Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1286/16.4T8VIS-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
MOMENTOS DA SUA ABERTURA
Data do Acordão: 09/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – VISEU – INST. CENTRAL – SEC. COMÉRCIO – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 36º, Nº 1, AL. I), E 188º, Nº 1, DO CIRE.
Sumário: I - Da conjugação dos arts 36º, nº 1, al. i), e 188º, nº 1, ambos do CIRE (redação da Lei nº 16/2012, de 20/4) resulta que a abertura do incidente de qualificação da insolvência pode ocorrer em dois momentos: (i) na sentença (se o juiz dispuser de elementos) ou (ii) posteriormente (se o juiz considerar oportuno em face das alegações do administrador ou de qualquer interessado) no prazo do art.188º, nº 1 do CIRE.

II - Não consubstancia nulidade processual (art.195º, nº 1, CPC) a circunstância de um interessado credor requerer a abertura do incidente de qualificação da insolvência em momento anterior ao início da assembleia de apreciação do relatório.

Decisão Texto Integral:





Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

            1.1.- Na Comarca de Viseu ( Instância Central – Sec. Comércio -J1) , por sentença de 11 de Março de 2016, transitada em julgado, foi declarada a insolvência de “E..., Lda”, com sede no ...

            Nela designou-se o dia 10 de Maio de 2016, pelas 10,30 horas, para a realização da assembleia de apreciação do relatório e consignou-se “4. Uma vez que dos autos não resultam elementos suficientes, não declaro a abertura do incidente de qualificação da insolvência”.

            1.2. Em 28 de Abril de 2016, A... e J... requereram o incidente de qualificação culposa da insolvência.

            1.3. Por despacho de 5 de Maio de 2016 decidiu-se:

            “Os factos alegados pelos Requerentes são, em abstracto, susceptíveis de integrarem situações previstas nas alíneas dos nº 2 e nº 3 do art.186 do CIRE.

            Assim, e nos termos do disposto no nº 1 do art.188º do CIRE, consideramos ser oportuno declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência.

            Notifique o sr. Administrador da insolvência para os efeitos do disposto no nº 1 do art.188 do CIRE”

            Publique nos termos do nº2 do art.188 do CIRE”.

            1.4. S..., sócio gerente da sociedade insolvente, deduziu “Reclamação” contra o despacho de abertura do incidente, alegando, em síntese:

            As alegações apresentadas por J... e A... são extemporâneas porque foram feitas antes da data designada para a assembleia de apreciação do relatório, tendo em conta o disposto no art.188º, nº 1 do CIRE. A iniciativa processual de abertura do incidente só poderia ser legalmente admitida se requerida dentro do prazo legal.

            Pediu que se profira despacho de não abertura do incidente de qualificação de insolvência.

            1.5. Por despacho de 8 de Junho de 2016 decidiu-se:

 “ Vem S..., eventual afectado pela qualificação da insolvência, reclamar contra o despacho de abertura do incidente de qualificação por entender que o requerimento de abertura do incidente foi deduzido extemporaneamente já que deu entrada em juízo antes da data da realização da assembleia de apreciação do relatório.

Os requerentes do incidente vieram responder alegando que a reclamação é ilegal, extemporânea, e que o requerimento de abertura da qualificação deduzido é tempestivo.

Decidindo.

O despacho de abertura do incidente de qualificação é irrecorrível – art. 188º, nº2 do CIRE. As decisões judiciais só podem ser alvo de reclamação quando a lei o preveja expressamente (rectificações, reformas e arguição de nulidades). No caso, a reclamação contra a decisão proferida não é susceptível de reclamação por não se enquadrar em nenhuma das situações em que a lei a admite.

Todavia deve referir-se que o termo inicial do prazo para a dedução de requerimento de abertura do incidente de qualificação é a data da declaração de insolvência (quando o juiz o não declare aberto na sentença). O termo final desse prazo é o 15º dia posterior à realização da assembleia de apreciação do relatório, tal como prescreve o nº 1 do art. 188º do CIRE.

Assim, e pelo exposto, indefiro a reclamação deduzida. 

Custas do incidente pela requerente Artur Augusto Salta, fixando-se a taxa de justiça em 1 U.C.”

            1.6. Inconformado, S... recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:

1) O recorrente reclamou do despacho de abertura do incidente de qualificação por ser manifestamente extemporâneo, de acordo com o preceituado art.188, nº1 do CIRE, já que foi apresentado em 28/04/2016, bem antes da realização da assembleia de apreciação do relatório, designada para o dia 10/52016, pelo que não podia ser atendido.

