Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
198/06.4TBSCD-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: PENHORA
VEÍCULO AUTOMÓVEL
AUTO DE PENHORA
NULIDADE PROCESSUAL
Data do Acordão: 01/14/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE SANTA COMBA DÃO - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 143, 821, 836, 838, 851, 863-A CPC, 817, 819 CC
Sumário: 1. A comunicação à Conservatória do Registo Automóvel competente é o meio de efectuar a penhora de veículo automóvel, bastando à penhora a dita comunicação; segue-se a imobilização do veículo e a apreensão dos respectivos documentos (art.º 851º, n.ºs 1 e 2, do CPC).

2. Demonstrada (toda) aquela actuação, a eventual falta de elaboração e notificação ao executado do subsequente auto de penhora não constituirá omissão susceptível de determinar a anulação de processado se for de concluir que não teve qualquer repercussão na oposição à penhora.

3. A imobilização do veículo e a apreensão dos documentos não são “actos processuais” sujeitos à limitação temporal prevista no n.º 1 do art.º 143º, do CPC, tratando-se, sim, de procedimentos subsequentes à realização da penhora e que deverão respeitar, por um lado, o preceituado no art.º 851º, n.º 2, do CPC, e, por outro lado, critérios de bom senso, conveniência e oportunidade.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

           

I. Na execução para pagamento de quantia certa movida por T (…) & H (…) Lda., contra A (…) e M (…), estes, por requerimento de 23.8.2012, vieram pedir que “seja permitida a circulação normal das viaturas [com as matrículas (...)QM e (...)VG], restituindo-se os documentos aos executados, ordenando-se em conformidade ao Senhor AE e à GNR de Santa Comba Dão, para que sejam restituídos os documentos apreendidos (…).

            Alegaram, em síntese: foi penhorado o bem imóvel respeitante a casa de habitação dos executados, de valor superior a € 50 000, suficiente para acautelar o pagamento da dívida exequenda; os referidos veículos automóveis foram apreendidos durante as férias judiciais, o que não é permitido, devendo o acto ser declarado nulo; os executados foram citados para a execução mas não foram citados para se oporem à penhora de veículos automóveis, apenas da penhora do bem imóvel; não podia tal penhora ser consumada sem a citação dos executados para se oporem à mesma, o que ainda não ocorreu; as viaturas em causa fazem falta aos executados, necessitando das mesmas para o seu quotidiano; o facto dos executados usarem as viaturas no seu quotidiano não importará qualquer desvalorização.

A exequente pugnou pela manutenção da aludida penhora, alegando, designadamente, que não é previsível que o imóvel penhorado seja suficiente para garantir o pagamento da quantia exequenda, juros de mora e demais despesas da execução; inexiste avaliação do imóvel efectuada que permita concluir que o mesmo vale cerca de € 50 000, não se opondo a que os executados solicitem, a suas expensas, uma avaliação desse imóvel e actualizem o seu valor tributável; se o valor da avaliação for suficiente para garantir o pagamento da dívida exequenda, em nada se opõe a que sejam levantadas as penhoras sobre os veículos automóveis; até que exista tal avaliação, opõe-se, pois é seu direito garantir a satisfação na íntegra do seu crédito.

Produzida a prova testemunhal indicada pelos executados, o tribunal, considerando estar na posse de todos os elementos necessários para a decisão, julgou “a oposição à penhora improcedente, por não provada” e, em consequência, manteve “a penhora de bens móveis sujeitos a registo, realizada nos autos principais de execução, nos seus precisos termos e extensão”.

Inconformados, os executados interpuseram recurso de apelação formulando as seguintes conclusões:

1ª - Os recorrentes não apresentaram qualquer oposição à penhora em 23.8.2012, limitando-se a apresentar um requerimento, a pretenderem apenas o levantamento da apreensão das viaturas penhoradas, que lhes fossem restituídos os documentos, para que pudessem circular.

