição a todos os atos praticados na conferência, que implicavam restrições de direitos já por si tão limitados.

18- Por tal deve ser revogada a sentença nesta matéria e consagrar o direito a tornas do recorrente, porque dele nunca prescindiu.

19-Os Na audiência preparatória os titulares do direito à herança deliberaram por acordo com maioria de 2/3 quais as verbas que eram adjudicadas a cada um, definido que o quinhão do recorrente era composto pelas verbas 6, 12 e ½ 42, tendo direito a receber tornas.

20- A lei adjetiva não pode postergar e prevalecer sobre a substantiva, que fixa os termos em que de partilhar os bens da herança, sob pena de se estar a desvirtuar os interesses inerentes a uma justa e correta partilha entre os diversos interessados.

21-Nos termos da lei substantiva, os co- herdeiros que representam os 2/3 da herança não podem designar os bens que integram a legitima do herdeiro legitimário contra a sua vontade, por implicar a violação do princípio da intangibilidade da legitima.

22- Contra a sua vontade definiram os bens que compõem o seu quinhão hereditário, incluindo os que compõem a legitima, o que é vedado pelo artigo 2163.

23- Violando o disposto nos artigos 2163 e 2157 do código civil.

24-O acordo a que alude o artigo 48 nº1 do NRJI só será licito, senão violar o disposto no direito substantivo, no preceito supra referido que proíbe que contra a vontade do herdeiro, este se veja na contingência de herdar apenas e tao somente o que a maioria determinou.

25- Este não salvaguardou que a partilha fosse o mais igualitária e justa possível.

26- Por tal o recorrente entende que não deve prevalecer e por consequência a sentença homologatória, deve ser revogada.

27-Pois a A Mª Juiz a quo não se apercebeu, dada as retificações operadas na Ata, que tal acordo viola os princípios constitucionais da Igualdade e Proporcionalidade, da Confiança e Boa-Fé, previstos nos artigos 13 e 266 da Constituição da República Portuguesa.

Por todo o exposto e com o Douto Suprimento de Vªs Exªas impõe-se, em nome da justiça e da equidade revogar a sentença homologatória da partilha devendo proceder-se a nova conferência preparatória, que respeite as normas de direito substantivo atinentes a esta matéria, seguindo-se os ulteriores termos processuais

Decidindo como requerido Vªs Exªs farão, como sempre, inteira e costumada

JUSTIÇA.»

                                                           *

Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

                                                           *

Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                           *

2 – QUESTÕES A DECIDIR: o âmbito do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – arts. 635º, nº4 e 639º do n.C.P.Civil – e, por via disso, as questões a decidir são:

- se o interessado J (…) ora recorrente tinha direito a Tornas, que não recebeu, bem como se a interessada devedora das mesmas foi ou não notificada para o depósito;

- eficácia do acordo obtido na Conferência Preparatória, por uma maioria superior a dois terços dos titulares do direito à herança, acerca da composição dos quinhões de cada um deles, designadamente do interessado J (…) ora recorrente;

- se a decisão recorrida viola o disposto nos artigos 13º e 266º da CRP, por permitir que a partilha não respeite o princípio da proporcionalidade, da igualdade, da confiança e da boa-fé.

                                                           *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos a ter em consideração para a decisão são os que decorrem do relatório supra.

                                                           *

4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1 - Por razões de precedência lógica e jurídica vai-se começar pela apreciação da questão da eficácia do acordo obtido na Conferência Preparatória, por uma maioria superior a dois terços dos titulares do direito à herança, acerca da composição dos quinhões de cada um deles, designadamente do interessado J (…) ora recorrente, mais concretamente por alegada violação do princípio da intangibilidade da legítima deste último.

Sustenta o interessado J (…) ora recorrente que não lhe pode ser imposto, contra a sua vontade, não obstante ser essa a intenção manifestada por todos os demais co-herdeiros, quais os bens em concreto, que compõem o seu quinhão, pois que, a assim ser, ficaria violado o princípio da intangibilidade da legítima, o que não consente a lei substantiva – artigo 2163º do C.Civil.

Será assim?

Em vista da decisão sobre a questão em apreciação, importa perscrutar o quadro legal atinente, começando pelo art. 48º, nº 1, do RJPI.

Efetivamente, de acordo com este preceito:

«1- Na conferência podem os interessados deliberar, por maioria de dois terços dos titulares do direito à herança e independentemente da proporção de cada quota, que a composição dos quinhões se realize por algum dos modos seguintes:

a) Designando as verbas que devem compor, no todo ou em parte, o quinhão de cada um deles e os valores por que devem ser adjudicados;

b) Indicando as verbas ou lotes e respectivos valores, para que, no todo ou em parte, sejam objecto de sorteio pelos interessados;

c) Acordando na venda total ou parcial dos bens da herança e na distribuição do produto da alienação pelos diversos interessados.».

