Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1469/11.3T2AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: UNIÃO DE FACTO
PRESTAÇÃO SOCIAL
SEGURANÇA SOCIAL
INTERESSE EM AGIR
Data do Acordão: 03/06/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE GR. INST. CÍVEL DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: LEIS NºS 7/2001, DE 11/05 E 23/2010, DE 30/08
Sumário: Na vigência do regime resultante das alterações introduzidas na Lei nº 7/2001, de 11/05, pela Lei nº 23/2010, de 30/08, carece de interesse em agir – com a consequente absolvição do R. da instância – o unido de facto sobrevivo que intenta contra o Instituto da Segurança Social, I. P., acção destinada à declaração de que é titular das prestações por morte do unido de facto beneficiário da segurança social não casado ou separado judicialmente de pessoas e bens.
Decisão Texto Integral:          Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

         1. RELATÓRIO

A…, solteira, médica, residente na Rua …, intentou, em 08/08/2011, acção declarativa, com processo comum e forma ordinária, contra o Instituto de Segurança Social, I.P., com sede no Campo Grande, nº 6, 1749-001 Lisboa, pedindo que se declare que é “titular das prestações por morte de J…, no âmbito dos regimes de segurança social, atento o disposto nos artigos 1º, 2º-A e 3º da Lei nº 7/2001, de 11 de Maio, nos artigos 8º do Decreto-Lei nº 322/90, de 18 de Outubro, artigos 40º e 41º do Decreto-Lei nº 142/73, de 31 de Março, todos com as alterações introduzidas pela Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, desde a data da morte daquele, ou seja, 10 de Agosto de 2011[1] e com as demais consequências legais (…)”

Alegou para tanto, em síntese, que viveu em união de facto com J…, beneficiário da Segurança Social nº …, nos 12 (doze) anos que antecederam o seu decesso, ocorrido em 10/08/2010; e que o referido J… se encontrava divorciado desde 19/03/1990, data do trânsito em julgado da sentença respectiva.

O Instituto de Segurança Social, I.P. contestou por excepção e por impugnação.

Por excepção, sustentou que há insuficiência de causa de pedir porquanto a A. não alegou que não tem descendentes, ascendentes ou irmãos com possibilidades de lhe prestarem alimentos, tal como igualmente não alegou se a herança pode ou não suportar tal prestação.

Por impugnação argumentou, no essencial, que desconhece, sem obrigação de conhecer, se correspondem à verdade os factos articulados pela A. na petição inicial.

A A. replicou sustentando que com a entrada em vigor das alterações introduzidas pela Lei nº 23/2010, de 30/08, aplicável à sua situação, deixou de ser necessário alegar e provar a necessidade de alimentos e a impossibilidade de os obter da herança ou das pessoas legalmente obrigadas a prestá-los. E defendeu a improcedência da excepção, concluindo como na petição inicial.

Em sede de saneamento foi proferida a decisão de fls. 54 a 59, entendendo que ao caso dos autos é aplicável o regime jurídico resultante das alterações introduzidas na Lei nº 7/2001[2], de 11/05, pela Lei nº 23/2010, de 30/08, e que, por isso, carece a A. de interesse em agir (ou de legitimidade, para quem entenda que aquele pressuposto não tem autonomia). Consequentemente, foi o R. absolvido da instância.

         Inconformada, a A. recorreu, encerrando a alegação apresentada com as seguintes conclusões:

Não consta dos autos que tenha havido resposta.

O recurso foi admitido.

Nada a tal obstando, cumpre apreciar e decidir.


***

         Tendo em consideração que:

         - O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (artºs 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Código de Processo Civil[3]);

         - Nos recursos se apreciam questões e não razões;

         - Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

         a única questão a decidir é a de saber se – aplicando-se ao caso dos autos, como foi entendido na decisão recorrida e a apelante aceita, o novo regime de atribuição ao unido de facto sobrevivo das prestações por morte do unido de facto beneficiário da segurança social não casado ou judicialmente separado de pessoas e bens, introduzido pelas alterações da Lei nº 7/2001 de 11/05 operadas pela Lei nº 23/2010 de 30/08 – carece ou não a recorrente de interesse em agir/legitimidade para a presente acção.

         2. FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. De facto

         A factualidade e incidências processuais com relevo para o conhecimento e decisão do presente recurso são as que decorrem do antecedente relatório que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.

