Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
372/16.5JALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRIZIDA MARTINS
Descritores: PENA DE SUBSTITUIÇÃO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
Data do Acordão: 07/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (J C CRIMINAL – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 50.º DO CP
Sumário: I - A aplicação desta pena de substituição [suspensão da execução da pena de prisão] só pode e deve ter lugar quando a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizarem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

II - Refere Figueiredo Dias que, pressuposto material de aplicação do instituto é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente

III - E acrescentava que, para a formulação de um tal juízo – ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade, ou só das circunstâncias do facto –, o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto.

IV - A arguida praticou o crime numa altura em que tinha problemas decorrentes do consumo excessivo de bebidas alcoólicas, numa situação de instabilidade da sua vida pessoal, sem trabalhar nem se esforçar para o conseguir, sem apoio familiar, sem preparação para alterar o seu modo de vida; tudo isso ainda se verifica sendo certo que a arguida não manifesta arrependimento.

V - Perante a situação concreta da arguida, não parece de formular um prognóstico favorável relativamente ao seu comportamento e apostar na sua capacidade de recuperação dos valores socialmente relevantes nem acreditar na sua reinserção plena e responsável.

VI - Não merece qualquer censura a decisão recorrida que aplicou à recorrente a pena de 4 anos de prisão efectiva.

Decisão Texto Integral:






Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.


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I – Relatório.

1.1. A arguida A... , já com os demais sinais nos autos, foi submetida a julgamento no Tribunal a quo porquanto acusada pelo Ministério Público da prática de factos consubstanciadores da autoria material de um crime de homicídio, sob a forma tentada, previsto e punido pelos art.ºs 131.º; 22.º, n.ºs 1 e 2, als. b) e c) e 23.º, todos eles do Código Penal.

Findo o contraditório, por acórdão do respectivo Tribunal, foi decidido condenar a dita arguida enquanto agente do assacado ilícito, na pena de quatro anos de prião efectiva. 

1.2. Inconformada[1]com o segmento da decisão que entendeu não ser caso de aplicação de uma pena de substituição, a arguida interpôs o presente recurso para este Tribunal da Relação, de cuja motivação constam as seguintes conclusões:

a) A determinação da medida da pena mostra-se fixada fora dos limites definidos na lei.

b) Com efeito, o Tribunal a quo e no que concerne, violou a regra base Penal “O Critério de Escolha da Pena” consagrada no art.º 70.º do Código Penal.

c) Definida a moldura penal abstracta haverá que encontrar o quantum concreto da pena a aplicar à arguida, aqui na segunda e última operação supra referida, pois que o tipo de ilícito apenas prevê a pena de prisão.

d) Na determinação desse quantum concreto haverá que fazer apelo às necessidades de prevenção e à culpa da arguida, na sequência do comando contido no art.º 71.º, n.º 2, do Código Penal.

e) É afirmação habitual da doutrina, com seguimento jurisprudencial – v.g. dos mais recentes, os Acs. do STJ, de 24-01-2007 (06P4345), de 25-10-2006 (06P2938) e de 21-03-2007 (07P790) -, que a prevenção geral positiva ou de integração, com o intuito de tutela dos bens jurídicos é a finalidade primeira da aplicação de uma pena, não fazendo esquecer a prevenção especial ou de socialização, a reintegração do agente na sociedade - art.º 40.º, n.º 1, do Código Penal.

f) Funcionando em “ambivalência” com as necessidades de prevenção, a culpa, a vertente pessoal do crime, o cunho da personalidade do agente tal como vertida no facto, funciona como um limite às exigências de prevenção geral.

g) Assim, o limite máximo da pena fixar-se-á em função da dignidade humana do condenado, pela medida da culpa revelada que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham, enquanto o seu limite mínimo é delimitado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente aquela protecção dos bens jurídicos.

h) Apuremos então quais os elementos de facto determinantes para a determinação da pena concreta, nos termos do art.º 71.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.

i) Desde logo se deve levar em conta a elevada ilicitude dos factos e a necessidade de tutela efetiva dos bens jurídicos protegidos que, aqui, se limitam aos patrimónios (!!!).

j) Haverá que relembrar que a recorrente não agiu com dolo directo e que a sua culpa não é intensa.

l) O mesmo não ocorre com a necessidade de prevenção de futuros crimes, já que as circunstâncias da prática dos mesmos exigem maior rigor e severidade, dada a actuação em grupo, É prática que, por imposição de defesa da sociedade, se impõe reprovar seriamente.

k) São, pois, circunstâncias atinentes ao facto, sua forma de execução e à personalidade do agente, que determinarão que a pena proposta cumpra a “função contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada”, na terminologia de Jakobs.

l) Entende-se, pois, que se enquadra na culpa da recorrente a pena de quatro anos de prisão, mas porém suspensa por igual período de tempo, sujeita a regime de prova, porque os factos o justificam face ao critério legal permissivo da suspensão designadamente a “prognose social favorável” pelas razões já apontadas.

Terminou pedindo que no provimento do recurso, mantendo-se a sua condenação pela cominada pena de quatro anos de prisão, seja contudo a mesma suspensa na sua execução pelo correspondente período e mediante acompanhamento por regime de prova, isto de acordo com o art.º 53.º do Código Penal.

1.3. Admitido o recurso, em resposta o Ministério Público sufragou do seu improvimento alicerçado nesta síntese de ideias:

1) A suspensão da execução da pena de prisão não é apenas facultativa, tratando-se antes de um poder-dever dependendo dos pressupostos formais e materiais estipulados na lei.

2) É pressuposto formal da aplicação do instituto da suspensão da execução da pena de prisão a circunstância de, em concreto, não ser aplicável ao agente pena de prisão superior a 5 (cinco) anos.