2ª - A exequente respondeu a esse requerimento, sem invocar a qualidade de oponida, não pagando qualquer taxa, tal como não o tinham feito os executados, que em lado algum alegaram estar a deduzir uma oposição à penhora das viaturas, não havendo sequer atribuído valor ao incidente.

3ª - No requerimento de resposta da exequente, de 31.8.2012, não manifestou oposição à pretensão concreta de poderem circular com as viaturas, apenas pugnou pela manutenção da penhora dos veículos.

4ª - Tal requerimento não devia ter sido tramitado como oposição à penhora, pois nunca alegaram estar a fazê-lo.

5ª - Até hoje os executados não foram notificados pelo Agente de Execução do auto de penhora dos bens móveis, não tendo assim iniciado o prazo para dedução de oposição à penhora, previsto no art.º 863º-B, do CPC.

6ª - Em face da errada tramitação do requerimento dos executados, é nulo o processado posterior ao requerimento apresentado pela exequente em 31.8.2012, bem como a sentença.

7ª - A sentença também é nula, pois tomou posição sobre matéria que não foi alegada, ou requerida pelos executados, pois nunca requereram qualquer oposição à penhora, nem pretenderam o levantamento da penhora dos bens móveis.

8ª - Os actos praticados por agente de execução durante as férias judiciais são nulos, por não serem permitidos por Lei, violando o disposto no art.º 143º, n.º 1, do CPC, e inexistindo qualquer fundamentação para aplicação do disposto no n.º 2 desse artigo.

9ª - Há nulidade da ordem de apreensão das viaturas efectuada pelo A. E. em férias judiciais, e do auto de apreensão desses bens por parte da GNR junto aos autos, por não ter sido fundamentada nem ordenada por um Magistrado.

10ª - A questão da nulidade do acto de apreensão das viaturas foi alegado apenas como fundamento para a pretendida autorização de circulação dos automóveis.

11ª - Nunca os recorrentes em lado algum invocaram a nulidade da citação efectuada nos autos, tendo apenas alegado que até 23.8.2012, não tinham sido notificados do auto de penhora dos bens móveis, o que ainda se mantém.

12ª - Como não foi arguida a nulidade da citação dos executados, não podia o Tribunal a quo decidir não atender a uma pretensão que nunca foi deduzida pelos recorrentes.

13ª - Quanto ao excesso de penhora, alegou-se apenas de forma instrumental, para fundamentação do pedido de permissão de utilização dos bens penhorados, não tendo sido efectuado qualquer pedido pelos executados quanto a tal matéria.

14ª - Há erro na interpretação e aplicação do direito.

15ª - A sentença violou, nomeadamente, as normas dos art.ºs 813º, 863º-A, 863º-B, 668º, n.º 1, al. d) e 143º, n.ºs 1 e 2, do CPC.

            Rematam dizendo que deverá ser revogada a decisão em crise, ordenando-se a anulação de todo o processado como oposição à penhora na sequência do requerimento apresentado em 23.8.2012, declarando-se nula a sentença, devendo ainda ser dado provimento à pretensão dos recorrentes ali formulada.

Os autos voltaram à 1ª instância para a fixação do valor e a pronúncia quanto à invocada nulidade da decisão recorrida, o que foi cumprido, tendo a Mm.ª Juíza a quo concluído pela inexistência de quaisquer nulidades (fls. 79 e 90).

Atento o referido acervo conclusivo (delimitativo do objecto do recurso) importa conhecer, principalmente: a) nulidade da sentença; b) mérito da decisão proferida.


