Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
240-A/1996.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: INVENTÁRIO
APROVAÇÃO DO PASSIVO
PARTILHA
Data do Acordão: 04/17/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1326.º; 1353.º, N.º 3 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL; ARTIGO 1789.º, N.º 1 DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. Notificado um interessado para a conferência, a sua falta acarreta que o mesmo abdique da possibilidade de discutir as questões que emirjam da intervenção dos outros interessados presentes. Não pode, assim, suspender-se a conferência com vista à intervenção externa do interessado ausente.

2. A aprovação do passivo na conferência pelos diversos interessados não depende de prova. É o resultado da respectiva manifestação de vontade (art.º 1353, nº 3 do CPC).

3. Não tendo ocorrido aprovação ou reconhecimento de dívida relacionada que se mostrasse oponível a todos os interessados, a consequência para a formação dos quinhões é a de que apenas há que tomar em conta o valor do activo, tudo se passando, para esse efeito, como se o passivo fosse extrajudicialmente assumido pela cabeça de casal que o aprovou e segundo a sua quota.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Em processo de inventário para partilha de bens subsequente a divórcio a correr termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Tomar em que são interessados A... (cabeça de casal) e B... , apresentada a relação de bens, foi designado dia para a conferência de interessados, à qual esteve presente apenas o i. mandatário da cabeça de casal, munido de procuração com poderes especiais, incluindo os de em nome da mesma licitar.

Proferido despacho a considerar expressamente o interessado não presente regularmente notificado, foi iniciada a conferência, em cuja acta consta que o i. mandatário da interessada cabeça de casal aí declarou que “aprovava o passivo constante da relação de bens, o qual consiste numa única verba, apresentando neste acto fotocópia de um cheque que comprova o pagamento de tal passivo por parte da cabeça de casal”.

 No que concerne a este documento ficou igualmente consignado em acta que o Sr. Juiz ordenou “a sua junção aos autos, após numerar e rubricar”.  

Face à impossibilidade de obtenção de acordo de todos os interessados, procedeu-se de imediato à abertura de licitações tendo por objecto o único bem relacionado (imóvel), vindo o mesmo a ser licitado pela cabeça de casal por € 3.560,00.

Requereu então o mandatário da cabeça de casal forma à partilha nos termos que seguem:

“ Os interessados foram casados segundo o regime de comunhão geral, tendo o divórcio sido decretado em 25-11-1997.

Há apenas um único bem a partilhar o qual foi licitado pela cabeça de casal. Foi igualmente aprovada a verba descrita como passivo, da qual é única credora a cabeça de casal.

 Assim, o valor do único bem a partilhar, com o aumento proveniente da licitação, divide-se em duas partes iguais, constituindo a meação de cada um dos cônjuges. Por virtude do instituto da compensação e considerando os valores quer da meação quer do passivo, ao valor da meação será descontado o valor do débito descrito. (…)”.

Sobre isto passou o Sr. Juiz a prolatar o seguinte despacho:

“Sendo certo que a simplicidade da partilha o permite, o inventário será ultimado nesta conferência procedendo-se à partilha da forma descrita pelo ilustre mandatário da cabeça de casal”.

A secretaria, na execução das operações de partilha decorrentes do despacho determinativo, e após apurar o montante de € 1.780,00 como tornas a pagar pela cabeça de casal ao interessado B ..., por ser o correspondente ao quinhão que lhe cabia no valor final apurado para os bens (€ 3.560,00), abateu esse valor à importância de todo o passivo relacionado (€ 20.000,00), e acabou por considerar a cabeça de casal credora daquele interessado da diferença (€ 18.220,00).

Acto contínuo foi ditada para a acta sentença a homologar a partilha assim elaborada, “adjudicando aos interessados os bens e valores que integram os respectivos quinhões, condenando os interessados a observar os seus precisos termos”.

Inconformado, interpôs o interessado B... recurso do despacho de 12 de Maio de 2011 que procedeu à partilha; e em requerimento autónomo, declarou querer também interpor recurso da sentença homologatória da partilha emitida na mesma data.

Não admitidos num primeiro momento, viriam os mesmos recursos a ser mandados admitir após reclamação para o Ex.mo Sr. Presidente desta Relação, sendo que tal despacho de admissão considerou que se tratava de um só recurso, a subir como apelação, imediatamente, nos próprios e com efeito meramente devolutivo.

