Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
91/14.7T8SEI.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
CABEÇA-DE-CASAL
TRANSMISSÃO DA OBRIGAÇÃO DE PRESTAR CONTAS
Data do Acordão: 02/02/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA – INSTÂNCIA LOCAL DE SEIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 2080º, 2087º A 2091º E 2093º Nº 1 DO CC
Sumário: 1 - O cargo de cabeça-de-casal não é transmissível em vida nem por morte, porém, uma coisa é o cargo de cabeça-de-casal – que não se transmite e que se extingue com a sua morte – e outra, diversa, a obrigação de prestar contas que, tendo natureza eminentemente patrimonial, constitui objecto de sucessão e se transmite aos herdeiros (do cabeça-de-casal).

2 - Porém, se tais herdeiros (do cabeça-de-casal que não prestou contas) são também herdeiros da primeira herança (em que as contas não foram prestadas) – como é o caso dos irmãos nas heranças dos seus pais – não podem exigir uns dos outros a prestação de contas em falta (por serem devedores e credores da mesma obrigação).

Decisão Texto Integral:

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

A... e B..., com os sinais dos autos, intentaram a presente acção especial de prestação de contas contra C... , também identificado nos autos.

Alegaram, em resumo, que o A. marido e o R. são irmãos, sendo filhos e herdeiros de D... , falecido em 05/09/2002, e de E... , falecida em 09/08/2014.

Mais referiram que as heranças dos pais se encontram por partilhar, tendo sido cabeça-de-casal a E... até ao seu decesso e passando a ser, desde aí, cabeça-de-casal o R.; razão pela qual, segundo os AA., está o R. obrigado a prestar contas, quer da sua própria administração, quer da administração da falecida E... , por esta nunca as haver prestado.

O R. contestou; sustentando, em síntese, quanto à sua administração, que a mãe de ambos faleceu há menos de 1 ano; e, quanto à administração da falecida E... , que não tem (por não ser, até ao decesso da E... , cabeça-de-casal da herança aberta por óbito do pai de ambos) qualquer obrigação em prestar contas em relação ao A..

Findos os articulados[1], a instância foi declarada regular (estado em que se mantém); após o que, entendendo o Exmo. Juiz que os autos contêm todos os elementos para uma decisão – sobre a obrigação, ou não, de prestação de contas por parte do R. (cfr. art.942.º/3 do CPC) – passou de imediato a apreciá-los e a proferir sentença em que, a final, decidiu:

“ (…) Face a tudo o exposto, afigurando-se a vertente acção relativamente à administração da herança aberta por óbito de D... inútil, entende-se existir, nesta parte, uma inutilidade da lide que é causa de extinção parcial dos vertentes autos, o que se determina.

Quanto à prestação de contas relativa à gestão da herança aberta por óbito de E... , falecida a 09 de Agosto de 2014, considerando que à data da interposição da acção (30-10-2014) ainda não tinha decorrido o período de um ano, consideramos a pretensão dos requerentes extemporânea, atento o disposto no artigo 2093.º, do Código Civil, entendendo-se existir neste caso uma impossibilidade da lide, geradora da extinção da instância nesta parte.

Tudo conjugado, na vertente acção de prestação de contas, determina-se a extinção dos presentes autos por inutilidade e impossibilidade da lide, nos termos do artigo 277.º/alínea e), do Código de Processo Civil. (…)”

Inconformados com tal decisão, interpuseram os AA. recurso de apelação, visando a sua revogação parcial e a sua substituição por outra que determine o prosseguimento dos autos.

Terminaram a sua alegação com as seguintes conclusões:

1.ª O Tribunal «a quo» não decidiu que o Requerido C... não estava obrigado à prestação de contas, mas sim que pelo facto de ocupar a mesma posição sucessória que os Requerentes (herdeiro), nunca poderia ser condenado no pagamento do “saldo que se viesse a apurar”, resultando daqui a inutilidade da presente instância;

2.ª Como resulta, pelo menos, do alegado em 7 a 11 e 15 a 17 da Contestação do Requerido e 15.º, 21.º e 22.º da Resposta dos ora Recorrentes, mantém-se por se decidir matéria relevante e ainda controvertida que o Tribunal «a quo» resolveu, desta forma, não apreciar;

