Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
535/14.8TBACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
UNIÃO DE FACTO
Data do Acordão: 02/02/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - INST. CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL - J3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.ºS 473, Nº 1 E 1676 DO CC
Sumário: 1. A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa pressupõe a falta de causa jurídica para a deslocação patrimonial, a qual tem de ser alegada e provada pelo respectivo credor.

2. Numa relação convivencial análoga ou próxima da união de facto, cada um dos membros deve contribuir para os encargos comuns segundo as suas possibilidades, sendo essa a causa normal para as deslocações patrimoniais que entre eles ocorram.

3. Compete ao membro dessa relação que invocar o enriquecimento do outro alegar e provar quaisquer circunstâncias que afastem a presunção de que houve intenção de doar os valores deslocados que excedam aquela contribuição.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A... intentou no J3 da Secção Cível da Instância Central de Leiria da Comarca de Leiria uma acção com processo comum contra B... , alegando, em síntese:

Autor e Ré estabeleceram uma relação amorosa em Julho de 2007 num altura em que esta iniciava o restauro de um imóvel degradado, denominado P (...) , sito em (...) , Alcobaça, que previamente adquirira com o objectivo de aí instalar um turismo rural; nessa circunstância, o A., então director técnico de duas empresas de construção civil, acordou com a Ré uma parceria na exploração da referida actividade, a formalizar posteriormente com a constituição de uma sociedade com participações iguais, de tal modo que a Ré contribuiria com o imóvel, cabendo ao Autor suportar as obras e os materiais a aplicar na respectiva beneficiação; sucede que, entre 2007 e 2010, no âmbito da falada “parceira” custeou o A. exclusivamente um conjunto de intervenções no imóvel cujo valor ascendeu a € 15.992,35 mais IVA, despendendo ainda as quantias de € 826,00 e 14.664,00 com a instalação de um termoacumulador e de uma piscina; e que a partir de 2008 também passou a dividir com a Ré as tarefas de hospedagem dos turistas, estimando em 3.600 as horas que trabalhou no empreendimento ao longo dos meses de Julho a Setembro dos anos subsequentes, até Setembro de 2012, ano em que a Ré o expulsou do imóvel; também depositou ou transferiu para uma conta bancária da Ré, entre Janeiro de 2008 e Janeiro de 2012, quantias várias que totalizam € 26.009,00; com a ruptura que provocou da relação com o A. veio a Ré a retirar exclusivo proveito das quantias, obras e tempo de trabalho do A., com o que injustificadamente se locupletou, na exacta medida do correlativo empobrecimento daquele.

Remata pedindo a condenação da Ré:

a) A reembolsá-lo das despesas com materiais e equipamentos no total de € 15.992,35;

b) A pagar-lhe o custo com a aquisição do termoacumulador no valor de € 826,00:

c) A pagar-lhe a despesa com a aquisição da piscina no montante de € 14.664,00:

d) A pagar-lhe as horas de trabalho no serviço de alojamento e cozinha, recepção aos hóspedes nas épocas sazonais, somando € 24.107,14;

e) A reembolsá-lo das quantias depositadas na conta titulada pela Ré na importância de € 26.009,00;

f) A pagar-lhe juros de mora à taxa legal sobre estas quantias desde a citação.

Contestou a Ré, impugnando a matéria da acção, não reconhecendo a realização das obras identificadas pelo A., os pagamentos da piscina e do termoacumulador, a prestação das horas de trabalho referidas, e negando que as quantias depositadas tivessem sido por si utilizadas.

Terminou com a improcedência da acção e a condenação do A. como litigante de má fé em multa e indemnização de € 4.000,00.

Replicou o A., concluindo como na petição e rebatendo os fundamentos invocados para a sua condenação como litigante de má fé.

A final foi a acção julgada parcialmente procedente em função do que se condenou a Ré B... a pagar ao Autor A... a quantia de € 25.490,00, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até efectivo pagamento, do mais peticionado sendo aquela absolvida.

Irresignado, desta decisão recorreu a Ré, recurso admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito suspensivo.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

A apelação.