2) Não se pode aceitar, que, como refere o despacho impugnado, tal prazo tenha início à data da declaração de insolvência.  Foi designada data para a realização da Assembleia, que se concretizou, portanto, o prazo terá de ser contado a partir da realização desta e não a partir da declaração de insolvência. 

3) Por força dos princípios gerais e legais consagrados no nosso sistema, não é possível admitir a abertura do incidente de qualificação de insolvência, nos termos em que o foi, no caso em apreço.

4) Verifica-se no despacho sob recurso, uma incorrecta interpretação das normas legais pertinentes, constata-se a violação, a ofensa da disposição expressa na lei aplicável (art. 188,nº1 CIRE), o que o fere de nulidade por violação desta lei, já que em muito afectou e viciou as duas decisões proferidas, nulidade que aqui e agora se argui, por poder ser suscitado neste recurso, o seu conhecimento.

            5) Porque também o despacho proferido e do qual se reclamou, se encontra eivado de nulidade, o qual deveria ter sido oficiosamente cognoscível, poderia o Tribunal a quo ter suprimido tal nulidade, atendendo à reclamação apresentada, o que não sucedeu. Sendo certo que, mesmo que irrecorrível, pode sobre tal despacho recair uma reclamação, mais não seja, para conhecimento das nulidades que o afectam.

6)Assim, deve o despacho impugnado ser revogado e consequentemente, ser substituído por outro, que não admita a abertura do incidente de qualificação de insolvência. 

            Contra-alegaram A... e J... e o Ministério Público no sentido da improcedência do recurso.

            II – FUNDAMENTAÇÃO

            2.1.- O objecto do recurso

            A questão submetida a recurso, delimitado pelas conclusões, consiste em saber se o tribunal podia declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, a requerimento de dois sócios da insolvente, mais concretamente se se verifica nulidade processual pela prática de acto indevido ou extemporâneo.

            Para a decisão do recurso relevam os elementos processuais descritos.

            2.2.- O mérito do recurso

O incidente da qualificação da insolvência ( arts.185 e sgs. do CIRE ) destina-se a averiguar as razões que determinaram a situação de insolvência, face às duas modalidades previstas: culposa e fortuita.

            O art.186 do CIRE contém os pressupostos da insolvência culposa, através da formulação de uma noção geral (nº1), complementada e concretiza com o recurso a presunções ( nº 2 e 3 ).

            O incidente de qualificação é oficiosamente aberto, em princípio na própria sentença que declara a insolvência, desde que o juiz disponha de elementos que justifiquem a abertura ( art. 36 nº 1 i) CIRE, na alteração da Lei nº 16/2012, de 20/4).

            Na versão primitiva, o art. 36 nº 1 i) CIRE impunha que na sentença o juiz declara aberto o incidente de qualificação da insolvência, com carácter pleno ou limitado, ou seja, a abertura era sempre obrigatória e automática.

Na redacção da Lei nº 16/2012 o juiz declara a abertura se já aí dispuser de elementos, para o efeito (“caso disponha de elementos que justifiquem a abertura do incidente de qualificação da insolvência”).

            Daqui resulta, desde logo, que mesmo após a alteração legislativa o incidente não está sujeito ao impulso de qualquer interessado (princípio do pedido), mas é iniciado oficiosamente, cuja razão de ser se  prende com a maior e mais eficaz responsabilização dos titulares das empresas e dos administradores, como se justifica no Preâmbulo do DL nº 53/2004 de 18/3 (ponto 40), que aprovou o CIRE.

            Para Carvalho Fernandes/ João Labareda, “o alcance deste primeiro momento do incidente é o de facultar a qualquer interessado a faculdade de no incidente alegar os factos que relevem para a qualificação da insolvência como culposa (art.188, nº1)” (“A qualificação da Insolvência e a Administração da Massa Insolvente pelo Devedor”, Colectânea de Estudos Sobre a Insolvência, pág.255).

A alteração legislativa consistiu “na transformação do actual incidente de qualificação da insolvência de carácter obrigatório num incidente cuja tramitação só terá de ser iniciada nas situações em que haja indícios carreados para o processo de que a insolvência foi criada de forma culposa”, conforme se explicita na exposição de motivos da Proposta de Lei nº 39/XII.