*

II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

a) A exequente intentou execução para pagamento de quantia certa, cujo título executivo é uma sentença proferida em 21.7.2011, já transitada em julgado, no âmbito da acção declarativa ordinária n.º 198/06.4TBSCD, na qual foram os executados condenados a pagar à exequente € 6 942,37 e respectivos juros de mora desde a citação.

b) Para pagamento da dívida exequenda foi penhorada uma casa de habitação de 2 pavimentos e logradouro, inscrita na matriz predial sob o n.º 1047 da freguesia de Couto de Mosteiro e descrita na Conservatória do Registo Predial de Santa Comba Dão sob o n.º 3236, a favor dos executados, por meio de doação e com o valor tributável de € 12 177,38.[1]

c) Mais foram penhorados dois veículos automóveis, mediante penhora electrónica efectuada em 02.4.2012 e registada em 03.4.2012: um veículo automóvel de marca Peugeot, com a matrícula (...)QM e um veículo automóvel de marca Ford, com a matrícula (...)VG.

d) Em 22.8.2012, foi efectuada a apreensão pela GNR dos dois veículos automóveis descritos em II. 1. c), consignando-se no auto de apreensão que tal apreensão era efectuada no âmbito dos autos de execução n.º 198/06.4TBSCD-A, por ordem do Agente de Execução.[2]

e) Os executados foram citados para os termos da execução apensa e penhora por meio de citação por via postal registada datada de 19.7.2012, efectuada em 23.7.2012, com cópia do auto de penhora de bem imóvel.

f) O veículo de matrícula (...)QM é habitualmente usado pelo filho dos executados, com eles residente, M (…), que o usa para se deslocar para o trabalho, todos os dias, para uma distância de cerca de 10 km.

g) Os executados residem numa aldeia, afastada do centro de Santa Comba Dão, necessitando das viaturas automóveis para de deslocarem à farmácia, ao centro de saúde, para adquirirem bens e serviços variados.

h) A aldeia não é servida por transportes públicos, sendo a única opção o aluguer de uma viatura, seja taxi, seja sem condutor.

i) Os veículos automóveis penhorados são os únicos veículos que os executados possuem.

A 1ª instância deu como não provado:

- O bem imóvel penhorado nos autos tem valor superior a € 50 000.

- O facto dos executados poderem utilizar as viaturas de forma normal, para as necessidades do dia-a-dia não irá retirar qualquer valor a esses veículos, atenta a idade dos mesmos, e para além disso, os interesses da executada estão acautelados com o bem móvel de valor superior ao valor da execução.

- Os veículos penhorados são imprescindíveis à vida profissional, social e familiar dos executados.[3]

2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

Dir-se-á, desde já, que a decisão do recurso não poderia ter as consequências almejadas pelos recorrentes - sob pena, desde logo, de se “duplicarem” os respectivos meios de oposição à execução, fazendo-se tábua rasa da posição já manifestada pelos executados e da decisão do Tribunal que sobre ela incidiu… - mas apenas o eventual completar de diligências ou procedimentos executivos, sendo que a invocada omissão [consubstanciada na falta de notificação do auto de penhora dos bens móveis] é, aparentemente, fundamento único da pretensão deduzida e, segundo os recorrentes, excludente de quaisquer outras perspectivas de análise, porquanto, tudo o mais, inclusive as invocadas “circunstâncias” da apreensão, surgem a título “complementar”…

Ademais, sem quebra do respeito sempre devido por entendimento contrário, os recorrentes assumem uma posição contraditória: por um lado, dizem que “não apresentaram qualquer oposição à penhora”; de seguida, afirmam “pretenderem apenas o levantamento da apreensão das viaturas penhoradas, que lhes fossem restituídos os documentos, para que pudessem circular”…

Contudo, como se verá infra, a apreensão dos veículos é inerente ou consequente à realização da correspondente penhora, pelo que não se vê como seja possível pretender o “levantamento da apreensão” sem que isso ponha necessariamente em causa a penhora realizada!

Feita esta consideração inicial e “paradigmática” (do que se suscita), avancemos para o conhecimento das (duas) questões fundamentais atrás enumeradas.