São as seguintes as questões que vêm suscitadas na alegação recursiva:

A nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos de factos e de direito e condenação em objecto diverso do pedido;

A alteração da decisão sobre a matéria de facto;

A inverificação dos pressupostos do enriquecimento sem causa.

Não houve contra-alegação.

Cumpre decidir.

Sobre os vícios da sentença.

Defende a recorrente B... que houve condenação em objecto diverso do pedido porquanto foi condenada com base numa “causa de pedir não alegada”, causa de pedir que segundo ela seria a “extinção de uma relação amorosa e consequente falta de verificação da suposta futura sociedade”.

Mas sem razão.

Como é bom de ver, a recorrente reconduz o vício que assaca à decisão recorrida à não coincidência de causas de pedir. Não a uma suposta incoerência ou não identificação entre o dispositivo da condenação e a pretensão formulada na acção pelo apelado.

Em todo o caso, não só a causa de pedir da acção não se traduz na factualidade que identifica, como tão pouco a sentença se serviu de uma causa de pedir diferente da que fundou a acção (num e noutro caso, o que vem invocado é sempre o enriquecimento sem causa como fonte de obrigações).

Não ocorre, pois, a falada condenação em objecto diverso do pedido, ou seja a nulidade prevista na alínea e) do art.º 615 do CPC.

Também alude a apelante a uma contradição entre os fundamentos de facto e a fundamentação de direito.

Ora a causa de nulidade da sentença é apenas a contradição entre os fundamentos de direito e a decisão – cfr. a alínea c) do nº 1 do art.º 615 do CPC.

Todavia, a apelante também não precisa concretamente em que consistiria tal contradição.

Antes parece querer pôr em crise o enquadramento dos factos não provados à luz das regras do ónus da prova.

Efectivamente, o que a apelante afirma é que o Autor não logrou alegar e provar a finalidade das importâncias por si depositadas na conta da mesma, o que equivaleria à ausência da prova da causa justificativa do enriquecimento.

Mas aqui trata-se apenas de matéria atinente ao mérito da decisão, à sua fundamentação de direito.

Daí que também não se verifique a nulidade da alínea c) do nº 1 do art.º 615 do CPC.

Improcede, destarte, a questão da nulidade da sentença.

A alteração da decisão sobre a matéria de facto.

De seguida ataca a apelante a decisão de facto considerando incorrectamente julgados os seguintes pontos:

Da matéria provada:

6 – No âmbito do referido relacionamento amoroso entre Autor e Ré foi acordado entre ambos que o Autor passaria a dar colaboração à Ré na actividade económica por si desenvolvida, com a promessa da Ré formalizar mais tarde em “sociedade”, na qual ambos seriam sócios em partes iguais.

19 – No dia 25/10/2007 o Autor transferiu para a conta da Ré nº (...) da Caixa (...) a quantia de € 22.500,00, proveniente da venda de uma garagem que pertencia ao Autor, sendo que parte desta quantia se destinou ao pagamento da referida piscina.

29 – Foram ainda depositados pelo Autor na conta da Ré nº (...) 0 da Caixa (...) as seguintes quantias:

i. Em 29 de Julho de 2008 a quantia de € 3.000,00 em numerário proveniente de pagamentos que foram efectuados pela firma do Autor;

ii. Em 12 de Fevereiro de 2009 a quantia de € 2.000,00, em numerário, proveniente mais uma vez de valores pagos por uma das firmas de que o Autor era sócio.

Da matéria não provada;

T) Que a piscina foi totalmente paga pela Ré;

X) Que o Autor gastou em proveito próprio todas as quantias transferidas ou depositadas nas contas da Ré melhor descritas nos factos provados.

Pugna a apelante pela resposta de Não provado no que concerne ao teor do facto provado em 6.

E com inteira razão, desde já se diga.

É que nenhuma das testemunhas inquiridas se referiu à dita “parceria” ou acordo com vista à constituição futura de uma sociedade entre A. e Ré.

Com efeito, apenas as testemunhas E... e F... aludiram a matéria que se conexiona com a possibilidade da constituição da sociedade: o primeiro aparentemente no plano conclusivo e o segundo para a afastar inequivocamente, esclarecendo que, por ter problemas financeiros, o Autor pediu à Ré que o deixasse colocar dinheiro nas contas desta.       