Dispensados os vistos, cumpre agora decidir.

                                                                                 *

Os pressupostos de facto a ter em conta são que se acham plasmados no relatório precedente, ao qual se acrescenta o seguinte:

(i) Os interessados foram casados no regime supletivo da comunhão geral.        

(ii) Da relação de bens oportunamente apresentada pela cabeça de casal consta como verba única um prédio rústico sito na freguesia da ..., concelho de Tomar e como passivo a seguinte verba:

“Deve o património comum à cabeça de casal a importância de € 20.000,00 respeitante à hipoteca por si paga no ..., relativa à compra e venda e mútuo outorgada em 31 de Outubro de 1985 (…)”.               

                                                                                *

Considerar-se-á apenas a interposição de um único recurso, tal como foi entendido no despacho de admissão e fixação de espécie e efeito respectivos.

                       

                                                                                *

              

A apelação.        

Nas conclusões com que termina a respectiva alegação o apelante delimita três questões:

Se no inventário não poderia ser relacionada a verba relativa ao passivo por se tratar de um crédito constituído após a instauração do divórcio e da cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges, uma vez que, como tal, só poderia ser exigido do apelante através dos meios comuns;

Se, de todo o modo, não foi assegurado o contraditório exigido na lei no que concerne ao documento junto pela cabeça de casal para prova do passivo relacionado;

Se o interessado ora recorrente deveria ter sido notificado para requerer a composição de quinhões ou reclamar o pagamento das tornas, em lugar de se ter avançado para a elaboração das operações de partilha a que se procedeu.

Não houve contra-alegação.

Principiando pela invocado desrespeito do contraditório quanto ao documento junto pela cabeça de casal na conferência.

Rebela-se o apelante contra o facto de não ter sido notificado da junção do documento que na conferência foi apresentado pela cabeça de casal para prova do passivo relacionado.

Mas sem fundamento.

Importa sublinhar que a ter existido a inobservância do disposto no art.º 526 do CPC, que prescreve a notificação dos documentos à parte contrária depois do último articulado, isso integraria a prática de uma nulidade, que deveria ter sido arguida pelo interessado no respectivo prazo legal de 10 dias perante o tribunal que a cometeu - art.ºs 201, nº 1, 203, nº 1 e 205, nº 1. Ora, como se pode ver do relatado, não o foi.

Em todo o caso, diremos que nenhuma nulidade foi cometida.

Se não vejamos.

O processo de inventário não tem a estrutura de um processo de partes, embora possa comportar fases de natureza contenciosa (como é o caso da impugnação da legitimidade, ou da relação de bens e da reclamação que contra a mesma seja deduzida.). É um processo misto, visto que não pode atribuir-se-lhe natureza exclusivamente contenciosa ou graciosa, sendo certo que não foi sistematizado no Código de P. Civil como processo de jurisdição voluntária[1].

Neste processo visa-se a liquidação do património comum com a cooperação dos diversos interessados, sendo esta teleologia que justifica a feição especial da respectiva disciplina, conforme o disposto no nº 2 do art.º 1326 do CPC.

Destinando-se o inventário à partilha subsequente ao divórcio dos interessados, segue o mesmo a tramitação especial dos art.ºs 1404 e ss. e, na falta de disposições especiais, o formalismo que decorre das normas gerais do art.º 1326 e seguintes. 

Daí que também ao presente processo seja aplicável o regime específico de notificação dos interessados para a conferência, e do próprio adiamento desta, regime que se acha previsto nos nºs 2 a 5 do art.º 1352 do CPC.

Notificado um interessado para a conferência, a sua falta acarreta que o mesmo abdique da possibilidade de discutir as questões que emirjam da intervenção dos outros interessados presentes. Não pode, assim, suspender-se a conferência com vista à intervenção externa do interessado ausente.

Acresce a isto que a aprovação do passivo na conferência pelos diversos interessados não depende de prova. É o resultado da respectiva manifestação de vontade (art.º 1353, nº 3 do CPC). O passivo relacionado foi aprovado pelo capital que correspondia ao quinhão da cabeça de casal, de acordo com o disposto no art.º 1356, 1ª parte do CPC. Por isso, ficou a cabeça de casal obrigada à sua satisfação mas apenas na proporção da sua quota-parte. Quanto à parte restante, é certo que o Sr. Juiz nada disse.