3) É pressuposto material da aplicação do instituto da suspensão da execução da pena de prisão a verificação de um prognóstico favorável pelo Tribunal relativamente ao comportamento da condenada, tendo em atenção a sua personalidade e as circunstâncias do facto, no sentido de que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para a afastar da criminalidade, satisfazendo, simultaneamente, as exigências de prevenção geral, ínsitas na finalidade da punição, previstas no art.º 40.º do Código Penal.

4) A comunidade não compreenderia a opção do Tribunal ad quem se decidisse suspender na sua execução a pena de prisão a quem como a arguida,

a) Pratica os factos provados: -- “Encostando as costas à gaveta onde estavam guardadas as facas e, com as mãos atrás das costas, retirou uma faca de cozinha, com cabo escuro, de lâmina serrilhada, com lâmina de 11 cm de comprimento e 22 centímetros de comprimento total”; mantém os braços cruzados à frente, segurando a faca na mão direita, mantendo-a escondida por baixo dos braços e costas para ele; riu-se e disse “como me estou a rir, mais depressa o faço!” e, de seguida, volta-se de frente para ele, mantendo a faca na sua mão direita, após o que apontou a faca e espetou-a no peito de B... , junto ao mamilo esquerdo, retirou-a e atirou-a para o chão”;

b) Na sua postura em audiência, da qual não se extraiu nenhum juízo de auto-censura e sentido crítico acerca dos factos, facto que inevitavelmente contribuiu para se perceber a forma como não atribuiu relevo aos seus actos, elemento indiciário do tipo de personalidade em presença.

5) A suspensão da execução de uma pena de prisão in casu desacreditaria as expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada e não serviria os imperativos de prevenção geral.

6) “Banalizar a suspensão da execução da pena de prisão nos casos crime de homicídio, ainda que tentado, redundaria num enfraquecimento da confiança da comunidade na validade da norma jurídica que a prática do crime veio pôr em crise, não podendo os Tribunais ignorar que a violência desajustada e desproporcionada, como foi o caso, é sempre motivo de grande alarme social e de justificado receio em relação à segurança dos cidadãos.”

7) A pena imposta à recorrente não poderá ser suspensa na sua execução por se considerar que a simples censura do facto e a ameaça de execução da pena de prisão acautelam de forma suficiente as finalidades de punição, afastando aquela do cometimento futuro de factos semelhantes.

8) Decidindo pela forma em que o fez, o Tribunal a quo não violou o disposto nos art.ºs 50.º e 53.º, ambos do Código de Penal.

1.4. Cumpridas as formalidades devidas, foram os autos remetidos a este Tribunal da Relação.

Aqui, na vista a que o art.º 416.º do Código de Processo Penal se refere, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em que se pronuncia pela confirmação integral da decisão recorrida.

1.5. Notificada nos termos do art.º 417.º, n.º 2, do referido Código adjectivo, a defesa nada acrescentou.

1.6. Não tendo sido requerida a realização de audiência, os autos vêm à conferência para decisão.


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II – Fundamentação.

2.1. Os factos que vêem dados como provados pela 1.ª instância, e respectiva motivação, são como seguem:          

1- Entre Janeiro de 2016 e o dia 6 de Agosto de 2016, a arguida A... e B... residiram, como se fossem marido e mulher, na Rua (...) , Leiria.

2- Durante esse período em que viveram juntos, por diversas vezes, ambos se envolveram em discussões e agressões recíprocas, sendo que um dos motivos dessas desavenças resultava do consumo excessivo de bebidas alcoólicas por parte da arguida A... .

3- No dia 6 de Agosto de 2016, cerca da 1:00 hora, naquela residência, a arguida A... e B... envolveram-se numa discussão pelo facto de aquela ter estado a beber bebidas alcoólicas, comportamento que B... criticava.

4- Nessas circunstâncias, B... disse à arguida A... que queria que ela saísse daquela casa e começou a juntar alguns objectos pessoais daquela.

5- A arguida A... , não concordando com a decisão de B... , pois não tinha para onde ir, pegou numa tostadeira e atirou-a ao chão, partindo-a e dizendo: “Estás a ver? Isto já foi!”.

6- Então, B... disse à arguida A... que pretendia sair de casa, ao que esta se colocou em frente da porta da cozinha, para o impedir de sair.

7- Perante essa atitude, B... desferiu uma bofetada na cara da arguida A... e afastou-a da sua frente, saindo de casa.

8- B... regressou a casa pouco depois, estando a arguida A... na varanda com F....

9- B... foi para o quarto onde continuou a juntar os haveres da arguida A... , dizendo-lhe que não a queria mais naquela casa.

10- Nesta confusão, a arguida A... ora ia para a cozinha, ora para o quarto, dizendo “Isto não vai ficar por aqui!”

11- A certa altura, a arguida A... parou na cozinha, encostou as costas à gaveta onde estavam guardadas as facas e, com as mãos atrás das costas, retirou uma faca de cozinha, com cabo escuro, de lâmina serrilhada, com lâmina de 11 cm de comprimento e 22 centímetros de comprimento total.

12- Quando B... chegou à cozinha a arguida A... tinha os braços cruzados à frente, segurando a faca na mão direita.

13- Perante isso, B... foi até à varanda e regressou à cozinha, ficando de pé, junto à arguida A... , quase encostado a esta, estando a mesma de costas para ele, virada para a sua irmã E... , que lhe pediu para parar.

14- Entretanto, a arguida A... riu-se e disse “como me estou a rir, mais depressa o faço!”.

15- A irmã E... saiu e a arguida A... ficou a falar com B... , ambos frente-a-frente, mantendo a faca na sua mão direita.

16- Nessa altura, a arguida A... apontou a faca e espetou-a no peito de B... , junto ao mamilo esquerdo, retirou-a e atirou-a para o chão.

17- Em consequência de tal actuação da arguida A... , B... sentiu dor e mau estar físico e sofreu, no hemitórax esquerdo, um ferimento linear, oblíquo infero-medialmente, na região peitoral esquerda, sensivelmente na linha média da metade posterior (proximal) da região peitoral esquerda, distando 3,5 centímetros do mamilo, com 1,5 centímetros de comprimento e abundante derrame pleural denso, em relação ao hemotórax.