De referir, no que a este aspeto em concreto respeita, que o RJPI consagrou uma solução oposta ao anteriormente consagrado no C.P.Civil (art. 1353º) e art. 35º da Lei nº 29/2009.

Com efeito, enquanto no regime pretérito, se exigia a unanimidade dos interessados para a deliberação acerca da composição dos respectivos quinhões hereditários, no regime actual, basta-se a lei, com o acordo de dois terços dos titulares do direito à herança e independentemente da proporção de cada quota, como resulta do preceito ora transcrito.

Ademais, no mesmo perfilhou-se o entendimento de que basta o referido acordo, para que se proceda à composição dos quinhões de cada um dos herdeiros, em conformidade com o acordo assim alcançado; ou seja, nos termos expostos, na conferência preparatória, os interessados na partilha poderão chegar a um acordo, acerca das matérias descritas nas três alíneas do preceito ora em apreço, desde que verificada a referida maioria de dois terços.

Foi o que aconteceu in casu como se verifica da leitura da Ata da conferência preparatória, na parte em que se refere que «Uma vez que há acordo da maioria dos interessados, apenas se opondo a mandatária do interessado J (…)» (representando aqueles mais de dois terços dos titulares com direito à herança), isto é, foi assim deliberado quais as verbas/bens, que eram adjudicados a cada um dos interessados, designadamente, que o quinhão do interessado J (…) ora recorrente seria composto pelas verbas 6, 12, e ½ da 42, tendo, ainda, direito, a receber tornas da interessada M (…), no montante de € 6.085,78.

Aos demais interessados foram, por sua vez, atribuídos os restantes bens imóveis e móveis, ficando uns credores e outros devedores de Tornas, em função da concreta e correspondente atribuição.

No entanto, se é certo que por força do que se acha estabelecido no artigo 48º, nº1, do RJPI, se permite que mediante acordo por maioria de dois terços dos titulares do direito à herança, estes, deliberem qual a composição dos quinhões por qualquer das modalidades ali previstas, menos certo não é que a lei adjectiva não se pode sobrepor/postergar a substantiva.

Compreende-se que o legislador tenha procurado estabelecer formas de evitar que um ou uma minoria dos interessados numa determinada herança, coloquem entraves à normal tramitação do processo de inventário, procurando simplificá-lo e torná-lo mais célere, não incumbindo ao julgador questionar as opções legislativas assumidas pelo legislador.

Não obstante, impõe-se o cotejo entre o que se dispõe adjectivamente e o que, a nível substantivo, se dispõe nas regras que fixam os termos em que se devem partilhar os bens que constituem um determinado acervo hereditário, sob pena de se desvirtuar os interesses inerentes a uma justa e correcta partilha de bens entre os diversos interessados.

Ora, um de tais preceitos, é o art. 2163º do C.Civil, de acordo com o qual, no caso de, como o ora em apreço, se tratar de sucessão legitimária (cf. art. 2157º do mesmo C.Civil):

«O testador não pode impor encargos sobre a legítima, nem designar os bens que a devem preencher, contra a vontade do herdeiro.».

Ora, a este propósito já foi doutamente sublinhado que se a composição de quinhões pode ser acordada pela mencionada maioria de dois terços, o certo é que este regime não se pode sobrepor ao “princípio da intangibilidade qualitativa da legítima”[6].

Ali se colocando em dúvida que nem sequer esteja previsto que a referida maioria “seja de herdeiros da mesma natureza”, permitindo-se uma “aliança” entre herdeiros testamentários e alguns legitimários, em desfavor de um “legitimário minoritário”, em violação de tal princípio.

De igual modo já foi sustentado que «esta solução legal, no que respeita à sucessão legitimária, não pode implicar a violação do princípio da intangibilidade da legítima, pois não poderá ser possível a co-herdeiros que representem dois terços da herança designarem os bens que integram a respectiva legítima (sob pena de se violar, por via da lei processual, o expressamente proibido na lei substantiva: O artigo 2163.º do Código Civil proíbe ao autor da sucessão designar os bens que devem preencher a legítima, contra a vontade do herdeiro legitimário)»[7].

Ora, no caso em apreço, por imposição dos demais interessados e contra a vontade do interessado J (…) ora recorrente, determinou-se que o quinhão hereditário deste fosse composto pelas verbas acima referidas (dois bens imóveis e um bem móvel), pelos valores constantes da relação de bens, ficando com um “elevado” valor de Tornas a receber.

Ou seja, contra a vontade do interessado J (…) ora recorrente, designaram-se os bens que compõem todo o seu quinhão, incluindo os que constituem a legítima, o que não é consentido pelo disposto no art. 2163º do C.Civil.