         2.2. De direito

         Entendeu-se na decisão sob recurso que apesar de o J… ter falecido em 10/08/2010, antes, pois, da entrada em vigor, ocorrida em 04/09/2010, da Lei nº 23/2010, de 30/08, e de o artº 15º do Decreto-Lei nº 322/90, de 18/10, estipular que as condições de atribuição das prestações são definidas à data da morte do beneficiário, é ao caso aplicável o regime de atribuição das prestações por morte resultante das alterações introduzidas por aquela Lei.

         A recorrente concorda expressamente com essa parte da decisão e também nós não vislumbramos fundamento para a contrariar.

         Com efeito, a Lei nº 23/2010 de 30 de Agosto, alterou vários artigos da Lei nº 7/2001 e aditou-lhe o artº 2º-A.

Essa Lei nada dispôs sobre a data da sua entrada em vigor, pelo que, decorrida a vacatio legis, começou a vigorar em 04/09/2010. Mesmo quanto aos preceitos com repercussão orçamental, que o artº 6º estabeleceu só produzirem efeitos com a Lei do Orçamento do Estado posterior à sua entrada em vigor, aquela Lei está em plena vigência, uma vez que a Lei do Orçamento do Estado para 2011 (Lei nº 55-A/2010, de 31/12) entrou em execução em 01/01/2011.

São duas as alterações essenciais introduzidas pela Lei nº 23/2010.

Uma, de natureza substantiva, refere-se aos pressupostos legais ou factos constitutivos do direito, rechaçando definitivamente o entendimento de que os interessados tinham de alegar e provar a necessidade de alimentos e a impossibilidade de obtê-los da herança ou das pessoas indicadas nas als. a) a d) do nº 1 do artº 2009º do Cód. Civil e passando a exigir apenas a alegação e prova da união de facto há mais de dois anos[4].

Outra, de índole processual, relativa ao modo de exercício do direito, deixando de ser necessário que o interessado instrua o requerimento das prestações por morte com certidão da sentença judicial que o declare titular daquelas prestações e bastando a prova documental da união de facto.

Assim, nos termos do artº 2º-A da Lei nº 7/2001, aditado pela Lei nº 23/2010, a união de facto pode ser provada por qualquer meio legalmente admissível (nº 1), nomeadamente por declaração emitida pela Junta de Freguesia competente que, no caso de morte de um dos membros da união de facto, atesta que o interessado residia há mais de dois anos com o falecido, à data do falecimento. Nessa hipótese, a declaração da Junta de Freguesia deve ser acompanhada de declaração do interessado, sob compromisso de honra, de que vivia em união de facto com o falecido há mais de dois anos, à mesma data, de certidão de cópia integral do registo de nascimento do interessado e de certidão de óbito do falecido (nºs 2 e 4).

A entidade responsável pelo pagamento, quando entenda que existem fundadas dúvidas sobre a existência da união de facto, deve promover a competente acção judicial com vista à sua comprovação e desde que não tenham decorrido mais de quatro anos (artº 6º, nºs 2 e 3).

A própria Lei nº 23/2010 não contém qualquer norma de direito transitório que resolva a questão da sua aplicabilidade aos casos em que a morte do beneficiário ocorreu antes da sua entrada em vigor.

Há, pois, que recorrer às normas de direito transitório geral essencialmente constantes dos artºs 12º e 13º do Cód. Civil, distinguindo as alterações, de natureza substantiva e de índole processual introduzidas pela Lei nº 23/2010.

No tocante às de natureza substantiva – dispensabilidade de alegação e prova da necessidade de alimentos e da impossibilidade de os obter da herança ou das pessoas indicadas nas als. a) a d) do nº 1 do artº 2009º do Cód. Civil e suficiência da prova da união de facto – há que atentar no artº 12º do Cód. Civil, cujo nº 1, preceituando que a lei só dispõe para o futuro, estabelece a regra geral da não retroactividade.

         Esta regra geral de não retroactividade da lei tem, contudo excepções, como desde logo decorre do mesmo nº 1, ao admitir a possibilidade de à lei ser atribuída eficácia retroactiva.

         E o nº 2 concretiza:

“Quando a lei disponha sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor[5].

         É certo que o falecimento do J… ocorreu em 10/08/2010 e que o artº 15º do Decreto-Lei nº 322/90 preceitua que as condições de atribuição das prestações são definidas à data da morte do beneficiário.