18- B... foi assistido no local e transportado em VMER para o Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Leiria, onde deu entrada pelas 03:52 horas daquele dia 06.08.2016, e aí ficou internado no Serviço de Cirurgia II, depois de efectuada TAC torácica que revelou a presença de hemopneumotórax à esquerda, tendo sido colocado dreno torácico, com saída de 150 cc de conteúdo hemático; teve alta clínica no dia 12.08.2016.

19- B... ainda foi observado em consulta de acompanhamento no Serviço de Cirurgia I nos dias 30.08.2016 e 16.09.2016, data em que teve alta definitiva.

20- As lesões sofridas por B... determinaram, causa directa e necessariamente, 43 dias de doença, todos com incapacidade para o trabalho, correspondendo ao período compreendido entre 06.08.2016 e 18.09.2016.

21- A arguida A... agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a força que imprimiu e a zona atingida eram adequados a produzir a morte de B... .

22- Nessa sua vontade, a arguida A... procurou atingir o peito de B... , como conseguiu, pois bem sabia tratar-se de zona onde estão alojados órgãos vitais, sabendo que a sua conduta era assim adequada a produzir a morte de B... , o que representou e quis embora tal não tenha acontecido, dada a pronta assistência médica que lhe foi prestada.

23- A arguida A... sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

24- O tratamento e assistência prestado a B... pelos serviços do Centro Hospitalar de Leiria em resulta das lesões sofridas devido à referida actuação da arguida A... ascendem à quantia de € 1.240,53, que ainda não foi paga.

25- A arguida A... não se encontra arrependida pela prática daqueles factos.

26- A arguida A... não regista antecedentes criminais.

27.1- A arguida A... nasceu a 06 de Novembro de 1982, em Leiria, sendo a segunda de seis irmãs; a irmã mais velha nasceu quando a mãe tinha 13 anos e foi entregue para adopção; outras três irmãs foram entregues a outras famílias, que as adoptaram, havendo contactos apenas com uma delas; o pai da arguida, falecido há 6 anos, manteve uma relação amorosa com a avó desta, com quem vivia maritalmente, envolvendo-se posteriormente com a mãe da arguida.

27.2- O seu processo educativo foi marcado por fraca supervisão parental, num contexto de privações afectivas e socioeconómicas em que a mãe demonstrou limitada capacidade cognitiva e fragilidade emocional, enquanto o pai se manifestava violento e a família subsistia exclusivamente do trabalho deste como operário fabril.

27.3- Em termos escolares, com desmotivação e problemas de assiduidade, abandonou a escola antes de concluir o 5º ano de escolaridade, sem uma intervenção familiar no sentido de a motivar e vincular às obrigações lectivas.

27.4- Aos 11 anos de idade, com a conivência dos familiares, que receberam proveitos em troca, a arguida A... acompanhou um casal amigo, emigrante em França, sendo que já antes tinham ocorrido contactos sexuais desse homem com A... e as irmãs, admitidos pelos pais.

27.5- Em França, a arguida não se adaptou às vivências dessa nova família pelo que fugiu e regressou a Portugal.

27.6- As três irmãs foram “reiteradamente” violadas pelo próprio pai e pelo amigo deste, a quem subornavam dinheiro e bens alimentares para fazer face às carências económicas da família; daí resultou uma gravidez de uma das irmãs, no início da sua adolescência, que veio a desencadear o processo de condenação do pai e do amigo em pena de prisão efectiva para ambos.

27.7- Aos 14 anos de idade, a arguida A... foi mãe de um rapaz que foi entregue a uma família de acolhimento aos 6/7 meses de idade; a arguida protagonizou várias fugas de casa com regressos impostos à força pelo pai.

27.8- Em altura não concretamente apurada da adolescência, a arguida A... começou a ter problemas de dependência do consumo de bebidas alcoólicas e de heroína e cocaína.

27.9- Aos 18 anos, a arguida A... começou a viver maritalmente com um companheiro, com o qual viveu onze anos e de quem teve duas filhas, nascidas em 2006 e 2008; ele, entretanto, cumpriu pena de prisão e as crianças foram confiadas a famílias para adopção.

27.10- Em resultado dessa relação marital, agravou-se a sua problemática dos consumos de heroína e cocaína que se manteve por quase 10 anos; entre os 18 e os 28 anos, A... foi alvo de tratamentos para a toxicodependência, integrou um programa antagonista com antaxone e de substituição com metadona no ex-CAT de Leiria, mas fazia consumos tóxicos concomitantes.

27.11- Em resultados dos consumos excessivos de bebidas alcoólicas, há cerca de 4 anos, a arguida A... esteve internada por 15 dias no Hospital de Sobral Cid, em Coimbra, onde realizou uma desintoxicação alcoólica; posteriormente, mais recentemente esteve internada em Ourém cerca de 9 meses num programa de desintoxicação, mas recaiu de novo nesses consumos excessivos, situação em que se encontrava quando foi presa.

27.12- Além daquela problemática, a arguida A... sofre de patologia epiléptica e depressiva mas não faz tratamento regular.

27.13- Desde há 6 anos que está desocupada; na adolescência, a arguida A... trabalhou algum tempo numa gasolineira e num café-restaurante; mais tarde, colaborava com o pai do companheiro em obras de construção civil, mas sempre de modo não contratualizado.

27.14- Antes de Agosto de 2016, a arguida A... encontrava-se sem trabalho e alternava a habitação entre a casa da mãe e a do companheiro B... ; essa alternância devia-se à existência de conflitos entre estes, com agressões físicas de ambos; as habitações localizam-se no mesmo bairro, uma comunidade residencial da empresa “ (...) ”, onde trabalha o companheiro da mãe e onde residem outros familiares da arguida.