Mas a única motivação avançada pela decisão para dar aquele facto como provado foi esta:

“ … é caso para dizer que ‘os factos falam por si’ – considerando toda a contribuição dada pelo Autor à actividade económica da Ré durante pelo menos 5 anos, acima descrita – ou seja todos os factos praticados pelo autor ao longo daquele período de tempo, à luz das regras da ciência, da lógica e da experiência comum a todo o homem médio demonstram ser mais do que evidente a constituição futura de uma sociedade entre ambos para explorarem tal actividade em conjunto”.

Não lobrigamos a que experiência comum se quis reportar o Sr. Juiz, uma vez que, nas referidas circunstâncias, o que é compreensível é que as pessoas descuidem os aspectos formais dos serviços que prestam e dos valores com que entram na actividade comum.

Assim, ao invés do que se quis supor, a relação de namoro que se criou entre A. e Ré apontaria naturalmente para a informalidade da colaboração em que o Autor se envolveu, como, de resto, bem observou a testemunha F....

Daí que, na falta de qualquer elemento probatório concreto, o facto em questão se devesse ter considerado como não provado. O que acarreta a sua supressão do acervo fáctico.

No que concerne aos pontos 19, 29, alíneas i e ii dos factos provados e às alíneas t) e x) dos factos não provados não especifica a apelante os concretos meios de prova que imporiam resposta diversa, dado que se cinge a trazer a terreiro as regras de repartição do ónus da prova.

Não estamos, assim, diante de uma verdadeira impugnação da decisão de facto por referência aos meios probatórios produzidos nos autos.

Pelo que, no que a este segmento concerne, a impugnação da decisão de facto improcede.

São consequentemente estes os factos que se têm por definitivamente provados:  

1. A Ré é proprietária de um imóvel, denominado “P (...) ”, sito na Rua (...) , (...) , Alcobaça, onde exerce a actividade económica de “turismo no espaço rural” (CAE 55202), que alberga turistas desde o ano de 2001 e está incluído no guia “Routard”.

2. A Ré realizou obras na “casa principal” de habitação desse imóvel em 2000 e 2001.

3. Em data não determinada, mas situada entre Outubro de 2006 e Julho de 2007, Autor e Ré conheceram-se e passou a existir um relacionamento amoroso que decorreu até Setembro de 2012.

4. Nessa altura, o Autor era sócio das sociedades “G..., Lda.” e “H... , Lda.” e gerente desta última.

5. A Ré deslocou-se por duas vezes às mencionadas empresas G... e H... .

6. Assim, o Autor passou a viver com a Ré no “P (...) ” durante alguns dias da semana, por períodos de tempo variáveis, coincidindo esses dias normalmente com o fim-de-semana na casa de habitação acima identificada.

7. Nessa sequência, o Autor dava apoio à Ré na tomada de decisões das obras a fazer em tal imóvel, colaborava com a Ré na realização das mais diversas tarefas inerentes à recepção dos turistas, e por vezes, ainda com a colaboração de empregado ou empregados contratados por esta para tal efeito.

8. Apenas nos meses de Julho e Agosto era contratada uma terceira pessoa que prestava serviço em 8 horas diárias em sete dias por semana e auferia um vencimento mensal de montante não exactamente apurado.

9. E a Ré ainda beneficiava da colaboração do Autor durante todo o ano, nas alturas em que este se encontrava no “P (...) ”, nas mais diversas áreas, desde a jardinagem, tratamento da piscina, manutenção e conservação do espaço no seu interior e exterior e por isso aquela nunca necessitou de contratar jardineiro nem pessoa que tratasse da manutenção da piscina.

10. E o Autor diligenciou no sentido de atribuir à Ré, para esta gerir os contactos do turismo, um n.º de telefone incluído no pacote contratado pela firma de que era sócio, vantagem essa de que a Ré usufruiu desde Julho de 2010 até Abril de 2013.

11. E por isso a Ré atribuiu este n.º (...) à casa de turismo, sendo através dele que recebia e efectuava todos os contactos relacionados com as reservas, bem ainda o uso de internet associado ao mesmo fim.