            Uma vez aberto o incidente, a tramitação é a seguinte: alegações dos interessados, pareceres do Ministério Público e do Administrador de Insolvência, oposição das pessoas afectadas, respostas e sentença (arts.188 e segs.CIRE).

Da conjugação dos arts.36 nº 1 i) e 188 nº 1 do CIRE parece extrair-se que a abertura do incidente pode ocorrer em dois momentos: (i) na sentença ( se o juiz dispuser de elementos) ou (ii) posteriormente (se o juiz considerar oportuno em face das alegações do Administrador ou qualquer interessado) no prazo do art.188 nº1.

            A primeira questão que se coloca é a de saber se após a sentença e em face dos elementos fornecidos pode ainda o juiz oficiosamente abrir o incidente, ou, por outras palavras, se a sentença é o único momento, ficando, assim, precludido o conhecimento oficioso durante o processo.

No sentido de que o único momento para oficiosamente proceder a abertura é o da sentença já decidiu esta Relação no acórdão de 10/3/2015 ( proc. nº 631/13), relatado pela Des. Catarina Gonçalves, disponível em www dgsi.pt, tal como sustenta também Carina Magalhães, em tese de Mestrado, disponível em repositório.ucp.pt (Incidente de Qualificação da Insolvência, Uma Visão Geral, UCP, 2014,  pág. 11).

Porém, não é de enjeitar a possibilidade da abertura durante o processo, mesmo após o prazo estabelecido no art.188 CIRE (cf. Vera Lúcia Oliveira, “Incidente de Qualificação de Insolvência”, Universidade do Minho, pág.20, disponível em repositorium.sdum.pt).

Verifica-se que dois interessados requereram, em 28 de Abril de 2016, o incidente de qualificação culposa da insolvência, logo antes da data designada para a assembleia de apreciação do relatório  (10 de Maio de 2016).

O art.188 nº1 do CIRE ao estatuir a possibilidade do Administrador ou qualquer interessado alegar por escrito o que tiver por conveniente sobre a qualificação da insolvência como culposa, “até 15 dias após a realização da assembleia de apreciação do relatório” não é inequívoco quanto ao início do prazo, mas apenas ao seu termo.

Em todo o caso, mesmo que se interprete como início do prazo o dia seguinte ao da realização da assembleia, o requerimento antecipado formulado antes da assembleia de credores não tem qualquer relevância, como pertinentemente objectou o Ministério Público nas contra-alegações, por configurar uma mera irregularidade, mas sem qualquer influência na decisão da causa, segundo o “critério do fim” (Alberto dos Reis, Comentário, II, pág. 486) e daí não consubstanciar sequer uma nulidade processual (art.195 nº1 CPC).

Por outro lado, sendo irrecorrível o despacho de abertura do incidente (art.188 nº2 CIRE) a reclamação de S... perante o despacho de abertura há-de ser entendida como arguição de nulidade processual.

Ora, tendo o mesmo sido publicado no Citius em 5 de Maio de 2016, a reclamação/arguição da nulidade só foi feita em 31 de Maio de 2016, logo para além do prazo legal de dez dias (arts.149 nº1 e 199 nº1 CPC), revelando-se manifestamente extemporânea, como notaram os apelados nas contra-alegações. Significa isto, ainda que existisse nulidade processual, estaria claramente sanada.

Sem necessidade de maiores considerações, improcedente o recurso, confirmando-se a decisão impugnada.

2.3.- Síntese conclusiva

a)Da conjugação dos arts. 36 nº 1 i) e 188 nº 1 CIRE ( redação da Lei nº 16/2012 de 20/4), resulta que a abertura do incidente de qualificação da insolvência pode ocorrer em dois momentos: (i) na sentença (se o juiz dispuser de elementos) ou (ii) posteriormente (se o juiz considerar oportuno em face das alegações do Administrador ou qualquer interessad) no prazo do art.188 nº1 CIRE.

b)Não consubstancia nulidade processual (art.195 nº1 CPC) a circunstância de um interessado credor requerer a abertura do incidente de qualificação da insolvência em momento anterior ao início da assembleia de apreciação do relatório.


III – DECISÃO

            Pelo exposto, decide-se:

1)

            Julgar improcedente a apelação e confirmar o despacho recorrido.

2)

            Condenar o Apelante nas custas.

Coimbra, 20 de Setembro de 2016.


( Jorge Arcanjo )

( Manuel Capelo )

( Falcão de Magalhães )