27.15- A arguida A... quando está alcoolizada torna-se quezilenta e agressiva; a sua imagem social na comunidade residencial é negativa devido ao seu comportamento aditivo ao álcool; a arguida é reactiva à frustração e conflituosa na interacção social e assume comportamentos agressivos e ameaçadores, por vezes mesmo face aos familiares; havia queixas dos moradores à administração do bairro solicitando a intervenção daquela para a retirada de A... , de modo a haver mais tranquilidade e segurança no bairro.

27.16- A arguida A... foi detida no dia 06.08.2016 e encontra-se presa preventivamente desde essa data, actualmente no Estabelecimento Prisional de Tires.

27.17- Poucos dias depois de ter sido presa, a arguida A... foi internada no Hospital de Cascais por um dia e ainda em Agosto foi provisoriamente transferida para o Hospital Prisional de São João de Deus em Caxias, devido a síndrome de abstinência, onde esteve internada até 24 de Novembro.

27.18- A arguida A... tem sido acompanhada em consulta de psiquiatria e mantém diversa medicação para a abstinência alcoólica, mostrando-se estável e com a situação clínica controlada.

27.19- No Estabelecimento Prisional de Tires, onde se encontra, a arguida A... não apresenta problemas de cumprimento de regras, nem de relacionamento interpessoal nem tem qualquer registo de problemas disciplinares; tem recebido visitas da sua irmã E... .


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Nenhuns outros factos relevantes para a discussão da causa se provaram em audiência de discussão e julgamento; nomeadamente não ficou demonstrado que a irmã E... tenha dito à arguida A... para largar a faca (aquela testemunha não falou e a arguida apenas admitiu que esta lhe disse “mana pára!”) nem que a arguida A... “cruzou o braço pela frente do seu corpo e virou-se ligeiramente na direcção de B... ” quando lhe espetou a faca.

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Motivação

A decisão do tribunal, tomada em consciência e após livre apreciação crítica das provas produzidas em audiência, fundou-se na análise crítica e conjugada das declarações do arguido e dos depoimentos das testemunhas a seguir indicadas e documentos referidos.

A arguida A... confessou a prática dos factos mas nega a intenção de matar B... dizendo que apenas pretendia assustá-lo para ele não lhe bater mais.

A arguida descreveu como era a vivência entre ambos durante período em que, desde Janeiro de 2016, moraram juntos, os conflitos, agressões recíprocas e consumos de bebidas alcoólicas; naquela noite a discussão resultou de ele querer sair, ela tentou tirar-lhe a chave do carro e ele deu-lhe um “estalo” e mandou-a sair da casa dele mas a arguida não queria ir embora porque não tinha para onde ir.

Relatou as diversas actuações até lhe disferir com a faca, esclarecendo como tirou a faca da gaveta dos talheres, com as mãos atrás das costas; quando lhe disse “quanto mais me rio mais fácil o faço” queria dizer que facilmente lhe espetava a faca; quando lhe espetou a faca estava de frente e queria atingi-lo, sabia que o podia matar, a irmã já lhe tinha dito para parar.

Explicou, perante as fotos de fls. 19 a 23, o enquadramento das actuações e confirmou que a faca que se vê nas fotos 6 e 7 (fls. 20 e 21) é a que usou contra B... sendo o armário onde se encostou e de onde retirou a faca aquele que se vê nas fotos 4 e 5 de fls. 20 e 21.

Foi deferida, a requerimento do Digno Magistrado do Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 357º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal, a reprodução, em audiência de discussão e julgamento, das declarações prestadas pela arguida A... no primeiro interrogatório judicial de arguido detido. Especialmente nos minutos 10 e 20, a arguida esclarece o motivo pelo qual socorreu B... , posição em que se encontravam, dizendo que viu o local onde estava espetar e que “até o poderia ter matado”.

A arguida ostenta um discurso coerente e sereno esclarecendo todas as questões que lhe foram colocadas de modo firme e convicto, claudicando, apenas, quando procura justificar que apenas queria assustar B... .

Depois da confissão parcial da arguida, a questão essencial que se coloca é a de saber se a mesma tinha intenção de matar o B... .

A explicação da arguida não faz sentido e a observação da situação concreta mostra que a arguida representou a possibilidade de matar o B... e agiu pretendo concretizar tal desiderato.

Em termos de enquadramento temos: a ingestão de bebidas alcoólicas no café, o desentendimento anterior já em casa, o atirar a tostadeira ao chão e afirmar “estás a ver? isto já foi!”, a agressão e discussão e ordem de expulsão da casa, o começar a arrumar as suas coisas para se ir embora e não ter para onde ir, a ameaça “isto não vai ficar por aqui” e depois “como me estou a rir, mais depressa o faço” já com a faca. Há aqui toda um crescendo de animosidade que leva a arguida, do desentendimento ao desespero por ter que sair e não ter para onde ir, depois de a irmã lhe ter dito para parar, da primeira ameaça ao encosto ao armário de onde retira a faca; não há apenas uma postura de ameaça mas de concretização com regozijo ao dizer “depressa o faço” imediatamente antes de disferir o golpe bem como o modo como retira da gaveta, segura e usa a faca.

Além disso, a própria arguida admite (no primeiro interrogatório judicial) que viu onde estava a espetar a faca (diferentemente do que disse em audiência de discussão e julgamento) e que até o podia ter matado; estas declarações do primeiro interrogatório mostram-se mais credíveis tendo em conta as circunstâncias e o modo como foram proferidas e a diversa atitude nas duas diligências.

Ora se a arguida, estando a dois ou três passos de B... , querendo atingi-lo, quando nada espera, dirige a faca para a zona do coração e outros órgãos vitais e que “até o podia ter matado” não pode procurar convencer que apenas queria assustá-lo; até o modo como atira a faca para o chão é como que o exaltar desse desejo.

O facto de a arguida depois o ter socorrido não afasta a intenção, no momento em que desfere a facada, de tirar a vida a B... ; apenas ilustra ou corresponde à rápida noção que a mesma logo teve do excesso dos seus sentimentos e da sua reacção aos acontecimentos dessa noite.