12. A Ré nunca pagou qualquer quantia ao Autor por tal utilização.  

13. E desde o ano de 2007 até ao ano de 2011, a solicitação do Autor, o Sr. I... , sócio do Autor e responsável pela contabilidade das firmas G... e H... (acima referidas), assegurou as obrigações de declarações fiscais da ora Ré, mediante os documentos que por esta foram facultados.

14. No verão, o Autor participava de todas as actividades com os hóspedes, a quem acompanhou no seu carro pessoal a locais de interesse turístico.

15. Em 12/9/2007 a Ré adquiriu uma piscina à “ C... ” pelo preço de €14.664,00.

16. Nessa sequência, o Autor entregou o cheque nº (...) sacado da conta da Caixa (...) do Autor, no valor de €1.664,00, emitido à ordem de “ C... ” (a empresa a quem foi adquirida a piscina).

17. E em 17/10/2007 foi efectuada transferência da conta da Ré n.º (...) , da Caixa (...) , no valor de €5.000,00 para a empresa C... (a empresa a quem foi adquirida a piscina).

18. No dia 25/10/2007 o Autor transferiu para a conta da Ré n.º (...) , da Caixa (...) , a quantia de €22.500,00, proveniente da venda de uma garagem que pertencia ao Autor, sendo que parte desta quantia destinou-se ao pagamento da referida piscina.

19. Assim, em 25/10/2007 foi efectuada transferência da conta da Ré n.º (...) , da Caixa (...) , no valor de €5.000,00 para a empresa C... (a empresa a quem foi adquirida a piscina).

20. E em 30/10/2007 foi efectuada transferência da conta da Ré n.º (...) , da Caixa (...) , no valor de €3.000,00 para a empresa C... (a empresa a quem foi adquirida a piscina).

21. O restante valor (da quantia referida de €22.500,00), que ficou na conta titulada pela ora Ré, destinou-se a ressarcir a Ré do valor que tinha pago à data da escritura a título de comissão imobiliária, no montante de €1.850,00 (mil, oitocentos e cinquenta euros), bem como ainda para pequenos empréstimos que a mesma tinha adiantado ao ora Autor, para as suas despesas e ainda para pagamentos de materiais e equipamentos.

22. Foi adquirido um termoacumulador a gás à “ L... ”, na quantia de €826,00, que foi despendida totalmente pelo Autor, através de transferência bancária.

23. Em 13 de Novembro de 2007 a Ré contraiu um empréstimo na quantia de €45.000,00 junto da Caixa (...) , quantia esta que veio a ser depositada na sua conta n.º (...) 0.

24. Entre Novembro de 2007 e Fevereiro de 2008 foram realizadas obras de edificação de um anexo, composto por três quartos, casas de banho e um alpendre, orçadas em montante não concretamente apurado, realizadas por J... e outro colaborador deste.

25. Foi ainda edificado um de muro de suporte de terras e ladrilhamento.

26. Em 2008 o “P (...) ” continuou a estar incluindo num Roteiro denominado “Guide do Routard”, e, em média, a Ré alojava um n.º diário de 50 turistas entre os meses de Junho a Setembro inclusive, uma vez que a casa possui 9 quartos, sendo 6 na casa original e três construídos pelo ora Autor no anexo construído de raiz, com 8 camas de casal, 4 camas simples, 2 camas beliche, 2 camas separadas simples, 2 camas de bebé, 4 possibilidade de camas extras, tudo nos termos da informação aposta nos sites de publicidade e das fotos alocadas na página oficial do facebook, a qual foi criada pelo Autor, tendo as fotografias que se lá encontram alocadas sido tiradas na sua maior parte pelo mesmo.

27. Para além do serviço de alojamento na casa, o terreno com uma área de 3.000 m2, possibilita ainda a acomodação em tendas de algumas dezenas de pessoas, normalmente famílias compostas por crianças, sendo que o preço desse alojamento também inclui a alimentação de pequeno-almoço e jantar.