3. Os recorrentes invocam a nulidade da sentença porquanto “tomou posição sobre matéria que não foi alegada (…), pois nunca requereram qualquer oposição à penhora, nem pretenderam o levantamento da penhora dos bens móveis”, nem “em lado algum invocaram a nulidade da citação efectuada nos autos, tendo apenas alegado que (…) não tinham sido notificados do auto de penhora dos bens móveis”, ocorrendo, assim, a situação prevista no art.º 668º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil (CPC) de 1961[4].

Segundo o mencionado normativo, a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.[5]

 O caso da citada alínea relaciona-se com o dispositivo do art.° 660°, n.° 2[6], e por ele se tem de integrar. A primeira modalidade (omissão de pronúncia) tem a limitação aí constante quanto às decisões que devam considerar-se prejudicadas pela solução dada a outras; a segunda (excesso de pronúncia) reporta-se àquelas questões de que o tribunal não pode conhecer oficiosamente e que não tenham sido suscitadas pelas partes, devendo a palavra “questões” ser tomada em sentido amplo: compreenderá tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das excepções e da causa de pedir e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem.

No entanto, é incorrecto inferir-se que a sentença deverá examinar toda a matéria controvertida, ainda que o exame de uma só parte impuser necessariamente a decisão da causa, favorável ou desfavorável – neste sentido haverá que compreender-se a fórmula da lei “exceptuadas aquelas questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras” (art.º 660º, n.º 2).[7]

Analisada a decisão sob censura verifica-se que não enferma do apontado vício (excesso de pronúncia), na medida em que a Mm.ª Juíza a quo conheceu, apenas, da questão fundamental suscitada pelos recorrentes e, perante factualidade perfeitamente assente, decidiu em conformidade com a fundamentação (de direito) que teve como adequada, sendo que o “vício” em causa não se confunde com o eventual “erro de julgamento”.

A decisão sob censura não padece, assim, do apontado vício.

4. a) A penhora, enquanto apreensão judicial de bens que constituem objecto de direitos do executado, é o acto fundamental do processo executivo; implica, designadamente, a transferência para o Tribunal dos poderes de gozo que integram o direito do executado, envolvendo, assim, necessariamente, a perda dos poderes jurídico-materiais que definem a relação directa e imediata do executado com a coisa (a perda da utilização da disponibilidade fáctica ou empírica de uma coisa), com a consequente redução do direito ao simples poder de dele dispor (cf., designadamente, os art.ºs 817º e 819º, do Código Civil, e 821º, do CPC).

Mediante a penhora, o direito do executado é esvaziado dos poderes de gozo que o integram, os quais passam para o Tribunal, que, em regra, os exercerá através de um depositário. Quando a penhora incide sobre o objecto corpóreo dum direito real (por exemplo, penhora de bem móvel), a transferência dos poderes de gozo importa uma transferência de posse [cessa a posse do executado e inicia-se uma nova posse pelo Tribunal].[8]

b) A penhora de coisas móveis sujeitas a registo efectua-se nos termos do art.º 851º (na redacção conferida pelo DL n.º 226/2008, de 20.11): À penhora de coisas móveis sujeitas a registo aplica-se, com as devidas adaptações, o disposto no artigo 838º [prevendo-se no n.º 1 do art.º 838º: A penhora (…) realiza-se por comunicação electrónica do agente de execução ao serviço de registo competente, a qual vale como pedido de registo, ou com a apresentação naquele serviço de declaração por ele subscrita.] (n.º 1); A penhora de veículo automóvel é seguida de imobilização do veículo, designadamente através da imposição de selos ou de imobilizadores e da apreensão do documento de identificação do veículo, nos termos dos n.ºs 3 a 8 do artigo 164º e do artigo 161º do DL n.º 114/94, de 3 de Maio, com as necessárias adaptações, e de portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça (n.º 2). Após a penhora e a imobilização, o veículo só é removido quando o agente de execução entenda necessário para a salvaguarda do bem, aplicando-se, com as devidas adaptações, o disposto nos artigos 167º e 168º do DL n.º 114/94, de 3 de Maio (n.º 3).

c) A comunicação à Conservatória do Registo Automóvel competente é o meio de efectuar a penhora de veículo automóvel [tem assim lugar uma transferência de posse meramente jurídica], bastando à penhora a dita comunicação; segue-se a imobilização do veículo e a apreensão do respectivo documento de identificação, nos termos supra referidos[9], lavrando-se depois o respectivo auto (art.º 836º) e havendo notificações a fazer.