O relatório pericial do INML demonstra a aptidão da actuação da arguida para causar a morte a B... .

Não se coloca a questão de a arguida estar sob o efeito do álcool a ponto de não ter a noção da sua actuação pois, o modo como a mesma agiu, reagiu e descreveu a os comportamentos, afasta qualquer dúvida quanto a uma eventual diminuição da capacidade para avaliar a ilicitude do seu comportamento e de se determinar conformemente com a avaliação da licitude normal que se exige e espera.

F... , amigo da arguida desde a infância e com quem já tinha vivido, estava presente na altura dos factos; relatou como tinham estado a beber e a discussão que deu origem a que B... tivesse mandado a arguida embora de sua casa e que iria para casa desta testemunha; ainda andou a ajudar a levar “coisas” para o carro; viu a arguida tirar a faca e atingir o B... , ele estava de frente para ela e “aquilo foi um repente”.

Esta testemunha produziu um depoimento sem vida e com uma atitude algo desinteressada e sem sentido do contexto apresentando uma postura distante e vaga.

Em termos concretos, para aquilo que restava apurar depois da confissão da arguida, esta testemunha nada conseguiu ajudar a compreender a atitude interior da arguida nem a afastar o anteriormente explanado.

C... , gerente da “ (...) ” falou dos desentendimentos e de ter sido chamado ao bairro onde a família morava por a arguida estar a bater na irmã; dos factos em concreto nada sabe. Depoimento que manifesta desagrado relativamente aos comportamentos da pessoa da arguida no contexto da vizinhança, tal como já constava do relatório social dos serviços da DGRSP.

D... , funcionária do CHL, veio dizer, para além do que consta dos respectivos documentos, que B... foi assistido naquele hospital e que os tratamentos ainda estão em dívida. Testemunhas do pedido de indemnização que, sem conhecimento dos factos, veio salientar o teor dos documentos existentes.

Para a caracterização da lesão sofrida por B... e consequências da actuação da arguida, foi relevante a análise dos relatórios da perícia de avaliação do dano corporal: de fls 142 a 144 (MLPN1 – data do exame: 09.08.2016) e 164 a 168 (= original 195 a 197) (MLPN2 – data do exame: 19.09.2016, assinado a 20.09.2016) com documentos de fls 198 a 207; MLPN2 solicitou “informação clínica relativa ao examinado e ao evento em apreço (consulta do Serviço de Cirurgia 2)” não se encontra nos autos mas não se mostra relevante nem necessário.

O relatório de exame pericial do Laboratório de Polícia Cientifica da PJ de fls 177 e 178 conclui que de acordo com a análise de DNA, há identidade de polimorfismos dos vestígios hemáticos detectados na lâmina da faca com a zaragatoa bucal recolhida a B... . Tal mostra que foi aquela a faca utilizada tal como a arguida confirmou.

Foram igualmente analisados os seguintes documentos:

- fotogramas de fls. 17 a 23 (imagens de localização da casa, diversos enquadramentos do anexo onde viviam A... e B... , perspectivas do respectivo interior, da cozinha onde foi encontrada a faca em cima da mesa e planos da cozinha, corredor, quarto de dormir e casa de banho, incluindo um coelho de estimação numa gaiola a fotos 4 e 5); faca comparada com régua na foto 7 de fls. 21, onde se apura as dimensões e características da faca;

- fotogramas de fls. 90 = original a 104 (vista da cozinha, local onde a GNR encontrou B... deitado no solo e a faca na mesa), correspondem a semelhantes perspectivas recolhidas pela Polícia Judiciária;

- auto de apreensão de faca de cozinha de fls. 24;

- informações clínicas do CHL (tratamento, internamento e alta clínica) de fls. 132 a 138 e também em parte igual de fls. 198 a 207 (com certificados de incapacidade temporária referidos no MLPN2).

A perícia médico-legal e as informações clínicas foram determinantes para a definição das consequências da actuação da arguida e da assistência prestada a B... .

As fotografias ajudam a compreender e enquadrar as características do espaço onde se desenrolaram os factos em apreço.

E... (irmã da arguida) e B... (companheiro na data dos factos) optaram por não prestar depoimento, usando da faculdade de se recusarem a depor como testemunhas, que lhes é conferida pelas alíneas a) e b), do n.º 1, do artigo 134.º do Código de Processo Penal.

A convicção do tribunal acerca da falta de arrependimento da arguida resultou da sua atitude em audiência de julgamento ao não assumir os seus comportamentos antes tentando enganar o tribunal: a arguida procurou desviar a sua actuação sustentando que não pretendia matar mas apenas assustar. Na realidade, a arguida limitou-se a confessar aquilo que estava bastamente suportado pela demais prova arrolada na acusação e produzida em audiência de discussão e julgamento. Isto quer dizer que a arguida procurou levar o julgamento a um resultado diverso da realidade ocorrida, demonstrando assim que não interiorizou totalmente a gravidade do seu comportamento.

A declaração de arrependimento da arguida, na realidade, corresponde àquilo que diz François La Rochefoucauld: “o (nosso) arrependimento não é tanto um remorso do mal que cometemos mas um temor daquilo que nos pode acontecer”.

Ausência de antecedentes criminais: CRC de fls. 231.

A situação pessoal da arguida A... foi apurada a partir das suas próprias declarações e do relatório dos serviços de reinserção social que se encontra a fls. 327.

No que respeita aos factos não provados tal resultou de não se ter feito prova dos mesmos (a arguida negou que a irmã lhe tivesse dito para largar a faca; e a irmã recusou testemunhar) ou resulta de diferente perspectiva da realidade (resultou do depoimento da arguida que esta se encontrava de frente quando empunhou a faca contra B... e não foi produzida qualquer outra prova credível a esse respeito).

2.2. As conclusões formuladas pela recorrente delimitam o âmbito do recurso.

Na verdade, são apenas as questões por si suscitadas e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar[2], mas isto sem prejuízo das de conhecimento oficioso, as quais deve conhecer e decidir sempre que os autos reúnam os elementos necessários para tal.