Mas esse silêncio só pode ter por implícito o postulado de que não existiam elementos suficientes para o conhecimento da existência do passivo, pelo que nenhuma vinculação daí adveio quanto ao seu pagamento, nomeadamente para o recorrente (art.ºs 1356, 2ª parte, e 1355 do CPC).

Donde que a questão improceda.    

       

Quanto à impertinência do relacionamento do passivo.

Discorda o recorrente da inclusão no passivo comum da verba de € 20.000,00, ali inscrita como consequência do pagamento pela interessada A...de um mútuo da responsabilidade do dissolvido casal.

Vejamos.

Estamos em presença de uma verba que foi objecto de relacionação como dívida passiva do património comum.

Opõe-se agora o recorrente a tal relacionação, argumentando que o crédito da cabeça de casal já se constituiu depois da instauração do divórcio e, por via disso, e atento o art.º 1789, nº 1 do CC, ao seu eventual pagamento apenas poderá estar adstrito o outro ex-cônjuge (ou seja, o próprio apelante) e em acção comum (não na presente partilha).

Esta questão, porém, nunca foi suscitada no processo e, designadamente, até à conferência de interessados.

Trata-se, deste modo, de uma questão nova, e que, por isso, não pode ser esgrimida em sede de recurso, sabido que o sistema de recursos é essencialmente um sistema de reexame ou reponderação de questões já apreciadas, salvas as excepções atinentes às questões de conhecimento ex officio ou aos casos de substituição do tribunal recorrido.

Mas também neste ponto faleceria razão ao apelante, como se passa a demonstrar.

Na verdade, uma vez indevidamente relacionada pelo cabeça de casal uma dívida passiva do dissolvido casal, podem os demais interessados opor-se à sua inclusão na partilha, reclamando contra a relação, e requerendo a sua exclusão como bem impertinentemente inserido nessa peça processual - art.º 1348, nº 1 do CPC.

Ultrapassado o prazo normal da reclamação, nem por isso o interessado fica adstrito ao reconhecimento da dívida. Basta que não compareça na conferência de interessados, ou que, nela comparecendo, a não aprove, e que o juiz aí não conheça da sua existência no condicionalismo do art.º 1355 do CPC.

Ora - como de resto já foi salientado - o interessado apelante não compareceu na conferência, pelo que não foi afectado pela aprovação exclusivamente declarada pela cabeça de casal. É o que decorre do preceituado no art.º 1356 do CPC.

Aliás, se a dívida tivesse sido aprovada por todos, ou reconhecida pelo tribunal, atento o cotejo do seu valor com o do activo do património comum resultante das licitações, não haveria saldo a partilhar, por impossibilidade de dedução das dívidas e preenchimento de quotas, nos termos do art.º 1375, nºs 1 e 2 do CPC. E o património comum teria então de ser considerado insolvente, o que deixava a possibilidade de o inventário vir ser alvo do requerimento de conversão aludido no art.º 1361 do CPC.

Não tendo ocorrido aprovação ou reconhecimento da dívida relacionada que se mostrasse oponível a todos os interessados - ou seja, também ao ora recorrente - a consequência para a formação dos quinhões é a de que apenas há que tomar em conta o valor do activo[2], tudo se passando, para esse efeito, como se o passivo fosse extrajudicialmente assumido pela cabeça de casal que o aprovou e segundo a sua quota[3].

Enfim e, sintetizando, o passivo relacionado é absolutamente irrelevante para a partilha.

E com isto já se evidencia que, não podendo o apelante ser responsabilizado neste inventário pelo passivo relacionado, também na determinação dos quinhões nunca esse mesmo passivo poderia ser atendido ou tomado em conta, muito menos nos moldes em que o foi, isto é, compensando-se com esse suposto crédito[4] a dívida de tornas que para a cabeça de casal adveio por força da licitação no imóvel relacionado.

De resto, mesmo que o apelante ficasse obrigado ao pagamento do passivo, poderia apenas ser compelido ao seu imediato pagamento à luz do disposto no art.º 1357 do CPC.