28. E foram ainda depositadas pelo Autor na conta da Ré n.º (...) 0, da Caixa (...) , as seguintes quantias:

i. Em 29 de Julho de 2008, a quantia de €3.000,00, em numerário, proveniente de pagamentos que foram efectuados pela firma ao Autor.

ii. Em 12 de Fevereiro de 2009, a quantia de €2.000,00, em numerário, proveniente mais uma vez de valores pagos por uma das firmas de que o Autor é sócio.

iii. Em 20 de Janeiro de 2012, foi depositado o valor de €10.000,00 que identifica um movimento a crédito nesse montante no dia 20/01/2012 com a indicação de “TRF D... ”, proveniente da conta que o ora Autor titula com a sua afilhada D... , quantia esta pertencente ao Autor.

29. Durante o período de tempo em que decorreu o relacionamento amoroso entre Autor e Ré esta suportou as despesas com alimentação, água e luz correspondentes à estadia do Autor em casa da Ré.

30. Em Setembro de 2012, devido a desentendimentos, a Ré terminou a relação de namoro existente com o Autor e expulsou-o de casa, nuca lhe entregou parte dos proventos recebidos na actividade desenvolvida de “turismo no espaço rural” nem lhe devolveu qualquer outra quantia.

31. Instada a Ré pela firma G... para efectuar determinado pagamento, veio a Ré responder que desconhecia tal firma bem ainda dos alegados serviços prestados e equipamentos colocados.

*

    

Sobre a ausência de causa para o enriquecimento.

Insurge-se a apelante contra a sua condenação no pagamento/restituição da quantia de € 25.490,00 com fundamento nos pressupostos do enriquecimento sem causa, uma vez que não existiu enriquecimento por parte da Ré e houve causa para a deslocação patrimonial.

Vejamos a matéria que a este respeito foi dada como provada:

Em data não determinada mas situada entre Outubro de 2006 e Julho de 2007 Autor e Ré conheceram-se e passou a existir um relacionamento amoroso que decorreu até Setembro de 2012;

Passando o Autor a viver com a Ré no “P (...) ” durante alguns dias por semana por períodos de tempo variáveis, coincidindo esses dias normalmente com o fim de semana na casa de habitação acima identificada;

Em 12/09/2007 a Ré adquiriu uma piscina à C... pelo preço de € 14.664,00;

O Autor entregou um cheque de € 1.664,00 sacado sobre uma sua conta de Caixa ... à ordem da dita C... ;

Em 25/10/2007 foi efectuada transferência da conta da Ré n.º (...) , da Caixa (...) , no valor de € 5.000,00 para a empresa C... (a empresa a quem foi adquirida a piscina).

Em 30/10/2007 foi efectuada transferência da conta da Ré n.º (...) , da Caixa (...) , no valor de €3.000,00 para a empresa C... .

 O restante valor (da quantia referida de €22.500,00), que ficou na conta titulada pela ora Ré, destinou-se a ressarcir a Ré do valor que tinha pago à data da escritura a título de comissão imobiliária, no montante de €1.850,00 (mil, oitocentos e cinquenta euros), bem como ainda para pequenos empréstimos que a mesma tinha adiantado ao ora Autor, para as suas despesas e ainda para pagamentos de materiais e equipamentos.

Foi adquirido um termoacumulador a gás à “L... ”, na quantia de €826,00, que foi despendida totalmente pelo Autor através de transferência bancária.

 Foram ainda depositadas pelo Autor na conta da Ré n.º (...) 0, da Caixa (...) , as seguintes quantias:

i. Em 29 de Julho de 2008, a quantia de €3.000,00, em numerário, proveniente de pagamentos que foram efectuados pela firma ao Autor.

ii. Em 12 de Fevereiro de 2009, a quantia de €2.000,00, em numerário, proveniente mais uma vez de valores pagos por uma das firmas de que o Autor é sócio.

iii. Em 20 de Janeiro de 2012, foi depositado o valor de €10.000,00 que identifica um movimento a crédito nesse montante no dia 20/01/2012 com a indicação de “TRF D... ”, proveniente da conta que o ora Autor titula com a sua afilhada D... , quantia esta pertencente ao Autor.