In casu, não emerge nenhuma circunstância reclamando esta intervenção oficiosa.

Donde que, vistas as conclusões apresentadas pela arguida, o objecto do recurso se cinja a indagarmos se, como pretende, se mostram reunidos os pressupostos, formais e substantivos, da aplicação da pena de substituição[3] que é a suspensão da execução da pena aplicada na 1.ª instância.

Antecedendo a dilucidação do caso concreto, faremos algumas considerações sobre o seu regime[4], isto pese embora o essencial esteja já espraiado nos autos, tanto na decisão recorrida, quanto no recurso interposto e resposta apresentada pelo Ministério Público junto do Tribunal sindicado.

Assim:

2.3. Decorre do estabelecido pelo art.º 50.º, n.º 1, do Código Penal que a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos é suspensa se o tribunal, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. 

A partir de 15 de Setembro de 2007 com a alteração introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro (23.ª alteração ao Código Penal), alargou-se o campo de aplicação da pena de substituição a penas de prisão até 5 anos, em vez do limite anterior de 3 anos.

A aplicação desta pena de substituição só pode e deve ter lugar quando a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizarem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, como decorre do mencionado art.º 50.º do Código Penal.

Circunscrevendo-se estas, a partir de 1 de Outubro de 1995, de acordo com o art.º 40.º do Código Penal, à protecção dos bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade, é em função de considerações de natureza exclusivamente preventivas – prevenção geral e especial – que o julgador tem de se orientar na opção ora em causa.

Como refere Figueiredo Dias[5], pressuposto material de aplicação do instituto é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente: que a simples censura do facto e a ameaça da pena – acompanhadas ou não da imposição de deveres e (ou) regras de conduta – «bastarão para afastar o delinquente da criminalidade».

E acrescentava: para a formulação de um tal juízo – ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade, ou só das circunstâncias do facto –, o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto.

Por outro lado, há que ter em conta que a lei torna claro que, na formulação do prognóstico, o tribunal reporta-se ao momento da decisão, não ao momento da prática do facto.

Como refere a págs. 344 “A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer “correcção”, “melhora” ou - ainda menos - “metanoia” das concepções daquele sobre a vida e o mundo. É, em suma, como se exprime Zipf, uma questão de “legalidade” e não de “moralidade” que aqui está em causa. Ou, como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o “conteúdo mínimo” da ideia de socialização, traduzida na “prevenção da reincidência”.

 Adverte ainda o citado Professor[6] que apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável – à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização –, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem «as necessidades de reprovação e prevenção do crime».

Reafirma que “estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre – o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto em causa”.

Como refere Hans Heinrich Jescheck[7], continua o aresto que vimos citando, «na base da decisão de suspensão da execução da pena deverá estar uma prognose social favorável ao agente, baseada num risco prudencial. A suspensão da pena funciona como um instituto em que se une o juízo de desvalor ético - social contido na sentença penal com o apelo, fortalecido pela ameaça de executar no futuro a pena, à vontade do condenado em se reintegrar na sociedade».

Trata-se de uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, tendo na sua base uma prognose social favorável ao arguido, a esperança fundada e não uma certeza – assumida sem ausência de risco – de que a socialização em liberdade se consiga realizar, que o condenado sentirá a sua condenação como uma advertência séria e solene e que em função desta, não sucumbirá, não cometerá outro crime no futuro, que saberá compreender, e aceitará, a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, pautando a conduta posterior no sentido da fidelização ao direito.

A suspensão da execução da pena insere-se num conjunto de medidas não institucionais que, não determinando a perda da liberdade física, importam sempre uma intromissão mais ou menos profunda na condução da vida dos delinquentes, pelo que, embora funcionem como medidas de substituição, não podem ser vistas como formas de clemência legislativa, pois constituem autênticas medidas de tratamento bem definido, com uma variedade de regimes aptos a dar adequada resposta a problemas específicos[8].

Conforme se pode ler num aresto do STJ[9], o instituto em causa “Constitui uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, de forte exigência no plano individual, particularmente adequada para, em certas circunstâncias e satisfazendo as exigências de prevenção geral, responder eficazmente a imposições de prevenção especial de socialização, ao permitir responder simultaneamente à satisfação das expectativas da comunidade na validade jurídica das normas violadas, e à socialização e integração do agente no respeito pelos valores do direito, através da advertência da condenação e da injunção que esta impõe para que o agente conduza a vida de acordo com os valores inscritos nas normas.

A suspensão da execução, acompanhada das medidas e das condições admitidas na lei que forem consideradas adequadas a cada situação, permite, além disso, manter as condições de sociabilidade próprias à condução da vida no respeito pelos valores do direito como factores de inclusão, evitando os riscos de fractura familiar, social, laboral e comportamental como factores de exclusão.

A suspensão de execução da pena, enquanto medida com espaço autónomo no sistema de penas da lei penal, traduz-se numa forte imposição dirigida ao agente do facto para pautar a sua vida de modo a responder positivamente às exigências de respeito pelos valores comunitários, procurando uma desejável realização pessoal de inclusão, e por isso também socialmente valiosa”. 

Como se extrai de um outro acórdão do mais alto Tribunal[10], “São sobretudo razões de prevenção especial (e não considerações de culpa) as que estão na base do instituto, permitindo substituir uma pena institucional ou detentiva, por outra não detentiva, isoladamente aplicada ou associada à subordinação de deveres que se impõem ao condenado, destinados a reparar o mal do crime e (ou) de regras de conduta, estabelecidas com o fim de melhor reinserir aquele socialmente em ordem ao acatamento dos valores comunitários, cujo respeito, pelo afastamento do condenado da criminalidade (e não pela sua regeneração) se pretende obter”.

A aplicação de uma pena de substituição não é uma faculdade discricionária do tribunal mas, pelo contrário, constitui um verdadeiro poder/dever, sendo concedida ou denegada no exercício de um poder vinculado.