3.ª Foi algo precipitada aos Recorrentes a Decisão ora Recorrida quando ainda se mantém, por discutir e decidir, matéria relevante e controvertida para a própria decisão final;

4.ª Mostrando-se confessado pelo Requerido nos autos que a falecida Ex.ª Sr.ª E... administrou os bens que compunham a herança do falecido marido, as funções de administração dos bens da herança passaram a ser exercidas por aquela, com o auxílio (ou não) do seu filho C... , matéria essa ainda, contudo, controvertida e não decidida, sempre impenderia sobre aquela, não fora a circunstância de já ter falecido, a obrigação de prestar contas relativas aos bens que compõem a herança aberta por óbito de seu marido, D... ;

5.ª De acordo com o enquadramento jurídico do tipo de ação em causa, a reconhecida, vinculação na prestação de contas por parte da Ex.ª Sr.ª E... é, inquestionavelmente, como até o reconhece a Decisão ora Recorrida, uma vinculação patrimonial e, neste sentido, transmissível;

6.ª Afastada que está qualquer causa de “intransmissibilidade” da vinculação, pois não resulta dos autos, estando mesmo vedado por lei, por um lado, qualquer vontade da Ex.ª Sr.ª E... a dispor a extinção da obrigação de prestar as aludidas contas, à sua morte e, por outro lado, a própria obrigação de prestação de contas também não se extingue por virtude da morte do respetivo titular, nada impede a substituição naquela obrigação de prestar contas nem se descortina que o nosso ordenamento jurídico normativo preceitue que a obrigação de prestação de contas encerra uma natureza que impõe necessariamente a sua não sobrevivência ao respetivo obrigado;

7.ª A morte da Ex.ª Sr.ª E... é o facto gerador da vinculação do Requerido uma vez concretizados todos os elementos para o efeito: a morte do titular das relações jurídicas patrimoniais; a vocação do sucessor; a subsequente devolução dos bens e a manutenção da identidade das relações jurídico patrimoniais a despeito da mudança operada nos seus titulares;

8.ª A prevalecer o raciocínio plasmado na Decisão Recorrida, teria de concluir-se pelo absurdo de que, falecida a mãe antes de lhe ser exigida a prestação de contas, tais contas jamais poderiam ser obtidas por via forçada, ficando um limbo de irresponsabilidade que cessaria com a morte da responsável pela sua prestação;

9.ª A obrigação de prestação de contas é uma obrigação de natureza patrimonial, cumprida em forma de conta corrente que pode implicar, a final, a distribuição de saldo pelos interessados, de acordo com o direito de cada um e depois de deduzida a quantia necessária para os encargos do novo ano e exemplo de vinculado por disposição legal específica ao dever de prestar de contas é, precisamente, o Cabeça de Casal (cfr. art.º 2093.º do CC);

10.ª Reconhecido que a herança encerra o conjunto de princípios jurídicos que disciplinam a transmissão do património de uma pessoa e demonstrado que a falecida Ex.ª Sr.ª E... administrou os bens que compõem a herança do falecido marido, sendo esta uma vinculação patrimonial, incumbirá à herança daquela, representada pelo Cabeça de Casal e Requerido, prestar aos ora Recorrentes as contas relativas aos bens que compõem a herança daquele falecido obrigação esta balizada no período que medeia entre a morte deste até à data em que a presente acção deu entrada em juízo, tal como peticionado;

11.ª Entende-se que o Tribunal “a quo“ andou mal ao não ter reconhecido o pedido formulado pelos ora Recorrentes na pretendida prestação de contas por parte do Requerido, mesmo independentemente do auxílio deste (ou não) naquela administração por parte da falecida Ex.ª Sr.ª E... , matéria essa que, no entanto, se reconhece que ainda permanece controvertida e não decidida;

12.ª Não colhe o argumento de que o Requerido e os ora Recorrentes se encontram em “pé de igualdade” entre si, na medida em que aquele, como reconheceu nos presentes autos, mostra-se investido num cargo que aqueles não têm, como seja, o de Cabeça de Casal da Herança Aberta por óbito da falecida Ex.ª Sr.ª E... ;