Até ao DL n.º 38/2003, de 08.3, valia neste caso como auto de penhora o auto de apreensão pela autoridade administrativa ou policial que a fazia; a partir do aludido DL (cujo regime foi depois mantido) o auto de penhora é, nos termos do art.º 838º, n.º 3, sempre elaborado pelo agente de execução, após o recebimento do certificado do registo e da certidão dos ónus a que se refere o art.º 838º, n.º 2.[10]

d) Entre os meios que o nosso sistema jurídico concede para reagir contra uma penhora ilegal encontram-se a oposição por simples requerimento e o incidente de oposição à penhora (art.ºs 863º-A e 863º-B), os quais têm lugar no próprio processo de execução, ainda que o segundo por apenso.

A ilegalidade da penhora pode decorrer do facto de se terem ultrapassado os limites objectivos da penhorabilidade (por exemplo, penhoram-se bens que não deviam ser penhorados) ou quando a penhora seja subjectivamente ilegal (penhoram-se bens que não são do executado) – no primeiro caso, a impenhorabilidade é objectiva; no segundo, diz-se subjectiva, sendo que o incidente de oposição à penhora cuida da penhorabilidade objectiva.[11]

5. Preceitua o art.º 813º (sob a epígrafe “oposição à execução e à penhora”/redacção do DL n.º 38/2003): O executado pode opor-se à execução no prazo de 20 dias a contar da citação, seja esta efectuada antes ou depois da penhora (n.º 1). Com a oposição à execução cumula-se a oposição à penhora que o executado, que antes dela não tenha sido citado, pretenda deduzir, nos termos do artigo 863º-A (n.º 2).

Para a oposição à execução, tem o executado, desde o DL n.º 329-A/95, de 12.12, um prazo de 20 dias, a contar da citação, e esta tem lugar, desde o DL n.º 38/2003, sempre que o executado é, pela primeira vez, chamado ao processo executivo após a apresentação do requerimento inicial da execução (cf. art.ºs 228º, n.º 1, 813º e 864º, n.º 1).

A partir da citação efectuada após a penhora, corre igualmente o prazo para a oposição a esta [art.º 863º-B, n.º 1, a)], a deduzir nos termos do art.º 863º-A[12], a qual se cumula com a oposição à execução.

Diversamente, sendo o executado citado antes da penhora, a notificação que lhe é feita depois dela efectuada marca o início do prazo (de 10 dias) para a oposição à penhora [art.º 863º-B, n.º 1, b)], a deduzir igualmente nos termos do art.º 863º-A.

6. Resulta da materialidade provada que os executados foram citados para os termos da execução apensa e penhora por meio de citação por via postal registada datada de 19.7.2012, efectuada em 23.7.2012, com cópia do auto de penhora de bem imóvel [cf. II. 1. alínea e), supra].

A este propósito e visando o deferimento da pretensão deduzida em juízo, afirmam os recorrentes, nomeadamente, que até hoje os executados não foram notificados pelo Agente de Execução do auto de penhora dos bens móveis, não tendo assim iniciado o prazo para dedução de oposição à penhora, previsto no art.º 863º-B, do CPC e que, em face da errada tramitação do requerimento dos executados, é nulo o processado posterior ao requerimento apresentado pela exequente em 31.8.2012, bem como a sentença.