Como afirmava Figueiredo Dias[11], então face ao art.º 48.º, n.º 1, do Código Penal de 1982, não se trata de mera «faculdade» em sentido técnico-jurídico, antes de um poder estritamente vinculado e portanto, nesta acepção, de um poder-dever.

Maia Gonçalves[12],afirmava, por seu turno: “Trata-se de um poder-dever, ou seja de um poder vinculado do julgador, que terá que decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização das finalidades da punição, sempre que se verifiquem os apontados pressupostos”.

Na jurisprudência foi defendida a necessidade de fundamentação, tanto no Tribunal Constitucional como no Supremo Tribunal de Justiça, face à versão anterior, justificando-se de pleno a mesma posição face à nova lei, em que apenas foi alterado o pressuposto formal passando do limite de 3 para 5 anos de prisão.

Assim, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 61/2006, de 18-01-2006, in Diário da República, II Série, de 28-02-2006, julgou inconstitucionais, por violação do artigo 205.º, n.º 1, da CRP, as normas dos artigos 50.º, n.º 1, do Código Penal e 374.º, n.º 2 e 375.º, n.º 1, do CPP, interpretados no sentido de não imporem a fundamentação da decisão de não suspensão da execução de pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos.

O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender, de forma pacífica, tratar-se a suspensão da execução de um poder-dever, de um poder vinculado do julgador, tendo o tribunal sempre de fundamentar, especificadamente, quer a concessão quer a denegação da suspensão.

Por todos e porque mais recente, veja-se a fundamentação do acórdão de uniformização de jurisprudência - Acórdão n.º 8/2012 -, proferido no âmbito do processo n.º 139/09.7IDPRT.P1-A.S1, da 3.ª Secção, de 12 de Setembro de 2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 206, de 24 de Outubro.

A caracterização da suspensão da execução da pena de prisão como um poder vinculado conduz à necessidade de fundamentação da decisão que a aplica, ou a desconsidera, incorrendo em nulidade a decisão que não contemple tal injunção.

A inobservância da consideração/ponderação desta necessidade de fundamentação consubstancia omissão de pronúncia que conduz a nulidade, de conhecimento oficioso, nos termos do art.º 379.º, n.ºs 1, al. c) e 2, do Código de Processo Penal.

Assim se pronunciaram unanimemente acórdãos do STJ[13].

2.4. Enquadrados nestes parâmetros, vejamos do caso presente.

Como dito, sendo considerações de prevenção geral e de prevenção especial de (res)socialização que estão na base da aplicação das penas de substituição, o tribunal só deve recusar essa aplicação quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente ou, não sendo o caso, a pena de substituição só não deverá ser aplicada se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias.

Estando verificado o requisito formal da suspensão da execução da pena (condenação em pena de prisão não superior a 5 anos), há que indagar se ocorre o respectivo pressuposto material, isto é, se se pode concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, designadamente se bastarão para afastar a arguida da criminalidade, pois é esta a finalidade precípua do instituto da suspensão.

O Tribunal a quo entendeu que não e justificou assim a conclusão a que chegou:

“Não suspensão da execução da pena de prisão

A arguida A... vai condenada na pena de quatro anos de prisão.

O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (artigo 50º, nº 1).

Na formulação de tal prognóstico, o tribunal reporta-se ao momento da decisão, não ao momento da prática do facto.

A arguida A... praticou o crime numa altura em que tinha problemas decorrentes do consumo excessivo de bebidas alcoólicas, numa situação de instabilidade da sua vida pessoal, sem trabalhar nem se esforçar para o conseguir, sem apoio familiar, sem preparação para alterar o seu modo de vida; tudo isso ainda se verifica sendo certo que a arguida não manifesta arrependimento.

Relativamente ao arrependimento, não basta chegar à audiência de julgamento e dizer que está arrependida.

Como diria José Saramago “Para que serve o arrependimento, se isso não muda nada do que se passou? O melhor arrependimento é, simplesmente, mudar”. Ora, no caso da arguida não há qualquer mudança desde a prática dos factos.

Como salienta o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra “A simples declaração proferida em audiência pelo arguido de que está arrependido não tem qualquer valor”. O arrependimento é um acto interior, devendo essa demonstração ser visível de modo a convencer o tribunal que se no futuro vier a ser confrontado com uma situação idêntica, não voltará a delinquir.”

Perante a situação concreta da arguida A... , não parece de formular um prognóstico favorável relativamente ao seu comportamento e apostar na sua capacidade de recuperação dos valores socialmente relevantes nem acreditar na sua reinserção plena e responsável.

Na realidade, a falta de projecto e de perspectivas bem como a sua incapacidade para resolver o problema da dependência do consumo excessivo de bebidas alcoólicas, sem qualquer evolução desde a prática dos factos em apreço não permite que se atinja esse prognóstico favorável pois nada ajuda a concluir por uma efectiva evolução que justifique uma potencial suspensão da execução da pena de prisão.”

A circunstância de a pena privativa da liberdade surgir no nosso sistema punitivo sempre como a ultima ratio, não significa porém que não haja casos em que só essa pena é adequada a satisfazer os fins das penas.

É óbvio que, ao aumentar o limite da pena de prisão (dos 3 anos para os 5 anos) dentro do qual é possível a suspensão da execução, o legislador de 2007 pretendeu alargar o âmbito de aplicação da pena de substituição, mas não tornar menos exigente o pressuposto substantivo da sua aplicação.

Aliás, vem constituindo entendimento jurisprudencial assumido que a pena de prisão efectiva deve ser a regra para os crimes que se posicionam no segmento da criminalidade mais gravosa, especialmente os crimes contra as pessoas, como, de resto, se reconhece na exposição de motivos do já citado Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, onde se pode ler que a pena de prisão deve ser reservada “para situações de maior gravidade e que mais alarme social provocam, designadamente a criminalidade violenta e ou organizada, bem como a acentuada inclinação para a prática de crimes revelada por certos agentes”[14]

O entendimento que tem prevalecido na jurisprudência é o de que, nestes casos, a aplicação da pena de substituição não satisfaz aquele conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico[15].