         Contudo, como foi salientado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/06/2011[6], na actual redacção da lei, o que define, no essencial, a situação jurídica em análise é o facto do unido sobrevivo ter vivido em união de facto com o falecido beneficiário durante mais de dois anos. É este o facto constitutivo da situação jurídica; a morte apenas permite desencadear o exercício do direito à pensão de sobrevivência.

         Ou, na formulação do acórdão do mesmo Supremo Tribunal de 07/06/2011[7], o momento do óbito é o momento despoletador do direito à atribuição da pensão de sobrevivência, não constituindo, porém, elemento constitutivo desse direito[8].

         Ou ainda, na linguagem do Acórdão de 06/07/2011[9] do mesmo Tribunal, sem prejuízo do disposto no artº 15º do Decreto-Lei nº 322/90, o universo de pessoas que a lei tem em vista e quer proteger é o das que ficam (e não o do beneficiário que partiu).

Com efeito, o facto constitutivo essencial do direito às prestações por morte não é, ou não é só, a morte do beneficiário unido de facto. É a situação jurídica do unido de facto sobrevivente, desencadeada pelo mencionado decesso, mas que deste se autonomiza, subsistindo no tempo. Situação jurídica essa que, assim, se enquadra na previsão da segunda parte do nº 2 do artº 12º do Cód. Civil.

Assim, perfilhando o entendimento adoptado na decisão recorrida, entende-se que, apesar da morte do J… ter ocorrido em 10/08/2010, antes, pois, da entrada em vigor das alterações de natureza substancial introduzidas na Lei nº 7/2001 pela Lei nº 23/2010, tais alterações são aplicáveis ao caso em apreciação.

No tocante às alterações de natureza processual decorrentes da vigência da Lei nº 23/2010 – dispensabilidade de instrução do requerimento das prestações com certidão de sentença judicial declarativa da qualidade de titular das prestações por morte e ónus da entidade responsável pelo pagamento de promover a competente acção judicial com vista á comprovação da união de facto, se tiver dúvidas sobre a sua existência – há que ponderar que a nova lei processual é de aplicação imediata, ainda que não retroactiva, o que significa que se aplica às acções intentadas após a data da sua entrada em vigor e aos actos praticados após aquela mesma data nas acções pendentes.

Contudo, as aludidas alterações traduzem-se, na prática – sem prejuízo da acção judicial com vista à comprovação da união de facto quando a entidade responsável pelo pagamento tenha dúvidas sobre a sua existência – na desnecessidade de o requerimento de atribuição das prestações por morte, a dirigir à entidade responsável pelo respectivo pagamento, ser acompanhado de certidão da sentença judicial que declare a qualidade do requerente de titular dessas prestações.

         Ou seja, o requerimento que, no caso dos unidos de facto, anteriormente devia ser instruído com os documentos comprovativos do óbito e dos demais factos condicionantes do direito (artº 50º, nº 1 do Decreto-Lei nº 322/90) e com certidão da sentença judicial que declarasse a qualidade do requerente de titular das prestações por morte (artºs 3º e 5º do Decreto Regulamentar nº 1/94), passa a dever ser instruído apenas com os documentos comprovativos do óbito e dos demais factos condicionantes do direito, entre eles a situação de união de facto por mais de dois anos, a provar nos termos previstos no artº 2º-A da Lei nº 7/2001, aditado pela Lei nº 23/2010.

         É claro que compete à entidade responsável pelo pagamento das prestações verificar se estão ou não reunidos todos os factos condicionantes do direito às mesmas, deferindo o requerimento no primeiro caso ou indeferindo-o no segundo.

         Mas, se bem vemos, não poderá indeferir o requerimento com base em dúvidas sobre a existência da união de facto, pois nesse caso, como manda o artº 6º, nº 2 da Lei nº 7/2001, com a redacção dada pela Lei nº 23/2010, deve ser ela a promover a competente acção judicial com vista à sua comprovação.

         No caso de indeferimento com base na falta de qualquer outro facto condicionante, o requerente pode sempre reagir contenciosamente, perante os Tribunais Administrativos e Fiscais[10], como prevê o artº 77º da Lei nº 4/2007, de 16/01 (Lei de Bases da Segurança Social).