Decorre da materialidade provada que a penhora dos veículos automóveis foi realizada com a comunicação do acto à Conservatória do Registo Automóvel e apenas foram omitidas a elaboração do correspondente auto de penhora e a sua notificação aos executados.

Independentemente de se poder questionar a razão de ser de um auto de penhora de veículo automóvel devidamente penhorado e relativamente ao qual se efectuou a apreensão pela entidade policial, lavrando-se o correspondente auto de apreensão - não se questionando a identificação e o estado do bem -, afigura-se, no descrito enquadramento, que tal instrumento (auto de penhora) constituirá apenas mera “certificação”, junto do executado e por parte do agente de execução, de todo o pretérito acto de penhora e pouco ou nada acrescentará ao que consta do registo automóvel e do próprio auto de apreensão, a não ser, porventura, quaisquer elementos (adicionais) relevantes para a determinação do respectivo valor de mercado.

Daí que - perante a factualidade apurada, a pretensão corporizada no requerimento que originou o “incidente” em apreço e os mencionados desenvolvimentos processuais (inclusive, a subsequente actividade instrutória e a decisão proferida) - nada resulte em abono daquela pretensão, antolhando-se defensável o enquadramento traçado pela Mm.ª Juíza a quo.

 De resto, ainda que se propendesse para a necessidade de “suprir” a omissão em causa [falta de elaboração e notificação do auto de penhora], a mesma, em conformidade com as regras gerais sobre a nulidade dos actos, nunca determinaria a anulação do que se acha devidamente cumprido (art.º 201º[13]) - existindo omissão processual (irregularidade ou desvio do formalismo processual), ela não poderia originar a consequência que os executados pretendem extrair, sendo certo que a comunicação electrónica da realização da penhora e a (subsequente) apreensão dos documentos dos veículos não enfermam de quaisquer vícios.

7. Vejamos, pois, a principal questão da decisão de mérito e a resposta do Tribunal recorrido.

Os executados pediram, no seu mencionado requerimento de 31.8.2012, que sejam restituídos os documentos apreendidos das viaturas.

Para o efeito, não deixaram de aduzir fundamentos da oposição subsumíveis na previsão da alínea a) do n.º 1 do art.º 863º-A, pondo em causa a extensão com que a penhora foi realizada.

O Tribunal recorrido respondeu àquela questão fundamental, apreciando o único pedido que lhe foi colocado e que contendia com a penhora já realizada.

Fê-lo considerando que a dita omissão consubstanciaria uma nulidade de acto processual e teve em conta, principalmente, o preceituado nos art.ºs 198º, 228º, n.º 3, 813º, n.ºs 1 e 2 e 863º-B, n.ºs 1, alínea a) e 2.

Prevê o n.º 3 do art.º 228º que “a citação e as notificações são sempre acompanhadas de todos os elementos e de cópias legíveis dos documentos e peças do processo necessárias à plena compreensão do seu objecto.”

No caso em análise, a citação foi efectuada nos termos e para os efeitos do art.º 813º, isto é, para poderem os executados deduzir oposição à execução e à penhora (cf. o n.º 2 do referido art.º), pelo que os mesmos deverão estar na posse de todos os elementos necessários que lhes permitam fundamentar tal oposição (v. g., o valor da quantia exequenda e demais encargos que determinam o âmbito dos bens a penhorar para garantir o respectivo pagamento; a informação relativa às penhoras dos autos, identificando-se os bens penhorados).

Porque dos elementos relativos à citação dos autos não constava a informação sobre a penhora dos bens móveis sujeitos a registo [cf. II. 1. alínea e), supra] e estando em causa uma citação para eventual oposição à execução e à penhora dos autos, é correcta a perspectiva delineada na decisão recorrida ao apontar a inobservância das formalidades prescritas na lei (art.º 228º) e a consequente possibilidade de declarar a “nulidade da citação”, nos termos do art.º 198º, n.º 1 [“Sem prejuízo do disposto no art.º 195º, é nula a citação quando não hajam sido, na sua realização, observadas as formalidades prescritas na lei”], e dos actos processuais posteriores [in casu, em face da data da citação, o acto de apreensão dos veículos].