Está, assim, aberto o caminho para a inexorável anulação do processado a partir do erróneo despacho determinativo da partilha, em função do tratamento que irá ser dado à questão subsequentemente delineada.

A questão da violação do direito do apelante a requerer a composição de quinhões ou o pagamento das tornas.

Basicamente o que aqui entende o apelante é que o seu crédito de tornas sobre a cabeça de casal foi postergado, uma vez que inexiste qualquer motivo para a partilha entrar em linha de conta com o passivo (exclusivamente) aprovado pela cabeça de casal.

Ora, mediante esta questão, é inegável que a sua formulação tem também por necessariamente prejudicada a forma que no caso concreto foi dada a partilha. Efectivamente, e por virtude da originalidade de tal forma, no tocante ao “preenchimento” do seu “quinhão” o apelante viu-se privado das tornas que lhe competiam, sendo antes contemplado com uma dívida à cabeça de casal de € 18.220,00, corolário inexorável da surpreendente subtracção do valor da quota-parte nos bens comuns (de € 1.780,00) à totalidade do valor do passivo “aprovado” (de € 20.000,00).

Salvo o respeito sempre devido, esta solução de partilha afigura-se-nos de todo incompreensível, se não mesmo absurda no seu conteúdo.

Na realidade, o que a sentença homologatória vem a“adjudicar” ao apelante é, nada mais, nada menos, do que uma dívida (de € 18.220,00 à interessada cabeça de casal). Do mesmo passo, por força dessa mesma sentença, a cabeça de casal recebe, em preenchimento da sua quota (de ½), e inteiramente livre de tornas, o único bem do património comum.   

Reiterando o que acima se expendeu no que toca à desconsideração do passivo no cálculo dos quinhões, o valor da herança deve ser calculado apenas com base na importância atingida pelo único bem licitado, o que, considerando o regime de bens do casamento, implica sempre a elaboração de mapa informativo pelo excesso de licitação, nos termos e para os fins do art.º 1376, nº 1 do CPC, seguindo-se a tramitação do art.º 1377 e seguintes do CPC.

Neste quadro, e na óbvia procedência do recurso, há que declarar a nulidade do processado a partir do despacho determinativo da partilha, pela revogação deste, em ordem a que ele possa ser reformulado conforme o exposto, e a que, diante o excesso de licitação, a secretaria possa igualmente dar cumprimento aos aludido normativos do Código.         

Pelo exposto, na procedência da apelação, revogam o despacho determinativo da partilha de fls. 231 e a sentença homologatória de fls. 232, devendo ser dado novo despacho determinativo da partilha de acordo com o supra expendido, seguindo-se a tramitação do art.º 1376 e seguintes do CPC.

Custas do recurso a imputar na responsabilidade a regular a final.

Freitas Neto (Relator)

Carlos Barreira

Barrateiro Martins


[1] Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, 1979, págs. 23-24.
[2] Como lembra Lopes Cardoso, ob. citada, 3ª edição, p. 161 “As dívidas não aprovadas por unanimidade não se consideram para o cômputo do passivo e sua comparação com o activo (…)”. Isto mesmo se depreende da situação paralela regulada no art.º 1360 do CPC, preceito que estabelece que as dívidas que dão causa à redução de legados ou doações só podem ser tomadas “em conta” se forem aprovadas por todos os donatários e legatários ou pelo tribunal.  
[3] Atendendo a que a cabeça de casal ficaria obrigada a pagar metade do passivo, dar-se-ia nessa parte a confusão (art.º 868 do CC) entre o seu crédito e dívida pela qual responderia, pois que na mesma pessoa se aglutinariam as qualidades de credor e devedor.
[4] A cabeça de casal, ao dar forma à partilha, alude, de facto, ao instituto da compensação, mas logo com flagrante inadequação, porquanto ali propõe que ao valor da meação (do interessado B ...) seja descontado o valor do débito descrito, quando este valor é muito superior àquele. Aliás, nem se percebe com que base foi o recorrente tido por responsável único pela totalidade do passivo (€ 20.000,00), uma vez que este incidia sobre o património comum e, consequentemente, tinha que obrigar ambos os interessados.