        

         Revertendo ao caso dos autos, constata-se que na data em que a acção foi proposta (08/08/2011) já há muito vigorava o regime introduzido pela Lei nº 23/2010, pelo que a recorrente não necessitava de instruir o requerimento de atribuição das prestações por morte do seu “companheiro” com sentença judicial que declarasse a sua qualidade de titular dessas prestações.

         Mesmo prevendo que o requerimento iria ser indeferido, por ter conhecimento de que o Instituto da Segurança Social entendia que, face à data do decesso do J…, não era aplicável o regime resultante das alterações introduzidas pela Lei nº 23/2010, competia à recorrente fazer o pedido de atribuição, comprovando o óbito e os demais factos condicionantes do direito, na certeza de que, no caso de a previsão se confirmar e o requerimento ser indeferido, sempre lhe assistiriam as garantias contenciosas previstas na Lei nº 4/2007.

         Em suma, entendendo a própria recorrente que ao seu caso é aplicável o regime resultante das alterações introduzidas na Lei nº 7/2001 pela Lei nº 23/2010, é manifesto que lhe falta interesse em agir relativamente à concreta acção que intentou. O que, no caso, conduz à absolvição do R. da instância[11].

         Soçobram, pois, todas as conclusões da alegação da recorrente, o que importa a improcedência da apelação e a manutenção da decisão recorrida.

         Sumário (artº 713º, nº 7 do CPC):

         Na vigência do regime resultante das alterações introduzidas na Lei nº 7/2001, de 11/05, pela Lei nº 23/2010, de 30/08, carece de interesse em agir – com a consequente absolvição do R. da instância – o unido de facto sobrevivo que intenta contra o Instituto da Segurança Social, I. P., acção destinada à declaração de que é titular das prestações por morte do unido de facto beneficiário da segurança social não casado ou separado judicialmente de pessoas e bens.

         3. DECISÃO

         Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, em manter a decisão recorrida.

         As custas são a cargo da recorrente.


Artur Dias (Relator)

Jaime Ferreira

Jorge Arcanjo


[1] É lapso. Quis dizer 10 de Agosto de 2010, como inequivocamente resulta do artigo 1º da petição inicial e da certidão de óbito de fls. 16
[2] E no Decreto-Lei nº 322/90, de 18/10, no Código Civil e no Decreto-Lei nº 142/73, de 31/03.
[3] Diploma a que pertencem as disposições legais adiante citadas sem outra menção.
[4] O artº 6º, nº 1 da Lei nº 7/2001, na redacção da Lei nº 23/2010, passou a preceituar que “o membro sobrevivo da união de facto beneficia dos direitos previstos nas alíneas e), f) e g) do artigo 3º, independentemente da necessidade de alimentos”, sendo que a al. e) do artº 3º confere aos unidos de facto nas condições previstas naquela Lei direito a “protecção social na eventualidade de morte do beneficiário, por aplicação do regime geral ou de regimes especiais de segurança social e da presente lei”.
[5] Cfr. Baptista Machado, Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil – Casos de Aplicação Imediata, Critérios Fundamentais, Coimbra, Almedina, 1968, pág. 96; P. Lima – A. Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 3ª edição, págs. 60/61; e Oliveira Ascensão, Introdução ao Estudo do Direito, Ano lectivo de 1970/1971, revisão parcial em 1972/1973, edição dos Serviços Sociais da Universidade de Lisboa, págs. 435 e seguintes.
[6] Proc. 1038/08.5TBAVR.C2.S1, relatado pelo Cons. Sérgio Poças, in www.dgsi.pt.
[7] Proc. 1877/08.7TBSTR.E1.S1, relatado pelo Cons. Salazar Casanova, in www.dgsi.pt.
[8] Salienta-se no douto aresto mencionado que a situação jurídica que importa à lei é tão somente a de membro sobrevivo da união de facto (e não união de facto dissolvida no domínio da lei nova). Tal situação prolonga-se no tempo independentemente do momento em que se constituiu, ficando consequentemente sujeita ao domínio da lei nova, pois ela autonomiza-se – abstrai – da realidade que a desencadeou: a dissolução por morte de uma união de facto pré-existente.
[9] Proc. 23/07.9TBSTB.E1.S1, relatado pelo Cons. Pires da Rosa, in www.dgsi.pt.
[10] Cfr. Acórdão do Tribunal de Conflitos de 23/03/2006 (Proc. 024/05, relatado pelo Cons. Simas Santos), in www.dgsi.pt, e jurisprudência nele citada.
[11] Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª edição, pág. 189.