13.ª A presente ação não deve ser extinta pelo facto de ser extemporânea a pretensão dos ora Recorrentes ao pretender que o Requerido preste contas relativas à gestão da herança aberta por óbito da Ex.ª Sr.ª E... , ocorrido em 09/08/2014;

14.ª Na verdade, decorre de uma leitura atenta da petição inicial que os ora Recorrentes não peticionaram, em bom rigor, a obrigação do Requerido na prestação de contas relativas à gestão ocorrida desde a morte da mãe ocorrida em 09/08/2014 até à data da apresentação dos autos em juízo mas sim a obrigação da prestação de contas por parte deste respeitante ao período que medeia entre a morte do pai D... até à data em que a presente acção deu entrada em juízo;

15.ª Quem, como resulta dos autos, o fez de forma espontânea e/ou voluntária foi o próprio Requerido, aplicando-se o art.º 946.º do CPC, devendo os autos prosseguir para a sua apreciação, porquanto se trata de matéria controvertida e os ora Recorrentes nunca se manifestaram satisfeitos com as mesmas;

16.ª Mostram-se violados, com a Decisão Recorrida, os art.os 573.º, 2079.º, 2087.º e 2093.º do CC assim como os art.os 941.º e 946.º do CPC;

17.ª Deve a Decisão Recorrida ser revogada e substituída por outra que decida pelo prosseguimento dos autos e, a final, pela obrigação da prestação de contas por parte do Requerido quanto ao período entre o falecimento do Ex.º Sr. D... até à data em que a presente acção deu entrada em juízo, assim como pela apreciação das contas prestadas voluntariamente por aquele.

Não foi apresentada qualquer resposta.

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


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II – Fundamentação de Facto

Os elementos factuais pertinentes constam já do relatório precedente e podem ser resumidos no seguinte:

1. O autor marido e o réu são filhos de D... , falecido em 05 de Setembro de 2002 e de E... , falecida em 09 de Agosto de 2014.

2. A falecida E... , desde a morte do seu marido, de cuja herança era a cabeça-de-casal, não ofereceu nem prestou contas aos restantes herdeiros, mormente aos autores.

3. O réu é cabeça-de-casal da herança aberta por morte de sua mãe.


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III – Fundamentação de Direito

A acção de prestação de contas, nos termos do art. 941.º do CPC (1014.º do VCPC), pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.

Pressupõe pois (a norma processual do art. 941.ºdo CPC) a existência de normas de direito substantivo que imponham a obrigação de prestar contas.

Obrigação esta, de prestar contas, que é estruturalmente uma obrigação de informação, que existe sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias; e cujo fim é estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas, de modo a obter-se a definição dum saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito.

Obrigação que se encontra casuisticamente consagrada em várias/inúmeras normas da lei[2]; razão por que é usual afirmar-se, dada a frequência com que a lei a estabelece, que “quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração, ao titular desses bens ou interesses[3] ou, dito doutro modo, que tal obrigação tem lugar todas as vezes que alguém trate de negócios alheios ou de negócios, ao mesmo tempo, alheios e próprios[4].

É, à partida e prima facie, o caso dos autos.

Quando alguém falece, até a sua herança estar liquidada ou partilhada, pertence a respectiva administração, desde a abertura da sucessão, a um cabeça-de-casal, a quem a lei defere, ex lege (cfr. 2080.º do C. Civil) e sem necessidade de uma acto jurídico de aceitação, o cargo/cabeçalato.

E a administração da herança por parte de tal cabeça-de-casal é uma das situações em que a lei prevê expressamente a obrigação de prestar contas, na medida em que se diz no art. 2093.º/1 do C. Civil que “o cabeça-de-casal deve prestar contas anualmente”.

Assim, sendo o R. o actual cabeça-de-casal (ex vi art. 2080.º do C. Civil) das heranças (não liquidadas ou partilhadas) abertas por morte do pai e da mãe, bastou ao A. marido (seu irmão e interessado em tais heranças), para pedir as contas, dizer que o R. exerce o referido cargo e que as contas ainda não foram prestadas.