O que tudo serve para dizer que será lícito o acordo a que se refere o art. 48º, n.º 1 do RJPI, mas, desde que o mesmo não viole o que se dispõe no art. 1263º do C.Civil, que proíbe que, contra a vontade do herdeiro, este se veja na contingência de herdar apenas o que a maioria determina, por certo com o objectivo de que a partilha seja o mais igualitária possível, o que, provavelmente, não se alcança com o acordo ora em crise.

Dito de outra forma: aquilo que a lei veda ao autor da sucessão - que é a possibilidade de designar os bens que devam preencher a legítima, contra a vontade do herdeiro legitimário (cf. art. 2163º do C.Civil), - não pode passar a ser possível aos co-herdeiros, desde que representem dois terços da herança.

Assim, não pode prevalecer o acordo plasmado na Ata da conferência preparatória em referência e, por consequência a respectiva sentença homologatória, que se revogam, devendo proceder-se a nova conferência preparatória, em que se respeite o ora decidido, seguindo-se os ulteriores termos processuais, designadamente, se for o caso, por falta de acordo entre os interessados, deverá realizar-se a conferência de interessados[8].

Consequentemente, procede esta apontada questão do recurso.

                                                           ¨¨

Em face da procedência desta questão do recurso, prejudicado fica, por ora, o conhecimento e decisão das demais questões supra elencadas.

                                                           *                   

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – Na conferência preparatória, os titulares do direito à herança podem deliberar acerca da composição dos quinhões de cada um deles mediante acordo por uma maioria de dois terços.

II – Porém, a lei adjetiva não se pode sobrepor/postergar a substantiva que fixa os termos em que se devem partilhar os bens que constituem um determinado acervo hereditário, sob pena de se desvirtuar os interesses inerentes a uma justa e correta partilha de bens entre os diversos interessados.

III – No caso, como o ajuizado, de se tratar de sucessão legitimária, os co-herdeiros que representem dois terços da herança não podem designar os bens que integram a legítima do herdeiro legitimário, contra a sua vontade, por implicar a violação do princípio da intangibilidade da legítima, sob pena de se violar, por via da lei processual, o expressamente proibido na lei substantiva.

IV – Isto sob pena de aquilo que a lei veda ao autor da sucessão - que é a possibilidade de designar os bens que devam preencher a legítima, contra a vontade do herdeiro legitimário (cf. art. 2163º do C.Civil), - passar a ser possível aos co-herdeiros, desde que representem dois terços da herança.

                                                           *

6 – DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se a final julgar procedente o presente recurso de apelação, em função do que se revoga a decisão recorrida, devendo proceder-se como acima explicitado.

Custas a fixar a final.

Coimbra, 25 de Junho de 2019

Luís Filipe Cravo ( Relator )

                                             Fernando Monteiro

    António Carvalho Martins


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carvalho Martins
[2] De referir que esta consiste num bem imóvel, composto por “terreno de cultura com 15 videiras”, área de 0,148 HA, sito em (...) , (...) .
[3] De referir que esta consiste num bem imóvel, composto por “terreno culto e inculto”, área de 0,235 HA, sito em (...) , (...) .
[4] De referir que esta consiste num bem móvel, mais concretamente “Duas máquinas de sulfatar no valor de cem euros”, sendo atribuído a este interessado uma delas (no valor de cinquenta euros).
[5] De referir que se vai omitir a transcrição das “conclusões” “1-” a “10-”, na medida em que referentes ao recurso da decisão da Exma. Notária de indeferimento do pedido de avaliação oportunamente formulado ex vi do art. 48º, nº2 do R.J.P.I. (Lei 23/2013, de 5.3), relativamente ao que por despacho prévio do Relator deste acórdão foi este Tribunal de Recurso considerado incompetente em razão da hierarquia para a sua apreciação, donde prejudicada está a apreciação dessa questão.
[6] Assim por FERNANDO NETO FERREIRINHA, in “Processo de Inventário Reflexões Sobre O Novo Regime Jurídico”, 3ª Edição, Revista, Aumentada e Actualizada, Livª Almedina, 2017, a págs. 291 e 292 e nota 107 (desta última).
[7] Citámos agora CARLA CÂMARA, CARLOS CASTELO BRANCO, JOÃO CORREIA e SÉRGIO CASTANHEIRA, in “Regime Jurídico do Processo de Inventário”.
[8] Neste sentido, vide o acórdão do T. Rel. de Coimbra de 21.11.2017, proferido no proc. nº 245/17.4YRCBR, acessível em www.dgsi.pt/jtrc, que, aliás, seguimos de perto na antecedente exposição.