Durante o período de tempo em que decorreu o relacionamento amoroso entre Autor e Ré esta suportou as despesas com alimentação, água e luz correspondentes à estadia do Autor em casa da Ré.

 

Deste grupo de factos decorre que em 2007 foram efectuados dois pagamentos no montante global de € 8.000,00, relativos ao custo da piscina adquirida pela Ré a C... , com dinheiro depositado pelo Autor na conta da Ré; que o Autor pagou directamente por conta do preço da mesma a importância de € 1.664,00; que pagou por transferência bancária um termoacumulador a gás (subentendendo-se que o mesmo se destinou ao “Pátio de Vale”) no valor de € 826,00; e que entre Julho de 2008 e Janeiro de 2012 foram depositadas pelo Autor numa conta da Ré as quantias de € 3.000,00, 2.000,00 e 10.000,00.

São estes os movimentos patrimoniais operados entre o património do A. e o da Ré.

Para concluir que o Autor é credor da Ré do somatório das importâncias em que se traduziram estes movimentos ou transferências patrimoniais, discorreu a sentença recorrida da seguinte forma:

“ (…) A deslocação patrimonial do Autor para a Ré, da referida quantia global de €25.490,00, teve por base, essencialmente, duas causas cumulativas, interligadas entre si.

- A relação amorosa (ou de namoro) existente entre Autor e Ré – esta foi a causa justificativa das deslocações patrimoniais referidas, por isso, com o fim dessa relação ocorrida em Setembro de 2012, deixou de subsistir a causa justificativa (ausência superveniente de causa justificativa);

- A constituição no futuro de uma sociedade entre ambos – esta sociedade a constituir no futuro consubstancia um efeito a produzir no futuro, o qual afinal não se verificou com a rotura dessa relação (ausência de causa justificativa por falta de verificação dos efeitos pretendidos).

Deste modo, no momento em que foram praticados os aludidos factos o enriquecimento da Ré/empobrecimento do Autor, na quantia global de € 25.490,00, a causa justificativa era a relação amorosa (ou de namoro) existente e ainda, cumulativamente, a constituição no futuro de uma sociedade entre ambos, as quais, em face da rotura/extinção dessa relação, aquela causa justificativa deixou de existir e este efeito tido em vista não se verificou. Ou seja, o Autor logrou provar a ausência de causa justificativa nas modalidades referidas. Nesta sequência, em face do exposto, a Ré está constituída na obrigação de restituição da apontada quantia de €25.490,00, com que injustamente se locupletou. (…)”.

Não podemos acompanhar o Sr. Juiz.    

Se não vejamos.

A obrigação de restituir fundada no injusto locupletamento à custa alheia pressupõe, de harmonia com o art.º 473, nº 1 do CC, a cumulativa verificação de três requisitos a alegar e provar pelo credor e pretenso empobrecido:

1) Que haja um enriquecimento;

2) Que o enriquecimento careça de causa justificativa;

3) Que ele tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição.

O enriquecimento implica sempre uma deslocação patrimonial positiva ou vantajosa para o enriquecido e o correspectivo e recíproco sacrifício ou efeito patrimonial pejorativo em outrem (a danno di una altra persona, na elucidativa fórmula do art.º 2041 do Código Italiano).

Para ser injusto o facto (do enriquecimento-empobrecimento) deve ainda carecer de causa. Esta causa tem de ser apreciada segundo o direito constituído, não correspondendo ao mero conceito naturalístico. Na realidade, todo o facto humano, mesmo involuntário, tem uma causa que radica em uma dada conduta, conduta de algum modo proveniente do desenvolvimento racional da actividade humana. Neste sentido, todo o enriquecimento tem causa (naturalística). Esta causa naturalística comporta-se, assim, como o contexto cuja interpretação nos conduz à eventual causa jurídica da deslocação. Mas na acepção técnico-jurídica que agora interessa o enriquecimento só é injusto/injustifcado porque, segundo a própria lei, ele deve pertencer a outro (A. Varela, Das Obrigações em Geral, 2ª edição, p. 367).

Fala-se aqui de legitimidade da causa para se significar que a causa que aqui releva é aquela que tem a cobertura da ordem jurídica.   