Obrigação de prestar contas que, em abstracto, o R. não contestou, dizendo, porém, que a sua obrigação não tem o perímetro temporal pretendido/exigido pelo A. marido e que, quanto às contas que estará obrigado a prestar, tal só acontece ao fim de estar um ano investido no cargo (o que estava muito longe de acontecer na data da PI).

Argumentação esta que foi grosso modo acolhida na sentença recorrida; em que se expendeu o seguinte:

“ (…) a acção de prestação de contas consubstancia-se como uma acção declarativa de condenação, em que se visa “apurar quem deve e o que deve”. (…) tem em mira a definição de um quantitativo como saldo.

Encontrando-nos “perante um processo especial pré-modelado”, temos de concluir que o pedido de prestação de contas envolve necessariamente um pedido de condenação no pagamento do saldo apurado. (…) a finalidade do processo de prestação de contas é, naturalmente, o apuramento do saldo resultante da receita e da despesa envolvente. (…)

Tendo o réu contestado a obrigação de prestação de contas (por óbito do pai), por ora impõe-se apenas decidir da obrigatoriedade ou não da sua prestação. (…)

No caso, quanto à herança aberta por óbito de D... , pai de autor e do réu, falecido a 05/09/02, a sua administração cabia à mãe do autor e réu, enquanto cabeça-de-casal da mesma (artigo 2080.º/1/alínea a), do Código Civil).

Isso mesmo resulta da alegação dos autores no artigo 5.º, do respectivo articulado, em sede do qual se exara que «falecida E... , desde a morte do seu marido, apesar de existirem contas e saldos bancários à morte deste, não ofereceu nem prestou contas aos restantes herdeiros, mormente aos autores.»

Neste sentido, em lado nenhum da petição inicial os autores fundam a sua pretensão na obrigação do réu prestar contas pela gestão de facto da herança aberta por óbito do pai.

Ao invés, fundam a sua pretensão no carácter patrimonial da obrigação e, logo, não sendo uma obrigação insusceptível de sucessão e não estando a sua transmissão afastada por lei, a mesma é transmissível por via hereditária, incumbindo, pois, aos herdeiros do cabeça-de-casal que dela se não desobrigou.

Que dizer?

Antes de mais, que se concorda integralmente com o sobredito entendimento no sentido do carácter patrimonial da obrigação de prestar contas e, logo, não sendo uma obrigação insusceptível de sucessão e não estando a sua transmissão afastada por lei, a mesma é transmissível por via hereditária, incumbindo, pois, aos herdeiros do cabeça-de-casal que dela se não desobrigou (…)

Concluímos, a par da jurisprudência e doutrina citadas, ter natureza patrimonial a obrigação de prestar contas, nomeadamente do cabeça de casal, in casu referente ao período de tempo em que a falecida cabeça de casal exerceu o cabeçalato, e, que assim, se transmite aos herdeiros por via sucessória» (…)

Porém, no caso ajuizado (…) a questão que se coloca prende-se sobretudo com a utilidade dos presentes autos relativamente à herança aberta por óbito de D... .

Com efeito, como acima dissemos e não podemos olvidar, encontrando nos “perante um processo especial pré-modelado”, temos de concluir que o pedido de prestação de contas envolve necessariamente um pedido de condenação no pagamento do saldo apurado.

Este é, na verdade, o desiderato último da acção de prestação de contas.

Ora, in casu, que sentido faz indagar da administração da herança do falecido D... levada a cabo pela sua esposa E... , no sentido de apurar um qualquer saldo, quando em relação ao saldo que se viesse a apurar, todos os herdeiros, autores e réu no caso, estão em pé de igualdade.

Trata-se, com efeito, a nosso ver, de uma prestação de contas perfeitamente inútil.

Na verdade, jamais se poderia condenar o réu no pagamento aos autores do saldo que se viesse a apurar (sendo ele a favor dos demais herdeiros contra a desditosa), como jamais o réu poderia embolsar o saldo que se viesse a apurar a favor da referida E... , pela simples razão de que o mesmo intervém como mero herdeiro daquela, comungando da mesmíssima exacta posição sucessória.