Se deve privilegiar-se a socialização em liberdade, não é menos certo que a defesa do ordenamento jurídico não pode ser postergada, sob pena de se sacrificar a função de tutela de bens jurídicos que a pena, irrenunciavelmente, desempenha.

Como se escreveu no citado aresto do TRL, “Banalizar a suspensão da execução da pena de prisão nos casos de crime de homicídio, ainda que só tentado, redundará num enfraquecimento da confiança da comunidade na validade das normas jurídicas que a prática do crime veio pôr em crise.”

O juízo de prognose que ora se impõe fazer a esta instância, tem de reportar-se ao momento da decisão, pois na formulação desse prognóstico tem de considerar-se, não só a personalidade da arguida, mas também as suas condições de vida e a sua conduta anterior e posterior ao facto.

A história de vida da arguida comprova que o seu desenvolvimento decorreu num contexto familiar pouco organizado, e, sem que tenha desembocado em graves problemas de socialização relacionados com a prática de actos delituosos (a arguida é primária), verdade é que se vem mostrando agora assaz desestruturado, pois que com problemas decorrentes do consumo excessivo de bebidas alcoólicas, numa situação de instabilidade pessoal, sem trabalho, sem apoio familiar e sem preparação para alterar o seu modo de vida.

O cenário que envolveu os actos em apreciação não é alheio a tal percurso, e a conduta da arguida acaba, afinal, por revelar características da sua personalidade em nada compatíveis com a possibilidade de lhe ser facultada a almejada pena de substituição. A actuação imotivada, sem autocontrolo dos impulsos mais agressivos, denotando fraca consciência crítica relativamente a tais fragilidades, mostrou-se permeável ao risco criminal, acrescendo que da sua parte não existe o reconhecimento sincero da consciência do mal do crime e da imperiosidade em estancar essa voragem.

A conjunção de prementes necessidades de prevenção geral face ao bem jurídico questionado e cuja validade urge reafirmar, bem como de outras de prevenção especial que as qualidades particularmente desvaliosas da sua personalidade não comprovam, e, pelo contrário, antes infirmam, não permitem por forma alguma preencher o juízo de prognose favorável quanto à sua capacidade para não voltar a delinquir.

Em conclusão, não merece qualquer censura a decisão recorrida que aplicou à recorrente a pena de 4 anos de prisão efectiva. Nenhuma disposição legal ou mandamento constitucional – mormente de proporcionalidade – se mostra infringido.


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III – Decisão.

Em face do exposto, acordam os juízes desta 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso da arguida e confirmar o questionado segmento do acórdão recorrido.

Por ter decaído, pagará a recorrente as custas do processo, fixando-se em quatro UCs a taxa de justiça devida (art.ºs 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal; 1.º, n.º 2, e 8.º, n.º 5, do Regulamento das Custas Processuais).


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Coimbra, 12 de julho de 2017

(Brizida Martins – relator)

(Orlando Gonçalves – adjunto)


[1] Também com a (re) apreciação da medida de coacção que acto contínuo foi feita, mas cuja impugnação se mostra processada em separado destes autos (cfr. fls. 393 e segs.).
[2] Conforme Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98.
[3] As penas de substituição (cujo fundamento, histórico e teleológico, radica no movimento político-criminal de reacção contra a aplicação de penas privativas de liberdade, sobretudo de penas curtas de prisão), além da suspensão da execução da pena de prisão (simples ou com regime de prova), são a prestação de trabalho a favor da comunidade (art.º 58.º do Código Penal), a prisão por dias livres (art.º 45.º) e a admoestação (art.º 60.º).
Como é fácil constatar pelo regime de cada uma destas penas substitutivas, uma vez que à arguida foi cominada a pena de 4 anos de prisão, só em relação à suspensão da execução da pena se verifica o respectivo pressuposto formal e, portanto, está afastada a possibilidade de substituição por qualquer outra.
[4] Acompanhando o vertido no Ac. do STJ prolatado no âmbito do recurso n.º 60/13.4 PBVLG.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[5] In Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, § 518, págs. 342/3.
[6] Ob. cit. § 520.
[7] Tratado, Parte Geral, versão espanhola, volume II, págs. 1152 e 1153.
[8] Assim, Acs do STJ, de 3 de Abril de 2003, processo n.º 865/03-5.ª, CJSTJ 2003, tomo 2, pág. 157, e de 25 de Outubro de 2007, processo n.º 3247/07-5.ª, CJSTJ 2007, tomo 3, págs. 233 a 236.
[9] De 25 de Junho de 2003, CJSTJ 2003, tomo 2, pág. 221.
[10] De 31 de Janeiro de 2008, processo n.º 2798/07-5.ª.
[11] Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 1993, § 515, pág. 341.
[12] No Código Penal Português Anotado, 8.ª edição, 1995, pág. 314.
[13] Exemplificativamente, vejam-se os de 14 de Dezembro de 2000, processo n.º 3036/00-5.ª; de 09 de Janeiro de 2005, processo n.º 123/05-5.ª; de 09 de Novembro de 2005, processo n.º 2234/05-3.ª, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 209, onde se refere: “no caso de aplicação de pena de prisão não superior a 3 anos, deve o tribunal fundamentar a sua opção pela aplicação de pena detentiva, sob pena de tal omissão constituir uma nulidade, que é de conhecimento oficioso - artigo 379.º, n.º 1, alínea c) e n.º 2 do CPP”.
[14] Ver Ac RL, in processo n.º 1484/10.4 PFLRS.L1-5, acessível em www.dgsi.pt/jtrl.
[15] Cfr., entre outros, o acórdão do STJ, de 30.04.2008 (CJ/Acs STJ, XVI, T. II, 222).