No entanto, impõe-se atentar ao disposto no n.º 4 do art.º 198º, nos termos do qual a arguição de nulidade de citação apenas é atendida se a falta cometida puder prejudicar a defesa do citado, exigência que constitui a garantia de o regime instituído ser utilizado para realizar o seu escopo (evitar a restrição ou supressão prática do direito de defesa) e não para finalidades puramente formais ou dilatórias.[14]

Ora, dúvidas não restam de que os executados nenhuma oposição deduziram à execução e, como bem refere a Mm.ª Juíza a quo, o “teor do requerimento apresentado pelos executados (…) demonstra que a nulidade não teve qualquer repercussão na sua defesa porquanto os mesmos a apresentaram, com os fundamentos típicos da oposição à penhora, atacando a extensão da penhora realizada, por excesso da mesma face à quantia exequenda, o que reconduz ao fundamento previsto no art.º 863º-A, n.º 1, alínea a) do CPC”.

Por conseguinte, não se justificava o atendimento da pretensão deduzida, sendo que, não subsistindo quaisquer dúvidas quanto à formação da matéria de facto da causa e do incidente, era lícito ao tribunal recorrido proceder ao descrito enquadramento jurídico e extrair as devidas consequências (cf. art.º 664º).

Por assim ter discorrido e concluído, nenhuma censura merece a sentença recorrida.

8. Importa também referir que o acto de imobilização dos veículos e de apreensão dos respectivos documentos não constitui “acto processual” sujeito à limitação temporal prevista no n.º 1 do art.º 143º (na redacção conferida pela Lei n.º 52/2008, de 28.8)[15], mas, sim, procedimento subsequente à realização da penhora (a realizar fora do tribunal, mas sem dia nem hora designados)[16] e que - ainda que não se destine a evitar dano irreparável - sempre deverá obedecer, sobretudo, por um lado, ao preceituado no art.º 851º, n.º 2 e, por outro lado, a critérios de bom senso, oportunidade e conveniência, a atender pela entidade executora.

Ademais, propendemos para o entendimento, expresso pela Mm.ª Juíza a quo, de que a apreensão de veículo automóvel mais não é do que a “concretização material de acto de penhora relativo a bens de desgaste e deterioração rápida, sujeitos a forte desvalorização comercial, razão pela qual se exige celeridade na concretização da penhora”. Por conseguinte, tal acto também se incluirá na previsão do n.º 2 do art.º 143º.

Daí, a total insubsistência das “conclusões 8ª, 9ª e 10ª” da alegação de recurso [cf. ponto I, supra].

9. Por último, retomando o expendido em II. 2., supra, dir-se-á que o presente caso diz-nos claramente que o processo deverá ser utilizado para a definição/concretização dos direitos dos cidadãos, e não para finalidades predominantemente formais ou dilatórias, pelo que bom seria que, norteados por aquele objectivo, os executados tivessem porventura acolhido a “sugestão” da exequente no sentido de se proceder à avaliação do imóvel penhorado por forma a determinar da conveniência ou necessidade em manter a penhora das viaturas supra referidas.

Com todo o respeito, esse seria talvez o “caminho” que nos conduziria a uma resposta bem mais simples e por certo ajustada aos interesses das partes!

Mas não podemos deixar de lembrar que, no processo civil, mantém-se incólume o entendimento de que a negligência ou inépcia das partes redunda inevitavelmente em prejuízo delas porque não pode ser suprida pela iniciativa e actividade do juiz, não obstante, é certo, as eventuais inflexões a esta perspectiva derivadas das restrições impostas ao princípio do dispositivo.[17]

Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.


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III. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pelos apelantes/executados.