Observe-se que em todos os sobreditos arestos a situação é distinta da analisada, posto que naqueles a questão da transmissibilidade da obrigação de prestação de contas era suscitada por um terceiro e não por um qualquer herdeiro do obrigado à prestação de contas.

Pelo que, da forma como vemos, a vertente acção relativamente à administração da herança aberta por óbito de D... é perfeitamente inútil, o que gera uma inutilidade da lide que é causa de extinção parcial dos vertentes autos.

(…)

Quanto à prestação de contas relativa à gestão da herança aberta por óbito de E... , falecida aos 09/08/2014, considerando que à data da interposição da acção (30-10-2014) ainda não tinha decorrido o período de um ano, e sendo certo que tal administração ainda não cessou, consideramos a pretensão dos requerentes extemporânea, atento o disposto no artigo 2093.º, do Código Civil.

Com efeito, previne o artigo 2093.º/1, do Código Civil que «o cabeça-de-casal deve prestar contas anualmente».

Nos termos do n.º3, «havendo saldo positivo, é distribuído pelos interessados, segundo o seu direito, depois de deduzida a quantia necessária para os encargos do novo ano».

Como tem sido entendido, o citado n.º1, deve ser interpretado no sentido de que visa estabelecer a periodicidade com que o cabeça-de-casal está obrigado a prestar contas da administração da herança, caso lhe sejam exigidas.

Tal normativo visa, com efeito, estabelecer a periodicidade da obrigação de prestação de contas.

Compreende-se a necessidade de estabelecer uma periodicidade com a latitude da consagrada, ponderando a necessidade de gerar uma certa estabilidade no cargo, tendo presente que o fluxo de despesas e receitas nem sempre é coevo e, ao mesmo tempo, obstar a que, do ponto de vista processual, seja possível, em tese, desencadear centenas de processos, designadamente, em tese, um por cada dia de gestão.

Nesta medida, quanto à prestação de contas relativa à gestão da herança aberta por óbito de E... , falecida aos 09/08/14, considerando que à data da interposição da acção (30-10-2014) ainda não tinha decorrido o período de um ano, e sendo certo que tal administração ainda não cessou, consideramos a pretensão dos requerentes extemporânea, atento o disposto no artigo 2093.º, do Código Civil.

Donde, entende-se existir neste caso uma impossibilidade da lide, geradora da extinção da instância nesta parte. (…)”

Que dizer?

Que se concorda com o essencial da argumentação, percurso e raciocínios jurídicos expendidos, porém, a final, em face do que se expôs, concluímos que não estamos “apenas” perante uma impossibilidade da lide.

Vejamos:

Quanto às contas, até à morte da mãe, da administração pela mãe da herança aberta por morte do pai:

Como se começou por referir, pode ser enunciado, como princípio, que quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração, ao titular desses bens ou interesses; o que a contrario significa – é uma redundância – que não se é obrigado a prestar contas de administrações feitas por outrem.

O que não implica que contas possam ficar frequentemente por efectuar, uma vez que, no processo especial em que nos encontramos, se aquele que as deve prestar o não fizer, é o autor chamado a apresentar as contas.

E na hipótese daquele que administrou os bens ou interesses alheios (obrigado à prestação de contas) falecer sem prestar as contas continua a manter-se tal obrigação, uma vez que ficam obrigados à prestação de contas (e serão RR. no processo especial) os seus herdeiros.

Os seus herdeiros, insiste-se, e não o cabeça-de-casal (como resulta da economia dos art. 2087.º a 2091.º do C. Civil) da herança aberta por morte do administrador que faleceu sem prestar contas.

Ora, é esta distinção – sendo o R., como é o caso, herdeiro e cabeça-de-casal da herança do administrador (anterior cabeça-de-casal) que não prestou contas – que, com todo o respeito, os AA/apelantes não estabelecem.

No caso da herança (e da administração da herança), existe uma norma a dizer que o “cargo de cabeça-de-casal não é transmissível em vida nem por morte” (art. 2095.º do C. Civil)[5]; entendendo-se, porém, que uma coisa é o cargo de cabeça-de-casal – que não se transmite e que se extingue com a sua morte – e outra, diversa, a obrigação de prestar contas que, tendo natureza eminentemente patrimonial, constitui objecto de sucessão e se transmite aos herdeiros (do cabeça-de-casal).