A ausência da causa do enriquecimento tanto pode ser originária como superveniente, ou seja, pode corresponder a um fim que, podendo nascer, não veio nunca a ocorrer; que nunca pôde existir desde o momento da deslocação patrimonial; ou que, embora existindo no referido momento veio, todavia, a desaparecer – art.º 473, nº 2 do CC.

O desaparecimento da mera causa naturalística não torna a deslocação patrimonial injusta.

É só a extinção da causa jurídica – sem que a lei preveja outro meio de correcção/restituição – que implica essa injustificação.

Operando-se a deslocação patrimonial através de uma prestação que visa satisfazer uma obrigação, a respectiva causa será a relação jurídica que ela visa satisfazer. Se esta relação nunca se constituiu, ou é seguro que já não vai constituir-se, deve considerar-se que aquela deslocação perdeu a sua causa (necessariamente a sua causa segundo o direito).

Justamente porque a lei parte do pressuposto de que, em normalidade, para além de uma causa ou de um motivo naturalístico, toda a deslocação patrimonial tem um fundamento legítimo – considerada a ordem jurídica no seu todo – é que não é ao demandado/enriquecido que cabe provar a causa jurídica da deslocação mas antes ao demandante/empobrecido que compete alegar e provar a inexistência ou subsequente desaparecimento dessa causa jurídica.

Ora é neste quadro que importa ver se houve enriquecimento da Ré; e, a ter ele existido efectivamente, se não teve causa legítima, isto é, uma causa sancionada pela ordem jurídica no seu todo.

Não se comprovou que Autor e Ré se encontrassem a cooperar com vista à futura constituição de uma sociedade com participações iguais.

Se isso se verificasse haveria que indagar se alguma ou algumas das deslocações patrimoniais se poderiam integrar nesse efeito com relevância jurídica, efeito que veio a ficar inviabilizado.

Certo é que apenas ficou demonstrado que Autor e Ré encetaram um relacionamento amoroso. E que esse relacionamento perdurou durante vários anos, levando a que ambos vivessem no P (...) durante alguns dias de semana por períodos de tempo variáveis, arcando a Ré com as despesas com alimentação, água e luz correspondentes à estadia do Autor.

Uma união de facto, ou um relacionamento entre duas pessoas em que intermitente e regularmente se verifica uma convivência análoga à união de facto, representa, sem mais, a causa naturalística de movimentos ou deslocações patrimoniais entre os unidos ou relacionados.

Mas a causa jurídica das deslocações patrimoniais que aí se produzam residirá normalmente na disponibilização intencional de um contributo equitativo ou equilibrado para os encargos da convivência comum. Situação que afasta logo o enriquecimento/empobrecimento de qualquer deles.

Constatando-se que o valor transferido ou deslocado excede o que – atentas as concretas condições da relação – se poderia ter como contributo equitativo e proporcional, impor-se-á então averiguar se para ele não houve causa jurídica, uma vez, como se disse, a obrigação de restituir depende da prova desse facto negativo.

Ora, também no âmbito de uma relação de facto semelhante ou próxima daquela que ocorre no casamento pode defender-se que o dever de contribuição recaia sobre ambos os seus membros, de acordo com o princípio plasmado no art.º 1676 do CC.

Em função deste princípio, na ponderação das contribuições de cada um dos elementos, é de atender – ao lado das prestações pecuniárias – às prestações de trabalho de qualquer deles no quadro da vida em comum, prestações que deverão entrar num cômputo global, sem uma exacta contabilização e sem que os eventuais excessos sejam susceptíveis de uma acção restitutória por parte do elemento eventualmente avantajado[1].  

No caso concreto, há que ter em atenção tanto a natureza como os montantes das importâncias do Autor que transitaram para o património da Ré.

 

Afigura-se-nos que os valores que dizem respeito aos depósitos efectuados em 2009 e 2012 em contas da Ré são perfeitamente consentâneos com a contribuição que seria exigível ao Autor para os encargos comuns, atento que desde 2007 também a Ré arcou com as despesas de alimentação, água e luz inerentes à respectiva estadia (que só cessou em Setembro de 2012).