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14.01.2014


Fonte Ramos ( Relator )

Inês Moura

Fernando Monteiro


[1] O correspondente auto de penhora foi elaborado em 19.7.2012, constando do mesmo que “Pela AP. 1094 de 2012/07/06 foi registada a penhora a favor do exequente. O Imóvel não foi avaliado, pelo que será efectuada a sua avaliação logo que necessário” (fls. 15 e 16).
[2] Cf. os autos de apreensão (de veículo automóvel) reproduzidos a fls. 7 e 9.

[3] Escreveu-se na motivação de facto (a respeito deste facto não provado): “O facto dado como não provado - os veículos penhorados são imprescindíveis à vida profissional, social e familiar dos executados - resulta das declarações das testemunhas que revelaram o empréstimo de automóvel (a filha dos executados) e o uso de meio alternativo de circulação, a mota (por parte do filho dos executados).

[4] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.
[5] Normativo reproduzido no art.º 615º, n.º 1, alínea d), do CPC de 2013.
[6] Preceitua-se no referido normativo (reproduzido no art.º 608º, n.º 2, do CPC de 2013): “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”.
[7] Vide, de entre vários, A. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, 1982, págs. 142 e seguinte e Lebre de Freitas, e Outros, CPC Anotado, Vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 670.
[8] Vide, entre outros, J. Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 4ª edição, Coimbra Editora, 2004, págs. 263 e seguintes.

[9] Preceituava o n.º 2 do art.º 851º, na redacção conferida pelo DL n.º 38/2003, de 08.3: A penhora de veículo automóvel é seguida de imobilização, designadamente através da imposição de selos e, quando possível, da apreensão dos respectivos documentos; a apreensão pode ser efectuada por qualquer autoridade administrativa ou policial, nos termos prescritos na legislação especial para a apreensão de veículo automóvel requerida por credor hipotecário; o veículo apenas é removido quando necessário ou, na falta de oposição à penhora, quando conveniente.
[10] Vide, nomeadamente, J. Lebre de Freitas, e Outros, CPC Anotado, Vol. 3º, Coimbra Editora, 2003, págs. 400, 404 e 436 e seguinte; J. Lebre de Freitas, A Acção Executiva, cit., págs. 247 e seguinte.
[11] Vide J. Lebre de Freitas, A Acção Executiva, cit., págs. 273 e seguintes.

[12] Preceitua o referido art.º (com a epígrafe “Fundamentos da oposição”): Sendo penhorados bens pertencentes ao executado, pode este opor-se à penhora com algum dos seguintes fundamentos: a) inadmissibilidade da penhora dos bens concretamente apreendidos ou da extensão com que ela foi realizada; b) Imediata penhora de bens que só subsidiariamente respondam pela dívida exequenda; c) Incidência da penhora sobre bens que, não respondendo, nos termos do direito substantivo, pela dívida exequenda, não deviam ter sido atingidos pela diligência (n.º 1). Quando a oposição se funde na existência de património separado, deve o executado indicar logo os bens, integrados no património autónomo que responde pela dívida exequenda, que tenha em seu poder e estejam sujeitos à penhora (n.º 2).

[13] Preceitua o n.º 1 do mencionado art.º: “Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.

[14] Vide J. Lebre de Freitas, e Outros, CPC Anotado, Vol. 1º, Coimbra Editora, 1999, pág. 341.

[15] Dispõe o referido art.º: Sem prejuízo de actos realizados de forma automática, não se praticam actos processuais nos dias em que os tribunais estiverem encerrados, nem durante o período de férias judiciais (n.º 1). Exceptuam-se do disposto no número anterior as citações, notificações e os actos que se destinem a evitar dano irreparável (n.º 2).
[16] Vide, com algum interesse, J. Alberto dos Reis, Comentário ao CPC, Vol. 2º, Coimbra Editora, 1945, págs. 51 e seguinte.
[17] Sobre esta problemática, vide Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 373 e seguintes e 378.