Entendimento, com que se concorda, em que recorrentemente se cita a passagem em que o Dr. Lopes Cardoso (In Partilhas Judiciais, Vol. III, pág. 57, 3.ª ed.) diz que a obrigação de prestar contas “é transmissível via hereditária, incumbindo, pois, aos herdeiros do cabeça-de-casal que dela não se desobrigou[6].

Mas isto – tal entendimento – apenas quer dizer, para o caso presente, que a obrigação de prestar as contas que a falecida E... não prestou se transmitiu ao A. marido e ao R., enquanto herdeiros; e não apenas ao R. como “novo” cabeça de casal.

A “bondade” da distinção que vimos de dizer torna-se evidente, a nosso ver, se pensarmos na hipótese de alguém, como o A. marido, haver intentado o presente processo especial de prestação de contas ainda em vida da mãe.

Em tal hipótese, sendo a acção de prestação de contas um litisconsórcio natural, activo e passivo, o autor/demandante teria que ter suscitado o incidente de intervenção principal dos demais herdeiros (do aqui R.) como forma de assegurar a sua legitimidade activa; pelo que, falecendo a mãe (e R. em tal acção de prestação de contas) e estando os demais herdeiros (o aqui R.) a intervir já do lado activo, não haveria quem pudesse ser habilitado em substituição da falecida mãe (estavam ambos os filhos e herdeiros já do lado activo do processo) e a respectiva instância teria forçosamente que ser extinta por impossibilidade de continuação.

Foi sobre semelhante hipótese que se debruçou o Ac STJ de 29/11/2005, in CJ 2005, Tomo III, pág. 149/51, concluindo, estando o processo pendente à data do decesso da cabeça-de-casal (que não havia prestado as contas), pela extinção da instância por impossibilidade superveniente, mas não deixando de referir que o “direito à prestação de contas pedidas à sua falecida mãe não pode ser exercido contra o seu irmão que nunca foi cabeça de casal da herança aberta por óbito do pai de ambos”.

É este o ponto, falecida a mãe sem prestar contas, estamos perante uma verdadeira “confusão” – reunião nas mesmas pessoas das qualidades de credor e devedor da mesma obrigação, levando à extinção do crédito e da dívida (cfr. art. 868.º do C. Civil) – na medida em que ambos (A. marido e R., na qualidade de herdeiros do pai) podem pedir a prestação de contas da administração da herança aberta pela morte do pai (até ao falecimento da mãe), sendo ainda eles que, agora como herdeiros da falecida E... , também estão obrigados à prestação de tais contas.

É por tudo isto que começámos por dizer que, concordando com o essencial da argumentação, percurso e raciocínios jurídicos, entendemos não estar “apenas” perante uma impossibilidade da lide.

Se acção já estivesse pendente no momento do decesso da E... seria, concorda-se, impossibilidade superveniente da lide, porém, tendo a acção sido intentada após o seu falecimento, o que há, verdadeiramente, é falta de direito do A. marido sobre o R. (quanto às contas da administração da E... ), pelo que o desfecho deve ser a improcedência, ou seja, a decisão deve dizer que o R. não está obrigado a prestar tais contas[7].

E não se diga (como os AA/apelantes fazem nas conclusões 2.ª e 3.ª) que o processo não pode ser já decidido, por “ainda se manter, por discutir e decidir, matéria relevante e controvertida para a própria decisão final”.

É indiscutível da leitura da PI que os AA. fundam a obrigação de prestar contas do R. apenas na circunstância deste ser o actual cabeça-de-casal; dizem que a “falecida E... , desde a morte do seu marido, apesar de existirem contas e saldos bancários à morte deste, não ofereceu nem prestou contas aos restantes herdeiros, mormente aos autores” e invocam que tal obrigação, que a E... não cumpriu, se transmitiu, razão pela qual demandam o aqui R/apelado.