Também não repugna integrar no âmbito de tal contribuição a aquisição do termoacumulador a gás a que se reporta o facto provado em 22.

Poder-se-á hesitar na qualificação como contribuição do Autor para os encargos comuns em relação aos € 9.664,00 que em 2007 foram integrar a conta da Ré da Caixa (...) mencionada nos factos provados em 17 a 20, porquanto essa quantia serviu para o pagamento de uma piscina adquirida pela Ré.

Dito doutro modo, seria admissível ver nessa deslocação um certo enriquecimento da Ré à custa do Autor, uma vez que a quantia em apreço parece ir além da dita contribuição para a vida em comum.

Colocar-se-ia então o problema da causa

Mas aqui era ao Autor que cabia alegar e provar a falta de qualquer causa que legitimasse a integração daquela verba na conta da Ré.

E, na realidade, alegou que realizou esse movimento patrimonial[2] (como outros) num pressuposto que nunca se veio a concretizar.

Só que não logrou tal prova.

Nomeadamente, não conseguiu o Autor provar a invocada “parceria” com a Ré que funcionaria como antecâmara de uma futura sociedade.

Aliás, não foi sequer alegado que os montantes do A. depositados na conta da Ré em 25 e 30/10/2007 – cfr. os factos provados em 18 a 20  montantes que esta destinou ao pagamento da piscina, se achassem abrangidos pela denominada “parceria” (na verdade, o que se encontra provado é apenas que esses montantes foram parar a uma conta da Ré e que com eles esta pagou parte do valor da piscina).

No insucesso daquela demonstração, há que presumir que com o movimento patrimonial descrito foi intenção do A. contemplar a Ré com um benefício, atento o tipo de relacionamento que se verificava entre ambos[3].

Isto é, há que presumir que, à luz da relação convivencial que existia, a causa jurídica para a deslocação patrimonial verificada foi a liberalidade que o Autor quis praticar em favor da Ré.

Acontecendo que esta causa jurídica não podia extinguir-se – como é óbvio – com a extinção daquela relação (mera causa naturalística da deslocação).

Não há, por conseguinte, motivo para qualquer restituição por banda da Ré.

Daí que a acção deva naufragar e a sentença recorrida não possa ser mantida.

 

Pelo exposto, na procedência da apelação, revogam a sentença recorrida, em consequência do que julgam a acção improcedente e absolvem a Ré de todo o pedido formulado.

Custas pelo A. e apelado.

Sumariando:


1. A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa pressupõe a falta de causa jurídica para a deslocação patrimonial, a qual tem de ser alegada e provada pelo respectivo credor.
2. Numa relação convivencial análoga ou próxima da união de facto, cada um dos membros deve contribuir para os encargos comuns segundo as suas possibilidades, sendo essa a causa normal para as deslocações patrimoniais que entre eles ocorram.
3. Compete ao membro dessa relação que invocar o enriquecimento do outro alegar e provar quaisquer circunstâncias que afastem a presunção de que houve intenção de doar os valores deslocados que excedam aquela contribuição.

Freitas Neto (Relator)

Adjuntos:

1º - Carlos Barreira

2º - Barateiro Martins


[1] Neste sentido, ainda que para um caso qualificado de união de facto, cfr. a anotação de Francisco Pereira Coelho ao Acórdão do STJ de 20-03-2014, na RLJ nº 3395, p. 109 e seguintes.
[2] O Autor vai ao ponto de afirmar que foi ele quem pagou a piscina – cfr. o art.º 17º da p.i..
[3] Em sentido diferente, propugnando que “em caso de dúvida sobre a própria causa (gratuita ou onerosa) com que é feita determinada atribuição patrimonial se não deve presumir uma causa gratuita”, cfr. a já citada Anotação de F. Pereira Coelho ao aludido Ac. do STJ de 20.03.2014, na RLJ, com a loc. já apontada.
Mas se em tese geral esta doutrina é absolutamente inquestionável, já nos parece que nas atribuições que correntemente têm lugar no âmbito de situações de união de facto, ou de análoga convivência intermitente, a dita presunção (de gratuitidade) está plenamente justificada, isto é, não haverá nenhum caso de dúvida.