Não dizem os AA. na PI – aliás, seria contraditório – que a sua pretensão se funda na circunstância da administração da herança aberta por óbito do pai ser de facto exclusivamente efectuada pelo aqui R/apelado; e este, nos art. 7 a 11 e 15 a 17 da sua contestação, não contradiz os AA., ou seja, diz que foi sempre a mãe de ambos que exerceu o cargo de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito do pai.

Depois, é verdade, os AA., nos art. 21.º e 22.º da resposta, procuram alterar um pouco a sua versão factual, dizendo que era o R. “que tratava efectivamente de todos os assuntos da herança do pai”, porém, para além de ser questionável que tal alegação possa/deva significar que o R. era e agia como se fosse o administrador da herança, não serve a resposta para se alegarem factos opostos aos alegados na PI[8], principalmente quando, como é o caso, o que foi alegado na PI até já foi aceite pela parte contrária (cfr. 46.º do CPC).


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Quanto às contas, após a morte da mãe, da administração pelo R. de ambas as heranças:

Aqui, atento o disposto no artigo 2093.º/1 do C. Civil – segundo o qual «o cabeça-de-casal deve prestar contas anualmente» – a extemporaneidade da pretensão dos AA. (deduzida menos de 3 meses sobre o decesso da mãe) é indiscutível.

E também aqui – entendendo-se que o preceito estabelece a periodicidade com que o cabeça-de-casal está obrigado a prestar contas da administração da herança, caso lhe sejam exigidas – o desfecho processual deve ser a improcedência, ou seja, a decisão deve dizer que o R. não está obrigado a prestar por ora tais contas.


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Improcede pois “in totum” tudo o que os AA/apelantes invocaram e concluíram na sua alegação recursiva, o que determina o naufrágio da apelação e a confirmação do sentenciado na 1ª instância – embora rectificado nos seus termos conclusivos – que não merece os reparos que se lhe apontam, nem viola qualquer uma das disposições indicadas.
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IV - Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar totalmente improcedente a apelação e, consequentemente, confirma-se a sentença recorrida, determinando-se, porém, em vez da extinção dos autos por inutilidade e impossibilidade superveniente, que o processo finda por o R. não estar obrigado a prestar contas da administração do cargo de cabeça-de-casal exercido pela mãe e por o R. não estar por ora ainda obrigado a prestar contas da administração do cargo de cabeça-de-casal por si exercido.

Custas, em ambas as instâncias, pelos AA./apelantes.


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Coimbra, 02/02/2016

(Barateiro Martins - Relator)

(Arlindo Oliveira)

(Emídio Santos)


[1] Houve outros – além da PI e da contestação – em que as partes se limitaram a reafirmar as suas anteriores posições.
[2] Podendo também resultar do princípio da boa fé ou de negócio jurídico.
[3] Alberto dos Reis, Processos especiais, Vol. I, pág. 303.
[4] Cfr. Ac. TRL de 24/05/1990, in CJ, III, pág. 125/7.
[5] Não sendo assim objecto de sucessão tal relação jurídica (cabeçalato) que se extingue por morte do respectivo titular por força da lei (art. 2025.º/1 do C. Civil).

[6] Repare-se, a citação diz que incumbe aos herdeiros do cabeça-de-casal e não que incumbe ao (novo) cabeça-de-casal da herança aberta por morte do cabeça-de-casal que não se desobrigou.

[7] Pode dizer-se, como a sentença recorrida faz, que, em termos práticos, nas relações entre o A. marido e o R., a prestação de contas seria inútil, na medida em que não poderia condenar-se o R. no pagamento do saldo que se viesse a apurar; mas, sendo assim, se só as forças da herança da falecida mãe (património autónomo esse em que A. marido e R. têm a mesmíssima posição jurídico-sucessória) poderiam ser obrigadas a satisfazer o saldo que se viesse a apurar, a inutilidade é acima de tudo uma consequência da falta de direito do A. marido sobre o R.; ou seja, não estamos perante uma questão processual (de impossibilidade/inutilidade) estamos, isso sim, perante uma questão substantiva (de mérito) que conduz inevitavelmente à improcedência da pretensão.

[8] Não serve para alegar, isto é, não estamos a aludir à prova/demonstração do que se alega, em que, claro está, se colocaria a questão da credibilidade que deve merecer alguém que diz uma coisa e o seu contrário.